Paulo Sérgio Lopes Gonçalves
Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (PUG). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas. Contato: paselogo@puc-campinas.edu.br
Igor Gabriel Mendes Neves Miranda
Graduação em Filosofia Bacharelado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2022). Contato: igor.gmnm1@puccampinas.edu.br
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as contribuições da Declaração Nostra Aetate para o diálogo inter-religioso. A declaração é um marco significativo, pois permite à humanidade construir o diálogo e a cooperação religiosa. Com a abertura para o diálogo inter-religioso, reconhece as tradições religiosas como caminho e resposta para as questões que afligem o coração humano. O documento propõe um novo modo de compreender a experiência de Deus, tendo o diálogo como consequência da Revelação inserida na história. Essa perspectiva conciliar, a partir de relações de alteridade, promove a paz e a compreensão entre os povos na busca da verdade e, por propiciar uma postura dialogal, enriquece a fé e fortalece a identidade religiosa, a fim de combater o fundamentalismo. Nessa perspectiva, tem-se a promoção do diálogo inter-religioso e pretensão de construir pontes de entendimento, essenciais para a convivência e enriquecimento espiritual. Para atingir esse objetivo, abordar-se-á o contexto do Concílio Vaticano II como status spiritualis da Declaração Nostra Aetate, o respectivo conteúdo e as contribuições históricas e teológicas desse documento relevante do evento conciliar.
Palavras-chave: Diálogo inter-religioso; Cristianismo; Religiões; Revelação; Alteridade
Abstract: The present work aims to analyze the contributions of the Declaration Nostra Aetate to interreligious dialogue. The declaration is a significant milestone, as it allows humanity to build dialogue and religious cooperation. By opening up to interreligious dialogue, it recognizes religious traditions as a path and a response to the questions that afflict the human heart. The document proposes a new way of understanding the experience of God, with dialogue being a consequence of Revelation inserted in history. This conciliar perspective, based on relationships of otherness, promotes peace and understanding among peoples in the pursuit of truth and, by fostering a dialogical stance, enriches faith and strengthens religious identity in order to combat fundamentalism. From this perspective, there is the promotion of interreligious dialogue and the intention to build bridges of understanding, which are essential for coexistence and spiritual enrichment. To achieve this objective, the context of the Second Vatican Council will be addressed as the status spiritualis of the Declaration Nostra Aetate, its respective content, and the historical and theological contributions of this relevant document from the conciliar event.
Keywords: Inter-religious dialogue; Christianity; Religions; Revelation; Otherness
A temática do diálogo inter-religioso, abordada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, apresentou questões fundamentais para o desenvolvimento de uma nova postura da Igreja Católica com as outras religiões. Este trabalho estabelece como objetivo apresentar e analisar as contribuições da Declaração Nostra Aetate para o diálogo inter-religioso e seus desdobramentos históricos e teológicos para a Igreja.
O diálogo inter-religioso é um elemento essencial para a convivência e a compreensão entre as diferentes tradições espirituais e culturais. Em um mundo cada vez mais globalizado e interconectado, promover o entendimento mútuo e o respeito entre as religiões torna-se ainda mais urgente e desafiador. Um marco importante nesse processo de diálogo foi a Declaração Nostra Aetate, promulgada pelo Concílio Vaticano II em 1965. Esta Declaração representa uma mudança significativa na atitude da Igreja Católica em relação às outras religiões, reconhecendo suas contribuições positivas para a humanidade e afirmando a importância do diálogo e da cooperação entre diferentes tradições religiosas.
A elaboração da declaração emerge de questões relacionadas ao ecumenismo e da relação com os judeus, que posteriormente se estenderá às demais religiões. No entanto, o novo documento abre caminho para um novo diálogo. Primeiro, com o mundo moderno, uma vez que as religiões buscam oferecer ao ser humano respostas para as questões da vida. Segundo, rompe com a intransigência dos anos pré-conciliares em relação ao avanço da sociedade moderna e ao conflito entre Igreja e Estado.
Ao abordar reflexões de caráter antropológico e teológico, o documento conciliar reconhece as religiões como parte de um processo de avanço cultural, como uma resposta às inquietações humanas. No campo teológico, a relação entre Deus e o homem emerge como fonte de diferenciação da experiência divina. Através da Revelação dinâmica, cada ser humano manifesta sua experiência de um modo e de formas diferentes.
Com isso, além de relacionar-se com Deus, o sujeito é chamado a encontrar-se com o outro. Essa postura exige respeito e, principalmente, compreensão no que tange às diferenças. A alteridade é o princípio fundamental para que essa relação produza um diálogo verdadeiro e capaz de promover o bem comum, a justiça e a paz.
Assim, abordaremos o contexto histórico-teológico que favoreceu a gênese da Declaração Nostra Aetate, bem como a apresentação e análise de seu conteúdo. Em seguida, serão analisadas as contribuições do diálogo inter-religioso para a Igreja, destacando a relação entre Revelação e verdade, e o significado da alteridade para o diálogo inter-religioso.
O Concílio Ecumênico Vaticano II realizado entre 1962 e 1965, foi convocado pelo Papa João XXIII. Tinha por objetivo um processo de renovação eclesial, não somente ad intra Ecclesia, mas também uma renovação na relação da Igreja com o mundo contemporâneo.
Apesar do falecimento de João XXIII em junho de 1963 e com a eleição de Paulo VI, o Concílio foi marcado pelo espírito de diálogo, tanto interno da Igreja como com a contemporaneidade histórica, marcada pela autonomia do ser humano. Assim, o Vaticano II desenvolveu uma eclesiologia de comunhão, colocando-a em movimento ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso e com as questões fundamentais inerentes ao ser humano.
O Concílio Vaticano II parte de um processo no qual a Igreja precisa se redescobrir e, em sua reflexão, encontrar novos caminhos pelo mundo moderno. Em um período de grandes embates, o século XX, foi marcado não só pelo avanço da tecnologia, mas também por guerras e conflitos humanos. Esses acontecimentos mostram para a Igreja “que o sistema de cristandade não corresponde ao modelo social e as urgências apresentadas às grandes religiões pela contemporaneidade” (DAMIÃO SOBRINHO, 2021, p. 104).
É nesse contexto histórico que o conflito entre a Igreja a as outras tradições religiosas se tornam mais intenso. A relação com o judaísmo clama por atenção diante do Holocausto causado pela perseguição do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Isto posto, cabe pensar uma nova forma de ser Igreja, inserida nesse contexto político-social desastroso, incorporando uma outra postura institucional e ressaltando a Tradição e o Magistério.
Diante das prementes realidades humanas que confrontam a identidade e a missão da Igreja, o papa São João XXIII respondeu convocando um concílio. O espírito de oração e a metodologia aplicada quebraram paradigmas. Por isso, afirma-se que o Concílio Vaticano II foi um novo Pentecostes para a Igreja Católica, influenciando a sociedade e dialogando com as outras religiões e culturas dos povos (WOLFF, 2023, p. 9)
Assim, em 25 de janeiro de 1959, João XXIII anuncia o novo concílio, que tem por missão a renovação da Igreja. Tendo convocado esse grande acontecimento histórico, o papa dá início à sua preparação. Em 1960, por meio do Motu Próprio Superno Dei Nutu, instituiu o Secretariado para a União dos Cristãos (KLOPPENBURG, 1962, p. 21), que será responsável por trabalhar as relações da Igreja com o judaísmo, sob a responsabilidade do Cardeal Agostinho Bea.
A isso acrescentam dois secretariados, de natureza técnica, e um terceiro, o Secretariado para a Unidade dos Cristãos, de natureza bastante diferente. João XXIII nomeou para ficar à sua frente o Cardeal Bea, jesuíta octogenário [...]. Foi ele que esteve a cargo da orientação ecumênica que constituía então a novidade do concílio (MOULINET, 2012, p. 20).
Desse modo, o novo Secretariado ficou responsável por elaborar, durante a fase preparatória um esquema sobre os judeus. Tendo em vista que a questão do judaísmo e das outras religiões lhe deixaram uma marca profunda, o papa João XXIII manifestou pessoalmente o desejo que este tema fosse apresentado e trabalhado dentro do concílio (KLOPPENBURG, 1964, p. 262).
Com a morte de João XXIII e a eleição de Paulo VI, esse contexto de diálogo inaugurado na primeira sessão do concílio ganha um novo vigor. Com o apoio dos papas, “o debate sobre a questão do judaísmo e das religiões não-cristãs foi incentivada pela maioria dos padres conciliares, entre a segunda e a quarta sessão, fazem com que se firme a Declaração Nostra Aetate” (Damião Sobrinho, 2021, p. 108).
Em sua conclusão, o Concílio Vaticano II aprovou quatro constituições – Sacrosanctum Concilium, Lumen Gentium, Dei Verbum e Gaudium et Spes –, nove decretos – Ad Gentes, Presbyterorum Ordinis, Apostolicam Actuositatem, Optatm Totius, Perfectae Caritatis, Chritus Domius, Unitatis Redintegratio, Orientalium Ecclesiarum e Inter Mirifica – e três declarações – Gravissimum Educationis, Nostra Aetate e Dignitatis Humanae – que abordaram vários temas relacionados à Igreja, que foram discutidos pelos padres conciliares. Dentre esses documentos, está a Declaração Nostra Aetate, que oferece uma reflexão sobre a relação do Cristianismo com as religiões não cristãs.
Essa declaração é de suma importância pois abre as portas para o diálogo inter-religioso. além disso, a declaração ultrapassa o caráter de orientação pastoral e oferece uma reflexão antropológica e teológica das religiões.
Transcorridas as sessões do Concílio, o tema do diálogo com outras religiões “não-cristãs”, principalmente, com a tradição judaica, ganhou grande repercussão. Após algumas reflexões, os padres conciliares acharam por bem expandir o conteúdo da declaração, abordando outras religiões. “Os bispos das ‘novas Igrejas’ da Ásia queriam a inclusão do budismo e do hinduísmo. Assim, o documento, originalmente planejado como declaração teológica sobre os judeus [...] acabou expandindo na versão definitiva (O’MALLEY, 2014, p. 233).
Recebendo novamente intervenções e propostas de uma nova elaboração, a fim de que a mensagem proposta pelo concílio fosse Clara, o documento passou por uma nova redação. É valioso ressaltar a colocação apontada pelo cardeal Franz Koening, então arcebispo de Viena:
O texto da declaração é digno de louvor, principalmente pelo espírito de Caridade, que reflete, para com todos os homens. Deveria, porém, ser retocado em algumas expressões para que torne mais perfeito. A Declaração tem a finalidade de corrigir o modo de pensar até agora existente no mundo cristão com respeito aos judeus. Embora, na Sagrada Escritura haja tantas expressões contra os judeus, os católicos têm o dever de amar todos os homens. O texto deveria também nomear as outras religiões não-cristãs além da muçulmana (KLOPPENBURG, 1965, p. 83).
Assim, após a reelaboração da declaração o novo texto é apresentado para a votação conciliar. Em 28/10/1965, o papa Paulo VI promulgou em sessão pública a declaração Nostra Aetate sobre as relações da igreja com as religiões não cristãs. Com isso, o Concílio Vaticano II foi o primeiro concílio da história abordar e refletir profundamente acerca das outras religiões.
O documento final é composto de 5 parágrafos que carregam uma profunda reflexão teológica a igreja destaca a importância e o valor das relações humanas, inserida dentro de uma única comunidade. Todos os povos constituem uma só comunidade, tendo sua origem e fim último em Deus (NA 1). Partindo dessa relação, a declaração apresenta uma categoria antropológica:
os homens esperam das diversas religiões, uma resposta aos recônditos enigmas da condição humana, que ontem como hoje perturbam profundamente o coração humano: Que é o homem? Qual o sentido e o fim da vida? [...] Qual o caminho para se chegar a verdadeira felicidade? [...] Em que consiste, afinal, o mistério último inefável que envolve a nossa existência, do qual tiramos a nossa origem e para a qual nos encaminhamos? (NA 1)
Tendo por base esse caráter antropológico, a declaração reconhece que as religiões estão correlacionadas ao processo de avanço cultural, se esforçando para oferecer ao homem uma resposta às inquietações do seu coração (NA 2). Frente as religiões, como o Budismo e o Hinduísmo, a Igreja Católica reconhece o que seja Verdadeiro e Santo nessas religiões esse reconhecimento fundante para abertura ao diálogo inter-religioso.
Por meio da abertura ao diálogo, a Igreja busca com a colaboração das outras religiões, levando sempre em conta o testemunho da fé e da vida cristã, reconhecer conservar e fazer progredir os bens espirituais, morais e os valores socioculturais que nelas se fazem presentes (NA 2). Com esse diálogo, ao tratar sobre a religião muçulmana a Igreja busca colocar em prática a mútua compreensão, a promoção da justiça social, os valores morais, a paz e a liberdade (NA 3) entre as tradições religiosas.
Em relação ao judaísmo, temática fundante da declaração, a Igreja ressalta a sua importância no processo da Revelação, dado no Antigo Testamento, recebido por meio do povo da Antiga Aliança (NA 4). Ao reconhecer esse patrimônio, promove o mútuo conhecimento entre os estudos bíblicos e da teologia, bem como, o fortalecimento do diálogo fraterno.
Além disso, a Igreja, que reprova todas as persegue sono contra quaisquer homens que seja, não esquecendo o patrimônio que ela tem em comum com os judeus, e movida não por motivos políticos, mas pela caridade religiosa do Evangelho, deplora os ódios, as perseguições e todas as manifestações de anti-semitismo que, seja quem for, dirigiu contra os judeus em qualquer época (NA 4).
Por fim, sobre a fraternidade universal, a Declaração exorta que não podemos invocar Deus, Pai de todos, quando há recusa em estabelecer uma relação de irmandade para com alguns homens criados à imagem e semelhança de Deus (NA 5). Frente a essa exortação, a Igreja se posiciona contra toda e qualquer discriminação entre os homens, bem como, a perseguição por variados motivos (raça, cor, condição social e, principalmente, religião).
Assim, o conteúdo dessa pequena declaração, abre as portas para um novo modo de dialogar. Tal exercício entre as religiões exige uma nova compreensão e um novo valor frente à palavra, à escuta e ao testemunho (DAMIÃO SOBRINHO, 2021, p. 115). O documento conciliar incorporar as questões fundamentais do homem às questões fundamentais da Igreja. E, com isso, se torna capaz de superar as questões do ser humano, a violência e a intolerância religiosa e, principalmente, o fundamentalismo.
De acordo com o exposto, a Declaração Nostra Aetate, além de apresentar uma orientação pastoral, é carregada de uma reflexão antropológica e teológica. O documento reconhece o papel das religiões para a vida humana, uma vez que, por meio da fé, auxiliam na busca de respostas para as inquietações existenciais do ser humano. Para a tradição judaico-cristã, o homem é concebido como imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26), desse modo, é vocacionado a viver uma vida em Deus. Tal concepção se dá através do processo de divinização, ao passo que o ser humano vai realizando o projeto divino em sua vida.
A maioria das religiões afirma também a relação entre o ser humano e a divindade. Para muitos, existe uma realidade sobrenatural que é, ao mesmo tempo, a origem e o destino final de toda criação. E, ao afirmarem isso, as religiões têm uma grande responsabilidade na orientação do sentido para a vida humana. Tal responsabilidade não é mera questão ética, mas eminentemente teológico-religiosa (WOLFF, 2012, p. 138-139).
Com essa afirmação da relação entre humano e divino, as religiões apontam para a totalidade humana. Desse modo, para melhor orientar seus membros a esse “Fim Último”, o diálogo inter-religioso deve promover a defesa e a promoção da vida. Frente a isso, “as religiões são chamadas a lançarem um olhar comum para o humano e as vicissitudes do seu meio, cooperando na busca de solução aos problemas sociais que aí existem” (WOLFF, 2023, p. 107).
Em uma perspectiva teológica, o diálogo inter-religioso, como comunicação e relação entre Deus e o homem, proporciona o reconhecimento da universalidade da graça de Deus. Segundo Faustino Teixeira, “não há possibilidade de um controle humano sobre a dinâmica da gratuidade de Deus sempre maior, do mistério do ‘Deus que se dá’” (2002, p. 166). Isso só é possível uma vez que a declaração reconhece aquilo que há de “verdadeiro” e “santo” nas diferentes tradições religiosas.
Podem ser uma expressão, diferenciada mas legítima, da experiencia divina e da santidade que os cristãos buscam. Somente Deus é santo, e sendo ele experienciado de diferentes formas nas diferentes religiões, as multiformes experiências da graça possibilitam multiformes expressões de santidade no seio da diversidade religiosa (WOLFF, 2012, p. 144).
Esse olhar teológico se torna possível à luz da fé em Cristo e em conformidade com o Evangelho. A vivência evangélica oferece a compreensão das condições e das exigências de um diálogo frutuoso. Assim, o diálogo inter-religioso deve ser estruturado em uma atitude de abertura, pois, o diálogo verdadeiro só acontece quando há disposição para ouvir e aprender.
Tal relação entre as religiões favorece um enriquecimento mútuo e o fortalecimento da identidade religiosa. “É fundamental à Igreja entender-se peregrina da verdade” (WOLFF, 2012, p. 14), vivenciando uma comunhão na diversidade, abrindo-se às manifestações do Espírito em nosso tempo.
Tendo analisado as características da declaração, urge a necessidade suscitar a seguinte pergunta: quais são os pontos fundamentais acerca do diálogo inter-religioso trazido pela Declaração Nostra Aetate? Não obstante a possibilidade de levantar diversos pontos, concentrar-se-á em dois deles: a relação entre Revelação e verdade, e o significado da alteridade para o diálogo inter-religioso.
O diálogo inter-religioso, na busca de promover a compreensão e a cooperação entre as tradições religiosas, depara-se com duas questões importantes: o dado da Revelação e a reflexão sobre a verdade. Ambos os aspectos são essenciais, pois referem-se a maneira como as tradições religiosas experimentam e interpretam a comunicação divina.
A revelação é um dos grandes desafios para o entendimento mútuo entre as religiões. No que abrange o diálogo inter-religioso, Queiruga (2010, p. 285) afirma que “uma revelação não poderia ser verdadeiramente plena, se de algum modo não pudesse alcançar a todos os homens e mulheres”. Dessa forma, compreende-se que há experiências de Deus em diferentes situações, tanto dentro de uma religião específica como também, fora do âmbito religioso.
A “procura” de Deus já é um Dom. Essa procura não se situa num nível filosófico, mas indica uma experiencia de fé. Além disso, a experiencia de fé se vive [...] numa religião, da qual pode ser conceitualmente diferente, mas não ficar separada na realidade (DUPUIS, 2004, p. 61).
É preciso compreender que o diálogo acontece para além do que é semelhante. A partir do que se difere também é possível dialogar e caminhar para uma cooperação em busca da paz, da justiça e, principalmente, da fraternidade universal (NA 5). “O desafio teológico continua sendo o de compreender e explicitar como a ação do Verbo e do Espírito não acontece apenas no coração das pessoas, mas também através dos elementos objetivos de suas tradições religiosas (WOLFF, 2023, p. 91).
A declaração Nostra Aetate vem de encontro a essa problemática ao reconhecer o que há de “verdadeiro e santo” nas outras religiões (NA 2). Assim,
A novidade da doutrina do Concílio, contida na declaração Nostra Aetate (1965), foi a de afirmar não apenas uma possibilidade de conhecimento de Deus, mas também a realidade desse conhecimento na experiencia do sagrado dessas religiões históricas (PASTOR, 2012, p. 91)
Apesar de tal concepção, o diálogo inter-religioso encontra uma enorme fragilidade: o problema da verdade. Os desafios do mundo contemporâneo “faz a Igreja temer a perda de referências seguras na identidade católica” (WOLFF, 2012, p. 12). Assim, tal insegurança proporciona uma compreensão errônea do diálogo. O magistério conciliar apresenta uma inovação, ao ampliar a compreensão e expressão da verdade sobre Deus às outras religiões. Frente a isso, no diálogo inter-religioso todas as religiões podem compartilhar da verdade, possibilitando a comunicação e complementação da verdade (WOLFF, 2023, p. 121).
Não se trata [...] aqui de renunciar à experiencia da revelação crista como manifestação plena, definitiva e universalizável de Deus em Cristo: não se pode ignorar a luz, uma vez que se acredita tê-la visto ou entrevisto. Trata-se simplesmente de [...] “não se apoderar” dessa experiência, mas sim deixá-la expandir-se conforme as leis de seu próprio dinamismo, que é gratuito e “sem acepção de pessoas (QUEIRUGA, 2010, p. 347).
Cabe a Igreja, a partir desse marco conciliar, colocar-se como peregrina em busca da verdade. é reconhecer essas formas diferenciadas como ação do Espírito Santo, uma vez que o Concilio “interpreta os elementos institucionais das religiões como semina verbi e ‘reflexo’ da Luz, que para a Igreja é Cristo” (WOLFF, 2023, p. 110). A vivência concreta do Evangelho permite que todos constituam uma comunidade fraterna, que tem sua origem e fim último em Deus.
Nesse sentido, em uma sociedade moderna é no “encontro entre várias culturas e religiões que que elas poderão descobrir uma verdade até então não percebida por nenhuma delas” (PANASIEWICZ, 2007, p. 165). Deus se revela de diferentes modos, em diferentes tempos e em inúmeras situações, ou seja, a graça atua fora do âmbito religiosos e alcança a todos por diferentes caminhos (AG 3).
As análises da Declaração Nostra Aetate, na perspectiva relacional entre o cristianismo e as outras religiões, encaminha-nos a reflexão acerca da alteridade e do encontro com o outro. Dessa forma, o diálogo inter-religioso, busca uma cooperação entre as tradições religiosas, com o objetivo de realizar projetos que estimulem o bem comum, a justiça e a paz. Mas, para tal cooperação é necessário que o ser religioso vá ao encontro do outro, em uma postura de respeito frente às diferenças.
Numa “correlação” verdadeira de religiões, participantes são chamados a expressar seus pensamentos. Para que a relação seja produtiva e cheia de vida, as pessoas religiosas que participam do diálogo, sejam elas quem for, devem ser crentes de maneira plena, pessoas que estão comprometidas com o que defendem, e convencidas que o que afirmam é bom e verdadeiro (KNITTER, 2010, p. 44).
Essa “correlação”, expressa por Paul Knitter, só se torna possível à medida que, ambas as partes envolvidas, desejam dialogar. O diálogo deve ser estruturado e fundamentado na atitude de simpatia, com disposição para se aprofundar na experiência do outro, a fim de compreendê-la de dentro para fora. É colocar-se no lugar do outro, fazendo da experiência do outro também a sua. “Assumir a alteridade exige reconhecer a condição sociocultural, psíquica ou moral das outras pessoas. E assim se reconhece também o seu modo de ser religioso” (WOLFF, 2023, p. 95).
O processo de reconhecimento do outro exige das tradições religiosas uma revisão no modo de compreender a realidade plural em que estão inseridas. Para tal, é necessário superar a ideia de semelhança e de uniformidade. O diálogo exige a compreensão das diferenças e como elas auxiliam no processo da busca de sentido na qual o homem se encontra.
Uma das condições mais essenciais para o diálogo inter-religioso é a virtude da humildade. No diálogo experimenta-se a consciência dos limites e a percepção da presença de um mistério que a todos ultrapassa. O diálogo envolve o discernimento da contingência e vulnerabilidade, e isto implica uma disposição de escuta do outro que interpela. O diálogo exige humildade, abertura e respeito ao diferente. Não basta, porém, abrir-se à diversidade, mas igualmente afirmar a liberdade e a dignidade do outro, deixar-se interpelar por sua verdade (TEIXEIRA, 2002, p. 159).
Assim, o diálogo acontece de forma autêntica, com uma relação de igualdade de respeito. “Ao contrário do que geralmente se pensa, num modelo correlacional de chamar religiões ao diálogo, diferenças são mantidas, reconhecidas, apreciadas; não são evaporadas para criar algum tipo de sopa religiosa geral” (KNITTER, 2010, p. 45).
Isto posto, a questão da alteridade e do encontro com outro, na perspectiva do diálogo inter-religioso, envolve um reconhecimento profundo das diferenças. Reconhecer e valorizar essas diferenças, não apenas promove uma maior compreensão entre as religiões, mas também favorece a luta pela justiça e pela paz.
Objetivou-se, neste trabalho, apresentar e analisar as contribuições da Declaração Nostra Aetate na relação do Cristianismo com as outras religiões, frente à perspectiva do diálogo inter-religioso.
Partindo de um contexto histórico marcado por conflitos e perseguições contra os judeus, o Papa João XXIII, ao ser eleito, convocou um novo concílio, com o intuito de inaugurar uma postura eclesial de aggiornamento e diálogo com o ser humano contemporâneo. Por isso, o diálogo inter-religioso é uma forma não apenas de efetivar o diálogo da Igreja com outras religiões, mas dialogar com a humanidade de hoje.
A declaração Nostra Aetate, um dos frutos significativos desse concílio, desempenhou um caminho de abertura ao diálogo inter-religioso, ao reconhecer nas outras religiões elementos de verdade e santidade. Outro aspecto significativo é a mudança de postura da Igreja Católica em relação ao mundo pluralista. Essa postura é marcada pela relação não só com o judaísmo, mas também com as outras tradições religiosas.
Além disso, partindo de uma abordagem antropológica e teológica, enfatiza o valor da cooperação entre as religiões na busca de respostas para as inquietações humanas. Ademais, a reflexão teológica reconhece a experiência de fé frente à Revelação, nas suas diversas manifestações, a fim de, por meio do diálogo, promover o enriquecimento mútuo.
O diálogo inter-religioso é uma ferramenta fundamental para a compreensão e cooperação entre as religiões. A abordagem do documento, nas relações que cercam o ser humano, promove uma visão de alteridade, onde o encontro com o outro é indispensável. Essa relação, apesar das diferenças, deve suscitar respeito e enriquecimento mútuo, visando o bem comum, a justiça e a paz. Tal contribuição da Declaração Nostra Aetate correlaciona-se com o documento A fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, do Papa Francisco em sua viagem aos Emirados Árabes em fevereiro de 2019. Esse documento busca promover a paz e a convivência entre as pessoas de diferentes religiões e culturas, partindo da fé em Deus e da dignidade entre os seres humanos, atualizando o apelo da declaração conciliar. Além disso, destaca a necessidade do diálogo inter-religioso, a fim de promover reconciliação, solidariedade e a preservação da dignidade humana e prol de um mundo mais justo e pacífico.
Em suma, o Concílio Vaticano II e o conteúdo proposto pela Nostra Aetate formaram a base para um novo modo de ser e pensar Igreja no mundo moderno-contemporâneo. É preciso tomar a postura de uma Igreja aberta ao diálogo, que valoriza o diferente presente nas outras tradições religiosas e, junto a elas, responder aos desafios da humanidade.
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