A arte do humor: “Pastor Adélio, o pastor mais sincero do mundo”

Salma Ferraz* e Patricia Leonor Martins**
* Professor de Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Líder do Grupo de Pesquisa Teopoética. Email: salmaferraz@gmail.com.
** Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Email: patyleonor@gmail.com.
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Resumo
Este artigo pretende analisar o humor presente nos vídeos do “Pastor Adélio, o pastor mais sincero do mundo”, criados pelo humorista Marcio Américo. Para tanto é preciso apresentar um breve esboço dos estudos a respeito do riso de Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François; Henri Bergson, O riso: ensaio sobre a significação do cômico; Vladmir Propp, Comicidade e riso e Georges Minois, História do Riso e do Escárnio. Analisa-se o esquete “A Verdadeira História de Ló” para observa a forma como a personagem usa da inteligência para acionar o riso com o texto bíblico, o qual acaba se tornando um pré-texto para a sua crítica à sociedade.

Palavras chave: Riso; Comicidade; O Risível em Pastor Adélio

 

Abstract
This article analyzes the present mood in the videos of “Pastor Adelio , the most sincere pastor of the world”, created by comedian Marcio Américo . For that you need to present a brief outline of the studies about Mikhail Bakhtin laughter, The Popular Culture in the Middle Ages and the Renaissance : François context; Henri Bergson , Laughter : essay on the comical significance ; Vladimir Propp , Comedy and laughter and Georges Minois , History of laughter and mockery. Analyzes the skit “ The True Story of Lot “ to observe how the character uses intelligence to drive laughter with the biblical text , which eventually becomes a pre- text for his criticism of society.

Keywords: laughter, comic, laughable in Shepherd Adélio

BREVE REFLEXÃO: A arte de fazer rir e seus teóricos.


“O riso é a sabedoria, e filosofar é aprender a rir.
Sem a liberdade de rir, de caçoar e fazer humor,
não há progresso da razão.”
(Georges Minois)

Para entendermos a construção da identidade na personagem criada por Marcio Américo, o “Pastor Adélio”, é necessário apresentar, brevemente, os estudos sobre o riso de Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François1; Henri Bergson, O riso: ensaio sobre a significação do cômico2; Vladmir Propp, Comicidade e riso3 e Georges Minois, História do Riso e do Escárnio4.

Em seu estudo sobre o riso, Bergson (1980) indica três princípios básicos em que as situações cômicas podem se desenvolver. Para o autor não há comicidade fora daquilo que é humano, o homem não é apenas o único animal que ri, no entanto, o único que faz rir. Assim, a comicidade presente em qualquer objeto, ou animal, só existirá se estes se assemelharem com o homem, trata-se aqui do primeiro princípio.

Já, o segundo, o autor afirma que a comicidade para produzir efeito tem que se desvencilhar dos sentimentos do coração, “anestesia momentânea do coração” (BERGSON, p. 19), pois só será possível rir de uma pessoa que requer piedade se esses sentimentos forem esquecidos momentaneamente. Assim, o maior adversário do cômico é a emoção, pois o riso é um modo apertado, isento de emoção, em que aquele que ri paira sobre o objeto do riso. O vínculo emocional constitui um obstáculo à comicidade, pois permite uma proximidade ao riso. Assim, o desmascaramento cômico carece da superioridade daquele que ri frente ao objeto do riso, pois o riso decorre de uma relação distanciada entre ridente e risível.

O terceiro princípio, o autor assegura que nosso riso está sempre ligado ao grupo a que pertencemos, pois sempre que rirmos há a necessidade de entendimento. Segundo Bergson (1980, p.2), não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano.“Uma paisagem poderá ser bela e graciosa, insignificante ou feia, nunca será risível”. Portanto, o papel do riso é social, ele é o produto das ideias e dos costumes da sociedade, por isso é preciso estar dentro do contexto, pois o que pode ser risível para alguém pode não ser para outrem. Assim, quando os três princípios coexistirem haverá certamente a possibilidade de o riso acontecer.

Nesse sentido, Henri Bergson (1980) ressalta no riso seu caráter ritualístico. O próprio autor vê, no riso, um corretivo, uma reação da natureza frente ao vício cômico. Dessa forma, aponta mecanismos da comicidade diante da exposição social do indivíduo. São eles: a rigidez mecânica, a distração, a repetição, o isolamento e a lógica dos sonhos.

Na rigidez mecânica o riso é causado pela inflexão da vida na direção mecânica. Já, a distração pode estar relacionada ou não a essa inflexão. Por isso, a distração despertará o efeito cômico quando conhecermos a suas origens. O efeito da repetição torna-se cômica a partir do entendimento de que a vida jamais se repetirá. Assim, quanto mais complexa e natural for a repetição, mais comicidade ela despertará. O isolamento também tem o caráter cômico, pois a sociedade não aceita aquele que se isola, pois, o riso está vinculado aos costumes, ideias e preconceitos existentes na sociedade, assim, aquele que se isola tornase ridículo perante a sociedade.

Bergson (1980) trás como exemplos Cervantes, Molière, La Bruyère, Jerome, Labiche, além de um vasto leque de autores do vaudeville francês, que sustentam seu esquema teórico, pois se refere a um modo de produção textual de teatro vigente desde a Renascença. Fundindose em um processo essencialmente moderno, focado no sujeito, tendo como seu ideal mais simbólico o drama burguês.

O filólogo russo, Vladmir Propp (1992), apresenta em sua obra, Comicidade e Riso, uma investigação e um balanço crítico sobre o que já fora escrito sobre o cômico. O autor reuniu e sistematizou exemplos do humor e da comicidade em autores como Gógol, e alude à teoria de Bergson sobre o riso. Assim, estabelece dois grandes gêneros do riso e seus desdobramentos: o riso sem zombaria que se subdivide em o “riso bom”, “riso alegre”, “riso imoderado” e o “riso maldoso e cínico”. O riso está ligado emotivamente com o objeto de riso, envolvendo compaixão, raiva e piedade. Já, o riso de zombaria ou derrisão - também definido assim pelo autor - é encontrado quando há um desnudamento de uma deformidade humana frente à vida. Segundo Propp (1992), o rizo de zombaria está permanentemente ligado à esfera do cômico, o autor afirma “que o vasto campo da sátira baseia-se no riso de zombaria, e este tipo de riso é o que mais se encontra na vida.” (PROPP, p. 28)

Ainda segundo o autor, este sistematiza o material estudado conforme o objeto de derrisão. Assim, será possível verificar que é possível rir do homem em quase todas as suas manifestações, exceto no que tange ao domínio do sofrimento. Para o autor, o homem pode tornar-se objeto do riso tanto na vida física quanto na moral. Assim, aquele que zomba comporta-se da mesma maneira tanto na vida como na arte. Portanto, os meios de derrisão dividem-se em mais específicos e mais gerais.

Vladmir Propp (1992) nos faz um questionamento: do que o homem ri? Responde-nos que a causa mais comum e natural do riso humano advém de tudo aquilo que é ridículo. Demonstrando que, para ele “o riso é a punição que nos dá a natureza por um defeito qualquer oculto ao homem, defeito que se nos revela repentinamente” (p. 44). Para Hartmann (apud PROPP, 1992, p. 44), “A comicidade repousa nas fraquezas e nas misérias humanas”.

O cômico amplia os defeitos para explicitar o ridículo expresso nas atitudes humanas. O autor afirma que o riso pode surgir da manifestação repentina de defeitos ocultos, a princípio imperceptíveis. A comicidade pode se concentrar, também, numa correlação da natureza física e da natureza espiritual do homem, em situações em que a natureza física desnuda os defeitos da natureza espiritual. Nesse sentido, só são cômicos os defeitos cujo aspecto não ofende, nem suscita a piedade.

Semelhança e a diferença também podem ser cômicas. A semelhança dos gêmeos (ou a das personagens duplicadas) constitui a sua dessemelhança de todas as outras pessoas e toda particularidade ou estranheza que distingue uma pessoa do meio que a circunda pode torná-la ridícula. O homem também pode se tornar ridículo quando se assemelha a um animal, principalmente se este nos faz lembrar os defeitos humanos. É cômica também a representação do homem como coisa, ou como profissional representado por automatismos ou jargões próprios da atividade.

Para Z. Podskàlski (apud PROPP,1992, p. 88), a questão do exagero é um ponto chave para caracterizar as representações da imagem cômica e a situação cômica. Assumindo esta perspectiva, Propp (1992) afirma que existem três formas de exagero que produz e efeito cômico: a caricatura, a hipérbole e o grotesco.

A caricatura: segundo Propp, a melhor definição da essência da caricatura foi dada por Púchkin e mais tarde confirmada por Bergson, (apud Propp, 1992, p. 89): “a arte da caricaturista consiste em captar um pormenor, às vezes imperceptível, e torná-lo evidente a todos através da ampliação de suas dimensões”, entretanto, alguns pontos positivos sobre a imagem construída são resguardados.

A hipérbole é uma variedade da caricatura que ressalta exageradamente os aspectos negativos, não aproveitando nenhum aspecto positivo. Ela pode ser tanto heroizante como depreciativa. Ocorre com um exagero de um todo, ela é ridícula somente quando ressalta as características negativas e não as positivas. Gógol, não emprega com objetos satíricos, mas, às vezes, utiliza como comicidade. Portanto, segundo o autor, “a hipérbole – tanto heroizante como depreciativa – ressurge na poética de Maiakóvski.” (PROPP, 1992, p. 90)

O grotesco consiste na forma mais extremada de exagero, ele aumenta o alvo de relato em uma proporção monstruosa. Ultrapassando assim o limite do real para entrar no fantástico. Por isso que o grotesco delimita-se com o terrível. Segundo Bóriev (apud Propp, p. 91), “o grotesco é a forma suprema do exagero e da ênfase cômica. É o exagero que confere um caráter fantástico a uma determinada imagem ou obra”. Entende-se que o limite entre o grotesco e a hipérbole é convencional, que além do exagero no grotesco ele também é cômico, pois encobre o princípio espiritual e revela os defeitos. Ele se torna terrível quando o princípio espiritual se anula no homem. O grotesco assume a forma preferida de comicidade do epos popular na Antiguidade. É por essas questões que a representação dos loucos é terrivelmente cômica (PROPP, 1992, p. 92).

Continuando a refletir sobre o riso, para Propp (1992) os caracteres cômicos não existem por si só, eles têm relação com as atividades do homem no mundo social. Nesse sentido o autor afirma que “a estultice, a incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. ” (PROPP, 1992, p.105). Seria o alogismo a forma mais comum de comicidade na vida real? Segundo o autor, o alogismo pode ser manifesto ou latente. Quando manifesto, o alogismo é cômico até mesmo para aqueles que veem ou sentem sua manifestação. Quando latente, o alogismo exige um desmascaramento e o riso surge no momento desse desnudamento. O sujeito agente sente quando o desmascaramento acontece para si, vivenciando na própria pele. Já, para o sujeito observador, o espectador ou o leitor, o desmascaramento de um alogismo pode acontecer por uma tirada espirituosa de um interlocutor, revelando a inconsistência do juízo de quem age5. Muitas vezes, o fato de demonstrar incapacidade em de relacionar causas com efeitos, basta para despertar o riso, o qual surge no momento em que a ignorância oculta se manifesta subitamente nas palavras ou nas ações do tolo.

No caso da mentira, para ser cômica, deve ser pequena e não levar a consequências trágicas. Além da mentira, Propp (1992) aponta outros procedimentos linguísticos de comicidade: os trocadilhos (também chamados de calembures), os paradoxos, as tiradas, bem como algumas formas de ironia.

Assim, o autor afirma que o riso de zombaria é o mais frequente, sendo este o tipo fundamental de riso humano. Propp (1992) também aborda a questão do caráter contagiante do riso: nós rimos no momento em que transferimos nossa inteligência dos fenômenos de caráter espiritual para as formas exteriores de sua manifestação; então acontece o riso.

Já, Bakhtin (2002),6 ao questionar-se acerca da rejeição que Rabelais sofre a partir do século XVIII, nos oferece uma explicação: se o riso no Renascimento é uma “concepção de mundo” pela qual se pode exprimir e apreender a verdade na sua totalidade,

A atitude do século XVII e seguintes em relação ao riso pode ser caracterizada da seguinte maneira: o riso não pode ser uma forma universal de concepção do mundo; ele pode referir-se apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente típicos da vida social, a fenômenos de caráter negativo; o que é essencial e importante não pode ser cômico; a história e os homens que a encarnam (reis, chefes de exército, heróis) não podem ser cômicos; o domínio do cômico é restrito e específico (vícios dos indivíduos e da sociedade); não se pode exprimir na linguagem do riso a verdade primordial sobre o mundo, apenas o tom sério é adequado; é por isso que na literatura se atribui ao riso um lugar entre os gêneros menores, que descrevem a vida de indivíduos isolados ou dos estratos mais baixos da sociedade [...] (BAKHTIN, 2002, p. 57-58)

O que marca a separação entre o riso observado e descrito por Bakhtin e o riso moderno não é o fato de aquele riso ser gratuito, desinteressado, e este ser, de certa forma, empenhado. Mas sim, o fato de que o riso renascentista, segundo o autor, possuía uma função criadora, regeneradora, que, para os indivíduos modernos, é bastante difícil de ser compreendida, uma vez que estamos habituados a ver o riso de zombaria como expressão unicamente denegridora. A feição utópica desse riso, cuja força residia na ambivalência das representações do baixo corporal, da degradação física e do grotesco, desapareceu no riso moderno, quando a concepção de vida da humanidade modificou-se (BAKHTIN, 1996, p. 61).

Para Bergson, pode-se enunciar o que deveria ser, fingindo acreditar que isso é precisamente o que é: nisso consiste a ironia. Pode-se, ao contrário, descrever minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo acreditar que assim as coisas deveriam ser: desse modo procede frequentemente o humour. (2007, p. 95)

Antes de proceder com a análise, vale ressaltar mais alguns pontos abordados por Propp (1992) acerca dos instrumentos linguísticos de comicidade. O primeiro aspecto tratado por esse autor é o calembur (jogo de palavras), o qual surge do emprego de meios propriamente linguísticos que acabam por gerar o cômico. Para ele, “no calembur o riso é despertado quando em nossa consciência o significado mais geral da palavra passa a ser substituído pelo significado exterior, ‘literal’“. (PROPP, 1992, p. 121).

Um segundo aspecto diz respeito ao paradoxo, o qual possibilita o riso caso a contraposição seja inesperada. Há, também, um terceiro, a ironia, que se aproxima do paradoxo. Segundo Propp (1992 p.125), “se no paradoxo conceitos que se excluem mutuamente são reunidos apesar de sua incompatibilidade, na ironia expressa-se com as palavras um conceito mas se subentende (sem expressá-lo por palavras) um outro, contrário”.

No entanto, já para Bakhtin a ironia está presente em todas as línguas modernas, refletida nas palavras e nas formas, sendo utilizada para superar situações e elevar-se acima delas: “A ironia insinuou-se em toda parte, é atestada em todos os seus aspectos: desde a ironia ínfima, imperceptível, até a zombaria declarada” (BAKHTIN, 1997, p.371).

É possível inferir que as causas para o riso são, de modo geral, diversas e que dependem muito do contexto ao qual estejam inseridas. As condições de produção do discurso cômico variam não apenas em função do tempo e espaço, mas, assim, embora o humor e o riso apresentemse como partes de um mesmo objeto, derivam de situações distintas. As pessoas riem de alegria, de medo, de ódio, de desespero e até de tristeza, as motivações para esse fenômeno se apresentam ligadas ao espaço de experiência adquirida por cada pessoa da sociedade. Portanto, podese afirmar que o riso é um elemento determinado pela cultura.

Pensando nessa premissa, em que o recurso de utilização do riso, como instrumento de crítica social, revela-se em uma prática muito antiga, faz-se então possível citar os estudos de Georges Minois (2003), que em sua obra História do Riso e do Escárnio destaca o interesse pelos estudos do riso e do humor, descreve o riso através dos tempos, desde a Grécia antiga até o século XX. Ninois (2003) afirma que o riso presente no século XX “é um riso de humor de compaixão, e ao mesmo tempo de desforra diante de reveses acumulados pela humanidade ao longo dos séculos e das batalhas contra a idiotia, contra a maldade e contra o destino.” (p 558).

Para Minois, o riso é:

Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia. É isso que faz sua riqueza e fascinação ou, às vezes, seu caráter inquietante [...] (MINOIS, 2003, p. 15-16)

Apesar de o riso estar vivo na sociedade e de ainda ser tão pesquisado, o humor esconde seus mistérios, sua ambivalência e ambiguidade. Hoje, a sociedade demonstrar não levar tudo tão a sério, e vivencia uma época em que o humor se faz presente na vida social do ser humano. Assim, o humor é encontrado nos mais variados meios de comunicação, nas publicidades, nos jornais, TV e na internet. Uma das formas artísticas utilizadas para representá-lo são os vídeos e pela sua análise pode-se determinar a sua intenção. Busca-se aqui demonstrar esta relação, objetiva-se, analisar as diferentes formas de expressão do humor nos vídeos do humorista Marcio Américo. Nesse artigo, analisarei o vídeo publicado no YouTube, intitulado Pastor Adélio - A Verdadeira Estória de Ló, o qual possui, até o momento, mais de 207.000 visualizações no You Tube.7

Pastor Adélio: O CÔMICO


“ Sou um sujeito em constante aprendizado. Gosto de
aprender, saber como as coisas funcionam.
Leio bastante pra ir desbastando minha ignorância. Todo conceito
epistemológico é válido, se for empírico melhor ainda.”8

Antes de iniciar a análise do vídeo do Pastor Adélio – A verdadeira história de Ló - é fundamental apresentar o seu criador9. Leiamos uma parte da entrevista:

Quais ou quem são as suas referências no teatro e no humor?

“Comecei a fazer teatro em 1982 e como era habitué” dos festivais de teatro amador, tive a oportunidade de ver todos os grandes clássicos do teatro brasileiro: Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Zé Vicente, Vianinha... e de certa forma tudo isto me influenciou um pouco. No humor, gosto do teatro do besteirol que apareceu na década de oitenta e que trazia textos novos, um humor renovado, desvencilhado da cartilha do partido comunista que enchia o saco cobrando posições ideológicas do teatro e com isto atrasou o humor brasileiro em décadas. Comunista é um animal que não ri. Posso citar aqui alguns humoristas que me influenciaram e influenciam: George Carlim, Ronaldo Golias, Alvarenga e Ranchinho, Andy Kaufman, Jerry Lewis, Chico Anísio, Bill Cosby...”

Quando teve a ideia de criar o Pastor Adélio?

Há três anos eu estava lendo muita coisa sobre religião, em especial sobre as seitas pentecostais e neopentecostais, e queria discutir o assunto de maneira ostensiva, usando as ferramentas digitais e naturalmente acabei chegando ao pastor. Sempre soube que assuntos como religião e política podem ser discutidos através do humor, é um tipo de discussão que facilita o entendimento e atrai outro olhar das pessoas. Os vídeos do Pastor Adélio começaram a ser postados há três anos.

“Como humorista pensei em falar deste assunto, a religião, de forma que não ficasse muito maçante, depois de ver os vídeos de alguns comediantes norte americanos que defenestram Deus e a igreja, pensei em fazer algo nesta linha, mas acabei desistindo, achei que ficaria parecendo proselitismo, então imaginei um pastor que pudesse falar destes assuntos, um pastor ateu, e aí me veio o Pastor Adélio, o pastor que só fala a verdade.10

Por que você criou a personagem Pastor Adélio?

Para discutir através do humor o tema da intolerância religiosa e a religião como um todo. A religião tem sido causa de muito sofrimento. Não sou o único comediante que se interessa e produz material com este tema, o Bill Maher tem até um documentário sobre religião. Com o pastor pretendo ir mais longe, neste momento estou escrevendo e produzindo um super show com ele, vai ter os testemunhos, curas, interação, enfim, um super show com o qual quero viajar pelo Brasil todo. Tenho em mente muita coisa para o pastor, desde filme, programa de TV, rádio, enfim, é um personagem que acena com infinitas possibilidades.

Você gostaria de dizer algo em relação ao que faz, qual a sua intenção quando produz um vídeo do Pastor Adélio?

Gostaria apenas que a pessoa ouvisse as pregações do Pastor de mente aberta e buscasse confrontar suas crenças como eu fiz um dia. A liberdade é uma escolha.

A Análise:

O humorista Marcio Américo, usa da inteligência para acionar o riso com o texto bíblico, o qual acaba se tornando um pré-texto para a sua crítica à sociedade. No entanto, há de se fazer um questionamento, é possível rir do texto bíblico? Salma Ferraz (2014), em seu artigo “É certo que riste: humor no cristianismo1111, afirma que sim. Observemos o que diz Ferraz (2014):

Há humor na Bíblia? Sim, e há muito humor. Robert Alter em A arte da Narrativa Bíblica (2007) aponta as repetições e cenas padrão, ciclo do enganador-enganado presente no Gênesis. Este livro é repleto de ironia e maquinação em seu conteúdo.

Georges Minois (2003) afirma: “É claro que há riso na Bíblia” (p. 115). E isto ocorre justamente pela “extraordinária flexibilidade da Bíblia, com a qual se pode fazer qualquer coisa” (p. 115).

No capítulo A Diabolização do Riso na Ata Idade Média do livro História do Riso e do Escárnio de Georges Minois (2003). Na introdução do livro o crítico nos alerta que o riso tem um lado revolucionário e subversivo. Segundo o crítico “... o riso está a cavalo sobre uma dupla verdade. Serve ao mesmo tempo para afirmar e subverter.” (2003, p. 16,). Afirma ainda que o riso se encontra na encruzilhada do divino e do diabólico. ( p. 2)

Pastor Adélio - O Pastor mais Sincero do Mundo

Analisa-se a personagem do “Pastor Adélio” e o vídeo A Verdadeira História de Ló a partir dos estudiosos do riso, Mikhail Bakhtin, Henri Bergson; Vladmir Propp, Georges Minois e de novos estudiosos como Salma Ferraz. A respeito da personagem, adota-se a definição de M. Forster (1968)12, na intenção de estabelecer “a diferença entre as pessoas na vida cotidiana e as pessoas nos livros”(p. 36), que propôs a clássica distinção entre tipos de personagens, plana e redonda. Apontando, assim, o nível de profundidade que um personagem pode chegar e qual o seu papel, podendo definir o “Pastor Adélio” como uma personagem plana e redonda.

Para Foster (1969), a personagem plana pode ser definida em poucas palavras, pois ao ser apresentada ao leitor, este já consegue entendê-la. Esta se subdivide em Tipo e Caricatura. O Tipo é aquela que alcança o auge da peculiaridade sem atingir a deformação. A Caricatura são aquelas personagens que tem uma qualidade ou ideia única dilatada ao máximo, provocando o exagero de algum traço até à distorção proposital, geralmente, desencadeando uma sátira, como é o caso da personagem do Pastor Adélio – o “Pastor mais sincero do mundo”.

Pastor Adélio: A Verdadeira História de Ló

Imagem do vídeo disponível no Youtube13

O humorista Marcio Américo dá voz ao Pastor Adélio através do vídeo intitulado A verdadeira história de Ló, publicado na internet. Primeiramente, o pastor aparece em um cenário que representa um local sagrado, de cunho religioso. Esse se apresenta como um elemento contrastante - irônico - entre o cenário em que o pastor é inserido para pronunciar seu discurso, um cenário idílico, edênico, e a postura de um cinismo, diria, diabólico do pastor. Em seguida é possível observar a caracterização da personagem do pastor, com roupas e maquiagem - típicas de um pastor evangélico – incorporando a caricatura de um pastor evangélico. Toda a caracterização se assemelha aos cultos evangélicos existentes na vida real, divulgados na TV, rádios, e, agora, na Internet. A sacada inteligente do humorista está nessa caracterização, em que ele se faz parecer um pastor de verdade, utilizando o humor e a paródia como fonte primordial para o seu trabalho.

A personagem se dirige para uma parcela da sociedade, seu público é conhecedor da Bíblia. Dessa forma, o autor, através de uma crítica feroz, se dirigi aos televangelista por meio de artifícios cômicos e paródicos. Assim, o ator em seu discurso de pregação, adotado no esquete virtual, utiliza elementos que despertam o caráter cômico, esses que são os mesmos presenciados na vida real. Nesse sentido, a comicidade dirige-se a inteligência pura, e não à emoção, como afirma BERGSON (1980) a comédia tem em comum com o drama e, a fim de distinguir-se dele, de nos impedir de levar a sério a ação séria e de nos preparar para rir, utiliza um meio cuja fórmula assim expressa: em vez de concentrar nossa atenção nos atos, ela a dirige mais para os gestos.

A personagem do Pastor Adélio se apresenta como uma caricatura do falso profeta, que usa a força da tradição religiosa sobre a credulidade, ao mesmo tempo ingênua e ambiciosa do público, para tirar proveitos pessoais. É engraçado também o fato de ele deixar bem claro que não acredita em nada, que está enganando mesmo. Há momentos em que se dirige ao povo crédulo, e outros que se dirige aos pastores da sua igreja para ensiná-los a ludibriar e explorar com eficiência o público. A paródia aparece aí, ao apresentar com nitidez a realidade vivenciada na sociedade atual, transpondo o texto bíblico, utilizando-o como um pretexto para chocar a sociedade e, ao mesmo tempo, denunciar uma realidade concreta presente em algumas igrejas neopentecostais.

No discurso da personagem do Pastor Adélio em “a verdadeira história de Ló” é possível observar a presença de elementos que estão separados, dispersos, fechados em si mesmos, como por exemplo, o sagrado e o profano, o alto e o baixo, o sublime e o insignificante, a sabedoria e a tolice. Os elementos que representam o sagrado e o profano: Para ilustrar, transcrevo abaixo, primeiramente, um trecho do referido texto bíblico e, paralelamente, o texto do vídeo a verdadeira história de ló:


Bíblia Sagrada: Gênesis 19. 30-38


30 E subiu Ló de Zoar, e habitou no monte, e as suas duas filhas com ele; porque temia habitar em Zoar; e habitou numa caverna, ele e as suas duas filhas.
31 Então a primogênita disse à menor: Nosso pai já é velho, e não há homem na terra que entre a nós, segundo o costume de toda a terra;
32 Vem, demos de beber vinho a nosso pai, e deitemonos com ele, para que em vida conservemos a descendência de nosso pai.
33 E deram de beber vinho a seu pai naquela noite; e veio a primogênita e deitou-se com seu pai, e não sentiu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou.
34 E sucedeu, no outro dia, que a primogênita disse à menor: Vês aqui, eu já ontem à noite me deitei com meu pai; demos-lhe de beber vinho também esta noite, e então entra tu, deita-te com ele, para que em vida conservemos a descendência de nosso pai.
35 E deram de beber vinho a seu pai também naquela noite; e levantou-se a menor, e deitou-se com ele; e não sentiu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou.
36 E conceberam as duas filhas de Ló de seu pai.
37 E a primogênita deu à luz um filho, e chamou-lhe Moabe; este é o pai dos moabitas até ao dia de hoje.
38 E a menor também deu à luz um filho, e chamoulhe Ben-Ami; este é o pai dos filhos de Amom até o dia de hoje.

Pastor Adélio:


Agora vem a cereja da história, meu irmão. Tão lá, Ló e as duas filhinhas virgens dele, morando na caverna, uma caverninha do BNH, modestinha. Aí as filhas pensam assim: minha querida irmã, estamos só eu, você e nosso pai aqui, a nossa geração vai acabar aqui. Aí a outra teve uma ideia. Não vai não, a gente trepa com o papai e tem um filhinho dele. Olha que coisa abençoada, meu irmão, que lindo pra por nas escolas pras crianças, não é? Olá que coisa de Deus..

Percebe-se que o autor retira a imagem de Deus de sua simbologia original (o sagrado) do contexto religioso, para colocá-la na instância do profano, através da sexualidade. O autor dessacraliza o texto bíblico para compor a esquete virtual e alcançar o público. Nessa dessacralização, Marcio Américo se utiliza de um novo paradigma para o texto religioso, paradigma esse que está imbuído em seu conhecimento de mundo, um mundo atual, uma sociedade atual. Dessa forma, a personagem do parto Adélio nada mais é do que uma Paródia cômica da vida atual. Márcio Américo faz uso da arte do discurso para concretizar a dessacralização do texto bíblico.

Nesse sentido, O Pastor Adélio utiliza a língua de forma cômica, mas para Propp a língua não é cômica somente por si só, mas porque reflete a imperfeição do raciocínio de quem fala: “a língua constitui um arsenal muito rico de instrumento de comicidade e zombaria” (PROPP, 1999, p. 119). Destaca-se os trocadilhos, os paradoxos e as tiradas, bem como algumas formas de ironia, como instrumentos linguísticos mais importantes da comicidade. Isso tudo pode ser visto na fala do Pastor Adélio ao contrapor o texto bíblico com a apropriação de sentido dada por ele, e até pela sociedade, sobre o texto original. Como o pastor mesmo diz: “tá na Bíblia, tá escrito lá...”; “provo o que digo com a Bíblia”.

Outro recurso para o riso é a ironia, muito utilizada para exprimir o contrário do que se pensa ou sente, no entanto, embute na mensagem vestígios da real intenção do emissor, de modo que o receptor perceba. Nessa premissa, é perceptível a presença da irônica na pregação da personagem do Pastor Adélio como no percurso narrativo da produção do vídeo. Assim, segundo Muecke (1995) arte é elevada por meio da ironia, como uma forma de valorização do indivíduo, capaz de sustentar altivamente sua voz na literatura, que através da ironia não vê mais a obra como uma simples imitação, mas, sim, a vislumbra como um produto da realidade. E é nessa linha de pensamento que se insere o autor Marcio Américo ao criar a personagem do Pastor Adélio, pois tenta, por meio do esquete virtual, apontar uma degradação do texto bíblico transformandoo em um pré-texto para a sua pregação. Tenda a intenção de chamar a atenção do seu expectador para a realidade nos programas televisivos e nos vinculados aos canais virtuais através da internet.

Nesse aspecto, percebe-se que há diferentes tipos de procedimentos irônicos utilizado pela personagem do Pastor Adélio, que se englobam e se comunicam, em que seu arranjo textual articula elementos linguísticos que, uma vez relacionados tendem a corroborar para sua finalidade irônica. Isso fica perceptível na “pregação” do Pastor Adélio no esquete virtual:


[...] E mandou um anjo lá pra salvar Ló, porque Ló ele não ia destruir, Ló e a família dele ia salvar porque era gente boa, decente, tinham votado no Kassab, não, não vou matar o Ló.[..]
[...] Vocês querem [...]do anjo, não façam isso, eu tenho uma proposta pra vocês, [..] fiquem com minha filha que é virgem, tá aqui minha filhinha, vem aqui [..] ficar comos meninos de Sodoma. Olha que pai amoroso, meu irmão. Qual que era o sobrenome de Ló? Nardoni?
[...] Onde elas acharam vinho nessa caverna? Compraram no Zé Colmeia?[...]
[...], ela deu vinho ou uma maconha pra esse velho?[...]

O uso do palavrão no discurso do pastor também tem uma função cômica, em virtude de ser uma prática interditada pelas igrejas aos fiéis, um pecado. Assim, ao empregar repetidamente os palavrões, o pastor demonstra, e deixa clara sua posição nada religiosa, sua falta de fé e temor, que procura cinicamente impor aos fiéis. Percebe-se na “pregação” do pastor Adélio, observando o excerto acima, uma inquietação irônica que transcende aquilo que se vivencia e o que a imaginação e inspiração criam. Contudo, por meio da apropriação do texto bíblico de forma inteligente, transformando-o em um pré-texto, o humorista Marcio Américo, na personagem do Pastor Adélio, com sua expressão altiva, cheia de desdém, provocações, sarcasmo, ironia, com um fulgor satânico, conduz com mestria a sua arte, representando-a como uma imitação da vida.

O pastor Adélio é um cômico e crítico dos televangelistas, que, no entanto, faz uma leitura literal da Bíblia, desconsiderando o contexto em que foi escrita. Um daqueles cômicos brasileiros, capaz de denunciar o burlesco, grotesco da sociedade brasileira, com uma verbosidade tumultuosa, tipicamente dos falantes do português do Brasil. Só na abertura do vídeo “A verdadeira história de Ló”, é possível verificar-se todo esse jogo verbal, pelo discurso adotado pelo pastor Adélio, uma linguagem mais próxima da língua falada, que permite fugir de uma visão de mundo condicionada. Revela aspectos da vida real, dos costumes da cultura e da história que estavam encobertas pela rigidez das palavras adotada na Bíblia. Percebe-se essa aproximação com o leitor, pela linguagem, já no início do vídeo em que o Pastor inicia:

Olá meus irmãos, Pastor Adélio está de volta, atendendo aos pedidos. Muito obrigada a você que tem visto a minha pregação, que tem falado bem, que tem falado mal, [*] tem visto, tá muito bem meu irmão. E, eu venho aqui novamente, meu irmão, responder esse acusador do satanás que vem novamente tentando vilipendiar a pessoa do pastor Adélio, meu irmão. Essa pessoa vem escrevendo no blog dele inverdades a meu respeito, e eu to aqui pra responder novamente, meu irmão. Dessa vez, esse filho do satanás, veio falar que eu, um servo de Deus, meu irmão, que as minhas pregações aqui dentro da igreja são baseadas na bíblia. Ô meu irmão, que mentira, meu irmão. Eu nunca nem li a bíblia, meu irmão, não gosto, não entendo nada que tem ali dentro, meu irmão. O único livro que eu me baseio, que eu gosto, é o livro caixa aqui da igreja, meu irmão. Esse é um livro maravilhoso que eu gosto de ler. O único paraíso que tem aqui é o paraíso fiscal, que é onde eu mando meu dinheiro. Agora, vou ler bíblia pros meus clientes, meu irmão? Não dá, só tem coisa que não dá pra entender nada. Você quer ver um exemplo? (parte da transcrição do vídeo “a verdadeira história de Ló”).

Nessa passagem inicial, é perceptível a utilização de uma linguagem chula que foge às regras gramaticais, na tentativa de se aproximar do público. Uma aproximação que assusta o espectador. Dessa forma, Bergson (1980) versa sobre o cômico nas situações e nas palavras, afirma que “é cômica toda combinação de atos e de acontecimentos que nos dê, inserida uma na outra a ilusão da vida e a sensação nítida de arranjo mecânico” (p. 51).

Outro mecanismo fundamental do cômico de palavras é a transposição em que “obtém-se efeito cômico transpondo para outro tom a expressão natural de uma ideia” (BERGSON, 2007, p. 92). O autor faz referência também à degradação, mecanismo pelo qual uma coisa, antes respeitada, é apresentada de forma medíocre e ordinária. Infere-se aqui a própria passagem bíblica (Gênesis 19 – 20)1 que o humorista Marcio Américo traz na voz da personagem do Pastor Adélio.

Agora, vou ler bíblia pros meus clientes, meu irmão? Não dá, só tem coisa que não dá pra entender nada. Você quer ver um exemplo? Vou dar um exemplo, vou falar de bíblia hoje então pra vocês verem que não dá. A história de Ló, meus irmãos. Tem uma musiquinha aí, por favor? A história de Ló, meus irmãos, veja o absurdo disso. Ló era um sujeito que morava na cidade chamado Sodoma e Gomorra, é como se ele morasse ali entre a Augusta e a Frei Caneca, [*]e Ló morava ali, aí Deus pensou: Pô vou matar essa [*] toda. E mandou um anjo lá pra salvar Ló, porque Ló ele não ia destruir, Ló e a família dele ia salvar porque era gente boa, decente, tinham votado no Kassab, não, não vou matar o Ló. Aí chegou o anjo Em Sodoma, a hora que o anjo chega, meus irmão, [*]. Olha que absurdo, aí o que que Ló faz? Ló tem uma ideia. Olha que mensagem, meu irmão, o Ló sai na porta e fala assim pros [*] de Sodoma: deixem o anjo em paz, ele é puro, ele assiste o programa da Eliana, ele acredita na revista Veja. É um anjo puro. [*], não façam isso, eu tenho uma proposta pra vocês, vejam a minha filha que é virgem, tá aqui minha filhinha, vem aqui [ter com] os meninos de Sodoma. Olha que pai amoroso, meu irmão. Qual que era o sobrenome de Ló? Nardoni? Mas o anjo, nesse momento, salvou a virgenzinha da filha de Ló, meu irmão. O que que o anjo fez? Ele jogou uma praga naquele povo. Aquele que tocou na porta de novo ficou cego. Qual é a desse anjo, meu irmão? Que anjo maluco. [*] Bom, aí o anjo falou, Ló, todo mundo aí, fora todo mundo que vai pegar fogo aí, que vai queimar tudo, queimou geral, perdeu, perdeu. Aí o Ló foi com a família dele, pegou os panos dele e tá, saiu de Sodoma. Aí Deus, sempre Deus com as pegadinhas dele, Deus falou pra Ló: Vocês vão sair, meus irmãos? Mas vocês não olhem pra trás. Meu irmão, ia cair fogo do céu, meu irmão, eu olharia pra trás, eu paro pra ver briga de cachorro, meu irmão. Eu não vou parar pra ver fogo descendo do céu? Eu olho. Aí Deus, ...a mulher de lóolha pra trás, meu irmão. Lógico, caindo fogo do céu. Ele vai e transforma a mulher numa estátua de sal, meu irmão. Olha o desperdício. Resultado: tá lá o Ló viúvo, as filhas órfã, e toca, vai embora, vai morar aonde o Ló, perdido, perdeu a cidade por causa dos [*]. Só por causa disso? Daqui a pouco vai querer o quê? Destruir o Rio de Janeiro? Aí Ló foi morar numa caverna com as duas filhas, meu irmão. Agora vem a cereja da história, meu irmão. Tão lá, Ló e as duas filhinhas virgens dele, morando na caverna, uma caverninha do BNH, modestinha. Aí as filhas pensam assim: minha querida irmã, estamos só eu, você e nosso pai aqui, a nossa geração vai acabar aqui. Aí a outra teve uma ideia. Não vai não, a gente [*] com o papai e tem um filhinho dele. Olha que coisa abençoada, meu irmão, que lindo pra por nas escolas pras crianças, não é? Olá que coisa de Deus. Aí ela falou assim: mas papai não vai querer [*] a gente. Mas a gente dá um porre nele. Aí pegaram e deram vinho pro pai beber. Onde elas acharam vinho nessa caverna? Compraram no Zé Colmeia? Deram o vinho pro pai e a primeira foi lá e [deitou-se] com o pai mesmo, e diz o relato lá que no outro dia Ló não lembrava de nada. [*], ela deu vinho ou uma maconha pra esse velho? ...[*]...que não lembrava. Aí no outro dia a segunda falou assim: eu vou [deitar] com o papai também, porque vai que você não engravida. Aí a segunda foi lá, vinho no velho. [*], o velho já devia se lembrar, noite passada elas me deram vinho e eu acordei pelado e melado. Lembrou nada. É um fuminho bom, devia ser de Pernambuco né esse fuminho do Ló. Aí vai a outra filha, deitou com o pai e no outro dia também não lembrou de nada, meu irmão. Eu vou ficar lendo um livro desse? Eu sou uma pessoa de respeito, meu irmão. Eu sou uma pessoa que valoriza a família, que valoriza a moral, meu irmão. Então não vou ler esse tipo de coisa aqui na minha igreja. Semana que vem, meu irmão, eu estarei aqui desmentindo, mais uma vez, esse blasfemador, esse caluniador, que veio falar que eu ensinei aqui a história de Noé pra criancinhas. Nunca que eu ia ensinar um troço desses pra criança, meu irmão. A Arca de Noé, meu irmão, como é que Noé colocou uma anta entre os animais? Ele veio pro Brasil de TAM? Meu irmão, logo mais eu volto, porque você sabe, pastor Adélio é só a verdade.14

Essa degradação está presente como, por exemplo, na apropriação do texto bíblico realizada pelo humorista, na personagem do Pastor Adélio, demonstrada no excerto acima. Bergson (1980) aponta cinco formas de degradação, a saber: o exagero prolongado; a transposição, que se aplica ao valor das coisas; a comparação extrema, a oposição entre o real e o ideal, e a ironia. Portanto, é possível dizer que o cômico e o riso são para Bergson, respectivamente, a representação da falha dos valores positivos e sua sanção funcional que restabelece a ordem da vida e da sociedade. Nesse aspecto é que se insere a personagem do Pastor Adélio, pois, embora de forma agressiva, o pastor procura mostrar a seu público por meio da paródia e da destruição do texto bíblico o que pode estar por traz do discurso dos evangelizadores da sociedade atual.

Um dos recursos mais utilizados pelas comédias é a repetição. Repetir, ao que parece, leva o público às gargalhadas. No caso do vídeo “a verdadeira história de ló” esta técnica aparece de forma criativa e inesperada. No campo da linguagem, um dos exemplos mais pertinentes disso na fala do Pastor Adélio é a repetição da expressão “meu irmão” (35 vezes)15, uma gíria característica do carioca. Outra expressão utilizada pela personagem do Pastor Adélio é “tô puto” ou “tô muito puto”, é esta expressão que praticamente abre todos os vídeos do Pastor Adélio publicado na esquete virtual (são mais de 50). Nesse sentido, atenta-se aqui para o que diz Bergson (1980) que a repetição acontece quando o mesmo fato se repete em diferentes momentos ou situações. Com o uso insistente das mesmas palavras ou a repetição de frases feitas estereotipadas e reprimidas torna-se apropriada para a criação de uma personagem parodiada e risível. Assim, o humorista Marcio Américo o faz, dessacralizando o texto considerado sagrado, O Bíblico, pela inserção de palavras chulas e que, muitas vezes, chegam a ofender o expectador.

No entanto, é importante dizer que os recurso utilizados pelo autor foram usados propositadamente, pois o que todo cômico quer é chamar a atenção de seu público e Marcio Américo o faz por meio de vários artifícios, e a personagem do Pastor Adélio é um deles. Entretanto, cabe ressaltar que nem todos os pastores teleevangelistas são da forma que o autor descreve, muitos são comprometidos com o discurso bíblico e não fazem desse discurso um meio ilícito para obter lucros e tão pouco brincar com a fé da sociedade. Assim, há que se destacar uma série de processos legais reais que o humorista vem tendo que responder, muitos deles por questões que ferem a crença de determinados grupos religiosos, outros por ofensas a pastores e líderes religiosos. No entanto, segundo Marcio Amério, esses processos fazem parte da carreira do Pastor Adélio.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UNB, 1996.

_____. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

_____. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance) São Paulo: Editora UNESP/Hucitec, 1998.

_____.Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Marins Fontes, 2003.

FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Editora Globo: Porto Alegre, 1969.

BERGSON, Henri. O riso ( ensaio sobre a significação da comicidade). Trad. Ivone Castilho Benedetti. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

FERRAZ, S. LEOPOLDO, R.N.(Orgs). Escritos Luciféricos. Segunda Parte: 6. É certo que riste: humor no Cristianismo. Blumenal; Edifurb, 2014.

MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena O. Ortiz Assumpção São Paulo: Editora UNESP, 2003

MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995.

PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992

BÍBLIA ON LINE, disponível em: http://www.bibliaon.com/genesis_19/ acesso em 30/08/2014.

PASTOR ADÉLIO: o pastor mais sincero do mundo/ A verdadeira história de Ló. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=y9g-YmLsgxE

PASTOR ADÉLIO: Perfil do Facebook https://www.facebook.com/ PastorAdelio?fref=ts

(Endnotes)

1. Passagem bíblica utiliza pela personagem do Pastor Américo no vídeo “A verdadeira história de Ló”.  Bíblia/ Gênesis 19-20/ Sodoma e Gomorra destruídas 1 Os dois anjos chegaram a Sodoma ao anoitecer, e Ló estava sentado à porta da cidade. Quando os avistou, levantou-se e foi recebê-los. Prostrou-se com o rosto em terra 2 e disse: “Meus senho res, por favor, acompanhem-me à casa do seu servo. Lá poderão lavar os pés, passar a noite e, pela manhã, seguir caminho”. “Não, passaremos a noite na praça”, res ponderam. 3 Mas ele insistiu tanto com eles que, final mente, o acompanharam e entraram em sua ca sa. Ló mandou preparar-lhes uma refeição e assar pão sem fermento, e eles comeram. 4 Ainda não tinham ido deitar-se, quando todos os homens de toda parte da cidade de Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos, cer caram a casa. 5 Cha maram Ló e lhe disseram: “Onde estão os homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos rela ções com eles”. 6 Ló saiu da casa, fechou a porta atrás de si  7 e lhes disse: “Não, meus amigos! Não façam essa perversidade!  8 Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para que vocês façam com elas o que bem entenderem. Mas não façam nada a estes homens, porque se acham debaixo da proteção do meu teto”.  9 “Saia da frente!”, gritaram. E disseram: “Este homem chegou aqui como estrangeiro, e agora quer ser o juiz! Faremos a você pior do que a eles”. Então empurraram Ló com violência e avançaram para arrombar a porta.  10 Nisso, os dois visitantes agarraram Ló, puxaram-no para dentro e fecharam a porta.  11 De pois feriram de cegueira os homens que estavam à porta da casa, dos mais jovens aos mais velhos, de manei ra que não conse guiam encontrar a porta.  12 Os dois homens perguntaram a Ló: “Vo cê tem mais alguém na cidade - genros, filhos ou filhas, ou qualquer outro parente? Tire-os daqui,  13 porque estamos para destruir este lugar. As acusações feitas ao Senhor contra este povo são tantas que ele nos enviou para destruir a ci dade”.  14 Então Ló foi falar com seus genros, os quais iam casar-se com suas filhas, e lhes disse: “Saiam imediatamente deste lugar, porque o Senhor está para destruir a cidade!” Mas pensaram que ele estava brincando.  15 Ao raiar do dia, os anjos insistiam com Ló, dizendo: “Depressa! Leve daqui sua mulher e suas duas filhas, ou vocês também serão mor tos quando a cidade for casti gada”.  16 Tendo ele hesitado, os homens o agarraram pela mão, como também a mulher e as duas filhas, e os tiraram dali à força e os deixaram fora da cidade, porque o Senhor teve misericór dia deles.  17 Assim que os tiraram da cidade, um deles disse a Ló: “Fuja por amor à vida! Não olhe para trás e não pare em lugar nenhum da planície! Fuja para as montanhas, ou você será mor to!”  18 Ló, porém, lhes disse: “Não, meu se nhor!  19 Seu servo foi favorecido por sua benevo lência, pois o senhor foi bondoso comigo, poupan do-me a vida. Não posso fugir para as montanhas, senão esta calamidade cairá sobre mim, e morrerei.  20 Aqui perto há uma cidade pequena. Está tão próxima que dá para correr até lá. Deixe-me ir para lá! Mesmo sendo tão pequena, lá estarei a salvo”.  21 “Está bem”, respondeu ele. “Também lhe aten derei esse pedido; não destruirei a cidade da qual você fala.  22 Fuja depressa, porque nada poderei fazer enquanto você não chegar lá”. Por isso a cidade foi chamada Zoar.  23 Quando Ló chegou a Zoar, o sol já havia nascido sobre a terra.  24 Então o Senhor, o próprio Senhor, fez chover do céu fogo e en xofre sobre Sodoma e Gomorra.  25 Assim ele destruiu aquelas cidades e toda a planície, com todos os habitantes das cidades e a vegetação. 26 Mas a mulher de Ló olhou para trás e se trans formou numa coluna de sal. 27 Na manhã seguinte, Abraão se levantou e voltou ao lugar onde tinha estado diante do Senhor. 28 E olhou para Sodoma e Go morra, para toda a planície, e viu uma densa fumaça subindo da terra, como fumaça de uma fornalha.  29 Quando Deus arrasou as cidades da pla nície, lembrou-se de Abraão e tirou Ló do meio da catástrofe que destruiu as cidades onde Ló vivia.  Lot e as suas filhas  30 Ló partiu de Zoar com suas duas filhas e passou a viver nas montanhas, porque tinha me do de permanecer em Zoar. Ele e suas duas fi lhas ficaram morando numa caverna.  31 Um dia, a filha mais velha disse à mais jovem: “Nosso pai já está velho, e não há ho mens nas redondezas que nos possuam, segundo o costume de toda a terra.  32 Vamos dar vinho a nosso pai e então nos deitaremos com ele para preservar a sua linhagem”.  33 Naquela noite, deram vinho ao pai, e a filha mais velha entrou e se deitou com ele. E ele não percebeu quando ela se deitou nem quan do se levantou.  34 No dia seguinte a filha mais velha disse à mais nova: “Ontem à noite deitei-me com meu pai. Vamos dar-lhe vinho também esta noite, e você se deitará com ele, para que preservemos a linhagem de nosso pai”.  35 Então, outra vez deram vinho ao pai naquela noite, e a mais nova foi e se deitou com ele. E ele não percebeu quando ela se deitou nem quan do se levantou.  36 Assim, as duas filhas de Ló engravidaram do próprio pai.  37 A mais velha teve um filho e deu-lhe o nome de Moabe; este é o pai dos moabitas de hoje. 38 A mais nova também teve um filho e deu-lhe o nome de Ben-Ami; este é o pai dos amonitas de hoje.

Notas

[1] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UNB, 1996.

[2] BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zarar, 1980.

[3] PROPP, V. Comicidade e riso. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.

[4] MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz. Assunção. São Paulo: Unesp, 2003.

[5] PROPP, V. 1992, p. 105.

[6] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. 1996.

[7] http://www.youtube.com/watch?v=y9g-YmLsgxE

[8] Definição dada por Marcio Américo.

[9] As informações apresentadas neste artigo foram obtidas em entrevista realizada no dia 20 de junho de 2014 com o humorista. Pastor Adélio, portanto, é uma personagem criada pelo “humorista, dramaturgo, escritor, roteirista e ator” Márcio Américo Alves (50 anos). Nascido em Londrina – Paraná. O autor possui três livros lançados: Preciso Dar um Jeito na Vida (poesia – 1998), Meninos de Kichute (romance – 2003), adaptado para o cinema pelo diretor Luca Amberg e Corações de Aluguel (romance policial – 2007).

[10] Entrevista concedida no dia 20 de junho de 2014 por e-mail.

[11] FERRAZ, S. É certo que riste: humor no cristianismo in: FERRAZ, S. LEOPOLDO, R.N.(Orgs). Escritos Luciféricos. Blumenal; Edifurb, 2014.

[12] FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Editora Globo: Porto Alegre, 1969.

[13] Disponível em : http://www.youtube.com/watch?v=y9g-YmLsgxE

[14] Transcrição do vídeo. Foi omitido na transcrição todos os palavrões que o pastor utiliza em seu monólogo. Sempre que aparecer os símbolos [*] significa que ali havia um palavrão.

[15] A “expressão “meu irmão” aparece 35 vezes no vídeo “a verdadeira história de ló” que tem 6’07.