O Romance Caim e o Debate Teológico Contemporâneo
The Novel Caim and The Contemporary Theological Debate

Marcio Luiz Fernandes* Darleyson de Carvalho**
* Professor Adjunto no Programa de Pós Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. PósDoutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Email: marciovisconde@ yahoo.com.br.
** Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Email: darleyson@gmail.com.
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Resumo
A análise teológica do romance Caim, de autoria do romancista José Saramago, é o objeto de pesquisa do presente estudo. O artigo procura expor uma fundamentação teórico-metodológica plausível ao diálogo entre literatura e teologia, analisar as provocações presentes no romance e aprofundar as críticas do luso escritor de modo a ressignificar o discurso religioso. A fim de se alcançar as metas propostas a fundamentação do trabalho é realizada a partir da teoria da metáfora e da atividade mimética proposta pelo filósofo Paul Ricoeur. A metáfora não é apenas um ornamento do discurso, antes tem a capacidade de inventar, criar novos significados e novas possibilidades de se conhecer a realidade. O conceito de metáfora aplica-se à literatura relacionando-se ao conceito de mímesis que, para Ricoeur, é percebido em uma ação tripartida: prefiguração, configuração e refiguração. A primeira se refere ao mundo da ação (referência da composição narrativa). A segunda é a transformação da ação em história. A terceira é o ato de ler que permite encontrar significações para a própria existência do leitor. Nesse sentido, o texto literário traz categorias representativas do ser humano, desafiandoo a perceber novas possibilidades de ser no mundo da vida.

Palavras chave: Teologia, Literatura, Caim, Saramago, Ricoeur.

 

Abstract
The theological analysis of the Caim novel, written by the novelist José Saramago, is the research object of this study. The article tries to expose a theoretical and methodological foundation plausible dialogue between literature and theology, analyze the provocations present in the novel and deepen the criticism of the Portuguese writer in order to reframe the religious discourse. In order to achieve the proposed objectives, the research is grounded on the theory of metaphor and mimetic activity proposed by the French philosopher Paul Ricoeur. The metaphor is not just an ornament of speech, before, has the capacity to invent, create new meanings and possibilities of knowing the reality. The concept of metaphor applies to the literature relating to the concept of mimesis that, for Ricoeur, is perceived in a tripartite action: prefiguration, configuration and refiguration. The first refers to the world of action, reference place of narrative composition. The second is the transformation of the action in history. The third is the act of reading which allows finding meanings for the existence of the reader. In this sense, the literary text brings representative categories of human people, daring him to realize new possibilities of being in the world of the life.

Keywords: Theology , Literature , Caim , Saramago , Ricoeur.

Introdução

A temática que orientou a elaboração do artigo e que conduziu a construção de conhecimento expressa no decorrer do trabalho foi a tentativa de perceber o modo pelo qual o romance Caim de José Saramago pode contribuir para o debate teológico contemporâneo. Nessa tentativa de leitura, o referencial teórico utilizado na análise do texto é realizado a partir da compreensão de Paul Ricoeur acerca do papel da metáfora e seu correlato mímesis na tessitura da intriga. Partindo de suas considerações pondera-se que a Literatura é definida pela metáfora. A metáfora inova o conhecimento por possibilitar um novo olhar sobre a realidade trazendo outros elementos de assimilação através da aproximação de ideias. A Literatura entende-se pela metáfora por meio do conceito de mimesis da realidade, que é a sua (re)descrição. A mímesis é uma operação, por isso é tripartida A suposição elementar é que o mundo da vida, com seu conhecimento básico, é compartilhado pelo autor e pelos leitores, destarte o escritor utiliza-se da linguagem para propor uma nova maneira de estar-no-mundo, a qual é configurada na escrita e refigurada na leitura.

Para atingir o objetivo proposto o artigo segue uma divisão didática. A primeira parte explicita a teoria de Ricoeur como orientação para ampliar a leitura do romance a fim de possibilitar o diálogo entre teologia e literatura. A segunda é a apresentação dos resultados obtidos a partir dessa perspectiva. Por fim há uma síntese das percepções alcançadas.

Fundamentação teórico-metodológica

A metáfora possui função heurística, ou seja, é capaz de inventar, criar novos significados e novas possibilidades de se conhecer a realidade. O fundamento teórico desse postulado é estipulado por Paul Ricoeur. Para o pensador francês a metáfora possui o poder criador da linguagem e a capacidade de redescrição do mundo, de acordo com sua perspectiva “uma metáfora não é um ornamento de discurso. Tem mais do que um valor emotivo, porque oferece uma nova informação. Em suma, uma metáfora diz-nos algo de novo acerca da realidade”. (RICOEUR, 2011, p.77). Nessa conceituação, metáfora não é tão somente uma figura de estilo, mas deve ser considerada, então, como instrumento linguístico que pode renovar a linguagem e construir novos valores éticos e existenciais. A metáfora traz ao discurso a capacidade de intuir algo novo sobre o mundo, guiando a uma compreensão mais extensa do mesmo, desestabilizando conceitos e pré-conceitos solidificados por uma leitura tradicional. Ricoeur abre a possibilidade ao sujeito leitor de construir a si mesmo, de tomar o texto, ao vinculá-lo a função da metáfora, como referencial de novas possibilidades. Portanto, para Ricoeur, a literatura tem a capacidade de estender o conhecimento da realidade por meio da metáfora. (RICOEUR, 2000).

O conceito de metáfora aplicado à literatura por Ricoeur relaciona-se com o conceito de mímesis. A tradução dessa palavra é imitação e representação. Logo mímesis, aplicada à literatura, é a imitação da ação. No entanto tal definição não pode ser compreendida apenas em seu sentido passivo, porém, de igual modo, como processo de reconstrução da realidade. Ricoeur afirma que “textos literários implicam horizontes potenciais de sentido e podem atualizar-se de diversos modos” (RICOEUR, 1988a, p. 78). A mímesis é e produz mediação entre sujeito e mundo por meio da ação configurada pelo autor, possibilitando o confronto entre o universo da obra e o do leitor. Pela apropriação do sentido do texto pelo leitor há o recebimento de um novo modo de ser. A função heurística da Literatura desenvolve-se porque a mesma é definida pela metáfora e, portanto, tem a capacidade de inovar o conhecimento por criar uma nova apreensão da realidade pela aproximação das ideias contidas no enunciado metafórico. Definir a Literatura pelo conceito de metáfora significa que a “linguagem poética é aquela que por excelência opera mímesis da realidade” (RICOEUR, 1988a, p. 57). A mímesis tem a capacidade de redescrição da realidade o que se aplica, de igual modo, à metáfora.

Na obra Tempo e Narrativa (2010, p.59) o filósofo francês aborda o conceito de intriga (mythos) que faz par com aquele de mímesis. Ele constrói tal conceito a partir de sua leitura de Aristóteles, compreendendo-o como um agenciamento dos fatos. Faz-se necessário destacar que o par mímesis-mythos são operações e não estruturas. Nesse sentido, a composição da intriga é um processo ativo: mythos é mímesis de uma ação. O pensador francês concebe o conceito de mímesis em uma ação tripartida: mímesis I, mímesis II e mímesis III. Tal divisão é feita a partir da concepção de tempo. Para Ricoeur o tempo possui um papel mediador da composição da intriga, de modo que “seguimos, pois o destino de um tempo prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado” (RICOEUR, 2010b, p. 95), portanto sob esta perspectiva há a completude de uma ação através da tensão entre passado, presente e futuro, compreendidos especificamente como memória, intenção e expectação. Para o filósofo “a composição da intriga está enraizada numa pré-compreensão do mundo da ação: de suas estruturas inteligíveis, de seus recursos simbólicos e de seu caráter temporal” (RICOEUR, 2010b, p. 96), portanto mímesis I está relacionada com a prefiguração. A ação prefigurativa é referente ao conhecimento adquirido no cotidiano. É a pré-compreensão comum do poeta e do leitor sobre o agir no mundo que permite a construção textual. Cabe, então, entender a distinção entre ação e movimento físico. Ação remete a objetivos, implica motivos e possui agentes (RICOEUR, 2010b, p. 97). Logo as questões fundamentais para compreensão do agir são quem fez, o que fez, como fez e por que fez. É importante ressaltar, também, a afirmação de Ricoeur de que “agir é sempre agir “com” outros” (RICOEUR, 2010b, p. 98) e esse agir pode ser de modo cooperativo, competitivo ou de luta, dependendo da situação de ajuda ou adversidade, cujo fim pode ser positivo ou negativo. A assimilação de tais elementos é a denominada compreensão prática. A partir da compreensão prática a discussão estende-se acerca de como ela relaciona-se com a compreensão narrativa. Ricoeur responde a essa questão afirmando que a relação é “simultaneamente uma relação de pressuposição e uma relação de transformação” (RICOEUR, 2010b, p. 98). Pressuposição refere-se a familiaridade com a rede conceitual da ação. No entanto a prefiguração não se restringe a tal compreensão, mas sim acrescenta elementos discursivos onde ocorre a transformação da ação.

Outro ponto de intersecção entre compreensão narrativa e compreensão prática está nos recursos simbólicos. A ação só pode ser narrada porque já foi simbolicamente mediatizada. A compreensão de símbolo proposta é de que as formas simbólicas são articuladoras das vivências. Antes de ser texto, o símbolo é parte imanente da cultura, socialmente incorporado à experiência do cotidiano, portanto ao procurar a compreensão do sistema simbólico investiga-se o contexto de descrição da ação particular, o que “confere à ação uma primeira legibilidade” (RICOEUR, 2010b, p. 102). A mediação simbólica estabelece as regras imanentes da cultura, por meio dela o agir é julgado por um sistema de preferência moral, o que valoriza ou desvaloriza determinada ação.

Um terceiro aspecto do pensamento ricoeuriano na concepção da mímesis I é o caráter temporal no qual o tempo narrativo configura suas ações. O significado de tempo para Ricoeur não se refere ao tempo linear determinado por horas, minutos e segundos, mas sim o tempo como intratemporalidade, definido pela sucessão de agoras abstratos, tendo como característica básica o cuidado o qual, por sua vez, é concebido pela preocupação. Ricoeur afirma que “na preocupação o Cuidado tende a se contrair no tornar-presente e a obliterar sua diferença com relação à expectativa e à retenção que o “agora”, assim isolado, pode se tornar presa de sua representação como um momento abstrato” (RICOEUR, 2010b, p. 112). Nota-se que a composição da ação só é significativa quando relacionada a compreensão da intratemporalidade como estrutura fundamental do ser no mundo. Assim:

Percebe-se, em toda a sua riqueza, qual o sentido de mímesis I: imitar ou representar a ação é, em primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica, sua simbólica, sua temporalidade. É nessa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se delineia a construção da intriga e, com ela a mimética textual e literária. (RICOEUR, 2010b, p. 112)

Logo, pode-se expor algumas compreensões acerca da mímesis I. A primeira é de que o escritor é um leitor do mundo, ou seja, antes de compor sua obra ele é um ser que está inserido no mundo e age nesse mundo.

A segunda suposição que se pode estabelecer é de que como a mímesis está vinculada com a vida, existe a implicação direta da referencialidade do discurso literário, o que possibilita a compreensão da obra literária, porque ela só configura o que na ação humana já pré-figura.

A terceira consideração que se faz é de que o leitor só compreende a obra literária porque ele mesmo age no mundo como seu lugar comum de pré-compreensão da realidade da mesma forma que o poeta.

A função da mímesis II é de mediação entre prefiguração e reconfiguração derivada do modo dinâmico pelo qual a configuração opera. Nas palavras de Ricoeur com ela “abre-se o reino do como se” (2010b, p. 112), ou seja, o reino da ficção. É aqui que o narrador exerce sua capacidade de leitura das vivências e experiências do mundo, tornando-as uma composição narrativa. Mímesis II é representada na literatura pela obra em si, é o ato da configuração. Denech (2006, p. 17) afirma que “a configuração é a operação pela qual, a partir da “tessitura da intriga”, compõe-se, poeticamente, uma obra qualquer”. A configuração narrativa exerce uma função de integração e consequentemente de mediação através da intriga. Ricoeur apresenta três motivos fundamentais pelos quais a intriga dentro da narrativa exerce a função mediadora: 1) a intriga transforma eventos em histórias; 2) ela une fatores heterogêneos; 3) ela engendra na história aspectos temporais.

A operação de configuração da intriga transforma uma pluralidade de acontecimentos individuais em uma história plausível. Ao ponto que Paul Ricoeur afirma que uma história:

Tem de ser mais que uma enumeração de acontecimentos numa ordem serial, tem de organizá-los numa totalidade inteligível, de modo tal que se possa sempre perguntar qual é o “tema” da história. Em suma, a composição da intriga é a operação que tira de uma simples sucessão uma configuração. (RICOEUR, 2010b, p. 114)

A composição de fatores heterogêneos constitui a própria transição da mímesis I para a mímesis II. Aqui há a projeção sintagmático-paradigmática, ou seja, a obra da atividade de configuração se dá como composição da ordem sintagmática sobre o eixo paradigmático.

A intriga, segundo Ricoeur exerce uma função de mediação por seus caracteres temporais próprios, aqui ela realiza a síntese do heterogêneo (cf. RICOEUR, 2010b, p. 115). A intriga combina duas dimensões temporais uma cronológica e outra não. A primeira refere-se aos acontecimentos e a segunda é a dimensão configurante a qual transforma os acontecimentos em história. A configuração faz com que acontecimentos isolados possam ser ordenados a partir de um eixo temático e traz o senso de totalidade.

Com a finalidade de explicar a continuidade de mímesis II para mímesis III há a necessidade de se acrescentar dois aspectos que complementam e garante a sequência do processo da tessitura da intriga, a saber: esquematização e tradicionalidade.

A esquematização ocorre por meio da imaginação produtiva a qual exerce uma função sintética. Portanto tal característica une a temática do texto e a apresentação do constituinte do desenlace. A consequência lógica do esquematismo é a construção de uma história que possui todas as características de uma tradição, pois possui a capacidade de transmitir e inovar a narração. A fim de se compreender a argumentação em favor da transmissão e inovação existe a necessidade de se discutir dois elementos presentes na tradição, os quais são sedimentação e inovação. Sedimentação relaciona-se com “os paradigmas que constituem a tipologia da composição da intriga” (RICOEUR, 2010b, p. 119) e a inovação, é utilizado a medida em que há a compreensão de que cada obra é singular e, portanto, existe uma relação variável com os paradigmas da tradição.

O fim do processo de composição narrativa é o que Paul Ricoeur denomina mímesis III. O primeiro passo da atividade mimética, mímesis I, nasce do mundo da ação, da própria vivência humana (a prefiguração). O segundo, mímesis II, é o mundo configurado da obra dirigido aos leitores e ouvintes (a configuração). Por fim é na relação da obra configurada e o mundo do leitor que acontece a mímesis III como processo de refiguração, onde o leitor se apropria da narrativa refigurando seu próprio mundo. Ao observar a concepção de Ricoeur do desenvolvimento da narrativa percebe-se a maneira de como o círculo hermenêutico é estruturado: inicia na ação e se encerra na ação. Portanto a composição narrativa é fruto imediato da própria existência e ação do ser humano no mundo. Pelo que o pensador esclarece:

Se não há experiência humana que não seja mediatizada por sistemas simbólicos e, entre eles, por narrativas, parece inútil dizer, como fizemos, que a ação está em busca de narrativa. Como, com efeito, poderíamos falar que uma vida humana é uma história em estado nascente se não temos acesso aos dramas temporais da existência fora das histórias contadas a seu respeito por outros ou por nós mesmos? (RICOEUR, 2010b, p. 127)

Sob tal perspectiva mímesis III como final do processo de composição narrativa fundamenta-se no ato do leitor penetrar no texto e encontrar significações para sua própria existência. A questão que surge, então, é de que modo a configuração e refiguração, enquanto operações da atividade mimética, estabelecem a inter-relação? Pelo que Ricoeur responde:

Nada demonstra isso melhor que os dois aspectos com os quais finalizamos a caracterização da intriga no estágio de mimesis II, ou seja, a esquematização e a tradicionalidade. Esses aspectos contribuem particularmente para acabar com o preconceito que opõe um “dentro” e um “fora” do texto... Esquematização e tradicionalidade são desde o início categorias da interação entre a operatividade da escritura e da leitura. (RICOEUR, 2010b, p. 131)

A tradicionalidade é que estrutura o leitor na expectativa da leitura. É por meio dela que aquele que se aproxima do texto encontra ferramentas capacitantes da compreensão textual e, de igual modo, é o que faz com que a narrativa seja capaz de ser acompanhada e atualizada. Também é no ato de ler que a inovação e sedimentação são esquematizadas na tessitura da intriga. A conclusão lógica que se estabelece é de que o texto só encontra sua identidade como criação literária na interação com o leitor.

Outro problema que se faz necessário analisar sob a ótica ricoeuriana é o da referência, ou seja, “o que é comunicado é, em última instância, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte” (RICOEUR, 2010b, p. 132) e Mímesis III é, em suma, a comunicação do texto. Nesse aspecto é a característica da transcendência do texto oriunda intersecção entre o mundo do texto e do leitor (2010b, p. 132). Aqui Ricoeur retoma da tese da relação entre sentido e referência em todo o discurso, no que escreve “segundo essa tese... se tomarmos a frase por unidade de discurso, a intenção do discurso deixa de se confundir com o significado correlativo de cada significante na imanência de um sistema de signos” (RICOEUR, 2010b, p. 133). O texto procura compartilhar com o outro, através de uma relação dialogal, uma experiência e um conhecimento novos. Tal postulado demonstra a capacidade extralinguística do texto onde “a linguagem é em si mesma da ordem do Mesmo; o Mundo é seu outro” (RICOEUR, 2010b, p. 134), ou seja, a narrativa é, antes de tudo, a expressão por meio da linguagem de novas possibilidades de estar no mundo. O papel do texto não é simples reprodução do mundo. Como já foi dito, ele procura trazer algo novo. Na refiguração a fusão entre o mundo do texto e o do leitor é a problemática. A resposta encontra-se na referência. A pergunta norteadora do filósofo ao refletir acerca desse assunto é acerca da referência e sentido em todo o discurso. A argumentação ricoeuriana é que “com a frase a linguagem orienta-se para além de si mesma: diz algo sobre algo” (RICOEUR, 2010b, p. 133). Para se transmitir uma experiência nova é necessária uma vivência no mundo, logo a referência é essencialmente dialogal. A linguagem desvela o mundo, mesmo que de maneira indireta em sua função poética, trazendo ao mesmo uma experiência. Percebe-se, então, que ela é dirigida a alguém e ao ser dirigida a alguém ela liberta-se da referência situacional, capacitando o leitor a redescrever o mundo do texto a partir da sua própria experiência, o que coloca “o problema da fusão de dois horizontes, o do texto e o do leitor, e, portanto, a intersecção do mundo do texto com o mundo do leitor” (RICOEUR, 2010b, p. 135). Cabe ao leitor de determinado texto apropriar-se do sentido referencial do discurso narrativo e aplicá-lo ao mundo real.

A hermenêutica do ser humano proposta pela literatura é possível porque a função heurística da obra literária convida a descobrir novos modos de ser e estar no mundo. O texto possui a capacidade de criar novos significados e possibilidades de se entender o real.

Apropriar-se do sentido do texto não é entender a intenção do autor como um evento de se entender a psique alheia. Compreender a narrativa é compreender o próprio mundo do texto e entender a obra mais que o próprio autor, pelo que Ricoeur (2011, p. 131) afirma que “Compreender um autor melhor do que ele a si próprio se poderia entender é exibir o poder de desvelamento implicado no seu discurso para além do horizonte limitado da sua própria situação existencial”. Isso mostra o alargamento de significação do texto o que possibilita a interação entre o leitor e o mundo da obra. Portanto a criação literária se dá primeiramente pela leitura de mundo realizada pelo autor (mímesis I – prefiguração). No entanto, é importante destacar novamente que o autor não realiza a descrição do seu mundo, uma vez o texto escrito (mímesis II – configuração) cria-se o mundo da obra, sendo este que o leitor (mímesis III – refiguração) compreenderá a partir de suas próprias vivências e experiências. Ricoeur escreve que:

O texto é como uma partitura musical e o leitor como o maestro que segue as instruções da notação. Por conseguinte, compreender não é apenas repetir o evento do discurso num evento semelhante, é gerar um novo acontecimento, que começa com o texto em que o evento inicial se objetivou. (RICOEUR, 2011, p. 106)

O mundo da obra é independente de seu autor porque sua intenção ao criá-lo está distante do leitor. O que existe é a ação dialética entre o leitor e a obra configurada, “a referência exprime a plena exteriorização do discurso, na medida em que o sentido não é só o objecto ideal intentado pelo locutor, mas a realidade efectiva visada pela enunciação” (RICOEUR, 2011, p. 112). Desse modo já se pode compreender forma pela qual a mímesis opera em sua totalidade: prefiguração, configuração e refiguração.

Apresentação dos resultados

A prefiguração como a atenção a vida do autor

A análise da individualidade de Saramago está correlata à própria compreensão de prefiguração proposta por Ricoeur em mímesis I, onde o que pauta a base epistemológica da prefiguração é o entendimento de que a tessitura da intriga, ou composição da narrativa, é a imitação da ação humana, destarte ela é o conjunto de elementos que antecedem a criação narrativa. Portanto, entender como o autor percebe e constrói seu mundo é compreender o modo pelo qual ele compõe e desenvolve seus escritos.

Para o romancista a Literatura é a projeção da própria vida do autor em forma de texto, ou seja, a representação de sua ação no mundo, como ele escreve:

Desde a primeira palavra, desde a primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes escondida, porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo, diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo reconhecível. (SARAMAGO, 1988, p. 26)

A posição de Saramago converge, desse modo, com a proposta de Ricoeur com relação ao caminho de análise da intencionalidade das narrativas e com a função significativa da formação das intrigas e conflitos.

No entanto isso não isenta a obra de sua função heurística, como Saramago demonstrou ao efetuar seu discurso denominado De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz, na ocasião do recebimento do prêmio Nobel. Aqui cabem algumas ponderações acerca desse discurso. José Saramago, ao produzir sistematicamente a sua exposição de ideias, escreve realizando certa divisão que se estabelece a partir de relatos biográficos, se estende na escrita de seus romances e culmina na sua interpretação dos textos enquanto leitor. Percebe-se, então, nessa estrutura discursiva certa similaridade com os conceitos da atividade mimética: mímesis I (prefiguração), mímesis II (configuração) e mímesis III (refiguração) apresentados por Paul Ricoeur

A leitura do mundo vivido tornou-se matéria-prima para a criação de outro mundo. As personagens reais vão tornando-se, dentro de um espaço configurado pelos símbolos da escrita, em personagens literárias. Ao configurar o mundo em forma de texto, Saramago percebe uma duplicidade de ações: “criador de personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas” (SARAMAGO, 1999, p. 9). Portanto existe uma relação entre a obra literária e a vida do escritor enquanto leitor, mostrando que os mestres de sua vida, aqueles que lhe ensinaram a arte do bem viver, os quais lhe desvelaram o mundo, foram seus personagens. Destarte, há a demonstração do poder da descoberta do novo presente na ficção. Para corroborar tal afirmação o escritor apresenta em seu discurso alguns dos seus mestres, “homens e mulheres feitos de papel e de tinta” (SARAMAGO, 1999, p. 9), através de citações elencadas de algumas de suas obras. O discurso demonstra que José Saramago, antes de ser um romancista, é um ser histórico. Ele tornou-se o que foi pela interação e seus romances são resultados imediatos de seu modus vivendi. Contudo uma vez escritos há um processo de ressignificação no ato de ler que atinge, inclusive, o seu autor. O texto uma vez escrito torna-se portador de um mundo próprio com capacidade de mudar a concepção de mundo daquele que dele se aproxima.

A configuração como criação de narrativas dramáticas

O segundo momento da atividade mimética, mímesis II (configuração) diz respeito à própria atividade artística. A configuração é que cria o conflito dramático das personagens em um enredo. No romance Caim, Saramago escreve para um público conhecedor das tradições e mitos cristãos, especialmente o Antigo Testamento. No desenvolver de sua narrativa, as histórias revisitadas têm como trama os acontecimentos descritos no Livro Sagrado da cultura judaico-cristã, ali estão situados os principais episódios do romance: a queda de Adão e Eva, o assassinato de Abel por Caim, O Dilúvio, a Torre de Babel, a destruição de Sodoma e Gomorra, a prova de fé de Abraão, o sacrifício de Isaac, a tentação de Job. Todas essas narrativas são observadas através do olhar sempre crítico do protagonista do romance, questionando as ações de “deus”.

O texto do romance Caim inicia-se com a narração da criação do homem e da mulher. O personagem narrador é heterodiegético, ou seja, não está envolvido na trama, mas observa atentamente o desenrolar da história e tece seus comentários. Nesse sentido, ele adquire certa forma de consciência na tentativa de conduzir o leitor a uma reflexão. Nesse epílogo da história de Caim ele observa o Senhor avaliando a sua criação, Adão e Eva, e percebe que Deus cometeu um erro, não lhes deu a faculdade de falar (SARAMAGO, 2009, p.9). Note-se que o criador comete um ato falho, o que é algo inconcebível na mentalidade judaico-cristã, e acaba por ficar irritado “consigo mesmo”. A raiva da divindade não é oriunda de seu erro, mas sim da impossibilidade de lhe atribuir a outrem, logo, o criador com um caráter narcísico e feroz, não tendo alguém para bode expiatório, utiliza-se de uma ação violenta como mecanismo de escape da própria frustração: “Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo” (SARAMAGO, 2009, p. 9). Mondin já afirmou que “a propriedade de falar distingue nitidamente o homem dos animais e de qualquer outro ser deste mundo e faz dele um ser totalmente singular” (1980b, p. 132). Nesse sentido, é na faculdade comunicativa que o ser humano se torna ser pensante, capaz de refletir, socializar e “falar da sua escura e labiríntica confusão” (SARAMAGO, 2009, p. 10).

Após o acesso de ira do senhor, José Saramago cria o relato ficcional de um primeiro diálogo, onde Adão e Eva apresentam-se de forma altiva para Deus como afirmação de si e entre o casal traz a conexão entre linguagem e erotismo, não banalizando o ato sexual, mas demonstrando que tal atitude é tão comum à natureza humana e funciona como atividade de descoberta de si e do outro (SARAMAGO, 2009, p. 10, 11).

A divindade apresentado no romance demonstra abandono e displicência quanto à criação. José Saramago corrobora tal percepção na construção de sua trama literária escrevendo que as visitas do senhor eram “pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos” (SARAMAGO, 2009, p. 11). Sob essa ótica Deus é um pai que não está presente com seus filhos. Diante de tal modo de agir o ser humano deveria tentar conhecer o bem e o mal. A busca da moral humana serve de apoio para a desmistificação que o texto realiza do pecado original. Alguns motivos são elencados a fim de demonstrar que a herança do pecado original não encontra justificativa plausível no próprio preceito: necessidade de conhecimento, inépcia de Deus e a tendência humana a simulação (SARAMAGO, 2009, p. 12,13). A punição por este “pecado original” não é de fácil aceitação, antes tal condenação é indevida, o texto traz a lenda do pomo de Adão de modo metafórico afirmando que a aparição do Senhor deixou os homens “para sempre marcados por esse irritante pedaço de maçã que não sobe nem desce” (SARAMAGO, 2009, p. 15).

A aparição de Deus para a condenação é retratada de modo satírico, “anunciado por um estrondo de trovão, o senhor fez-se presente de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete” (SARAMAGO, 2009, p. 16). Tal entrada soa a maneira de um general romano opressor. O modo pelo qual Deus age durante o interrogatório é agressivo e aterrador: voz colérica e brande o cetro ameaçadoramente. Adão covardemente imputa a responsabilidade pelo ato em Eva. A metáfora refigurada apresenta aqui um interessante significado, a mulher é aquela que fornece o conhecimento ao homem, propiciando-lhe, com isto, a significativa experiência existencial da expulsão, que faz com que o homem saia do paraíso alienante concebido pela divindade e conheça o mundo tal qual ele se apresenta com suas injustiças e disparidades, longe da ignorância do jardim, inaugurando assim o conflito que segue como linha mestra na criação do romance, “a história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (SARAMAGO, 2009, p. 88). Eva é castigada três vezes e o criador não esconde seu ódio por ela, no entanto, mesmo sob severa punição, ela usa da linguagem como arma de questionamento e crítica relatando um suposto sonho onde a serpente a induziu ao erro (SARAMAGO, 2009, p. 17,18). A utilização do sonho da serpente revela aquilo que está acima do autoritarismo do criador, ele não pode controlar os desejos mais íntimos de construir uma nova visão de mundo, bem como a compreensão de si como mulher e esposa e, além disso, o entendimento das malévolas intenções de Deus ao negar acesso ao conhecimento, impedir o ser humano de atingir a sua máxima potência. O conhecimento concede ao homem a capacidade de tornar-se um deus, contudo não podem existir dois deuses no universo, um deles deve ser sublimado pelo outro. Aqui começa a jornada do casal fora do jardim, o qual permanece guardado pelo querubim Azael com sua espada flamejante.

O segundo capítulo do romance descreve a inóspita situação de Adão e Eva em um ambiente hostil, um brutal sol, abrigados sob uma caverna e sem alimento, mas em meio às dificuldades enfrentadas uma atitude é destacada: ao serem expulsos do jardim “o senhor fez aparecer umas quantas peles para tapar a nudez de adão1 e eva” (SARAMAGO, 2009, p. 18), no entanto, agora eles “abandonaram as grossas peles que o sufocavam de calor e mau cheiro” (SARAMAGO, 2009, p. 20) e para substituí-las criaram roupas melhores. O destaque aqui é para a capacidade humana de poder fazer melhor aquilo que a divindade pode fazer. Ao peregrinar pelo árduo território desponta um tenso diálogo entre Adão e Eva, sendo o motivo “a insólita ideia de eva de ir pedir ao querubim que lhe permitisse entrar no jardim do éden e colher alguma fruta que lhes aguentasse a fome por uns dias mais” (SARAMAGO, 2009, p. 21). A mulher é retratada como alguém que, inconformada com situação, decide intervir e, desse modo, corrompe novamente a ordem do senhor não adotando o papel submisso que lhe foi outorgado, antes assumindo para si a responsabilidade da mudança. O fato é que é através da linguagem a afirmação de si surge (SARAMAGO, 2009, p. 23). Enquanto caminha em direção ao jardim ela não está isenta de temor, contudo a origem desse receio não é algum outro castigo do ser divino, antes “tinha medo, medo de falhar, medo de não ter palavras suficientes para convencer o guarda” (SARAMAGO, 2009, p. 23), medo humano e natural, e diz que “se eu fosse homem seria mais fácil” (SARAMAGO, 2009, p. 24), configurando na narrativa a voz de todas as mulheres vítimas da opressão histórica, religiosa e cultural. Eva ao dialogar com o anjo usufrui da sedução para atingir seus propósitos. A religião tem percebido a categoria da sedução como algo inconveniente e pecaminoso. Baudrillard afirma que “um destino indelével recai sobre a sedução. Para a religião foi uma estratégia do diabo, fosse bruxa ou amante. A sedução é sempre a do mal” (1981, p. 9). A sedução procura sempre subverter a ordem e os valores preconcebidos. Na contramão da tradição religiosa a subversão narrada no romance traz para a personagem a característica de franqueza e ousadia. Eva arruma-se para o encontro “ decentezinha, embora não pudesse evitar que os seios, soltos, sem amparo, se movessem ao ritmo dos passos. Não podia impedidos, nem em tal pensou, não havia por ali ninguém a quem eles pudessem atrair, nesse tempo as tetas serviam para mamar e pouco mais” (SARAMAGO, 2009, p. 22,23). Ela inicia a conversa com o querubim com sagacidade: aponta a necessidade do casal, mostra a tola tarefa de “guardar um pomar de fruta apodrecida que a ninguém apetecerá” (SARAMAGO, 2009, p. 24) e utiliza do humor para seduzir o ser angélico. Eva sorri e assim vence o debate. Azael concorda em buscar os frutos, entretanto uma cena interessante é apresentada: Eva retira a pele de cima dos ombros, com finalidade de utilizá-la para carregar os frutos, e fica nua da cintura para cima, despertando no anjo o desejo, “a espada silvou com mais força como se tivesse recebido um súbito afluxo de energia, a mesma energia que levou o querubim a dar um passo em frente, a mesma que o fez erguer a mão esquerda e tocar no seio da mulher” (SARAMAGO, 2009, p. 25). Ao apresentar tal situação o escritor traz ao anjo a possibilidade de declinar da posição angelical, mas “nada mais podia suceder, os anjos, enquanto o sejam, estão proibidos de qualquer comércio carnal, só os anjos que caíram são livres de juntar-se a quem queiram e a quem os queira”. (SARAMAGO, 2009, p. 25). Eva opera a inversão de valores, o humano é mais valioso que o divino. A plenitude da experiência humana é de significado superior que qualquer realização no plano angelical. Machado observa que a mulher é “detentora do poder da sedução não somente do corpo, mas, sobretudo, da palavra, Eva destitui o querubim de sua condição imaculada vinculada à esfera do divino ao fazê-lo desobedecer às ordens do “senhor” e ao levá-lo às raias do erotismo” (MACHADO, 2011, p. 59). Sob tal perspectiva o prazer, a felicidade e a possibilidade da realização são dádivas exclusivas do ser humano. A conversa entre Eva e Azael é marcada por mistério e silêncio, o texto permite ao leitor o exercício da própria imaginação. Na continuidade do texto Eva leva Adão ao anjo o qual lhes faz as seguintes revelações: eles não são os primeiros seres humanos e sua criação seria antes uma espécie de experimento. O querubim trata o casal com misericórdia, dá-lhes o fogo e aconselha-os como devem proceder para se juntarem a uma caravana. Eva despede-se do anjo abraçando-o e chorando, gerando certa desconfiança em Adão do que teria sucedido entre ambos.

O terceiro capítulo inicia com a seguinte afirmação, “a vida não lhes correu mal” (SARAMAGO, 2009, p. 30). Tal colocação traz a ideia da independência do humano da divindade, ele não precisa de Deus, pode se realizar no trabalho e nas relações sociais. Adão aprende a arte da poda, “essa que nenhum senhor, nenhum deus havia sido capaz de inventar” (SARAMAGO, p. 31, 2009). O homem vai aos poucos se aprimorando, tornando-se melhor que Deus. Na realidade, pouco a pouco, a narrativa vai conduzindo o leitor a reconhecer a necessidade de explorar as inversões oferecidas pelo autor. A potência da independência e autonomia do ser humano pode fazê-lo ocupar o lugar dessa divindade e, assim, o romance critica a compreensão da onipotência que destrói a originária dependência das relações humanas.

O casal começa constituir uma família, nascem Caim e Abel. É interessante expor o destaque que o texto realiza ao citar o nascimento de Abel, há a presença de certa insinuação quanto a esse filho, pois quando “nascer, todos os vizinhos irão estranhar a rosada brancura com que veio ao mundo, como se fosse filho de um anjo, ou de um arcanjo, ou de um querubim, salvo seja” (SARAMAGO, 2009, p. 30), o que é reafirmado pelo narrador quando ele diz, “é certo que nas recordações de eva havia um lugar reservado para azael, o querubim que tinha infringido as ordens do senhor para salvar de morte certa as suas obras, mas esse era um segredo seu, a ninguém confiado (SARAMAGO, 2009, p. 31). Seria Abel filho de Azael?. O tempo passa, os irmãos escolhem como função os dois ramos da economia da época, Abel o gado e Caim o agro. “Era voz unânime, entre os vizinhos, que aquela família tinha futuro” (SARAMAGO, 2009, p. 32), declara o narrador. Contudo é de modo irônico que declara a intervenção do Senhor, “e ia tê-lo, como em pouco tempo se haveria de ver, com a sempre indispensável ajuda do senhor, que para isso está” (SARAMAGO, 2009, p. 32). Caim e Abel eram grandes amigos até o fatídico dia em que tiveram que cumprir a tradição e a obrigação religiosa. Ambos trouxeram sua oferta, um ofereceu um cordeiro, o outro, espigas e sementes. Deus recebe um sacrifício e rejeita o outro. Aqui há uma reviravolta na história, Abel torna-se o predileto do senhor e mostra seu verdadeiro caráter, escarnecedor, orgulhoso e prepotente. A metáfora refere-se ao humano religioso que acredita ser superior aos demais apenas por crer em um ser sagrado e este ser superior é o que Saramago já apresentou como fator deus, o qual justifica e corrobora as más atitudes do homem, pois o caráter de Abel é o mesmo de Deus.

Na sequência, o drama de Caim é inaugurado com o assassinato de Abel. O protagonista do romance planeja e executa seu ato. Diante do feito há a aparição epifânica do senhor trajando “na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés” (SARAMAGO, 2009, p. 34). Inicia-se um tenso diálogo entre Deus e Caim (SARAMAGO, 2009, p. 34, 36). Onde Caim assume a responsabilidade pelo homicídio, afirma ser o executor, mas também traz Deus como autor intelectual. Dessa forma há uma aliança de responsabilidade partilhada. Como resultado, Caim recebe a marca do senhor, uma mancha negra, sinal de proteção e censura, condenado a andar errante e sem destino. Um ponto importante é o fato de que o desejo de Caim era de matar a Deus, “matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto” (SARAMAGO, 2009, p. 36). O texto refigura-se na representação de Deus como uma ideologia que precisa ser destruída, porém não se pode concluir tal feito com êxito devido ao fato de que ideias não podem ser aniquiladas, mas devem ser repensadas. O que significa, então, pela intenção Caim matou a Deus? Agora Caim tem a possibilidade de ver a “verdadeira face de Deus”, ou seja, ele está livre dos dogmas e tradições religiosas podendo, então, fazer uma leitura crítica do fator deus, “ao matar abel por não poder matar o senhor, caim deu já a sua resposta. Não se augure nada bom da vida futura deste homem” (SARAMAGO, 2009, p. 37). Eis a sina de Caim, lutar contra algo que não se pode extinguir.

O quarto capítulo retrata o começo da jornada de Caim como fratricida. O narrador conta alguns detalhes da infância do criminoso errante: teve bons princípios e era ligado à natureza. “Esse rapaz vai longe” (SARAMAGO, 2009, p. 39), eis a afirmação de Adão, porém o fato do Senhor atravessar seu caminho o fazia agora caminhar sozinho sem um destino definido. Deus é a causa do mal, da separação e, consequentemente, da solidão humana. O clima muda, assumindo um caráter melancólico. A chuva precipitando molha Caim que faz com que as marcas do nefasto crime sejam mascaradas pela água e sujeira. Caim começa a refletir consigo mesmo o seu ato, matou o próprio irmão, no entanto a culpa é do Senhor que poderia ter impedido o triste fim de Abel. Caminhando o protagonista encontra um casebre abandonado, deixa-se ali ficar e dorme. Na manhã seguinte uma imagem lhe invade a mente, a dele próprio regressando para casa e encontrando o irmão à sua espera. “Assim recordará durante toda a vida como se tivesse feito as pazes com o seu crime e não houvesse mais remorso que sofrer” (SARAMAGO, 2009, p. 42). O dia amanhece, Caim ruma e acaba chegando a Nod, terra da peregrinação e dos errantes. Nod é o lugar das possibilidades impossíveis, da mudança e da transformação. Aqui é a porta de entrada para o caminho do errante no mundo e no tempo. Ao chegar à cidade depara-se com a figura enigmática de um velho pastor com quem trava um diálogo áspero e repleto de desconfiança, o velho questiona a marca de Caim, pergunta ao protagonista do que anda fugido e por que é um errante. Caim mente e esconde sua história, toma por empréstimo o nome do falecido irmão. A despeito de toda essa desconfiança é ele quem informa Caim o nome da cidade e como achar trabalho. O pastor age como um guia, apontando a direção que a personagem deve tomar para alcançar seu destino. Despede-se com sabedoria e com ar de mistério quanto a sua identidade (SARAMAGO, 2009, p. 45, 46). Enquanto falso Abel o personagem chega à praça da cidade e logo vai ao encontro do olheiro, consegue o emprego de pisador de barro e faz uma descoberta importante: o senhor da cidade não é um homem, mas sim uma mulher, Lilith é o seu nome, mulher de Noah, “bruxa, capaz de endoidecer um homem com os seus feitiços” (SARAMAGO, 2009, p. 51). José Saramago recupera a história mitológica da primeira mulher que foi transformada em demônio por recusar ser submissa ao homem. Ele afirma a percepção de Martha Robles de que para um juízo mais são ela é “uma vontade poderosa que não se dobra diante da pressão masculina e prefere a transgressão à vassalagem. Lilith é ímpeto sexual, mulher emancipada e em fuga, sombra maligna por se haver considerado em pé de igualdade com os homens” (ROBLES, 2006, p. 33).

Essa mulher independente e segura de si,está longe do ideal de mulher casta e obediente. Lilith repara em Caim e ela “lhe dará destino” (SARAMAGO, 2009, p. 55). A personagem leva o protagonista até o palácio e brinca com ele em um jogo de erotismo e sedução. Lilith é possuidora da maestria de tornar-se desejada e dotada do poder da sedução, com força de atração e distração, absorção e fascinação. Caim torna-se prisioneiro de Lilith. O narrador compara ambos “a dois esgrimistas que apuram as espadas para um duelo de morte” (SARAMAGO, 2009, p. 58), mas quem realmente está no imperativo da situação é Lilith.

O quinto capítulo exibe a relação dos dois como amantes, Lilith insaciável e Caim com forças inesgotáveis. Nessa altura da história, a propósito de uma onda de ciúme, Noah, marido de Lilith, até então condescendente e consentidor, toma uma inusitada decisão, matar a Caim, tendo por capanga um escravo que trabalhava para Lilith, mas recebia ordens suas. Devido à má aparência de Caim, a dona da cidade decide que ele deve realizar passeios frequentes e, como companhia, o tal criado. Em um desses passeios é armada uma emboscada, três homens armados com espada lhe saltaram a frente com intenção de assassinar a Caim, o qual afirma que devido à marca na sua testa tal objetivo seria impossível. Os homens riem. Nesse momento Caim faz um oráculo condenando os criminosos (SARAMAGO, 2009, p. 64). Nessa perspectiva, o modo de agir de Caim demonstra certa vocação profética. No texto do Antigo Testamento2 o profeta Elias quando ameaçado por soldados, os condenou a morte debaixo da autoridade divina. De igual modo Caim está sobre a proteção do Senhor e, tal qual um profeta, proclama o castigo sobre seus adversários. O homem não acredita e avança sobre Caim com a espada em punho, a qual se transforma em cobra e ele a larga, os outros criminosos fogem, o salteador prostra-se de joelhos e pede perdão, pelo que Caim afirma que “só o senhor poderia perdoar-te se quisesse, eu não, vai-te terás em casa o pago da tua vileza” (SARAMAGO, 2009, p. 64). Logo após a tentativa de homicídio o personagem encontra novamente a enigmática figura do velho pastor com duas cabras atadas por uma corda. Trava com este novamente um misterioso diálogo (SARAMAGO, 2009, p. 65) utilizando-se de ovelhas presas como metáfora a Caim, elas precisam ficar presas, mas insistem em romper com as amarras. Pode-se ressignificar tal metáfora a própria humanidade que deseja a subversão de valores e libertação de preconceitos. Caim retorna ao palácio e relata a Lillith o que aconteceu. A rainha fica surpresa e questiona como ele escapou da morte certa, “a mim não se pode matar, disse serenamente caim” (SARAMAGO, 2009, p. 66). Nesse diálogo ele revela sua verdadeira identidade e Lilith faz com que ele conte sua história e, dessa maneira, é ela quem o conduz rumo a sua viagem de descobertas, transforma o paradigma de criminoso errante ao ver nele “um homem a quem o senhor ofendeu” (SARAMAGO, 2009, p. 67). Tal qual Eva, Lilith faz com que o homem saia de seu estado de letargia e assuma outra posição diante da vida e do mundo. Na continuidade da narrativa Lilith conversa com Noah e exige um ato punitivo. Ela propõe a Caim um plano louco e desvairado, a saber, matar a Noah, que é rejeitado. A seguir ela anuncia sua gravidez ao personagem principal de nossa narrativa o qual conclui que seu tempo na cidade findara. Ele abandona a cidade tendo como meio de transporte um jumento e como o messias rumo ao seu destino em Jerusalém assim vai Caim rumo a sua sorte.

O capítulo seis começa relatando a saída de Caim da cidade. Ao atravessar a praça o seu pensamento remete ao velho pastor, quem era ele? Seria o Senhor? Independente das conjecturas que poderia ter feito, o certo é que não estava lá, o seu guia permitia que ele deixasse a cidade. O cenário muda drasticamente de repente, do terreno estéril em que caminhava ao “verde de todos os verdes” (SARAMAGO, 2009, p.77). Nessa mudança repentina há a percepção de uma espécie de fronteira a separar dois tempos, pois nem as nuvens passavam de um lado. Caim diante da cena afirma que “a não ser, diz a voz que fala pela boca de caim, que o tempo seja outro, que esta paisagem cuidada e trabalhada pela mão do homem tivesse sido, em épocas passadas, tão estéril e desolada como a terra de nod” (SARAMAGO, 2009, p. 77). O narrador denomina essa variação temporal de outros presentes (SARAMAGO, 2009, p. 77). Nesse sentido, o narrador tangencia a sabedoria presente no livro bíblico de Eclesiastes, pois não há nada de novo debaixo do sol. Ao descansar da árdua viagem nesse belo local Caim intervém no pedido de sacrifício do senhor a Abraão. A história é a seguinte deus pede a Abraão que ofereça em holocausto seu filho Isaac como prova de fé. Aqui nessa cena o narrador é quem faz os primeiros apontamentos essenciais: o senhor não é pessoa digna de confiança e Abraão é tão corrupto quanto deus. As reflexões do narrador são confirmadas pelos diálogos e ações dos personagens. Quem impede o sacrifício é Caim ao ver a incoerente atitude. Note-se a ironia, o fratricida é mais justo que o pai da fé. No diálogo entre Abraão e Isaac as ênfases dadas são quanto ao duvidoso caráter de deus devido ao pedido, o rancor da divindade, deus é alguém que erra e enlouquece as pessoas. Isaac encerra o diálogo com uma interessante afirmação: “Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto ter eu morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos, Onde foi que ouviste esse nome, A gente sonha, pai” (SARAMAGO, 2009, p. 83). A conversa entre pai e filho traz à tona a discussão da irracionalidade de certas práticas religiosas e de certas perspectivas acerca de deus.

Caim não está presente na conversa entre Isaac e seu pai. Tomou outro rumo que lhe guiou para outro tempo. No local que chegou havia uma construção altíssima, em forma de cone truncado e com várias pessoas ao redor do edifício falando em altíssima voz e não conseguindo entenderem-se. No meio da multidão, o homem a quem deus ofendeu encontra alguém que fala a mesma língua, o qual lhe informa o que está ocorrendo, uma ideia de uma construção para se atingir a fama e um decorrente desentendimento (SARAMAGO, 2009, p. 85, 86). A descrição aqui é do mito bíblico da torre de babel, mas em sua releitura o desejo de chegar ao céu é justo, todo ser humano não almeja isso? Todavia Deus é quem impede o homem de alcançar o paraíso, ou seja, não contribui em nada para o homem atingir a felicidade plena. O motivo disso é explicado por Caim, “o ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem, preferiu dar voz à inveja, está claro que o senhor não suporta ver uma pessoa feliz” (SARAMAGO, 2009, p. 86). O homem sempre desejou transpor barreiras e limites e o Senhor não suporta tal “rebelião”. Caim deixa esse tempo convencido que o desentendimento é a característica marcante do relacionamento entre deus e humanidade, um não entende o outro.

No capítulo sete há o reencontro entre Caim e Abraão, mas em um presente passado quando Isaac ainda não havia nascido. A ênfase nesse capítulo é acerca do episódio da destruição de Sodoma e Gomorra. O narrador afirma o papel jurídico parcial da divindade. (SARAMAGO, 2009, p. 92). A interpretação saramaguiana do texto traz deus como um juiz que não exerce seu ofício com a eficácia necessária. O romance mostra a conversa entre Abraão e o senhor, e este lhe conta seu maligno plano, destruir as cidades, enquanto o outro tenta pechinchar a destruição da cidade pela vida dos justos. A divindade destruiu a cidade mesmo havendo inocentes, crianças que ainda não tinham consciência de certo ou errado (SARAMAGO, 2009, p. 94, 95). Esse episódio marcará o personagem de modo peculiar, conduzindo-o cada vez mais em direção a sua compreensão do caráter Deus, pois que Deus indulgente é esse que condena inclusive crianças?

No capítulo oito Caim se encontra no deserto do Sinai, envolto de milhares de pessoas acampadas no sopé de um monte. A situação é a seguinte: Moisés subiu ao monte e lá está há quarenta dias, o povo sente-se abandonado e pede uns deuses para guiá-lo. Note-se a ideologia por trás do pedido, o ser humano procura e cria algo que justifique sua própria existência, logo, todos os deuses são resultados imediatos da imaginação do próprio humano, no entanto, embora sejam criaturas, os homens acabam sendo escravizados por suas próprias obras.

O pedido da multidão foi aceito, um bezerro de ouro foi moldado, um suposto rival para o senhor. O resultado da criação foi lastimável, cerca de três mil homens morreram em nome do Deus de Israel.(SARAMAGO, 2009, p. 100, 101).O romancista coloca Moisés como porta-voz do Senhor, a ordem não foi diretamente ditada por deus, mas por alguém que falava em seu nome. A conclusão aqui é lógica: a compreensão da vontade divina nada mais é que a própria vontade humana corroborada pelo sagrado. Diante da carnificina exposta a seus olhos, Caim tece o seguinte raciocínio: “Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes” (SARAMAGO, 20091, p. 101), Caim limpa-se como se fosse um ritual. Para Caim, Deus é o observador passivo da maldade humana e ao metaforizar o ato de sacudir os pés proclama juízo contra a divindade. A seguir o narrador questiona a moral do senhor recontando o caso incesto entre Lot e suas filhas, ou seja, Deus se volta contra inocentes, mas é parcial contra atos de natureza grotesca. A guerra contra os Madianitas3 é revisada pelo texto. O destaque é o modo pelo qual as riquezas foram repartidas e como o senhor cobrou sua parte do tributo (SARAMAGO, 2009, p.107) Sob a ótica saramaguiana, o deus dos exércitos está apenas interessado nos lucros oriundos da guerra. De igual modo o pacto entre ele a humanidade é uma aliança de interesse comercial, um é usado pelo outro com o objetivo de adquirir riquezas e bens.

O tema das guerras é continuado no capítulo nove, agora o anti-herói da saga de José Saramago acompanha o início da conquista da terra da promessa. A primeira cidade a ser conquistada é Jericó, totalmente destruída e devastada, com exceção de uma pessoa e sua respectiva família, a prostituta Raab. Caim indigna-se com o fato de apenas ela ter sido poupada (SARAMAGO, 2009, p.111). É a traição da mulher que incomodava Caim, não seu passado, antes seu caráter. Percebe-se o tipo de pessoas que são protegidas: mentirosas, falsas e traiçoeiras.

A seguir, há a narrativa da batalha perdida por Israel. A derrota foi por um erro estratégico e militar, no entanto o homem sempre procura um bode expiatório para receber a culpa, tornando-se o objeto da violência conjunta do povo. A situação não foi diferente, Acan foi descoberto como aquele que se apoderou do que devia ser destruído e como consequência foi morto. Josué repensa a estratégia de batalha e ganha-a com nova carnificina e genocídio. Nada mais que novas atrocidades cometidas em nome de deus. Cansado da situação Caim retira-se do lugar e termina sua carreira pelo campo de batalha.

O narrador continua a história de Josué contando um interessante episódio, o dia em que o sol parou (SARAMAGO, 2009, p. 117). O autor trata de forma irônica a narrativa, intentando desromantizar o fato, para isso o narrador revela o interesseiro complô entre Josué e a divindade que simulam um milagre, fazer o sol parar. Contudo há uma impossibilidade, pois o sol parado já está, o que se move é a terra e caso esta pare a vida seria extinta. A resolução do problema foi uma bem ensaiada peça: Josué fez o pedido e Deus se encarregou dos efeitos especiais. A questão aqui é que a vontade de Deus não é soberana e nem onipotente, para existir, Deus precisa do humano e a divina vontade é a ele sujeita.

O capítulo dez conta o retorno de Caim às terras de Nod. O homem a quem deus ofendeu regressou transformado, viu a maldade feita na terra, observou a injustiça que se repete continuamente apenas mudando as pessoas. Ele voltou a este presente “por um dia que seja, ou dois, talvez mais, mas não para todo o que lhe falte viver, pois o seu destino ainda está por cumprir, como a seu tempo se saberá” (SARAMAGO, 2009, p. 124). A primeira pessoa que ele reencontra é o velho pastor e com ele trava seu terceiro e último diálogo (SARAMAGO, 2009, p. 124). Nessa conversa o personagem principal já tem certa consciência de seu desatino, “para pior”, embora ainda não saiba realmente o que o futuro lhe reserva. Caim ruma ao palácio, Lilith com a premonição do retorno já o aguardava, conhece seu filho Enoch. Lilith cumpre sua função de instigadora e conduz a conversa ao relato da experiência de Caim, tudo que vivera até ali, sacrifício de Isaac, construção da grande torre, destruição de Sodoma e Gomorra e a morte dos infantes, o bezerro de ouro, os assassinatos das pessoas de Madian e Jericó. As conclusões de Caim são que “o criador do céu e da terra, está rematadamente louco” (SARAMAGO, 2009, p. 128) e de que deus “nunca deve ter tido a menor noção do que possa ser uma justiça humana” (SARAMAGO, 2009, p. 129). Caim já não é mais o mesmo, tudo quanto viveu o marcou de modo indelével e agora percebe que sua missão é reconstruir o futuro.

O capítulo onze traz o relato do episódio de Job, para quem Caim começa a trabalhar, e ele assiste de camarote as desgraças na vida do personagem. Quando informado das vicissitudes que Job teria de passar afirma:

Se bem entendi, o senhor e satã fizeram uma aposta, mas job não pode saber que foi alvo de um acordo de jogadores entre deus e o diabo... A mim não me parece muito limpo da parte do senhor, disse caim, se o que ouvi é verdade, job, apesar de rico, é um homem bom, honesto, e ainda por cima muito religioso, não cometeu nenhum crime, mas vai ser castigado sem motivo com a perda dos seus bens, talvez, como tantos dizem, o senhor seja justo, mas a mim não me parece, faz-me recordar sempre o que aconteceu com abraão a quem deus, para o pôr à prova, ordenou que matasse o seu filho isaac, em minha opinião, se o senhor não se fia das pessoas que crêem nele, então não vejo por que tenham essas pessoas de fiar-se do senhor (SARAMAGO, 2009, p. 135)

Deus não é justo e até o conceito de justiça para a divindade tem um significado vão. No texto, deus é tratado como alguém que brinca com a vida humana e não ouve as súplicas dos fracos e oprimidos (SARAMAGO, 2009, p. 136)Deus é indiferente ao sofrimento humano, pelo contrário é ele o causador do mesmo permitindo que as atrocidades continuem a acontecer.

Caim começa a trabalhar para Job, mas de imediato as desgraças começam a ocorrer: perca dos rebanhos, morte dos filhos e saúde debilitada. Diante de tanta calamidade a mulher de Job, inconformada, reage diante de tanta injustiça. Há aqui, novamente, a valorização do feminino. A mulher, a qual deveria sofrer em humildade e silêncio, é quem mostra atitude perante a incoerência dos acontecimentos (SARAMAGO, 2009, p.139, 140). Questionadora como Eva e rebelde como Lilith, a inominada personagem viola as regras e não se sujeita aos ditames da divindade. Cumprindo o papel do feminino concebido pelo autor, guia Job a refletir sua real situação de sofrimento e desespero. Pondera e conclui que o mal que sofrem é oriundo do próprio Deus.

Na continuidade da narrativa Job é recompensado, mas a recompensa dada pelo senhor transforma o humano em objeto, marionete da vontade divina e inclusive seus filhos “da mesma maneira que os rebanhos, os filhos não são mais que isso, rebanhos” (SARAMAGO, 2009, p. 149). Caim pensa em seu retorno ao palácio de Lilith, todavia “para caim nunca haverá alegria, caim é o que matou o irmão, caim é o que nasceu para ver o inenarrável, caim é o que odeia deus” (SARAMAGO, 2009, p. 142). A experiência com Job aumenta mais a consciência do errante do inescrupuloso caráter da divindade. Janer Cristina Machado resume a referência metafórica da situação.

Na dança das eras, Jó encarna a polifonia de todas as gentes sofridas e sedentas de justiça. Us se converte em metáfora de um mundo no qual proliferam virtuosos sofredores e ímpios venturosos, falsos amigos e deuses que desertam, abandonando o ser humano à dor e ao desespero. Este é o espaço-tempo da resposta definitiva para Caim, o encontro crucial a lhe anunciar o golpe de misericórdia em sua guerra com a divindade. Não restam mais lugares e épocas a serem visitados que não as vésperas do grande cataclismo, depois do qual, mercê de Caim, espaço e tempo deixarão de existir, por fim submetidos à ausência de sua razão maior de ser, a humanidade. (MACHADO, 2013, p. 117)

O capítulo doze guia o leitor para a narrativa do desfecho da saga de Caim, a arca de Noé. Contudo, antes da arca, Caim e deus conversam mais uma vez, “como dois velhos amigos que tivesse acabado de reencontrar-se depois de uma longa separação” (SARAMAGO, 2009, p. 149). Caim questiona Deus acerca da monstruosa construção que observara, pelo que deus responde:

o senhor respondeu como se repetisse um discurso já feito antes e decorado, A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal, arrependo-me de ter criado o homem, pois que por causa dele o meu coração tem sofrido amargamente, o fim de todos os homens chegou perante mim, porquanto eles encheram a terra de iniquidades, vou exterminá-los, assim como à terra, a ti, noé, escolhi-te para iniciares a nova humanidade (SARAMAGO, 2009, p. 150, 151)

Corrupção, maldade e injustiça, eis o que há debaixo do sol. Noé é a escolha de Deus para nova humanidade, nesse sentido ele é o novo Adão. Contudo o velho patriarca, tal qual o restante da humanidade, é repleto de vícios e erros, portanto não apto para a redenção humana nesse contrato entre deus e o ser humano. Deus recomenda a Noé que aceite o errante como tripulante da arca e, conforme os trabalhos da arca caminhavam, Caim refletia a questão da justiça da divindade, história humana e nova humanidade. Em uma conversa com os anjos auxiliares na construção da arca ele pergunta “se realmente pensavam que, exterminada esta humanidade, aquela que lhe suceder não virá a cair nos mesmos erros, nas mesmas tentações, nos mesmos desvarios e crimes” (SARAMAGO, 2009, p. 157), os anjos respondem, em tom de confissão, que a segunda experiência não tem como dar certo “quando a primeira acabou no estendal de misérias que temos diante dos olhos” (SARAMAGO, 2009, p. 157). A iminência da destruição não assusta o protagonista, o pessimismo construído em seu ser após suas andanças começa a lhe formar novas ideias e sentidos, “se as crianças que em sodoma morreram queimadas não tivessem nascido, não teriam tido que soltar aqueles gritos que eu ouvi enquanto o fogo e o enxofre iam caindo do céu sobre as suas cabeças inocentes” (SARAMAGO, 2009, p. 158). A culpa da morte dos infantes não era dos seus pais, era de uma divindade que estabelecia critérios com intenção de governar a vida íntima de seus fiéis para se autoafirmar enquanto ser supremo, mas que não quis perder tempo para julgar cada qual segundo seu erro.

Caim continuava a falar quando foi novamente transportado no tempo e vê Noé deitado, embriagado e nu. Juntamente com ele em um trato carnal seu filho Cam, pai de Canaã. Ao perceber o insulto pelo qual passou, noé lançará sua maldição: “Maldito seja canaã, ele será o último dos escravos dos seus irmãos, abençoado seja sem pelo senhor meu deus, que canaã seja seu escravo, que deus faça crescer jafet, que os seus descendentes habitem com os de sem e que canaã lhes sirva de escravo” (SARAMAGO, 2009, p. 159). Os erros repetem-se, ódio, rancor e desrespeito. A maldade é algo inerente ao humano. Caim retorna ao tempo da construção da arca, mas em seu interior há o desenvolvimento de um plano para a verdadeira finalidade da arca.

O último capítulo do romance retrata os últimos dias dos tripulantes, seus afazeres e rotinas dentro da embarcação. O anti-herói começa a execução de seu plano, torna-se novamente assassino e um a um elimina os tripulantes da barca, com exceção de Noé que se suicida devido ao desespero. Com a morte de Noé acabam-se as possibilidades de uma nova humanidade, assim o antigo Deus é conduzido ao ostracismo e destituído de seus pressupostos e da violência que os homens imputam a sua vontade. Destarte, Caim pode mostrar a Deus a “sua verdadeira face” (SARAMAGO, 2009, p. 172). Há, então, o derradeiro diálogo entre Deus e Caim:

No dia seguinte a barca tocou terra. Então ouviu-se a voz de deus, Noé, noé, sai da arca com a tua mulher e os teus filhos e as mulheres dos teus filhos, retira também da arca os animais de toda a espécie que estão contigo, as aves, os quadrúpedes, os répteis todos que rastejam pela terra, a fim de que se espalhem pelo mundo e por toda a parte se multipliquem. Houve um silêncio, depois a porta da arca abriu-se lentamente e os animais começaram a sair. Saíam, saíam, e não acabavam de sair, uns grandes, como o elefante e o hipopótamo, outros, pequenos, como a lagartixa e o gafanhoto, outros de tamanho médio, como a cabra e a ovelha. Quando as tartarugas, que tinham sido as últimas, se afastavam, lentas e compenetradas como lhes está na natureza, deus chamou, Noé, noé, por que não sais. Vindo do escuro interior da arca, caim apareceu no limiar da grande porta, Onde estão noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar. (SARAMAGO, 2009, p. 171, 172)

Caim completa sua vingança, sem humanidade a divindade está morta. O diálogo entre Caim continua até hoje. É o convite à reflexão da própria sociedade. Não há arco-íris ou esperança, existe apenas a necessidade de uma reconstrução paradigmática de conceitos e valores.

A refiguração como espaço para novos sentidos ao leitor

Cabe, então, fazer uma discussão acerca da contribuição do romance para a elaboração do discurso teológico contemporâneo. Para se alcançar tal objetivo tem-se que fazer algumas ponderações. A primeira é de que o romance é construído a partir da leitura da realidade, logo, os problemas que dele emergem são, antes de tudo, situações vivenciais experienciadas por seres humanos concretos e situados. O texto é uma metáfora viva da condição humana. A segunda é que o texto exerce uma função parabólica ao guiar o leitor a uma reflexão de sua própria situação para, dessa forma, compreender-se diante da obra. Por fim a terceira afirmação necessária, consequência imediata das anteriores, é que ao compreender-se através do texto o leitor pode estabelecer novas maneiras de viver.

O “Deus” que a obra saramaguiana retrata não é o Deus da revelação, mas sim como representação estereotipada do próprio humano. A leitura dos problemas retratados na obra corresponde ao modo pelo qual a sociedade vem sendo construída. A tensa relação entre a divindade e a humanidade é o reflexo da própria relação entre os seres humanos. Portanto destruir o propósito de Deus no romance é acabar com o círculo vicioso da injustiça.

Além de ser a representação da sociedade, Caim é a parábola do ser humano contemporâneo em busca de sentido. O ser humano procura a “vida boa”, plena e completa. O ser humano é incessantemente ameaçado pela finitude. Tillich diz que “a ansiedade do destino e da morte é a mais básica, mais universal e inescapável” (1976, p. 36). A resposta ao problema da finitude acha-se no encontro do ser humano com a potência última.

O leitor conhecedor das tradições religiosas, ao aproximar-se do texto, sente-se confrontado e diante disso três reações podem resultar: aceitar a crítica de modo literal, renegá-la como herética e desnecessária ou utilizá-la para reconstruir seu próprio universo. A terceira alternativa é o desafio que um leitor maduro tem diante de si, ressignificar seu próprio modo de vida. A narrativa de José Saramago pretende desassossegar seu leitor, retirá-lo de sua zona de conforto e conduzi-lo por trilhas que não está acostumado. Liberdade é o tema motor da escrita do luso romancista. Caim é o grito dos que não tem voz, dos rejeitados, dos sedentos e famintos por justiça.

O leitor interpreta o texto, todavia o texto também interpreta o leitor em uma relação dialógica. O leitor reconhece-se nas personagens, nas situações e ações presentes no texto. Em contrapartida o texto, como meditação sobre a vida, propõe algo de novo. Assim em um texto que confronta e não se conforma com injustiça, há o convite para a redescoberta do verdadeiro humano, para a criação de um novo universo de justiça e paz.

A autêntica teologia reconhece-se como temporal, histórica e para sujeitos históricos. Portanto a linguagem da fé tem por prioridade a reconstrução do humano, procurando a sua restauração. Caim convida a repensar a prática humana em outras categorias.

Os atributos de Deus que se estabelecem no relacionamento com o ser humano são, segundo a Teologia, santidade, justiça, fidelidade, misericórdia, amor e bondade. Esses atributos são colocados pela dogmática na forma de Deus lidar com a humanidade. Saramago não é devedor da Teologia conservadora, de igual maneira não está circunscrito a nenhuma forma de pensar teológico, por esse motivo que seu foco hermenêutico destaca a ambiguidade do caráter divino diante de suas decisões, erros e ordens, como uma constante injúria contra o ser humano. As críticas saramaguianas contidas no romance são, obviamente, não fundadas em uma interpretação exegética ortodoxa e tradicional da tradição cristã. Ele escreve o texto desprendido de qualquer compromisso religioso, produzindo um texto repleto de dúvidas: como pode Deus escolher um irmão e menosprezar o outro sendo então coautor de um assassinato? Que Deus é esse que mesmo sendo onisciente faz uma aposta com o diabo apenas para provar a fé de seu servo? Que Deus pai é esse que pede a seu servo o sacrifico de seu único filho? Que Deus que condena pela morte de uma única pessoa, mas que é favorável à morte de milhares que o contrariem? Que Deus amoroso é esse que condenou inclusive as inocentes crianças de Sodoma e Gomorra?

No entanto aqui se faz necessário destacar a seguinte afirmação antes de continuar: Saramago é romancista e não teólogo. O texto é construído a partir da leitura da realidade, logo os problemas que dele emergem são, antes de tudo, situações vivenciais de seres humanos concretos e situados.

A categoria da ofensa está presente em todo o romance. A primeira pergunta que surge ao se refletir nesse assunto é quem ofende ao ser humano? A resposta é Deus: ele ofende o ser humano com seu narcisismo, com suas atitudes violentas, com as suas escolhas, com suas imposições e com suas injustiças. Contudo, é necessário ressaltar que o texto exibe uma ótica antropomórfica da divindade, portanto o ser divino é igual ao humano. Deus não existe enquanto ser, mas como criação do pensamento. Enquanto criatura, a deidade torna-se idêntica ao seu criador. O ser humano é quem constrói Deus, mas acaba tornando-se imagem da sua criação, logo tendo inventado Deus, o homem imediatamente tornou-se seu escravo (DUTRA, 2010). Por isso é que Reginaldo José dos Santos Junior assinala que “Saramago muda Deus para mudar o humano” (2008, p. 171). Quando o texto “ataca” Deus, na realidade está tentando guiar o ser humano por meio de seu discurso parabólico a uma reinvenção da própria sociedade. O romance não propõe a morte de Deus, porque a “Deus não se pode matar” (SARAMAGO, 2009, p. 35), mas sim sugere uma nova perspectiva sobre ele.

O profeta, sob a ótica bíblica era aquele que realizava pronunciamentos em nome da divindade, objetivando corrigir o povo da sua injustiça e alertar acerca das consequências futuras de uma não obediência a ordem divina. Quando Saramago escreve sobre Caim, ele transforma Caim em um profeta, não um profeta no sentido bíblico, mas sim um profeta “às avessas”. Essa identificação de profeta “às avessas” é utilizada pela maneira de que Caim confrontava a figura de Deus condenando-o em uma perspectiva humana e tencionando colocá-lo perante sua “verdadeira face”, demonstrando a incoerência de suas ações (SARAMAGO, 2009, p. 172).

A metáfora expressa no uso de personagens oriundos da tradição religiosa é a tensa relação da humanidade consigo mesma. Deus é duramente criticado, a proposta é que a figura da divindade precisa ser reconstruída. A questão que se estabelece é como isso pode ser possível? Redefinindo o próprio humano. Ao se observar as ponderações existentes no romance pode-se concluir que o mesmo é um convite ao homem contemporâneo de repensar o seu próprio modo de agir.

A referência de humanidade presente do texto é a contemporânea, onde todos caminham errantes em busca de um sentido. Os pais da humanidade, no romance, caminham em busca de sentido. Caim procura seu destino. Os personagens no romance saramaguiano peregrinam na tentativa de encontrar seu propósito no mundo. A afirmação de Berman (1986, p. 20) de que “a moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades”, resume o ser humano da história presente.

No seu caminhar o ser humano acaba por perceber que a vida não tem fórmulas prontas. A incerteza sobrevoa continuamente sobre a humanidade. A sociedade contemporânea é marcada pelo desejo do novo e rompimento com as tradições, contudo:

O homem, tendo rompido com as tradições que orientavam sua vida, parece não saber o que tem que fazer, ou seja, o homem de antigamente pautava sua vida pelos valores oriundos das comunidades de aldeias e das tradições religiosas, porém, em nossos dias, a modernidade, tendo abolido a tradição, não sabe mais o que dizer ao homem, e o homem não sabe mais o que tem que fazer. (SILVA, 2011, p. 18)

O ser humano deseja uma vida mais rica. Leeuw já afirmou que “na vida ele procura pelo poder” (2009, p. 183). Nessa busca ele procura ampliar sua vida. Ele anseia intensamente a realização completa. Nas suas realizações culturais há a tentativa de se encontrar (ALES BELLO, 2004, p. 260). Entretanto, nesses feitos temporais não existe o encontro com a plenitude da potência e o ser humano acaba por cair na impessoalidade. Esses atos apenas apontam para a existência de um sentido mais amplo e profundo em todas as coisas.

A superação da divindade é a superação da própria humanidade. A problemática que emerge “exige a convergência entre pensamento, ação (no sentido moral e político) e uma transformação espiritual de sentimentos” (RICOEUR, Paul, 1988b, p. 47). O texto aponta como cumprimento da missão de Caim a destruição de tudo quanto representa a divindade a fim de “matá-la”. A proposta de refiguração é de se usar a tríade pensar, agir e sentir (RICOEUR, 1988b, p. 47) como modo de se cumprir a missão humana.

O romance aborda a questão da injustiça, do mal sofrido e do mal praticado. Pensar acerca desse tema é sempre um desafio devido à lamentação das vítimas, debaixo da simples pergunta por quê? Sob a égide de tal dificuldade é que a “ação e a espiritualidade são chamadas a fornecer, não uma solução, mas uma resposta” (RICOEUR, 1988b, p. 48 – 49).

Quanto ao sentir, Ricouer (1988b) apresenta quatro estágios, à maneira de uma ajuda espiritual de um trabalho de luto, de tornar a aporia intelectual produtiva: ignorância, queixa contra Deus, crer em Deus apesar do mal e renunciar a própria queixa.

A ignorância consiste em um grau zero de compreensão e de espiritualização da queixa em si mesma. A segunda maneira é uma atitude de protesto e não aceitação. É um grito de impaciência da esperança. O terceiro estágio compreende que crer em Deus não está relacionado com a necessidade de explicar o porquê do sofrimento. Por fim o quarto estágio é amparado na ideia do Deus sofredor por meio da Teologia da Cruz. Este último estágio traz a renúncia do desejo de ser recompensado por suas virtudes, renúncia ao desejo de ser libertado do sofrimento e ao componente infantil do desejo de imortalidade. Cumprir a missão é reconstruir-se diante da situação existencial. É superar a ofensa pela injustiça e encontrar sua finalidade existencial dentro de um horizonte prático do amor.

Considerações finais

A divisão do artigo deu-se a partir do conceito ricoeuriano de atividade mimética, logo houve a demonstração de como o estilo de escrever saramaguiano procurava ler o mundo que o circundava, o homem concreto e situado era o seu referencial de produção artística. Na sequência apresentou-se o romance, em forma de resumo, contextualizando o leitor do presente estudo quanto ao objeto da pesquisa. No decorrer do resumo evidenciaram-se pontos de hermenêutica que podem ser úteis a futuros pesquisadores, estudantes e interessados na temática proposta. Temas como o papel feminino, culpa e aceitação, foram apenas citados e não abordados, portanto podem ser temas para futuras pesquisas.

O trabalho destacou três categorias principais, a saber, ofensa, errância e missão cumprida, como metáforas da sociedade contemporânea. A fé cristã apresenta ao mundo o Deus que é amor, o qual foi crucificado pelo amor. A identificação com o Deus crucificado guia para a percepção do sofrimento do inocente, sofrendo com ele e encontrando o sentido pleno na renúncia de aspirações egoístas. O ser humano é o ofendido pela injustiça, portanto procura solução. Ele é errante porque caminha procurando um sentido na vida. E, por fim, tem uma missão a cumprir porque descobre que é no nível prático das ações, pautada na orientação máxima do amor, que encontra as soluções de seus dilemas.

Referências bibliográficas

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TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

Notas

[1] No romance os nomes das personagens são escritos como substantivos comuns.

[2] Conferir 2 Re 1. 8 - 17

[3] Segue a grafia do texto de Saramago.