Marcas da resiliência: A Teologia Feminista da libertaçãoem diálogo com a literatura de Cora Coralina.
Marks of resilience: The Feminist Liberation Theology into a dialogue with the Cora Coralina’s literature
Claudio Ribeiro* Rita de Cassia Scocca Luckner**
*Professor titular do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo. Doutor em Teologia. Líder do grupo de pesquisa Teologia no Plural. Email: claudio. ribeiro@metodista.br. ** Mestranda em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo e bolsista CAPES, integrante dos grupos de pesquisa Relegere,e Teologia no Plural. Email: ritaluckner@uol.com.br.
Voltar ao Sumário
Resumo
Cora Coralina foi autora goiana cuja obra reflete sua espiritualidade, sualeitura de mundo e de si mesma.Em seus poemas, a autoraabordou temas diversificados como a natureza, a religiosidade, a solidão, as lutas (da mulher, do judeu, do agricultor, etc), entre outros que podem dialogar com o pensamento da Teologia Feminista da Libertação, e tal aspecto é o que objetiva esta pesquisa.Esta corrente teológica é resultado das reflexões e afirmações de teólogas e estudiosas de diversas áreas acadêmicas, por conseguinte, há uma multiplicidade em suas produções, que aparecem de acordo com determinados contextos e objetivos. Mulheres de diversos pontos do mundo influenciadas pelo feminismo, movidas pela inquietação gerada da observância na referência a Deus como ser unicamente masculino, e da opressão das minorias(entre as quais as mulheres atingem o maior grau), unem-se em pensamento e ações, e eis que surge a Teologia Feminista na América Latina e no Brasil nos anos de 1970. Partindo dessa enunciação, em que medida esses dois campos - Teologia Feminista da Libertaçãoe a literatura de Cora Coralina - que buscam a valorização da mulher em um mundo que permanece patriarcal e androcêntrico, se correlacionam? Entre os resultados da pesquisa, indicamos que auniãodesses dois discursospara discutir e refletir temas sobre as experiências concretas da vida de homens e mulheres, compreender suas relações entre si e entre toda a amplitude da natureza, torna-se relevante, primordialmente quando o objetivo é a motivação para caminhos que os levam a ações de solidariedade ecomunhão.
Palavras chave: Teologia Feminista Latino-Americana – Poesia – Cora Coralina.
Abstract
Cora Coralina was a Brazilian writer from Goiás, and her books reflect her spirituality, her reading of world and her view of herself. Her poems talk about varied topics as the nature, religiosity, loneliness, fights (of women, Jews, rural worker, etc.) and others subjects which can dialogue with the Feminist Liberation Theology, and this aspect objectifies this article. FeministLiberation Theologyis the result of reflections and statements from theologians and scholars women from different academic areas. Therefore, there is a multiplicity in their productions that arise according to the context and goals. Women from different parts of world, influenced by the feminism, moved by the observation about the reference of God as being uniquely male, and the oppression of the minorities, (that the women appeared in high degree), closed together with their thoughts and actions. That way, came up the Feministic Liberation Theology in Latino America and Brazil, in 1970. From up this statements, how both fields – Feminist Liberation Theology and the Cora Coralina’s literature –that intend the women’s valuein a world that remains patriarchal and androcentric, correlated with each other?The union of these speeches became relevant to discuss and reflect real situations of the life, and to understand the relationship between women and men, and their relationship with the nature, whose purpose is find ways which leading them to act with solidary and communion.
Keywords:Latino-American Feminist Theology,Poetry, Cora Coralina.
Introdução
Em uma sociedade patriarcal que ultrapassou os séculos e deixou marcas até hoje na organização familiar, em que a vocação da mulher para a maternidade e para a vida doméstica era o único ponto que norteavao papel feminino,há consequências paraos diferentes setoresda sociedade,como o político, o econômico e o social.
Ainda que seja por meio de desafios, reações e dificuldades, no Brasil a voz da mulherecoa desdesempre.Em 1916, por meio do então criado Código Civil Brasileiro, a mulher casada passa a trabalhar fora de casa, porémapenasmedianteuma autorização do marido. Tal fato parecia dar a ele o título figurado deproprietário, o que pode ter influenciado ou fortalecido ainda mais a imagem de superioridade masculina.Posteriormente, em 1934, foi quandonovamente a mulher se vez ouvir e uma nova constituição atribuiu a ela o direito ao voto, e em 1941 o trabalho feminino foi regularizado graças à Consolidação das Leis Trabalhistas.Seguindo para 1988,com a Constituição Federal,e para 2002 com Novo Código Civil Brasileiro,novas conquistas consolidaram outros direitos femininos(NARVAZ; KOLLER, 2006). Assim, as mulheres foram conquistando de forma gotejante, mas constante, a sua participação e poder de decisão, tanto na esfera privada como na pública, exigindo respeito como cidadãs e seres humanos, assim como sempre foi assegurado aos homens.Não obstante, os ecos se transformam em vozes e é em tom alto que a mulheres passam a ter a palavra, que se intensificou com a contribuição dos trabalhos realizados também no campoteológicopor teólogas feministas.
O Brasil não é o único país em que, mesmo com algumas conquistas, as mulheres, dentro de suas individualidades, ainda sofrem humilhação, dominação e exclusão.Elas compartilham suas experiências e unem suas forças para reivindicar dignidade e justiça em vários âmbitos da vida.A teologia é um campoem que as mulheres mostraram, eainda mostram, determinação e opiniõesemancipatórias.Para aTeologia Feminista, os textos bíblicos dispõem mais em favor das relações de igualdade entre gêneros do que parecem dispor o modo como, às vezes, são historicamenteinterpretados. A princípio essa teologia caracterizou-se por uma abordagem das problemáticas contextuais, como é o caso da Teologia Feminista na América Latina, que surge conectada com as características específicasdo contexto sociocultural latino-americano e cujas produções foram iniciadas nosanos de 1970 e 1980. Posteriormente tal abordagem foi sendo ampliada, incluindoas questões de gênero.As teólogas feministas, comsuas produções,influenciaramm ovimentos sociais que visam o reconhecimento e valorização de pessoas, independente de sexo, etnia, classe social, sexualidade e religião, nas diversas esferas das relações humanas.
Marca de defesa dos excluídos também se faz presente no campo literário. Autores e autoras de diversas épocas e lugares deixaram registradas suas reflexões acerca desse tema que se tornou recorrente, comoCora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985), mulher de vida simples, mas que nunca abandonou seus ideais. A Poetisa, nascida em Goiás, publicou seu primeiro livro somente aos 76 anos de idade, e deixou um legado para os leitores e leitoras que apreciam a literatura brasileira.
Os temas que transitam a obra coraliniana são os de memórias, pois a autora descreve o contexto de sua época. Entretanto, para além dos fatos do cotidiano, são os aspectos universais que denotam sua ideologia. Diante esse alegado, surgem algumas indagações que nutrem esta pesquisa: Em quais perspectivas a obra de Cora Coralina surge como reflexão e enfrentamento à exclusão social? Em que medida tal literatura e a Teologia Feminista dialogam e podem ser apontados como instrumento de defesa para aqueles excluídos que precisam de uma voz que os represente?
Diante disso, o presente artigo tem por finalidade traçar um paralelo entre os pensamentos vigentes da Teologia Feminista Latino Americana e a literatura da poetisa Cora Coralina, cuja vida foi de grandes lutas, o que fez transparecer em seus poemas e que seafirma a favor dos excluídos. Assim, a voz literária de seus poemas se relaciona com outras vozes: de mães, esposas, trabalhadoras, sofredoras, descriminadas, enfim, as minorias que por muito tempo não tiveram, e que em alguns casos ainda não têm, liberdade e reconhecimento na sociedade.
A teologia e a literatura são dois discursos que caminham paralelamente e dialogam(MANZATTO, 2012). A literatura resgata aquilo que háde humano dentro da ciência e isso se dá pelo ato da leitura, interpretação, correlação e da divulgaçãoda vida; a Teologia Feminista é um movimento dentro da ciência hermenêutica(teologia) que se comprometecom as relações humanasjustas e práticas sociaiscorrespondentes. Tais elementos sãoo objeto de estudo desta pesquisa.
A fala crítico-construtiva da Teologia Feminista da Libertação
Mulheres de diversos pontos do mundo influenciadas pelo feminismo nos anos de 1960, movidas pela inquietação gerada da observância da face masculina (e única) de Deus, e da opressão das minorias - entre as quais as mulheres atingem o maior grau - expressam sua voz. Eis que surge a Teologia Feminista na América Latina nos anos de 19701.A teologia norte-americana e a europeia foram fonte de inspiração e de reflexão para as demais teologias, porém, há uma especificidade na visão teológica latino-americana. Tal especificidade encontra-se em duas importantes perspectivas: i) Teologia Feminista no Brasil não está, em sua maioria, vinculada auma determinada instituição religiosa. ii) Os trabalhos acadêmicos e produção intelectual das teólogas feministas brasileiras se encontram aliadas à militância que ocorre, sobretudo, na assessoria aos movimentos populares como: de trabalhadoras ruraissem terra, de domésticas, grupos de consciência negra, quadros sindicais femininos, etc. “Essa inserção social e política da teologia feminista nos movimentos de base vem permitindo uma abordagem interdisciplinar a partir de vivências concretas”. (GEBARA, 2006. P.299). Dessa forma, é o pluralismo no qual se expressa a Teologia Feminista no Brasil que a enriquece e a torna original.
A Teologia Feminista e Teologia da Libertação em raízes comuns, uma vez que ambas se apoiaram no prisma da ética encontrada nos Evangelhos, sendo que a preocupação de cunho social faz parte das questões por elas discutidas. Por esse motivo a Teologia Feminista é considerada também uma teologia de libertação. Porém, a Teologia da Libertação abrangeu o pobre como critério para reivindicações visando transformações sociais mais justas e nem sempre realçou adequadamente às questões específicas das mulheres. Em contrapartida, a Teologia Feminista considerou, além dos pobres, as experiências cotidianas de mulheres e homens de fatores socioculturais, étnico/raciais, entre outros. Sendo assim, há diversas correntes dessa teologia em diversos locais do mundo. Para Gebara,para além de uma associação formalde teólogas, as feministas deveriam se comprometer, ajudar e dialogar com os diferentes movimentos, na busca de sentidos e vivências dos valores humanos. (FURLIN, 2011).
Alguns teólogos e teólogasda libertação observaram certos pontos limitados dentro da própria Teologia da Libertação, e formularam críticas visandonovos caminhosde estudos teológicos que vão ao encontro da nova realidade. Concisamente, são:i) “os riscos de reducionismos metodológicos e de dogmatismos na Teologia da Libertação”; ii) “a dificuldade dela em se confrontar com a conjuntura e estrutura social”, assim, deve-se buscar o “fator maior” de cada momento histórico para que a teologia possa responder adequadamente aos desafios do contexto presente; iii) “a necessidade de revisão teológica a partir do círculo hermenêutico”, é preciso se pensar arelação de tensão entre objetividade e subjetividade nas ações e desejos humanos; e iv)“a urgência de uma nova caminhada de libertação”, no início a TL não se preocupou com o aspecto da pluralidade religiosa. (RIBEIRO, 2010, p. 65). Soma-se a essas a crítica da Teologia Feminista: a preocupação principal da TL era a opressão dos pobres, porém foi negligente em relação à opressão a qual as mulheres são submetidas. As questões de gênero,da diversidade dos sujeitos e da condição da mulher pobre (negras, de países periféricos, idosas, imigrantes, migrantes, homossexuais, etc) em relação ao homem pobre foram deixadas de lado.
De todas as vozes latino-americanas, a mais contundente vem da teóloga argentina MarcellaAlthausReid. Ela, em seus escritos, sempre destacou que suas reflexões se davam dentro do quadro referencial da Teologia da Libertação. A perspectiva crítica que a autora estabeleceu em suas análises produziu, portanto, uma crítica ad intra, que dada à contundência de sua argumentação pode até mesmo dar a impressão de que ela fala de fora dessa corrente teológica. No entanto, a autora se coloca dentro dessa perspectiva, buscando as suas raízes, sobretudo metodológicas, de se pensar a teologia como ‘ato segundo’, tendo como referência básica a realidade tal como ela é, e não sob idealizações. Nesse sentido, a autora faz a crítica aos setores hegemônicos da Teologia da Libertação. Tais críticas podem ser encontradas nos livros da autora, mas uma das mais destacadas perspectivas está em “Demitologizando ateologia da libertação: reflexões sobre poder, pobreza e sexualidade”, publicada na obra Teologia para Outro Mundo Possível (2006), que reúne as contribuições ao Fórum Mundial Teologia e Libertação que ocorreu no contexto do Fórum Social Mundial de 2005. Nesse texto, Marcella utiliza a imagem das cadeiras à mesa eucarística para fazer menção à inclusividade que é peculiar à teologia latino-americana. Não se trata apenas de uma metáfora que remonta a uma imagem fraternal, mas que aponta para a criação de um modelo economicamente alternativo de uma sociedade culturalmente participativa. Para a autora:
A teologia da libertação não disponibilizou cadeiras para as mulheres pobres ou para gays pobres - ou pelo menos, não o fez espontaneamente. O projeto inclusivo, afirmou-se mediante políticas de exclusão que determinaram a identidade dos pobres. Os pobres que eram incluídos eram concebidos como masculinos, geralmente camponeses, vagamente indígenas, cristãos e heterossexuais (ALTHAUS-REID, 2006, p. 458).
Ainda no tocante a questão metodológica, o questionamento da autora se dá na forma de compreensão da realidade e na inexistência de crítica à epistemologia que sustenta as estruturas de poder hegemônico na sociedade. No que diz respeito ao primeiro aspecto, compreender a “vida como ela é” - para usar uma conhecida expressão do literato Nelson Rodrigues - Marcella afirma que “embora os liberacionistas tentassem fazer teologia como ato segundo, ou seja, não começando com dogmas, mas parafraseando Marx, com os autores reais da história teológica, as questões de gênero e sexualidade foram sempre tratadas no nível dogmático (ideológico)” (ALTHAUS-REID, 2006, p. 469). E diz mais: “Qualquer pessoa que tenha trabalhado seriamente com os pobres na América Latina encontrou a presença de Deus dentro da diversidade de nossas comunidades, que é racial, cultural, mas também sexual” (ALTHAUS-REID, 2006, p. 464). Em relação ao segundo aspecto, a autora aponta a construção da identidade cultural/ideológica da heterossexualidade como elemento chave de sustentação das estruturas de poder dominante na sociedade.
Nesse ponto, para ela crucial, a teologia latino-americana da libertação necessitaria romper com a compressão da ideologia sexual da heterossexualidade como dogma e refletir sobre as vidas das pessoas e a manifestação de Deus nas comunidades, tendo em conta a dimensão da sexualidade que estrutura a vida das pessoas e as formas não convencionais de vivência sexual. É como se a heterossexualidade se tornasse umídolo, sacralizada como a única epistemologia sexual de valor. A autora considera que é preciso redescobrir a face de Deus nos que são dissidentes sexuais e que vivem dentro de formas diferenciadas de relacionamentos amorosos e de identidades sexuais. Para ela,
não causa surpresa que a teologia da libertação tenha estagnado: todas as suas discussões sobre Deus estão baseadas em estereótipos sexuais e ideológicos, dos quais os pobres, como conceito, se tornam uma categoria geral que apaga as diferenças sexuais entre eles. Isso se aplica ao princípio da teologia como ato segundo, quando a realidade latino-americana é ignorada. (ALTHAUS-REID, 2006, p. 466).
A Teologia da Libertação, segundo a autora, não percebeu que a subversão dos códigos sexuais e de gênero experimentada por mulheres que vivem em contextos de pobreza urbana era o resultado de sua luta por vida e dignidade e levava à produção de metáforas de Deus baseadas na relação entre sexualidade e pobreza. Seria outra forma de fazer e expressar a política. Uma forma fronteiriça e metafórica. A Teologia da Libertação, talvez por ter nascido em um ethosde autoritarismo social, político e eclesiástico, não aprofundou uma hermenêutica da suspeita o suficiente para descortinar as lógicas coloniais que ideologizam a sexualidade. Assim, ela “perdeu as possibilidades de poiesisteológica, que provém não de discursos sobre os pobres idealizados, mas da realidade dos pobres como pessoas de diferentes identidades de sexo e de gênero” (ALTHAUS-REID, 2006, p. 459).
A Teologia Feminista Latino-Americana está centrada em uma nova hermenêutica que caminha a partir de uma linguagem e uma prática religiosa para um relacionamento simétrico entre gêneros. Para tanto, entre suas propostas estão as novas leituras dos textos bíblicos,visto que estes são a base da literatura ocidental e que foram passados por gerações fortalecendo a fé e despertando tanto a imaginação como também o conhecimento sobre Deus, o ser humano e suas ações no mundo.2 Tais textos tornam-se parte significativa da produção literária que reflete uma cultura de tradição patriarcal e androcêntrica. Por intermédio de uma releitura e reconstrução das escrituras, existe uma possibilidade de resgatar o valor e a contribuição das mulheres presentes nos textos bíblicos.3 Outro ponto criticado é o monopólio masculino dentro das instituições religiosas, principalmente na Igreja Católica que é liderada exclusivamente por homens.
Coisas de Goiás e do mundo
Cora Coralina(1889-1985) foi, desde cedo, uma poetisa e pessoa surpreendente, autodidata e leitora diligente de livros e jornais. O fato de não ter terminado o ensino formal não a prejudicou em seu objetivo literário. Esteve em sintonia com a elite cultural de seu tempo e “jovem, adulta, madura ou anciã foi alguém absolutamente receptiva às informações do mundo que a cercavam”, e mesmo do mundo de fora, que lhe chegavam pelos meios de comunicação que despunha. (DENÓFRIO, 2008,p. 16-17).
Tendo estreado na literatura em 1965, Cora Coralina não se ateve aos movimentos artísticos da época; sua escrita livre, independente, de forma impulsiva, com resquícios do Modernismo e tom lírico-narrativo, fora dos moldes dos autores vigentes, resultou em algumas críticas.Porém, para uma autora que recria e poetiza a vida mesmo que tardiamente, não foi apenas com palavras, mas foi com o coração que a poetisa escreveu suas obras, e isso ela mesma demonstra afirmar em seu poema metalinguístico O poeta e a poesia: “Poeta, não é somente o que escreve/É aquele que sente a poesia”(CORALINA, 200).
Obra de Cora Coralina revelou seu lado sensível e autêntico, e escreveutanto suave como agudo. A suavidade veio de sua vida simples como mãe, esposa e doceira competente (o que lhe rendeu a autoria em alguns livros de receitas) e sua agudez é fruto de uma época em que se sentiu desprezada pela própria família:... de pernas moles, caindo a toa. Um velho tio que assim me via dizia; – Esta filha de minha sobrinha é idiota. Melhor fora não ter nascido... Triste, nervosa e feia... Retrato vivo de um velho doente. Indesejável entre as irmãs. Sem carinho de mãe. Sem proteção de pai... – melhor fora não ter nascido. (CORALINA, 2008. P. 101). Quando jovem, fugiu de sua cidade natal.4, enquanto casada, ela foi proibida pelo marido de publicar suas poesias, algo que era comum à época, exemplo dado por escritores renomadose que, aliás, herdaram da Grécia Antiga5.
Cora Coralina, ou Aninha passou por uma infância pobre, sobretudo por causa das mudanças ocorridas no país que fizeram com que a classe média empobrecida, da qual Aninha pertencia, se tornasse ainda mais pobre. Com a libertação dos escravos e com a proclamação da República, a fazenda administrada por seu avô sofre uma decadência. Em seus escritos, tratou de diversos temas como pobreza, família, indiferença - sofreu indiferença tanto da mãe como das irmãs e tal sofrimento é percebido em seus versos autobiográficos, como em Canto de Aninha: “Éramos quatro as filhas de minha mãe. Entre elas ocupei sempre o pior lugar”.(CORALINA, 2008, p 94). Abordou também a natureza,a religiosidade, asolidão, aslutas (da mulher, do judeu, do agricultor, etc), entre outrostemas. Nossa pressuposição é que tais temas abrem canais significativos de diálogo com aTeologia Feminista da Libertação.
A seguir, portanto, vamos observar a literatura de Cora Coralina em diálogo com a Teologia Feminista da Libertação. Consideramos que a literatura trabalha tanto a ficção como também os fatos concretos,portanto, não é a fantasia em detrimento da vida real. Ao contrário, ela permite leitura e crítica da realidade que podem guiar para uma reflexão teológica, da qual está inserido o desenvolvimentoda vida humana em seus desdobramentos.A literaturaem “seu trabalho de apresentação dos desdobramentosdo que seja a realidade humana, real ou possível, aponta para caminhos de humanização lá onde o humano é real e completamente humano, na realidade histórica ou para além dela.” (MANZATTO, 2012, p. 83).
Mensagem poético-literária pelo viés da Teologia Feminista da Libertação
Um aspecto marcante da literatura de Cora Coralina foi sua preocupação humana e social, e sua natureza solidária, que estavam presentes não apenas em seus temas poéticos, mas também em suas ações.6A literatura, em especial a de Coralina, tem capacidade de incentivar o espírito de cidadania e respeito ao próximo, que remetem à relacionalidade humana. Aqui vemos um ponto de interseção significativo com a visão teológica latino-americana. Ivone Gebara defende que “A relacionalidade não indica apenas um caráter positivo nas relações humanas e nas relações com os seres humanos, mas se move dentro da complexidade dos processos vitais tentando superar a dependência em relação à vontade e ao poder das hierarquias”(GEBARA, 2007, p. 50-51). Tal pensamento se dá sob a visão de que estamos construindo sempre uma nova história, que deve ser coletivamente, não considerando fator social ou qualquer outro aspecto que, injustamente, provoca exclusão.
A literatura é um viés para trabalhar tais temas, uma vez que os poemas de Cora Coralina, e também de outros/as poetas/poetisas7, possibilitam uma releitura das propostas da Teologia Feminsita, e se estende aos demais movimentos teológicos da libertação,que defendem atitudes em prol de uma sociedade igualitária. No poema Todas as Vidas, tal pensamento pode ser observado:
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau olhado, acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço… Ogum.
Orixá, macumba, ferreiro.
Ogã, pai-de-santo…(CORALINA, 2008, p. 254-255).
Neste excerto, sabendo-se que Cora Coralina foi uma pessoa católica praticante, percebe-se em seu caráter a ausência de barreiras preconceituosas, indo ao encontro da pluralidade religiosa. Outra forma de demonstração de pensamento solidário e plural diz respeito aos excluídos, em outro fragmento do mesmo poema ela cita a lavadeira, em analogia às mulheres que precisam trabalhar para o sustento da casa, a mulher proletária, agricultora e analfabeta. Tão contra preconceitos, que Cora trouxe para perto de si a mulher prostituta, chamando-a de irmãzinha, como demonstração da compreensão de seus sofrimentos:
Vive dentro de mim, a lavadeira do Rio Vermelho,
seu cheiro gostoso,d’água e sabão.
Vive dentro de mia mulher do povo.
Bem proletária, desabusada, sem preconceitos,
de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mima mulher roceira.
Trabalhadeira. Madrugadeira.
Analfabeta. De pé no chão.
Seus doze filhos. Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida. Minha irmãzinha…
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro mim: Na minha vida – a vida
mera das obscuras.(idem).
Ela encerra o poema afirmando que não apenas essas vidas, mas todas as vidas “obscuras” estão em suas preocupações. “Obscuras” em alusão tanto ao que é sombrio, isto é, sem lugar ao sol, triste e sem oportunidades; como também obscuro no sentido de incompreensível, referindo-se às pessoas que por não seremcompreendidas em suas diversidadessão descriminadas. Por essa hermenêutica,percebe-se que não se pode falar sobre o pobre de forma genérica, e é assim que a Teologia Feminista Latino-Americanase afirma: através das experiências cotidianas de mulheres e homens que tem suas identidades, lutas e desejos. Como afirma Elsa Tamez:
Os pobres que são excluídos por não terem acesso aos bens de consumo básico, têm rostos múltiplos e seu grau de marginalização e opressão varia por sua classe, cor, etnia e sexo. Entretanto, ainda que estes pobres sejam sujeitos diferentes, a lógica de exclusão os unifica. Sua vida, enquanto ameaçada, mostra publicamente um rosto desfigurado por causa da miséria e da humilhação. Falamos de desumanização.(TAMEZ, 1995, p. 206).
Mesmo sendo uma cristã e leitora da Bíblia, alguns dos versos de Cora Coralina revelam que não aceitava passivamente a doutrina, além de certa contestação a ideia de salvação pelo sofrimento. Dessa forma, a literatura, mesmo que na afirmação e descrição de sofrimento, carrega uma crítica de oposição a tal situação. No poema Humildade, Cora demonstra certa passividade na condição de pobreza, para tanto, há de se verificar o poder renovador presente na literatura, sua expressividade sobre o mundo e sobre a vida, que a autora faz em tom de oração:
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter...
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão, pedras remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa...(CORALINA, 2008, p. 321).
A aparente aceitação de situação humilde na verdade é uma chamada de atenção aos mais afortunados e reivindicação para um olhar ao pobre como seres humanos dignos. Com o poema “Ofertas de Aninha”, a poetisa declara seu otimismo nos valores humanos:
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana,
creio na superação dos erros...(CORALINA, 2008, p. 132).
Tais versos podem realçar a visão teológica de que Deus, a força maior que guia o ser humano em busca das superações das adversidades da vida, não quer o sofrimento de seus filhos e filhas, sendo assim, é justo que os excluídos nas sociedades, seja por relação socioeconômica, cultural ou religiosa, façam suas reivindicações. Sendo que no sentido amplo da palavra, sociedade é um conjunto, assim traz a ideia de que todos participam, nessa linha, é justo – e necessário – que se acredite na capacidade humana de viver em união, como diz Cora: viver em “fraternidade universal”. A ressurreição de Jesus Cristose deu para a justificação da fé no Deus que dá a vida, e “é pela fé e não pela lei que se é justificado, o excluído toma consciência de seu ser como sujeito histórico e não como objeto (...). A fé na ressurreição do corpo, como a dimensão plena da vida na terra, dá poder para lutar e defender a vida de todos.”(TAMEZ, 1995, p. 263-265).
Cora Coralina sempre foi solidária e reforça sua preocupação em relação à pobreza, com seu poema Moinho do tempoa autora relembra uma época de decadência de sua casa, assim como nas outras casas pobres (recém-empobrecidas ou por tradição de família sem posses),em que a força do trabalho das mulheres estava presente:
A pobreza em toda volta,
a luta obscura de todas as mulheres goianas.
No pilão, no tacho,
fundindo velas de sebo,
no ferro de brasas de engomar...”(CORALINA, 2008, p.101)
As mulheres sempre estiveram frente ao trabalho, esse desejo de independência e valorização já era forte na época de Cora Coralina e ainda hoje permanece assim. Como sabemos, em muitos lares é o salário das mulheres que sustenta a família, no entanto, ainda há diferenças salariais entre homens e mulheres e desvalorização do trabalho feminino, que ultrapassa o campo profissional o qual as mulheres têm mostrado alta capacidade de desenvolvimento de suas habilidades, e passam para o campo doméstico. Trata-se das transformações nas relações de trabalho no modelo liberal capitalista, sobretudo apartir da emergência de um mercado detrabalho assalariado, que acarretaram distorção, a partirdavisão burguesa sobre a relação entre trabalho produtivo remunerado e trabalho reprodutivo. Dessa forma, o trabalho profissional representa apenas uma parcela de todo trabalho destinado à mulher, isto é, elas trabalham produtivamente e cumprem o papel que a natureza lhes deu.8 Sendo assim, não só as mãos, pernas, pés, cabeça, cumprem funções no trabalho, mas todo o corpo da mulher. Para o trabalho dos homens, uma vez que não têm o papel natural de gerar filhos, dependem apenas da mediação de utensílios e instrumentos externos, e se caracteriza pela relação de domínio sobre a natureza e sobre as mulheres.
A condição capitalista trouxe uma divisão assimétrica do trabalho, “e com ela, a primazia masculina em todos os terrenos, econômicos ou não”. Dessa forma, ficou para a mulher a condição de “domesticada”, no sentido de dona-de-casa, doméstica. (ESTER, 1996, p. 523). Tal contexto aparece no poema coralianiano Essas mãos:
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.
Íntimas da economia,
do arroz e do feijão da sua casa.
Do tacho de cobre. Da panela de barro...
Minhas mãos doceiras jamais ociosas.
Fecundas... Mãos laboriosas...
Mãos de semeador... Afeitas à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes. Procurando a terra.
Semeando sempre. Jamais para elas os júbilos da colheita. (CORALINA, 2008, p. 217-218).
A divisão sexual de trabalho traz desigualdades socioeconômicas, mas o preconceito com as mulheres,manifestado em injustiças,se estende para além da dicotomia trabalho-lar. As representações histórico-simbólicas do social estão enraizadas na “linguagem sobre Deus nas culturas monoteístas que é prioritariamente masculina”. (GEBARA, 2007, p. 12). Assim teólogas observaram - e observam - a força dos símbolos masculinos presentes em nossa cultura.A Teologia Ecofeminista advém da máxima de que a mulher e a natureza se encontram em conjunção de dominação e exploração, assim, o ecofeminismo trata das relações dos homens, das mulheres e deles com a natureza.
Em uma época primitiva a natureza foi representada de forma religiosa por deuses e deusas em harmonia. Com a queda do politeísmo e início do monoteísmo, a tradição cristã passou a mostrar um Deus patriarcal que se relaciona intimamente com a imagem do homem: Criador, misericordioso, Pai, todo-poderoso, etc, colaborando para a dominação da natureza e das mulheres, uma vez que estas estão interligadas à vida e ao mistério da morte.Gebara advoga que “As experiências de vida e morte tinham algo a ver com a dimensão feminina da vida humana que incluía a dimensão masculina como parte dela.”(GEBARA, 2010, p. 45).
Dessa forma, para os povos primitivos era a Grande Mãe (como representação da natureza que alimenta e dá vida – Mãe Terra) que os corpos masculinos e femininos nasciam, “a vida vem dela e a morte se integra nela... As alegrias vêm dela e o sofrimento vem dela... Ela conjuga os contrários e os afirma na existência de tudo o que existe.”A espiritualidade estava interligada às experiências humanas, e ao introduzir o divino masculino como ser absoluto, o vínculo que havia antes com o feminino, com a terra e suas energias, foi quebrado. A relação com o Deus Pai é abstrata e diferente da que era coma Grande Mãe - Mãe Terra. Assim, o mistério sai da experiência dos corpos humanos e passa para a negação e temor dos corpos, pois o Deus superior é um juiz rigoroso, moralista, capaz de castigar e de salvar. (Idem, p. 46-47).
No poema O Cântico da Terra é possível observar os preceitos da Teologia Feminista quanto à natureza e sua relação com o feminino:
Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a arvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da vida.
Só em mim acharás descanso e Paz.(CORALINA, 2008, p. 311)
As relações entre homens e mulheres e deles/delas com a natureza em sua grandeza (plantas, animais, água, cosmos, a terra), suas interpretações sobre o mundo, seus desejos e suas esperanças,suas conquistas e decepções, a percepção de suas fraquezas e de sua finitude, todo esse leque dasexperiências humanas refletem na realidade, na maneira como ageme como idealizam o céu e Deus. Dessa forma, todos esses aspectos devem ser, e são, a base para o pensamento teológico, da qual a literatura compartilha, como instrumento de resistência de qualquer tipo de exclusão, porque todos são dignos da vida, que é um dom dado por Deus.
Considerações finais
Projetou-se nesta pesquisa ressaltar aspectos da Teologia Feminista da Libertação, de forma sumária, porém significativa, que trouxeram valiosa contribuição para um método teológico que represente o momento presente, especialmente no tocante ao diálogo com a literatura. Procuramos desenvolver tal enfoque sem excluir a história de outros movimentos teológicos, ao contrário, se apoiando nela para escrever uma nova história em que os sujeitos, homens e mulheres, são seres atuantes e da qual a literatura é participante e representante. A poesia de Cora Coralina possibilita uma visão desse desejo feminino de liberdade de ação e de expressão, de uma caminhada de união, de amor e antes de tudo, com Deus e em Deus. Assim, as marcas da resiliência encontradas na história, na teologia e na literatura lançam o ser humano para a busca de renovação de saberes e de descobertas.
A partir dessas premissas, o enfoque da Teologia Feminista da Libertaçãoem diálogo com a literatura de Cora Coralina como nos propomos a realizar,encontra-se na razão de uma ontologia de igualdade entre os sexos, a afirmação histórico-cultural, liberdade de ação e de experimentar o transcendente, entre outras intercessões para o bem-estar comum, as quais permanecem abertas para novas discussões teológicas - e literárias - acerca do conhecimento da existência e entendimento das necessidades dos seres humanos, que por sua complexidade, permite sempre horizontes novos e plurais.
—
Bibliografia
ALTHAUS-REID, Marcella. “Demitologizando a teologia da libertação: reflexões sobre poder, pobreza e sexualidade”. In: SUSIN, Luiz Carlos (org.). Teologia para Outro Mundo Possível.São Paulo: Paulinas, 2006.
CORALINA, Cora. Villa Boa de Goyaz. 2.ed. São Paulo: Global, 2003.
____. Melhores Poemas. Seleção e apresentação Darcy França Denófrio. 3. ed. São Paulo: Global, 2008.
FURLIN, Neiva. Teologia feminista: uma voz que emerge nas margens do discurso teológico hegemônico. In: Revista de Estudos da Religião – REVER. Ano 11. Nº01 Jan/Jun 2011.
GEBARA, Ivone. O que é teologia feminista. São Paulo Brasiliense, 2007.
____.Vulnerabilidade, Justiça e Feminismo. Antologia de textos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2010.
GÖSSMANN, Elisabeth (et al.). Dicionário de teologia feminista. Tradução Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2009.
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. SãoPaulo: Loyola, 1994.
NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Silvia Helena. Família e Patriarcado: da prescrição normativa à subversão criativa. In: Psicologia & Sociedade, ano 18, nº 1, Jan/abr. 2006.
REIS, Claudia Barbosa. Cora Coralina e Sua Casa Silenciosa. In: Artigos - Revista UFG.Dezembro/211. Ano XIII, nº11.
RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. A Teologia da Libertação Morreu? – Reino de Deus e Espiritualidade hoje. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
ROSADO-NUNES, Maria José. Teologia Feminista e a crítica da razão religiosa patriarcal: entrevista com Ivone Gebara. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006. http://www.scielo.br/ pdf/ref/v14n1/a16v14n1. Acesso em 23/11/2015.
TAMEZ, Elsa. Contra toda Condenação: a justificação pela fé, partindo dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995.
—
Notas
[1] Nos séculos anteriores, há uma rica e densa memória de mulheres que lutaram por direitos dentro de um contexto religioso. Como exemplo, citaremos apenas três:Juana Inês da Cruz, religiosa mexicana, astrônoma, literata e poetisa, vítima da Inquisição no século XVII,Elisabeth CadyStanton, sufragista e escritora estadunidense durante o século XIX, autora da obra “Bíblia para mulheres” e Jacobina Mentz, líder do movimento sócio religiosoMuckers em Sapapina (RS) durante os anos novecentos. Tanto Cruz quanto Stanton e Mentz colocaram suas vidas e dignidade em risco ao criticar o monopólio masculino do sagrado no cristianismo ocidental.
[2] “Essa relação entre Cristianismo e literatura, expressa primeiramente na fórmula Cristianismo como literatura, conhece muitos outros exemplos que vão além do livro considerado canônico .(...) a ideia movente do Cristianismo como fé que se anuncia e vida que se compartilha propiciou à literatura cristã, especialmente à Bíblia, uma grande chance de disseminação. As narrativas bíblicas passaram a ser narrativas da cultura, as tramas que encontramos nos relatos bíblicos passaram a ser imagens das tramas das memórias da religiosidade popular... (o Cristianismo) não ficou preso à interpretação do missionário, não ficou cativo, do mundo e dos interesses das Igrejas”. (MAGALHÃES, 2009, p. 22).
[3] Como exemplo de mulheres representadas nos textos bíblicos pode-se citar: Rute, Tamar, as filhas de Ló, Sara, Raquel, Gomer. Esta última, esposa do profeta Oseias, aparece como esposa infiel, porém, o profeta recorre à imagem da mulher para mostrar como o povo estava sendo corrompido, não pondo em julgamento o homem ou a mulher, mas a exploração humana para benefícios de um grupo de poderosos.
[4] Cora foi ousada frente às tradições de seu tempo; saiu de Goiás com um homem ainda casado(Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas) já que em sua época não era permitido o divórcio e ele não poderia casa-se novamente. Viveu com o senhor Bretasem São Paulo e tiveram seis filhos, casaram-se quando ele enviuvou (do primeiro casamento). O motivo de sua fuga foi a não possibilidade de casar-se com a pessoa que amava, já que não poderia viver na sua cidade natal de maneira considerada irregular, isto é, o casal morando junto sem regularização da lei matrimonial, para alguns era não apenas algo fora das leis, mas também algo indecente. (REIS, 2011).
[5] Péricles, o democrata que sonhava com a igualdade entre os homens (?), cinco séculos antes de Cristo, no chamado Século de Ouro da Grécia, já dizia: “A glória da mulher é não ser falada”. O poeta Olavo Bilac também trilhou esse caminho e proibiu sua noiva, Amélia de Oliveira, de fazer uma publicação, argumentando com uma frase de Ramalho Ortigão: “O primeiro dever de uma mulher honesta é o de não ser conhecida.”(DENÓFRIO, 2008 p. 24).
[6] Segundo Darcy França Denófrio (2008), parte da obra de Cora Coralina é um canto solidário aos despossuídos. Para além da solidariedade de seus escritos, sobretudo no jornal O Democrata, ela se engajou em ações sociais nas cidades do interior paulista, onde morou.
[7] Homens e mulheres poetas e também romancistas abordaram, e ainda abordam, temas relacionados à relação de poder e às questões socioeconômicas escrevendo tanto por meio da ironia como do drama, representados por personagens reais ou fictícios que retratam situações de opressão, humilhação ou discriminação, em uma trajetória de denúncia ou de combate. Assim, podemos citar Castro Alves, considerado o “poeta da liberdade”, em que denuncia a crueldade da escravidão. Como também outros autores e autorasdo Brasil, e de vários lugares do mundo,que transitam pelos temas referidos: Eça de Queiroz, Machado de Assis, Erico Verissimo, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles, Adélia Prado, Ezra Pound, entre outros nomes.
[8] Para MaritaEstor (1996): “O elo entre a discriminação da mulher na vida profissional e a divisão das tarefas dentro da família, segundo a qual o trabalho familiar e doméstico constitui a atribuição primária das mulheres, foi pela primeira vez percebida pelas sociólogas do movimento feminista autônomo (como Ostner, Beck-Gernsheim, Mies, Bennholdt-Thomsen). Elas analisaram a distribuição ‘natural’ dos papeis, segundo a qual o papel primário da mulher é o trabalho na família, e o do homem o trabalho profissional, chegando à conclusão de que nos encontramos diante de uma ideologia de base biológica que beneficia o patriarcado e que garante a condição de dependência da mulher, trazendo como consequência o seu empobrecimento.”.