Carta Encíclica "SPE SALVI"

Dom Benedito Beni dos Santos

Introdução

Encíclica é uma carta pública dirigida pelo Papa a toda a Igreja. O seu caráter universal lhe confere, como expressão do Magistério, uma autoridade especial.

Depois de ter tratado do presente da fé - a caridade, Bento XVI trata, neste texto, do futuro da fé: a esperança. Sem as obras da caridade, a fé é morta. Mas a fé sem futuro, sem esperança, também é uma fé morta. Mais ainda, sem a esperança, a Igreja perde sua identidade. Torna-se simplesmente uma instituição religiosa que desempenha determinadas funções sociais. Sem o futuro da fé, os sacerdotes, os religiosos e religiosas, tornam-se apenas agentes sociais. A própria ação dos cristãos leigos para a transformação da realidade perde o seu vigor específico.

A encíclica Spe Salvi está pois em continuidade com a primeira encíclica de Bento XVI: Deus caritas est. Foi publicada na véspera do início do Advento, tempo de esperança. Este pormenor é também componente de seu contexto.

Com esse texto, o Papa inicia, de certo modo, um novo estilo de encíclica. Basta ler o seu início e o seu final, para se perceber que ela não tem o tom solene das encíclicas clássicas. Seu estilo se assemelha mais ao estilo didático de uma aula ou de um ensaio teológico, embora, algumas vezes, as frases sejam revestidas de emoção e beleza literária. Na realidade, a encíclica é um pequeno tratado teológico sobre a esperança.Esta é o centro da escatologia. Escatologia e eclesiologia são os tratados aos quais o teólogo Ratzinger mais se dedicou. Procura ele, nos dados da Revelação, resposta para as interrogações humanas atuais. Serve-se de categorias filosóficas não só como mediação para a explicação dos dados da fé, mas também para descobrir os questionamentos que a razão dirige à fé cristã. Entra em diálogo com correntes filosóficas e, ao mesmo tempo, assume, com relação a elas, um posicionamento crítico. Existe nela o convite à cultura para um diálogo com o cristianismo sobre o futuro da humanidade.

Outras expressões desse novo estilo de encíclica: além da citação de filósofos, também citação de teólogos recentes e literatos; para ilustrar o seu ensinamento, cita testemunhos comoventes de cristãos, de santos e santas.

Pertence ainda ao estilo da encíclica, a linguagem iluminadora, encorajadora e estimulante do pastor.

A encíclica tem uma introdução, seis capítulos e uma conclusão, que é, na realidade, uma contemplação de Maria, estrela da esperança.

Sem ter a pretensão de fazer uma análise minuciosa do documento papal, apresento apenas uma síntese pessoal em cinco pontos: articulação entre fé e esperança; a vida eterna como objeto da esperança; a natureza da esperança cristã; os lugares de experiência da esperança e, finalmente, nova perspectiva para a compreensão das realidades escatológicas.

Antes, porém, de expor cada um desses pontos, chamo a atenção para a brevíssima introdução de apenas doze linhas. Trata-se de uma justificação da oportunidade e importância da encíclica. Observa o autor que o presente está cheio de problemas e dificuldades. Mas "o presente ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho" (n.1). Aqui está, por assim dizer, a tese da encíclica.

Articulação entre fé e esperança

Esperança é uma palavra central na Sagrada Escritura. Tão central que, em diversos textos,o vocábulo fé, resposta do homem à revelação salvífica de Deus, resposta que envolve a totalidade da pessoa e o seu mundo, pode ser substituído pela palavra esperança.

Dilatar a esperança

O entrelaçamento entre fé e esperança aparece, de modo especial, na carta aos Hebreus: "A fé é o fundamento (substância) das coisas que se esperam" (11,1). Numa dimensão subjetiva, a afirmação significa que a fé é a convicção em um futuro dado por Deus. Lutero e alguns exegetas ficam apenas com esse sentido subjetivo. O Papa afirma que esse sentido não é suficiente. A fé tem também uma dimensão objetiva. Ela é a prova das coisas esperadas, ou seja, experiência do futuro prometido e esperado. Portanto, está relacionada com a construção do mundo. A esperança cristã é substanciosa.

A esperança é dom de Deus em Cristo. Ela nos é concedida no encontro pessoal com o Deus vivo e verdadeiro por meio de Cristo (cf. n.3). Ele é a nossa esperança.

A vida eterna como objeto da esperança

Este ponto é tratado nos números de 10 a 12. O Papa faz sua consideração a partir da mentalidade atual de muitas pessoas. Não desejam a vida eterna. Querem uma vida presente. Querem até adiar a morte, mas, ao mesmo tempo, a idéia de viver sem um termo causa-lhes fastio, parece algo insuportável.

A resposta a essa postura existencial, até mesmo paradoxal, se apóia numa carta de seu mestre Santo Agostinho a Proba, rica viúva romana. A vida eterna não é uma sucessão interminável de momentos. É a plenitude à qual aspiramos. Ouçamos as palavras da encíclica: "Podemos somente conjeturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois- já não existe" (n.12).

A natureza da esperança cristã

O Papa observa, com muita propriedade, que, na modernidade, houve uma desvalorização do conceito cristão de esperança. A esperança cristã foi criticada por desenvolver-se numa perspectiva individualista. Trata-se de uma esperança que abandonou o mundo à sua miséria, indo refugiar-se numa salvação eterna puramente privada. Diante disso, a esperança cristã foi substituída pela fé no progresso. O "reino do homem" tornou-se o objeto da esperança. O vínculo entre ciência e prática seria capaz de construir o paraíso neste mundo. No projeto de Karl Marx, o paraíso neste mundo seria conquistado pela política pensada cientificamente.

O que essas teorias esquecem, afirma Bento XVI, é que a construção do paraíso implica não só a razão, mas também a liberdade. E o uso da liberdade não pode ser planejado pela razão. A liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal, como o homem permanece sempre homem (cf.n.21). De outro lado, pensadores, sobretudo da Escola de Fankfurt, tem criticado o conceito de progresso. O que esperar do progresso uma vez que ele é ambíguo: oferece possibilidades para o bem, "mas abre também possibilidades abismais de mal", que antes não existiam? Ainda mais: no plano do conhecimento e do domínio da matéria, existe o crescimento cumulativo. Mas, quando se trata da decisão moral, da ética, isso não acontece: a liberdade do homem é sempre nova e deve, sempre de novo, tomar suas decisões. Planejar o uso da liberdade como se planeja a organização econômica da sociedade é anular a própria liberdade. Acrescente-se que a liberdade humana implica sempre o concurso de várias liberdades.

A conclusão a que chega a encíclica é a seguinte: o mundo constrói esperanças menores. Precisamos delas, pois elas nos mantém no caminho. Mas, sem a grande esperança, elas não bastam. Esta grande esperança é Deus. Não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e nos amou até o fim. "Somente o seu amor nos dá a possibilidade de perseverar (...) dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito" (n.31).

Com relação às críticas feitas à esperança cristã interpretada numa dimensão individualista, o Papa afirma que a autêntica esperança cristã aspira a uma salvação comunitária. Esta "pressupõe o êxodo da prisão do próprio "eu" para acolher o amor em todas as suas dimensões; por conseguinte, ela tem a ver também com a edificação do mundo"(n.14).

Lugares de experiência da esperança

Trata-se da importância da esperança na vida cristã. O Papa se refere aos lugares de aprendizagem e de exercício da esperança. São eles: a oração, o agir e o sofrer e, finalmente, o Juízo.

A oração é chamada "escola da esperança". Na expressão de Santo Agostinho, citado pela encíclica, a oração é o exercício do desejo. Este exercício é necessário porque o nosso coração "é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado" (n.33). Vale a pena transcrever literalmente a observação do Papa sobre a dimensão vertical e horizontal da oração: "Orar não significa sair da história e retirar-se para o canto privado da própria felicidade. O modo correto de rezar é um processo de purificação interior que nos torna aptos para Deus e, precisamente desta forma, aptos também para os homens". As orações da Igreja e dos santos devem iluminar a nossa oração. Sobretudo a liturgia deve iluminar a nossa oração. Nela "o Senhor nos ensina a rezar de modo correto" (34). É a oração que nos torna capazes da grande esperança e nos faz "ministros da esperança para os outros" (Ibid.34).

A grande esperança, apoiada nas promessas de Deus, nos impulsiona a agir até mesmo quando, no plano humano, já não existe motivo para esperar. Ainda mais: "Toda ação séria e reta do homem é esperança em ato" (n.35).

O sofrimento é também lugar de exercício da esperança. A encíclica chama de lugar privilegiado. A esperança dá ao ser humano a coragem para enfrentar o sofrimento e de, através dele, amadurecer. Pela união com Cristo, "que sofreu com infinito amor" (n.37) e, por esse motivo, seu sofrimento se tornou fonte de graça, podemos encontrar sentido para o sofrimento.

A perspectiva do juízo final de Deus é também lugar para o exercício da esperança. Embora não seja uma realidade presente mas futura, o juízo final suscita a esperança porque elimina o mal.

Houve, às vezes, um protesto contra Deus em nome da justiça. Ora, "Deus é justiça e cria a justiça. Mas, em sua justiça, Ele é conjuntamente graça" (n.44). Existe uma ligação interior entre justiça e graça. "A graça não exclui a justiça. 'Não muda a injustiça em direito. Não é uma esponja que apaga tudo de modo que tudo quanto se fez na terra termine por ter o mesmo valor' (n.44). A imagem do juízo final não é, ao mesmo tempo, esperançosa e assustadora. É uma 'imagem decisiva de esperança', mas, que, ao mesmo tempo, apela para a responsabilidade"(n.44).

Nova perspectiva para a compreensão das realidades escatológica

O Papa cita o inferno, o purgatório e a oração pelos defuntos. É talvez a parte mais importante da encíclica. Neste ponto, a reflexão se torna não só mais profunda, mas também mais complexa, sobretudo porque se desenvolve através de um raciocínio dialético. A compreensão de verdades fundamentais da fé, de natureza escatológica, é realizada com a contribuição da teologia. Trata-se de explicação possível, mas não fechada.

Com relação ao purgatório e ao inferno, a reflexão da encíclica parte da opção fundamental: "Com a morte, a opção de vida feita pelo homem torna-se definitiva; sua vida está diante do Juiz" (45). O Papa coloca a hipótese de haver dois grupos de pessoas: aquelas "que destruíram totalmente em si o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas" (45). Observa o Papa que isso é terrível, porém algumas figuras da história parecem ter assumido "perfis desse gênero"(n.43). De outro lado, podem existir "pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar inteiramente por Deus, e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já são" (45).

A seguir, vem a conclusão do raciocínio dialético do teólogo Ratzinger: "Mas, segundo a nossa experiência, nem um nem outro são o caso normal da existência humana. Na maioria dos homens -como podemos supor- perdura no mais profundo de sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus" (n.46). Aqui se encontra o suporte para uma ulterior purificação após a morte. Trata-se do encontro definitivo com o Juiz e Senhor. "fogo que queima e salva" (cf. 1Cor. 3,12-15). Escreve o Papa: "O seu olhar, o toque de seu coração cura-nos por meio de uma transformação certamente dolorosa "como pelo fogo" (n. 47). Contudo é uma dor feliz, em que o poder santo de seu amor nos penetra como chama, consentido-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo, totalmente de Deus" (n.47). E o Papa conclui: "A dor do amor tornou-se a nossa salvação e a nossa alegria" (n.47). A encíclica faz uma afirmação complementar: "É claro que a "duração" desse queimar que transforma não a podemos calcular com as medidas de cronometragem deste mundo".

A passagem que trata da oração pelos defuntos é uma das mais belas da encíclica.

A oração pelos que se encontram no estado intermediário fundamenta-se em dados antropológicos: "nenhum homem é uma mônada fechada em si mesma. Nossas vidas estão em profunda comunhão entre si; por meio de numerosas interações, estão concatenadas umas com as outras" (n.48). A partir dessa premissa, o Papa tira a seguinte conclusão de natureza teológica. "Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho" (n.48). Nosso amor pelas pessoas pode ultrapassar as fronteiras da morte e chegar ao além. Trata-se, segundo encíclica, de uma convicção fundamental do cristianismo. "Na trama do ser, o meu agradecimento a ele (o outro), a minha oração por ele pode significar uma pequena etapa da sua purificação"(n.48).

A oração pelos defuntos é uma expressão da natureza social da esperança cristã: "A esperança é sempre essencialmente também uma esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança para mim" (n.48).

Conclusão

A encíclica se encerra com uma prece dirigida a Maria, estrela da esperança.

A vida humana é uma viagem no mar da história. Neste mar, às vezes escuro e agitado por ondas e tempestades, devemos olhar para o alto a fim de descobrir os astros que nos apontam a rota, isto é, que nos ensinam a viver com retidão. O astro maior, "a luz por antonomásia", é Jesus Cristo. "Mas para chegar até ele, precisamos também de luzes vizinhas, de pessoas que dão luz recebida da luz dele e oferecem, assim, orientação para nossa travessia" (n.49). E o Papa pergunta: "E quem mais do que Maria poderia ser para nós estrela da esperança? Ela que, pelo seu "sim", abriu ao próprio Deus a porta do nosso mundo; Ela que se tornou a Arca da Aliança viva, onde Deus se fez carne, tornou-se um de nós e veio morar no meio de nós (cf. Jo 1,14)".