Entre escritos canônicos, apócrifos e contemporâneos: múltiplas imagens de um mesmo Jesus?
Between canonical, apocryphal and contemporary writings: a multiple images of same Jesus?

Sebastião Lindoberg da Silva Campos
Doutorando em Literatura pela PUC-Rio. Email: lindoberg_pe@hotmail.com
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Resumo
A figura de Jesus talvez seja uma das figuras mais controversas da história. Controversa porque apesar de ser um homem que viveu em determinada época e espaço, sua imagem não é unívoca. A literatura canônica e apócrifa, que gira em torno de sua vida pública, nos oferece um panorama interessante acerca da figura de Jesus. Não apenas por apresentarem imagens distintas de um mesmo homem, mas por imprimirem a ele uma concepção específica de mundo que parece estar mais atrelada às comunidades que berçaram tais textos que ao próprio Jesus. No entanto, enquanto estes escritos, que disputavam entre si uma hegemonia, outorgavam a manifestação da Verdade Absoluta, outro escrito que (re) vive a história de Jesus, este contemporâneo, subverte todo o conceito de verdade e brinca com esta tradição antecessora. O evangelho do escritor lusitano José Saramago, ao reverter a imagem sedimentada de Jesus, busca romper com um horizonte transcendente. Ao resgatar a figura do homem Jesus, desligando-o de uma filiação extraterrena, Saramago opera uma ação questionadora da verdade estabelecida e imputa aos homens a responsabilidade ética nos rumos civilizacionais. À maneira dos escritos dos primeiros séculos que se apropriaram da figura de Jesus e a moldaram conforme seus interesses, Saramago repete tal ação contemporaneamente, fazendo de Jesus seu porta-voz.

Palavras chave: Interpretação bíblica; Teoria Literária; Códice 2437; Protocolo de leitura; Roger Chartier.

 

Abstract
The figure of Jesus maybe is one of the most controversy figure of the history. Controversial because despit he is a man who lived in a particular time and space, his image is not univocal. The canonical and apocryphal literatures, that talk about his public life, offers us an interesting large view about the figure of Jesus. Not just because they represent a different images of the same man, but for print in him a specific understanding of the world that seems to be more linked to the communities that originated theses texts than to be linked a Jesus himself. However, while these writings, which vied with each other for hegemony, gives to the manifestation of Absolute Truth, other writing that revives the story of Jesus this contemporary, subverts the whole concept of truth and plays around with this tradition predecessor. The gospel of the portuguese writer José Saramago, when he reverses the sedimented image of Jesus he seeks to break with a transcendent horizon. When he rescues the man Jesus figure, disconnecting him from an extra- terrestrial affiliation, Saramago performs a questioning action of the established truth and he imputes to men the ethical responsibility in the civilizational directions. As the writings of the first centuries which appropriated the figure of Jesus and shaped it according to their interests, Saramago repeats such action simultaneously, making Jesus his spokesman.

Keywords:Christianity. Literature. José Saramago. Canonical. Apocryphal.

Introdução

Quem de fato foi Jesus? Essa é possivelmente a interrogação que mais encontrou reverberação na história civilizacional ocidental nos últimos dois milênios. Jesus é uma figura controversa, base de uma diversidade de pensamentos religiosos que buscam em sua figura o fundamento primevo. A crítica histórica e a arqueologia, na contemporaneidade, foram as ciências que mais se debruçaram sobre a investigação desse sujeito em busca de respostas concretas. No entanto, tendo apenas como fonte majoritária de informações os quatro evangelhos canônicos de Lucas, Marcos, Mateus e João, pouca atenção se deu numa perspectiva literária acerca desses escritos e daqueles que são considerados apócrifos. Todos esses escritos, canônicos ou apócrifos, revelam, não obstante uma multiplicidade literária entre grupos políticos, uma perpetuação de um regime ético da literatura.

É fato que a figura de Jesus como sujeito histórico, ou seja, um homem que existiu em determinada época, tempo e lugar específicos, seja uma verdade relativamente inquestionável e passível de aceitação, e que não demanda grandes discussões acaloradas na contemporaneidade. Todavia, se investigássemos o processo de sedimentação, ou mesmo o processo de constituição da figura de Jesus – homem que viveu e morreu na Palestina, no tempo de Pôncio Pilatos, sob o julgo do Império Romano – para o Cristo, o Messias prometido no seio da tradição judaica, perceberíamos que tal processo não se configura como unívoco e plenamente aceito.

Do interior da tradição do judaísmo para o estabelecimento do cristianismo, a metamorfose que se opera na figura de Jesus é bem documentada e apresentada na literatura produzida em torno das comunidades que se digladiavam para se estabelecer diante da multiplicidade de visões, muitas divergentes entre si, e consequentemente, impor sua visão de sociedade e mundo. Como afirma o filósofo italiano Paolo Flores D’Arcais em seu livro Jesús. La invención del Dios Cristiano, baseado nos estudos de eminentes historiadores como Geza Vermes, Barth Ehrman, Gerd Theissen entre outros, o cenário após a morte de Jesus “se trata, por tanto, de muchas tradiciones surgidas independientemente unas de otras y en lugares distintos, en las aldeas de Galilea o en la región de Jerusalén, desarrolladas después con ‘ enriquecimientos’ sucesivos” (D’ARCAIS, 2012, p. 31).

Assim, entre escritos canônicos, apócrifos e contemporâneos podemos perceber como a figura de Jesus vai se constituindo ao longo do tempo, suscetível ou não aos dissabores de cada época e regimes ideológicos vigentes.

Entre canônicos e apócrifos: a formulação do verdadeiro Jesus

A figura de Jesus, com toda carga hermenêutica, que majoritariamente o mundo ocidental se apropriou provém da imagem forjada na literatura das comunidades dos quatro evangelistas atrelada à operacionalização filosófica da Patrística posterior. Falar de Jesus na contemporaneidade é falar de um Jesus apresentado pela literatura evangelística canônica, e mais, moldado segundo as intenções hermenêuticas e políticas de um grupo que tem em Paulo seu principal formulador. Para compreender esse fato é só perceber que, na organização bíblica do Novo Testamento, os quatro evangelhos são acompanhados na sequência pelos escritos paulinos, o que constitui em si, lidos em conjunto, uma hermenêutica particular. Agregue-se ao fato de que a redação de alguns escritos paulinos são anteriores à escritura dos evangelhos canônicos, o que deixa transparecer que outros escritos que tinham por escopo a vida de Jesus circulavam na época de Paulo e só aqueles que continham uma determinada perspectiva de Jesus foi tida como ideal para seguir adiante no cânone. Não sem razão o teólogo alemão Joseph Ratzinger afirma que o modelo de cristianismo hodierno é calcado na imagem de Jesus construída por Paulo numa via racionalista (RATZINGER, 2009, p. 13).

O cristianismo primitivo, ou cristianismos primitivos, no plural, como aponta D’Arcais (cf. 2012, p. 44), nos fornecem um panorama interessante de como a literatura atua na propagação de uma ideia e de uma concepção de mundo tendo na figura de Jesus um símbolo. Cada comunidade ao apropriar-se do ministério de Jesus pinta-o com cores próprias e exibem, quando analisados em conjunto, uma diversidade singular típica das possibilidades dadas apenas à literatura.

De maneira análoga à ação de Platão n’A República, Paulo refunda isto no seio do cristianismo ao tentar expulsar a hermenêutica literária dos textos fundadores do cristianismo. Com isso, Paulo faz um saneamento nos textos cristãos e o impregna com uma visão própria, pois a escrita também “é capturada na ideia de oposição modelo/cópia” (BRUNO, 2008, p. 2). O Jesus que emana do Novo Testamento como o conhecemos é fruto de um trabalho político-hermenêutico, sobretudo paulino, pois elege e interpreta quais escritos são mais condizentes e ideais para a propagação de determinado posicionamento político.

A partir de então Jesus passa de uma figura histórica dada a um personagem ficcional que é metamorfoseado de acordo com a literatura de cada grupo que assume a hegemonia. Com Paulo, Ireneu, Atanásio e outros, Jesus, de figura histórica e literária passa a ser o Cristo, pois, se a existência de Jesus não age no plano mítico, sua mensagem evangelística também não pode ser mera interpretação alegórica, como percebemos, por exemplo, no gnosticismo dos primeiros séculos. Contra essa vertente mobilizou-se o arsenal da Patrística, defendendo a “Verdade Absoluta que, daquele momento em diante, se estabeleceu no mundo ocidental” (FLORES, 2000, p. 17). Para melhor transmitir essa verdade inaudita presente nos evangelhos, a littera deve ser acompanhada constantemente de uma hermenêutica. É preciso salvaguardar a verdade do texto, e isso se faz através da ideia do Livro. “A ideia do Livro remete a um todo natural, enquanto proteção enciclopédica da teologia e do logocentrismo contra a disrupção da escritura, contra sua energia aforística” (BRUNO, 2008, p. 73). A hermenêutica enquanto protetora da verdade do texto insere-se num confronto contra as potencialidades do falso que a literatura nesse momento representa.

É por isso que se faz necessária uma ação como a de Ireneu, depreciar todas as outras narrativas literárias que não apresentassem uma determinada imagem de Jesus. Ireneu, Bispo de Lião, no século II, foi um ferrenho crítico dos escritos e doutrinas que se espalhavam sob o nome de cristianismo, mas que não estavam em sintonia com uma vertente que já ganhara corpo e força. Ireneu, aliás, foi (e ainda é) uma das grandes fontes de informação acerca desses escritos originários no cristianismo nascente, pois as principais heresias do seu período chegaram até nós por meio de seus escritos. Os textos fundamentais para os grupos tidos como opositores e hereges, é claro, foram jogados no limbo do esquecimento; alguns, por sorte ou acaso, apareceram e demonstraram a efervescência de escritos que pululavam naquela época, cada qual transmissora de uma verdade contrária à outra, como o Evangelho de Judas, por exemplo.

Neste evangelho, provavelmente o mesmo citado por Ireneu no final do segundo século II (cf WURST, 2006, p. 127), Judas é apresentado como o único discípulo que verdadeiramente entendeu a mensagem de Jesus, “declara que Jesus veio do ‘reino imortal de Barbelo’, quer dizer, do domínio dos verdadeiros seres divinos imortais, não do domínio inferior do deus criador dos judeus” (EHRMAN, 2006, p. 105). Esse evangelho difere da imagem construída pelos canônicos no qual Iscariotes é tido como traidor por entregar seu mestre ao martírio. No evangelho descoberto no fim do século XX, Judas, entregando Jesus à cruz, foi o único que possuía o conhecimento necessário para compreender que era preciso libertar o espírito do corpo que o aprisionara, passando de traidor a verdadeiro libertador de Jesus. Ireneu atribuiu a escrita desse evangelho aos cainitas, um grupo que afirmava que “Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres” (IRENEU, I, 31,1).

Mesmo que o impacto da descoberta desse escrito na contemporaneidade repouse na “reabilitação” da figura de Judas, tido na tradição como traidor, o que ele aponta da figura de Jesus é interessante porque para essa comunidade a figura de Jesus não é a mesma dos escritos intracanônicos1. Aqui a cena da morte na cruz sequer é citada, a ressurreição jamais irá aparecer. Em diversos momentos Jesus aparece sorrindo e até mesmo zombando de seus discípulos pois não o compreendem. As inúmeras imagens de Jesus que se encontram nesse evangelho nos permite perceber que existia um objetivo a ser “aprendido” pelos asseclas daquela comunidade, e que correspondia a um rito iniciático, a uma mensagem que só os iniciados poderiam compreender, o Evangelho de Judas é um escrito gnóstico, muito comum nos primeiros séculos da era cristã, e como escrito gnóstico tende a apresentar uma figura de Jesus mais condizente a mistérios de conhecimento que só a partir de grande esforço é possível decifrá-lo, a boa nova desse evangelho não reside numa redenção universal, mas só para aqueles que chegam a um patamar de conhecimento.

Em outro escrito, este não necessariamente apócrifo, mas intracanônico, Evangelho de Nicodemos, encontra-se um relato que é muito difundido na iconografia, sobretudo bizantina, a descida de Jesus ao inferno. Imprescindível ao dogma de fé, a descida de Jesus ao inferno está solidificada no credo niceno-constantinopolitano. É justamente por ser dogma de fé e não estar presente nas narrativas canônicas que a descida de Jesus ao inferno tornou-se alvo do filósofo francês Voltaire em seu livro O túmulo do fanatismo. Na análise da tradição cristã que o filósofo se propõe ele se refere a esse ponto da seguinte maneira:

Nosso símbolo, que os papistas chamam de Credo, símbolo atribuído aos apóstolos e evidentemente fabricado mais de quatrocentos anos depois desses apóstolos, nos diz que Jesus, antes de subir ao céu, fora dar uma volta pelos infernos. Podemos notar que não há nenhuma palavra sobre isso nos Evangelhos, embora seja um dos principais artigos de fé dos cristícolas; não se é cristão se não se acredita que Jesus desceu aos infernos.(VOLTAIRE, 2006, p. 49)

O filósofo francês levanta inúmeras questões aí. Comecemos pelos evangelhos canônicos acusados por ele de não se referir a esse fato da presença de Jesus no inferno. Com efeito, não encontramos nos evangelhos uma narrativa pormenorizada de referido fato tão importante à verdade dogmática, mas há referências a tal episódio nos livros de Efésios (4, 8s) e na primeira Epístola de Pedro (3, 18s). Todavia, lembremos que esses livros não compõem as narrativas acerca do ministério de Jesus, e sim escritos com cunho hermenêutico.

Segundo, podemos perceber, ainda numa perspectiva voltairiana que um escrito que insista na presença de Jesus no inferno parece estar mais atrelado a uma preocupação de encaixar fatos nas profecias anteriores que um acontecimento factual. É possivelmente nessa perspectiva que se encontra o Evangelho de Nicodemos. Em um estudo feito por Rémi Gounelle, ele aponta para essa perspectiva: esse relato provavelmente é “obra de um judeu convertido ao cristianismo, o que justificaria a concentração do texto nos santos do Antigo Testamento” (2012, p. 98), nele Jesus desce ao inferno para resgatar personagens presentes no Antigo Testamento, entre eles Adão. Fica evidente que esse evangelho se insere dentro de uma tradição teológica que tem por escopo resolver o problema do conhecimento do Filho de Deus pelos homens, sobretudo os profetas que o anunciaram, que o antecederam, reafirmando o caráter de universalidade da fé em Cristo. Com propriedade, ao analisar as implicações dessa narrativa na qual Jesus desce ao inferno mostrando seu poder, “para buscar a descendência de Adão [e] afirmar que ele é o salvador do gênero humano”, pode-se concluir que essa narrativa possibilita conjugar (e resolver) definitivamente um problema teológico, aqui a “nova aliança realiza a antiga, ela deve afirmar a salvação dos profetas, dos patriarcas e de todos os que seguiram, mas na medida em que afirma uma salvação que depende exclusivamente do pleno conhecimento de Cristo ela sela sua perdição” (GOUNELLE, 2012, p. 98).

Os evangelhos de Judas e Nicodemos nos fornecem dois exemplos de imagens múltiplas de Jesus, mas não tão díspares. Isso ocorre provavelmente porque mesmo que os escritos intracanônicos e apócrifos divirjam ou não entre si em muitos aspectos, o que se percebe de maneira geral é que todos comungam da mesma raiz judaica, da mesma concepção de Livro, a subversão de um livro ocorre apenas no âmbito interno de subversão de outro escrito tido como seu inimigo direto, isto é, na sua essência permanecem deístas.

As diversas imagens de Jesus nos primeiros séculos da era cristã são tão múltiplas quanto a variedade de comunidades que nele se ancoram. Essa diversidade explica os estudos propalados séculos depois em busca do verdadeiro Jesus, o homem antes do Cristo. O próprio Voltaire empreendera essa tarefa. Ernest Renan e muitos outros contemporâneos calcados nos avanços dos estudos científicos, sobretudo arqueológicos, empreenderam semelhante tarefa. Mas nenhum Jesus permaneceu tão forte na história e foi tão combatido como aquele apresentado pelo Símbolo dos Apóstolos. Ainda no seu livro Voltaire sustenta a tese que a imagem de Jesus é transfigurada conforme as mudanças políticas em voga: “cada um escrevia uma Vida de Jesus, todas elas discordantes, mas todas parecidas pela quantidade de prodígios incríveis que atribuíam à porfia a seu fundador” (VOLTAIRE, 2006, p. 44). O filósofo francês está convencido que Jesus nada mais é que a solidificação de narrativas prodigiosas nascidas no seio da disputa entre judeus e cristãos. Daí ele atacar com veemência o Credo:

Alguns adeptos do judeu Jesus se contentaram, no começo, em dizer que era um homem de bem injustamente crucificado, tal como nós, nós e os outros cristãos, assassinamos desde então tantos homens virtuosos. Depois ganham coragem e ousam escrever que Deus o ressuscitou. Logo depois compõem sua lenda. Um supõe que ele foi ao céu e aos infernos; outro diz que ele virá julgar os vivos e os mortos no vale de Josafã; finalmente, fazem dele um Deus. Fazem três deuses. Levam o sofisma ao ponto de dizer que esses três deuses fazem apenas um. (VOLTAIRE, 2006, p. 50)

Com efeito, Voltaire não está tratando as narrativas do seio do cristianismo como produtos da fantasia, ele próprio era um péssimo leitor de mitos, mas trata o cristianismo a partir de sua reivindicação racional, salientando sua caricatura. Aliás, ele chega a comentar esse ponto quando afirma que “o platonismo, muito em voga em Alexandria e estudado por muitos judeus, logo veio socorrer a seita nascente, e daí vêm todos os mistérios, todos os dogmas absurdos com que foi recheada” (VOLTAIRE, 2006, p. 52). Seguramente o filósofo faz referência à tradição da Patrística, no qual de fato se efetivou a sedimentação da figura de Jesus presente sobremaneira no Credo niceno-constantinopolitano. Jesus era, portanto, a manifestação do Logos, por isso o Credo insistir na sua consubstancialidade.

Em busca do verdadeiro Jesus?

Qual é então afinal a verdadeira imagem de Jesus? Não há resposta. Jesus é tão múltiplo quanto aqueles que dele se apropriam. Para Voltaire (2006, p. 51), “um camponês grosseiro da Judéia, mais esperto, sem dúvida, que a maioria dos habitantes de seu cantão”. Para D’Arcais (2012, p. 13) “era un hebreo observante, que permaneció como tal hasta su muerte y que jamás habría imaginado dar origen a una nueva religión y mucho menos fundar una ‘Iglesia’”. Para a religião que leva seu nome é o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, consubstancial ao Pai. Para Fernando Pessoa (1988, p. 95), Jesus é a “Eterna Criança, o deus que faltava./Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro”.

Essa poesia do heterônimo de Pessoa, Alberto Caeiro, talvez seja a melhor expressão da vida do homem Jesus. Um humano, com sonhos, desejos, aspirações, uma criança como outra qualquer, que sorri, brinca, faz travessuras. Jogando com a tradição estabelecida que fez de Jesus um ser consubstancial a Deus, da mesma essência divina, isto é, ele é o próprio Deus, o heterônimo de Pessoa, tecendo uma crítica, apresenta uma nova imagem de Jesus, mais cândida, mais antropológica, desprovida da aura divina. Deprecia a imagem estabelecida do Jesus que morre na cruz e é venerado por milênios como o redentor dos homens. Na poesia intitulada Num meio-dia de fim de primavera, Jesus foge do céu, cansado do lugar que a posteridade lhe legou:


Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
(PESSOA, 1988, p. 96)

As finas críticas tecidas por Pessoa parecem ser a mesma de outro escritor lusitano, dessa vez num romance. José Saramago por meio de seu escrito, O Evangelho segundo Jesus Cristo(ESJC), também brinca com a tradição eclesiástica que se apropriou – ou construiu – de uma determinada imagem de Jesus. Neste evangelho contemporâneo, talvez o único que não poderia reivindicar para si uma pretensa verdade, ele nos oferece um Jesus que está muito mais inclinado a tentar se desvencilhar da tradição posterior que legou à sua imagem um arcabouço hermenêutico não o permitindo ser quem ele de fato era. A perda precoce do pai, um pai que “morreu inocente, mas não viveu inocente” (ESJC, p. 172); a descrença de sua mãe, “Então, minha mãe soube e não mo disse, contei-lhe que te vi no deserto e não acreditou, mas tinha de acreditar depois de aparecer-lhe o anjo, e não o quis reconhecer perante mim” (ESJC, p. 305); a rejeição de Pastor depois de ensiná-lo muitas coisas sobre a vida, “Não aprendeste nada, vai-te” (ESJC, p. 235); “o anúncio misterioso da sua concepção, a terra iluminada, o nascimento na cova, as crianças mortas em Belém, a crucifixão do pai, a herança dos pesadelos, a fuga da casa (...) o cordeiro salvo, o deserto, a ovelha morta, Deus” (ESJC, p. 223), formam o espectro multifacetário desse romance que apresenta um Jesus humano, que desde cedo possui “uma ferida na alma, e, não lhe consentindo a sua natureza esperar que lha sarasse o simples hábito de viver com ela, (...) foi à procura do mundo, quem sabe se para multiplicar as feridas e fazer, com todas elas juntas, uma única e definitória dor” (ESJC, p. 164).

O Jesus saramaguiano, ao modelo do Jesus pessoano, rejeitará, ou ao menos tentará, toda a carga hermenêutica que se apoderou de sua figura. E tal rejeição só tem um propósito, permitir ser quem de fato era.

Se nos primórdios do cristianismo cada grupo escrevia sua narrativa de Jesus buscando expressar nela elementos de sua concepção de mundo e evidenciando fatos que corroborassem para tal percepção, natural é que encontremos neste evangelho contemporâneo elementos de sua percepção de mundo. Uma investigação mais atenta ao evangelho saramaguiano nos revela o profundo diálogo que mantém com os escritos primitivos e mostra uma clara tendência a desconstruir a imagem sacralizada, talvez numa perspectiva pessoana do “Guardador de Rebanhos” que tende a perceber Jesus como aquela “criança bonita de riso e natural [que] Limpa o nariz ao braço direito,/ Chapinha nas poças de água,[que] Colhe as flores e gosta delas e esquece-as./Atira pedras aos burros,/Rouba a fruta dos pomares/E foge a chorar e a gritar dos cães” (PESSOA, 1988, p. 95).

Com efeito, apresentando um evangelho sob uma “óptica de Jesus” (FLORES, 2000, p. 97), o narrador saramaguiano salienta o drama humano presente nas tensões de relações do homem/humano Jesus com seu pai José, sua mãe Maria, sua amada Madalena e com as angústias derivadas de si mesmo, rompendo com a aura messiânica impressa desde seu nascimento: “o filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo” (ESJC, p. 83), que se depreende ao longo de seu crescimento: “Jesus (...) por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha” (ESJC, p. 69). Assim, o narrador salienta a humanidade de Jesus, indiferente a uma anunciação angelical e um privilégio vindo dos céus prometendo uma glória colossal:

Maria olha o seu primogênito, que por ali anda gatinhando como fazem todos os crios humanos na sua idade, olha-o e procura nele uma marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão. E não vê mais do que uma criança igual às outras, babase, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho (...) (ESJC, p. 103).

Deliberadamente, Saramago insere como epígrafes de seu evangelho passagens do livro canônico de Lucas (1,1-4) e João (19, 22). Lucas parece ser o único que admite não ser testemunha ocular dos fatos narrados, mas sim, seu escrito que narra a vida de Jesus é resultante “de uma pesquisa, de um confronto com textos anteriores, o que atesta a hipótese de, nos primeiros anos do cristianismo, circularem diversos textos entre as comunidades” (FLORES, 2000, p. 35). Essa inserção, funcionando como que um prelúdio, sela um pacto irônico com o conteúdo subversivo que se apresentará no interior da narrativa. Assim como o narrador canônico, o narrador saramaguiano coloca-se ao lado daqueles que empreenderam a missão de escrever um relato sobre “os fatos que se cumpriram entre nós” (Lc 1, 1), uma clara simbiose dos canônicos, apócrifos e de um narrador que já se revela, desde o princípio galhofeiro. Todavia, se para o evangelista canônico a via do relato é transmitida, após séria e cuidadosa investigação, o evangelista saramaguiano inverte, ou no melhor estilo do autor português, zomba e coloca à prova a capacidade de julgamento do leitor perante aquilo que o evangelista Lucas nomeia de “solidez da doutrina em que foste instruído” (Lc 1, 4). Ora, o próprio evangelho saramaguiano é, em princípio, uma galhofa completa, diferentemente dos relatos oficiais ele é declaradamente contemporâneo, portanto incapacitado de possuir um testemunho idôneo; mas essa operação tem um caráter ambíguo que repousa exatamente na capacidade de tomá-lo, assim como o evangelho de Lucas, como relato fidedigno dos fatos ocorridos, portanto de uma imagem particular de Jesus. Pois se aquele canônico, também não sendo testemunha ocular dos fatos, mas ancorado sob uma sólida investigação é tido como válido, esse contemporâneo percorre os mesmos trilhos e possui os mesmos pressupostos investigativos, a saber, nos apresentar sua imagem de Jesus. O evangelho saramaguiano é, nas palavras de Conceição Flores (2000, p. 75) uma parodização dos evangelhos canônicos, pois, a “parodização permite que sejam revelados aspectos que anteriormente não eram percebidos, inserindo um corretivo na seriedade unilateral do discurso elevado”.

Epigrafando com as palavras de Pilatos retiradas do evangelho joanino (Jo 19, 22) – Quod scripsi, scripsi – o autor lusitano sepulta, antecipadamente, as críticas que inevitavelmente emergiriam com a publicação de seu evangelho e descompromissadamente lança-se à sorte, e opera, então, uma passagem contemporânea do Rubicão.

Após lançar-se à sorte e firmar um pacto, embora implícito, com o leitor, uma frase torna-se emblemática e extrapola os limites do próprio escrito saramaguiano, precipitando-se num evidente diálogo com a hermenêutica estabelecida da qual se acredita ser comungada pelo leitor: “nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada” (ESJC, p. 7). Parece evidente que a conjugação dessa assertiva dá-se prioritariamente com uma literatura externa e atua sob os auspícios de um narrador zombeteiro que contempla o status quo dos escritos canônicos, e, portanto de uma dada imagem de Jesus, com um olhar de eterna suspeita, isto é, não apenas o romance saramaguiano habita o reino do mito, o próprio cristianismo em si é deste terreno habitante e herdeiro. Retoma-se a acusação feita por Voltaire a Clemente de Alexandria, invertendo-se, aqui, a sua aplicabilidade: “quanto mais tolices atribuímos a nossos adversários, mais cremos estar isentos delas; ou melhor, fazemos compensações de ridículos” (VOLTAIRE, 2006, p. 95). Assim, o autor põe definitivamente em xeque a sacralidade dos escritos evangelísticos enquanto depositários de uma verdade unívoca, isto é, enquanto expositores de um Jesus histórico unívoco. Todos os relatos são tão válidos quanto qualquer um outro porque exprimem aquilo que cada comunidade captava acerca da figura de Jesus.

Mas isso ainda parece pouco, quando se confronta a pretensão do evangelho saramaguiano surge uma indagação, esta “foi uma maneira mentirosa de dizer a verdade ou pôr a verdade a servir a mentira”? (ESJC, p. 205). Problema dificílimo de resolver. Este evangelho obrigatoriamente assenta-se sobre outros e (aparentemente) não pretende “dizer que não aconteceu o que aconteceu, pondo no lugar de um Sim um Não” (ESJC, p. 198).

O primeiro capítulo desse evangelho, talvez só se compare ao episódio da barca em capacidade de substancializar a tradição cristã desses dois milênios.

A inversão evangelística, desde sua epígrafe anunciada, encontra neste primeiro capítulo também seu lugar; a narração não começa com o nascimento, nem com o anúncio da vida pública de Jesus, mas na análise da cena de sua morte que, aliás, está permeada de elementos medievais e renascentistas. A ressurreição, ponto cardeal e imprescindível na mensagem cristã, sucumbe perante a imagem de um Jesus moribundo, pregado a uma cruz. A morte efetivamente abre e fecha o ciclo da narrativa e, portanto, da vida; não existe nada além disso. Tudo que se depreende após esse fato não passa de conjecturas, devaneios, processos que agrilhoam o homem numa perspectiva de recompensa além-túmulo. Assim, ao modelo do Evangelho de Judas, o evangelho saramaguiano promove a ruptura com a hermenêutica paulina (1 Cor 15, 14). A ressurreição não importa, sequer existe, a morte é a medida da ação humana, pois, como afirmara Maria Madalena, “ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes” (ESJC, p. 360).

Esse evangelho contemporâneo possui, como os outros antecessores, um objetivo que é embasar por meio de um relato sua concepção de mundo. Em outros termos, encontramos nele um regime ético da literatura. Esse regime em Saramago, e especificamente n’O Evangelho segundo Jesus Cristo, usa da tradição em torno da figura de Jesus para subvertê-la apresentando sua nova concepção. O Jesus saramaguiano é arauto do seu modo particular de espiritualidade2.

Conceição Flores (2000, p. 105) salienta outro ponto importante presente na análise do primeiro capítulo que consiste numa marca inerente a Saramago no que se refere ao papel da figura feminina:

A Trindade Santíssima, constituída pelo Pai, Filho e Espírito Santo, a suprema alegoria cristã do mundo cristão, dominado pelas figuras masculinas, é parodiada pela “trindade de mulheres”. Esta trindade de mulheres, Trindade de Marias, formada por uma mãe de prole numerosa, uma ex-prostituta e outra mulher que não sabe exatamente quem seja é a paródia do dogma cristão, rebaixando-o ao plano terrestre e invertendo a Trindade Sagrada.

Há inúmeras inversões, rupturas ou mesmo continuidades com a tradição canônica ou apócrifa protagonizadas nesse evangelho. Tais rupturas ou continuidades forjam-se de acordo com a vontade do narrador de embasar e reafirmar seu posicionamento. Assim ele dialoga com o Evangelho de Judas quando reafirma que o discípulo foi o único fiel a Jesus. Todavia não toca na descida de Jesus ao inferno justamente porque a morte é o ciclo que abre e fecha esse escrito contemporâneo.

No evangelho descoberto no fim do século XX, Judas, entregando Jesus à cruz, foi o único que possuía o conhecimento necessário para compreender que era preciso libertar o espírito do corpo que o aprisionara, passando de traidor a verdadeiro libertador de Jesus. Aqui o evangelho saramaguiano possui um diálogo profícuo com o Evangelho de Judas, talvez o ressuscitando. No escrito contemporâneo Jesus incita a ação de Iscariotes, “isto é o que vos peço, que corra um de vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem [o Rei dos Judeus]” (ESJC, p. 367), e o defende da objeção dos outros discípulos, “Larguem-no, que ninguém lhe faça mal. Depois levantou-se, abraçou-o e beijou-o nas duas faces, Vai, a minha hora é a tua hora” (ESJC, p. 368). Judas é então “o discípulo que se apresentara voluntário para que pudesse ser cumprida a derradeira vontade do mestre” (ESJC, p. 369), a saber, subverter os planos de Deus e assim romper com o horizonte de mortes que se avizinhava na construção da neófita religião. Um diálogo parecido ocorre no interior da narrativa de Judas, o qual Ireneu atribuiu aos cainitas, um grupo que afirmava que “Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres” (IRENEU, I, 31,1).

O Jesus saramaguiano não possui nenhuma áurea divina, aquela imposta pós-Concílio de Niceia. Jesus é um homem comum em tudo igual aos outros. Esse Jesus subverte a ideia central do cristianismo apresentado no Concílio de Niceia – como bem aponta D’Arcais (2012, p. 13): “Dios verdadero de Dios verdadero, engendrado, no creado, de la misma naturaleza que el Padre” – porque descobre que é um ser usado por Deus para expansão do seu poderio. No encontro da barca, Saramago zomba da hermenêutica clássica e de certos dogmas cristãos como o presente credo niceno-constantinopolitano. Deus assim dialoga com Jesus:

Bem vês, eu tinha misturado a minha semente na semente de teu pai antes de seres concebido, era a maneira mais fácil, a que menos dava nas vistas, E estando as sementes misturadas, como podes estar certo de que sou teu filho. É verdade que nestes assuntos, em geral, não é prudente mostrar certeza, ainda menos absoluta, mas eu tenho-a, de alguma coisa me serve ser Deus (ESJC, p. 306).

Se a dúvida acerca da consubstancialidade de Jesus é posta em xeque neste evangelho contemporâneo, ela já fora posta no passado. Ário, presbítero de uma importante igreja alexandrina “sustentava que o Filho era uma criatura, um produto da vontade do Pai”, isto é, “o Verbo não é eterno nem tem a mesma natureza do Pai. Foi criado no tempo por Deus Pai” (ATANÁSIO, 2012, p. 11). Essa doutrina ficou conhecida como arianismo, a crença de que Jesus não era consubstancial a Deus, portanto não possuía uma dupla natureza, divina e humana, apenas uma, a humana. Atanásio foi um grande combatente do arianismo e o grande responsável pela fórmula niceno-constantinopolitana da dupla natureza de Cristo. Portanto, mais que um fruto paulino, o cristianismo é um fruto constantino. Contestando Ário, Atanásio sustentava que o “nome de ‘Filho’ encerra o conceito de ser gerado. Ser gerado não significa provir da vontade do Pai, mas da substância do Pai. Em consequência, o Filho de Deus não pode ser chamado apenas de criatura do Pai, visto que tem com ele a plenitude da divindade” (ATANÁSIO, 2002, p. 120). Daí a famosa fórmula do credo cristão: “Dios verdadero de Dios verdadero, engendrado, no creado, de la misma naturaleza que el Padre” (D’ARCAIS, 2012, p. 13).

Mas se esse ponto foi crucial para o entendimento do cristianismo ao ponto de ser o principal mote de um concílio, Saramago não o trata com a mesma pompa de circunstâncias, talvez por perceber que a disputa pelo entendimento da natureza de Jesus nada mais é que um jogo retórico, ou melhor, um lance político. Com uma fina ironia é que ele aborda esse tema e deixa para Deus a definição de tal status encerrando qualquer disputa retórica: “sendo tu meu filho, estarás comigo, ou em mim, ainda não o tenho decidido em definitivo” (ESJC, p. 309).

É preciso, pois, compreender que, para Saramago, escrever uma nova história é operar a emergência de todo um universo que outrora estava oculto e todas as suas consequências advindas dessa ação; reverter aquela verdade que “permanentemente reforçada, defendida de acidentes” (HCL,3, p. 79) julgara-se suprema, é ensaiar um ato subversivo, e se é preciso agir subversivamente, instalando-se enquanto demônio que age secretamente, sempre à espreita, eis o que faz Saramago, uma espécie de Raimundo Silva da história ocidental, reescreve a única história possível de Jesus. Assim perceberemos a profundidade de um escrito contemporâneo sobre essa figura tão explorada na história ocidental. (Re)Escrever a história de Jesus é inaugurar um novo tempo prometeico, entendendo, porém, esse tempo prometeico não com um caráter épico ou mítico, mas como a possibilidade de protagonismo do homem na história. Assim, ele age furtivamente e faz aquilo que prenunciou sempre: “alguém teria de vir contar a história nova” (HCL, p. 50). A nova história do Jesus demasiado humano, atravessado por paixões, sensibilidade; irascível em alguns momentos, dócil em outros; questionador da ordem estabelecida, vítima dessa mesma ordem, sonhador em alguns instantes, pessimista em outros tantos. Um Jesus distante daquela aura divina instaurada pela posteridade, reafirmando o caráter comunista do autor português.

O novo Jesus e a inversão do cristianismo?

Se é possível, após avaliarmos as narrativas em torno da vida de Jesus dos primeiros séculos, encontrarmos traços da ideologia das comunidades que as berçaram, natural seria que encontrássemos neste evangelho contemporâneo traços de sua ideologia. E de fato encontramos. Esse evangelho é de todo subversivo, rompe com a transcendência institucionalizada que se apropriou da figura de Jesus e a compôs segundo sua vontade; é materialista na medida que rompe com o horizonte do além-mundo, por isso a morte é tão importante na abertura e fechamento dessa narrativa. E Jesus, protagonista dessa história, é questionador das tradições, daquilo que se impôs. Seu constante questionamento que faz, tanto a sua vida, quanto a Deus, direciona o leitor para os questionamentos ímpares ao modo como o cristianismo influenciou o modo de pensar o mundo, as relações, humanas, a ética, o corpo, e principalmente o amor.

O diálogo na barca entre Jesus, Deus e o Diabo é o ponto fulcral desse escrito evangelístico contemporâneo e impõe uma severa revisão da tradição cristã. Na barca, Deus revela seus propósitos expansionistas sob o signo da morte de Jesus, seu filho, que será denominado a expressão do amor maior, a gratuidade com que Deus cumula o homem em sua condição de fragilidade. Esse é o discurso oficial que se sedimentou na história. Todavia, o outro lado desse mesmo discurso não parece ser tão belo e redentor. A expansão dos domínios de Deus dá-se sob o mesmo signo da morte, uma morte que não é representação do amor. “Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo deus dos judeus; (...) e [continuo] a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que [criei] com tudo o que tem em cima” (ESJC, p. 308-309). Além de salientar a loucura da morte de cruz, como mesmo Paulo já admitira, Saramago insere mais um dado importante na relação do cristianismo. Deus, aqui, não é um deus supremo, ele está ao lado de outros deuses no panteão das religiões do mundo, é dizer, o monoteísmo só ocorre no interior do judaísmo, e a expansão religiosa, como quer o cristianismo, não se dá sob o signo do deus que age na história. Para expandir seus domínios por outros povos, Deus necessita da ação direta de Jesus porque ele é equivalente aos outros deuses. Deus e o Diabo são frutos do interior de um pensamento religioso e só têm força e poder no seio daquela sociedade que o aceitam como tal. Um embate direto entre deuses não surtiria nenhum efeito: “a prova disso tem-la no facto, em que nunca se repara, de os demônios de uma religião não poderem ter qualquer acção noutra religião, como um deus, imaginando que tivesse entrado em confronto directo com outro deus, não o pode vencer nem por ele ser vencido” (ESJC, p. 310).

Assim, a morte de Jesus, “dolorosa, e se possível infame” (ESJC, p. 310) tem um papel secundário na concepção desse cristianismo porque ele busca por princípio justamente a sobreposição de um deus sobre o outro mediante instrumentos e meios que não os celestes. A réplica que Jesus faz a Deus questionando essa tarefa árdua ao qual ele está designado, de tão óbvia passa despercebida nos questionamentos que se levantam contra o cristianismo: “mas com o poder que só tu tens, não seria muito mais fácil e eticamente mais limpo, ires tu próprio à conquista desses países e dessa gente [?]” (ESJC, p. 310). Não por acaso Saramago insere no questionamento de Jesus o papel ético de Deus. Essa é talvez a maior preocupação encontrada nos livros do autor português, e não poderia deixar de ser um ponto importante nessa obra que propõe severa reflexão do cristianismo.

Além de questionador de uma ordem estabelecida, o Jesus contemporâneo também será a vítima de uma hermenêutica que não o permitiu gozar dos prazeres da carne. Ao passo que a tradição saneia o entendimento do amor como algo que requer a renúncia dos corpos em nome de algo transcendente, no evangelho saramaguiano encontramos ecos de uma concepção particular, no qual Jesus será o protagonista, isto é, reconhece-se o valor do corpo nesta concepção e talvez esta seja a maior contraposição ao amor cristão entendido como elemento que, se não despreza completamente a dimensão corpórea, a subordina a uma vontade transcendente. O valor do corpo nos escritos saramaguianos, sobremaneira do seu evangelho, distante de constituir uma reificação do ser humano, como acusa Ratzinger a todos que estão à margem da concepção cristã, é, talvez, uma das mais belas representações presentes na literatura, carregada de força poética. No momento que nos é apresentado o encontro de Jesus com Maria de Magdala, ali se expressa o mais substancial exemplo de um amor redentor, um amor que ignora convenções e segregações sociais, que possui sua gênese verdadeiramente na gratuidade do encontro, que não impõe regras de conduta, que conhece a doação espontânea:

vendo que o sangue não dava mostra de parar (...), Jesus que estava sentado no chão, comprimindo a desatada ferida, olhou de relance a mulher que se lhe acercava, Ajuda-me, disse, e, tendo segurado a mão que ela lhe estendia, conseguiu-se pôr de pé e dar uns passos coxeando. Não estás em estado de andar, disse ela, entra, que eu trato dessa ferida (ESJC, p. 230).

As chagas do martírio de Jesus, símbolo máximo do amor cristão, do Deus que entrega seu filho à morte como exemplo de doação, são metamorfoseadas nos machucados que arrebentam dos seus pés e são curados por Maria, ela, uma prostituta, “esta prostituta de Magdala que o curou” (ESJC, p. 233), a mulher que na história oficial foi relegada ao esquecimento, à marginalidade, ao lugar de menoridade torna-se, no escrito saramaguiano, aquela que o ensina, que o acolhe:

Durante todo o dia, ninguém veio bater à porta de Maria de Magdala. Durante todo o dia, Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz de Nazaré que, não a conhecendo nem de bem nem de mal, lhe viera pedir que o aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham nascido doutro encontro, no deserto com Deus (ESJC, p. 235).

Esse encontro, sublime e natural como fora o de José e Maria – o de Joana Carda e Pedro Orce, e deste com Maria Guavaira – e de todas outras personagens saramaguianas, dá ao corpo uma dimensão que jamais fora permitida no seio do cristianismo:

Deus dissera a Jesus, A partir de hoje pertences-me pelo sangue, o Demónio, se o era, desprezara-o, Não aprendeste nada, vai-te, Maria de Magdala, com os seios escorrendo suor, os cabelos soltos que parecem deitar fumo, a boca túmida, olhos como de água negra, Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas fica comigo esta noite. E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade (ESJC, p. 235).

Mais uma vez invertendo aquilo que Deus operara no éden, criando interditos por meio do pecado, “Não há outro paraíso, e eu responderei, Assim não foram Eva e Adão porque o Senhor lhe disse que haviam pecado” (HCL, p. 329), aqui, o que se exalta não é a renúncia dos corpos, não se enxerga neles a dicotomia cristã que o insere na criação decaída, que provoca a cisão entre os escolhidos e o mundo como presente na própria concepção joanina, “não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, não está no Pai. Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da riqueza – não vem do Pai, mas do mundo” (1Jo 2, 15-16). A proposta saramaguiana, caminhando na contramão, “não és ninguém se não te quiseres a ti mesmo, não chegas a Deus se não chegares primeiro a teu corpo” (ESJC, p. 224), requer o tratamento com o ser humano numa perspectiva totalizante, tudo compõe e é o ser humano, a primazia de um elemento ou de outro, quando ocorre, conduz à depreciação do próprio homem.

Saramago parece fazer de Jesus um contra ponto na questão com o tratamento com o corpo. Ao passo que dá ao Diabo e a Maria de Magdala a missão de serem porta-vozes da exaltação do corpo, talvez por serem justamente os párias da história, a Jesus cabe o papel daquele que está alinhado com o discurso estabelecido de subordinação do corpo a um idealismo. Possivelmente podemos ver nesse Jesus aquele que foi forjado pela hermenêutica clássica e não o permitiu gozar dos prazeres da carne. Os constantes embates dialéticos entre Pastor (Diabo) e Jesus demonstram bem isso. Enquanto aquele incita Jesus à reflexão, levando em muitos momentos à aporia, este rebate suas objeções com ardor, ardor que só será quebrado após o encontro com Maria Madalena.

A relação de Maria Madalena e Jesus possivelmente remete-se ao encontrado no Evangelho de Filipe4, no qual há um beijo de Jesus a Madalena. Mesmo que não haja indícios de uma relação sexual entre ambos e beijo indique apenas uma relação ritualística, Saramago parece não se preocupar com esse dado e vai além desse caráter, imprimindo de fato uma relação amorosa e sexual entre os dois.

Com relação a Pastor é evidente que ao responder as suas objeções referentes ao usufruto do corpo, Jesus as rejeitará peremptoriamente. O impasse naturalmente se instaura, ou cai-se na confirmação da denúncia de D’Arcais, o participante do discurso religioso sempre elude os argumentos contrários à sua concepção e fundamentação retórica. Jesus replica Pastor:

Queres obrigar-me a dar-te as respostas que te convém, e eu recito-te, se for preciso, todos os casos em que o homem, porque assim o ordenou o Senhor, não poderá, sob pena de contaminação e morte, descobrir uma nudez alheia ou a sua própria, prova de que essa parte do corpo é, por si mesma, maldita, Não mais maldita do que a boca quando mente e calunia, e ela serve-te para louvares o teu Deus antes da mentira e depois da calúnia, Não te quero ouvir, Tens de ouvir-me, que mais não seja para atenderes à pergunta que te fiz, Que pergunta, Se Deus poderá rejeitar como obra não sua o que levas entre as pernas, diz sim ou não, Não pode, Porquê, Porque o Senhor não pode não querer o que antes quis. Pastor acenou a cabeça lentamente e disse, Por outras palavras, o teu Deus é o único guarda duma prisão onde o único preso é o teu Deus (ESJC, p. 196).

Saramago também parece querer desvencilhar a figura de Jesus da imagem daquele concebido de forma singular, anunciado por um anjo a uma virgem, esta “mãe de numerosos filhos e filhas” (ESJC, p. 9). O escritor lusitano parece alinhar-se com a concepção presente no poema de Pessoa (1988, p. 96) quando afirma que sua mãe “Não era mulher: era uma mala/Em que ele tinha vindo do céu./E queriam que ele, que só nascera da mãe,/E nunca tivera pai para amar com respeito,/Pregasse a bondade e a justiça!”. Saramago reafirma a concepção de Jesus baseada na relação sexual humana, e ao fazer isso, tece duras críticas ao Deus que é indiferente às vicissitudes humanas, mais, desconhece ou ignora sua própria criação.

Deus, que está em toda parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado (ESJC, p. 19).

A poeticidade com que Saramago narra esse episódio carrega de forma mais pujante o desprezo de algumas “verdades” teológicas. A primeira é a onisciência de Deus; ao salientar a dicotomia do corpo-espírito propalada pelo próprio cristianismo, Saramago reforça a impossibilidade de Deus, sendo puro espírito, compreender aquilo que é inerente à matéria, isto é, Deus desconhece sua própria criação. A segunda, e talvez mais retumbante em suas consequências, é a ruptura com a concepção de Jesus. A “semente” que José derrama no ventre de Maria será a verdadeira causa da geração de Jesus, e não, segundo a ortodoxia cristã, uma concepção mediante ação do Espírito de Deus. É importante salientar o uso que Saramago aqui faz do vocábulo “sagrado”, “a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida”. A palavra não é usada na concepção usual do termo, mas o autor português dá um novo significado a este termo fazendo dele a expressão máxima da concepção humana através do usufruto do corpo. Assim ele opera uma inversão da ortodoxia que privilegia o espírito em detrimento do corpo. A concepção humana, aqui ato sublime, só se realiza no encontro de dois corpos, é um fenômeno que não pode possuir outra lógica que não essa. Rejeitar o papel do corpo é, segundo Saramago, desprezar o humano em sua integridade.

Considerações finais

Mesmo que Saramago “construa” ou mesmo tente desvelar a imagem de Jesus, talvez mais um entre outros, nem melhor, nem pior, nem puramente homem, muito menos deus, ele cobra desse Jesus um compromisso final. Tanto nos evangelhos canônicos quanto neste contemporâneo Jesus morreu inocente. Todavia, diametralmente oposta à interpretação hermenêutica clássica que vê um processo jurídico fraudulento e deficiente em torno da condenação de Jesus, a inocência dele no evangelho saramaguiano não é bem uma inocência, mas uma ingenuidade. Ingenuidade porque cobra sua parcela de responsabilidade ética. Jesus já houvera selado um pacto, e assim como não pôde voltar atrás no episódio da barca quando tenta rejeitar o futuro tenebroso do qual seria responsável, não poderia voltar atrás no caminho da cruz. Diferentemente do Jesus pessoano que foge do céu e permite a si próprio um novo tempo de sonhos e fantasias, como seria normal para uma criança, ao Jesus saramaguiano não é concebido tal benefício.

Semelhantemente à maneira sartriana da liberdade humana, Saramago mostra que nossas escolhas estão atreladas invariavelmente a consequências que cobram dos indivíduos suas responsabilidades no “aqui e agora”, sem lançar-se para entidades extra-mundo. Portanto, Jesus é inocente perante a hybris de um deus insano e sedento de poder, mas não o é perante a sua escolha em selar o pacto quando do sacrifício da ovelha no deserto. A sequência da narrativa posterior ao sermão da montanha, quando Jesus estava na tenda com Maria de Magdala, traduz bem essa sua parcela da responsabilidade e inocência concomitantes:

Jesus disse, Eu sou o pastor que, com o mesmo cajado, leva ao sacrifício os inocentes e os culpados, os salvos e os perdidos, os nascidos e os por nascer, quem me libertará deste remorso, a mim que me vejo, hoje, como meu pai naquele tempo, mas ele é por vinte vidas que responde, e eu por vinte milhões (ESJC, p. 338).

Jesus refere-se à responsabilidade que seu pai José teria pelo sacrifício das crianças mortas a mando de Herodes. José que por mero acaso ouvira uma conversa entre os guardas acerca do infanticídio que breve ocorreria, socorre apenas ao seu filho, deixando que a foice da morte encontra-se o jugo de outras inocentes crianças. Esse é mais um episódio que subverte o relato canônico; neste, um anjo anuncia a José o perigo que se avizinha, naquele a descoberta do iminente infanticídio não possui interferência de ordem celeste. Esse episódio é marcante na vida de Jesus quando, após a morte de José, passa a perambular em buscas de respostas para sua existência. Saramago, como afirma Frias Martins, encantou-se pela figura de Jesus, e “esse encantamento faz com que o narrador se torne um aliado da própria curiosidade de Jesus, bem como da perplexidade (e mesmo ansiedade) deste perante o destino da humanidade” (MARTINS, 2014, p. 151). É a partir dessa perspectiva que Manuel Frias (2014, p 153) enxergará em Saramago uma espiritualidade clandestina que procurando afincadamente libertar Jesus da esfera de Deus, tentando salvá-lo da sua própria condição filial ou, colocando a questão de outra perspectiva, tentando devolver a um Deus cego e arrogante a verdade de que Jesus é um dos seus filhos e que, sendo-o, merece (...) ser objeto de uma atitude divina mais consentânea com um ser sagrado.

O que o teórico lusitano chama de espiritualidade é o que podemos nomear de compromisso ético, isto é, “a separação saramaguiana da moral e da transcendência não se fecha na abstração filosófica da necessidade imanente do bem, antes refaz na equação espiritual de Jesus a base firme dos valores mais sábios da humana conduta” (MARTINS, 2014, p. 154).

Em sua labuta literária, o escritor lusitano parece ter ultrapassado a barreira que impunha à ficção um lugar de menoridade na tarefa de apropriação do homem e imputa à concepção cristã clássica de mundo novos questionamentos, é dizer, “ao acentuar a incidência crítica dos seus romances, reivindicando um espaço ético (...), Saramago foi-se aproximando de uma afirmação da literatura enquanto lugar muito especial de diálogo do homem consigo mesmo e com o mundo exterior” (MARTINS, 2014, p. 186). Todavia, essa tarefa não foi isenta de percalços, mas de penosas interdições que reverberaram em sua vida particular. No entanto, a incansável batalha do escritor permitiu a quebra de um paradigma ético que via apenas no Transcendentalismo o seu suporte e garantia de coesão.

A literatura saramaguiana que tem por escopo a questão de Deus é como um memorial a lembrar que mesmo envolto em “atualizações” discursivas eufêmicas a sua essência sempre estará mergulhada em episódios, literários ou factuais, em atos que beiram o absurdo, e ao passo que reivindica uma base racional é tão cúmplice das patologias que esta tem se apresentado ao longo do tempo. Daí, a necessidade da escritura de um novo evangelho, ou a revisão dos antecessores. É preciso questioná-los na sua essência, é preciso mostrar, revelar que tudo são narrativas, e enquanto tais não podem reivindicar uma hegemonia e validade universais.

O amor, evidentemente, é redentor em seus livros, mas um amor que se estabelece no aqui e agora, não se lança no além, não se funda no jamais transcendente. Assim como o crânio de Adão que das profundezas da terra, no momento da crucificação, retorna ao solo e tem diante de si só o horizonte da terra, porque “isso são coisas da terra, e delas se faz a única história possível” (ESJC, p. 13) a vida fecha-se num ciclo e se perpetua no compromisso deste e não do outro mundo. A tarefa cabe em humanizar o mundo.

Poderíamos tecer uma crítica a Saramago no ponto em que repete um erro que ele próprio aponta nos escritos canônicos, apropriar-se de uma imagem específica de Jesus que sustente seus propósitos, ele próprio faz isso. Ainda assim não podemos afirmar definitivamente se essa apropriação está mais inclinada a um processo de desagrilhoamento da figura de Jesus forjada na tradição ou à construção de uma imagem específica de acordo com seus próprios interesses. Independentemente de qual seja a conclusão, o Jesus saramaguiano não deixa de encantar pela sua humanidade que salta das linhas e nos captura através de seus medos dramas, sonhos e desejos com o qual nos identificamos. O Jesus saramaguiano é tão multifacetado como o próprio homem. No fim, talvez percebamos que não exista a essência do Jesus em si, do bem em si, do mal em si, da religião em si. Talvez tudo sejam narrativas, narrativas de esperança, de descrença, narrativas totalitárias, evanescentes, tudo narrativas. Talvez Jesus seja apenas mais uma história que se contou, que se acreditou, que se fez. Cabe a cada um escolher a qual Jesus prefere.

REFERÊNCIAS

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GOUNELLE, Rémi. Por que, segundo o Evangelho de Nicodemos, Cristo desceu aos infernos?. In: O mistério apócrifo: introdução a uma literatura desconhecida. Jean-Daniel Kaesti, Daniel Marguerat (orgs.); tradução Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

IRENEU, Santo, Bispo de Lião. Contras as heresias. [Introdução, notas e comentários Helcion Ribeiro; organização das notas bíblicas Roque Frangiotti; tradução Lourenço Costa]. São Paulo: Paulus, 1995.

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Notas

[1] Usamos o entendimento de escritos intracanônicos como o conjunto de escritos que mesmo não entrando no cânone não são considerados apócrifos por conterem material aceito pela tradição cristã como legítimo. O nosso entendimento foi retirado do livro: “Quem vos ouve, ouve a mim: Oralidade e Memória nos Cristianismos Originários”.

[2] Acerca do entendimento de espiritualidade em Saramago partiu-se da reflexão posta no livro A espiritualidade clandestina de José Saramago, do escritor lusitano Manuel Frias Martins.

[3]História do cerco de Lisboa. Romance de José Saramago

[4]O Evangelho de Filipe (Códice de Nag Hammadi), assim como o Evangelho de Judas (Códice Tchacos), são escritos que possuem uma visão gnóstica de mundo, isto é, marcadamente dualista. A salvação só ocorre mediante a busca pela sabedoria, pelo conhecimento de sua própria condição de “estranho” nesse mundo; esse conhecimento, todavia, não é dado a todos, e só através de uma busca pessoal pode-se acessar tal conhecimento. É preciso salientar também que esse conhecimento não é mundano, mas sim místico. A relação que Saramago mantém com esses escritos é, todavia, apenas referencial, sem jamais querer afirmar ou defender uma forma de conhecimento gnóstica ou não.