A soleira da Porta dos Fundos: a brecha como ponto de partida para a criação humorística
Base concepts in the “doorsill” of Porta dos Fundos: the starting point gap for humorous creation
André Luiz da Silveira
Mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email:andrelsilveira@hotmail.com.
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Resumo
Através dos vídeos com temática cristã de caráter subversivo do coletivo de humor na internet Porta dos Fundos, este artigo se propõe investigar a brecha que os humoristas do grupo identificam no texto bíblico, nas doutrinas cristãs e no contexto sócio-político-religioso do país para a criação humorística dos esquetes virtuais. Para tanto, a metodologia de pesquisa se dará através do aprofundamento dos conceitos de soleira e/ou confim e assinatura, respectivamente dos filósofos italianos Massimo Cacciari e Giorgio Agamben.
Palavras chave: “Humor”, “cristianismo”, “brecha”, “soleira”, “Porta dos Fundos”
Abstract
Through the comedy videos with subversive christian theme on the internet Youtube channel Porta dos Fundos, this article aims to investigate the gap that the group of comedians identified in the biblical text, in christian doctrine and the social, political and religious context of the country for the creation of humor. Therefore, the research methodology will be through the deepening of base concepts and signature, respectively of the Italian philosopher Massimo Cacciari and Giorgio Agamben.
Keywords: :”Humor”, “Christianity”, “gap”, “doorsill”, “Porta dos Fundos”
Introdução
Noite. Vemos um casebre e um homem indo em direção a ele. Ouvimos as vozes dos personagens.
Gabriel: Deixa comigo, deixa que eu falo, deixa que eu faço! Eu to aqui, tranquilo!
Maria: Tem certeza?
Gabriel: Tenho! Tá vindo aí, tá vindo, tá vindo já. Concentra! Maria, não olha no olho dele.
José abre a porta e entra no casebre.
José: Maria? Não sabia que tinha visita aqui hoje!
Maria está sentada ao lado de um homem de barba e cabelos longos e brancos.
Maria: José, a gente precisa conversar.
José: Aconteceu alguma coisa?
Maria: To grávida!
José: Que notícia maravilhosa, amor!
Gabriel aparece. Está de pé ao lado de José.
Gabriel: Pois é, mas é mais ou menos. Vamos entender tudo como tem que entender, aí a gente vê.
José (para Gabriel): Você é?
Gabriel: Eu sou Gabriel, olha aqui ó: desarmado, do bem, tranquilo falando contigo aqui na legal.
José: O que tá acontecendo aqui?
Maria: José, o filho não é seu!
José: Quê?
Gabriel: Falei pra não falar assim!(dá um tapa no rosto de José). Calma cara! Calma! Calma cara!
José: Como assim o filho não é meu?
Maria: O filho é de Deus!
José: Deus?
Gabriel: Que surpresa! Todo mundo é filho de Deus. Você também é e não reagiu assim. Calma! Conhece Deus?
José: De nome.
Deus (para José): Prazer!
Gabriel: Deus precisava de uma mulher pra ser a mãe do filho dele. Ela precisava ser virgem, claro né? E tá uma dificuldade hoje pra achar mulher virgem na Galileia, na Judéia...
José: Mas a Maria não é mais virg...
Maria (cortando-o): José! Gabriel tá falando! Falta de educação! (para Gabriel). Continua querido.
(...)
Gabriel: Olha só, é filho único, tá aqui toda a documentação, é um varão, é homem, um filho só. Vai nascer dia vinte e cinco de dezembro, aqui, Natal, época boa de nascer...
(...)
Gabriel: Quebra essa pra gente, José.
José: Eu sou palhaço agora? Eu sou corno agora?
Gabriel: Mas José, o cara é Deus! Se ele quisesse ele te engravidava.
Deus: Preferiria José?
Gabriel: Preferiria? Não. Não vai. Quem que vai?
José: O pessoal tem que ficar sabendo dessa história da Maria aí?
Gabriel: O objetivo dessa coisa toda realmente até é isso! É todo mundo saber disso o resto da vida!
José: Isso vai me foder na carpintaria!
Gabriel: Não queria tá na tua pele não.
José: Ninguém vai acreditar nessa história.
Deus: Querido, isso aí, relaxa! O pessoal acredita em qualquer coisa. Vai por mim.1
Para pesquisar a relação entre humor, teologia, riso, cristianismo, paródia, religião é necessário estabelecer uma metodologia que dê conta das peculiaridades que o tema exige, justamente por se tratar de um ramo de pesquisa delicado e com fronteiras não definidas. O bom senso, o olhar sobre a obra e o limite de quem cria é diferente do de quem usufrui da criação artística e humorística e, com isso, uma série de interpretações divergentes colocam em choque a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Através dos vídeos com temática cristã, de caráter subversivo2 do coletivo de humor na internet Porta dos Fundos, me proponho investigar a brecha que os humoristas do grupo identificam no texto bíblico, nas doutrinas cristãs e no contexto sócio-político-religioso do país para a criação humorística dos esquetes virtuais. Para tanto, a identificação desta brecha, deste limite, desta intersecção se dará através do aprofundamento dos conceitos de soleira e/ou confim e de assinatura, respectivamente, dos filósofos italianos Massimo Cacciari e Giorgio Agamben.
A transcrição do vídeo citado no início do texto dá a dimensão da complexidade de se trabalhar humoristicamente a partir do texto bíblico, pois a subversão do texto original – a Bíblia – faz com que o sagrado e o profano se toquem e despertem a graça para uns e o desconforto para outros. A grande questão que me instiga compreender, mais especificamente no caso do Porta dos Fundos, é qual a forma, o método, o estímulo que leva os criadores dos roteiros dos vídeos a se debruçarem sobre questões teológicas ou religiosas para obterem o riso. Além de também identificar de que maneira aplicam esse suposto método em prol de um resultado eficiente, leia-se, engraçado. Mas, para compreender estas questões, é necessário conhecer o objeto de análise, o Porta dos Fundos.
Porta dos Fundos
Com milhares de visualizações em seu canal no Youtube, o grupo Porta dos Fundos posta dois vídeos curtos por semana, alguns deles com temática cristã3. O coletivo de humor iniciou os trabalhos em março de 2012, com o primeiro programa sendo lançado em agosto desse mesmo ano. Os roteiros de trinta e sete esquetes de humor do Porta dos Fundos foram transformados em livro homônimo e lançado no ano de 2013, alçando voos além da internet, estabelecendo, assim, contato com o público através do texto escrito e com reflexões dos autores acerca dos processos criativos.
Em matéria da colunista Keila Jimenez, publicada na Folha de São Paulo, intitulada “Porta dos Fundos chega a Portugal e negocia entrada nos EUA, Inglaterra e América Latina” vemos a dimensão que alcançou o trabalho realizado pelo grupo. Em 2015, o grupo conta com os cinco sócios iniciais, Fábio Porchat, Antônio Pedro Tabet, Gregório Duvivier, Ian SBF e João Vicente de Castro, e trabalham com uma equipe de quase 50 pessoas. Segundo a matéria no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, o grupo tem projetos de “filmes, séries, novos canais na web, programas para TV e sites no exterior, uma peça de teatro, uma animação, um ‘talk show’, um reality e licenciamentos de produtos” (JIMENEZ, 2015), e pretende arrecadar cerca de R$ 350 milhões no ano de 2015.
No livro Porta dos Fundos um breve texto descreve o grupo:
PORTA DOS FUNDOS é um coletivo criativo criado por amigos e para amigos. Simples assim. A ideia de sair da TV e migrar para uma mídia na qual seríamos nossos próprios editores, chefes e velhinhos que censuram baseados na moral e nos bons costumes – que pregam, mas não colocam em prática – parecia bastante atraente e promissora. E foi. (PORTA DOS FUNDOS, p. 09, 2013)
A liberdade que a internet propicia, sem dúvida, foi um dos trunfos do grupo, aliado a qualidade técnica e, atores e redatores reconhecidos por sua atuação humorística, que contribuíram para a divulgação inicial dos vídeos. Os humoristas Fábio Porchat, Marcos Veras e Gregório Duvivier, já eram conhecidos por um número considerável de público por trabalhos na TV, no teatro e no cinema, e também Antônio Tabet, que já tinha um número significativo de seguidores no seu site de humor “Kibe Loco”4. No próprio texto da introdução do livro, no trecho citado, já é possível notar o estilo do grupo e o enfoque da sua proposta, quando alfinetam os censuradores da moral e dos bons costumes.
Em outro trecho, na introdução do livro, o grupo se refere às polêmicas e possíveis desafetos com o conteúdo produzido:
Quando alguém não gosta de um vídeo e diz que vai nos processar, a gente tem a consciência tranquila. Lembramos das reuniões intermináveis e de como foi difícil chegar àquele texto do vídeo. Quem não gosta só pode ser uma pessoa muito sozinha que está querendo atenção (ou rola). (PORTA DOS FUNDOS, p. 10, 2013)
De certa forma, apesar da ironia do texto, eles têm sua parcela de razão. Solidão, carência e necessidades sexuais não estão diretamente ligados a insatisfação com os vídeos feitos pelo grupo, mas dão uma dimensão de que se opor publicamente ao conteúdo produzido pode estar ligado a uma questão de escolha pessoal. Mesmo com a abrangência que a internet propicia, acredito que assistir vídeos na internet é uma opção. Uma pessoa para ver um vídeo no Youtube precisa acessar o site, buscar o vídeo e assisti-lo por vontade própria. Não é TV aberta, que involuntariamente você pode assistir algo que lhe desagrade ou à sua família. Inclusive, a TV aberta também é uma opção, pois você pode decidir não assistir, mesmo sendo tão abrangente ou mais que a internet. Ainda sendo postado em redes sociais, é preciso dar o play e tomar a decisão de assistir. Todos têm o direito de não gostar, mas o grupo tem o direito de fazer para quem gosta. Assistir vídeos na internet é uma escolha. Não gostar é uma probabilidade, que muito provavelmente quem não tenha pré-disposição para o estilo de humor do grupo, não vá gostar da maioria dos vídeos, como o contrário. Quando um vídeo com temática cristã,produzido pelo grupo, recebe alguma crítica que ganha repercussão virtual ou nacional, em sua maioria,essas são realizadas por algum membro ligado a alguma doutrina – em geral,religiososneopentecostais que exercem alguma função política. Nestes casos, o vídeo acaba ganhando maior visibilidade e essas críticas se tornam marketing gratuito para o próprio grupo.
Em três anos, o grupo se estabeleceu como referência de um novo humor no Brasil, ampliou sua produção, visibilidade e qualidade, e investe cada vez mais em vídeos que confrontam e estimulam o público a refletir sobre diferentes formas de pensar seu dia-a-dia, seus defeitos, suas inquietações ou, simplesmente, sua vontade de apenas rir.
E foi o trabalho deste grupo, delimitado pelos vídeos com temática cristã, que me estimulou a aprofundar o estudo sobre o limite do humor, se é que ele existe, e suas implicações metodológicas para alcançar o riso.
A Soleira da Porta dos Fundos
Massimo Cacciari, em “Nomes de lugar: confim”, me apresentou ao conceito de soleira e, automaticamente, pude fazer a conexão entre a soleira de uma porta com a soleira da porta dos fundos e da frente. A porta da frente é por onde entra quem você quer, quem é convidado, é uma passagem permitida, habitual, é sagrada. Já a porta dos fundos é por onde os amantes fogem, é o limiar do clandestino, do proibido, do profano, não ésempre a melhor vista da casa, é por onde sai o lixo, lixo este que não presta, mas é necessário, é o resquício de algo que já teve importância e nos livramos, pois incomoda. A porta dos fundos tem sua função, bem como a porta da frente. São distintas, mas se complementam. O entendimento da confluência de ambas gera um espaço onde se pode pensar o novo, o diferente, o inusitado, o limite, e também o subversivo.
No que se refere ao humor, a porta da frente poderia ser considerada uma porta com filtro, onde só entra o que é permitido, e, portanto, seleciona, exclui, limita. A porta dos fundos não tem filtro, se predispondo conhecer o outro lado da porta, transitar entre ambientes e interagir com novas possibilidades. Em resposta aos vídeos com temática cristã do Porta dos Fundos, o Canal do Crente criou o Porta da Frente5 e postou um vídeo,no qual através de diálogos entre supostos sósias dos humoristas do grupo “parodiado”, criticam o coletivo de humor e os assuntos abordados em seus esquetes.O grupo cria um vídeo com filtro, que não teve nenhuma repercussão e nem humor.Esta manifestação reflete a forma como a limitação causada pelo permitido pode interferir na abrangência, funcionalidade, impacto e graça da criação humorística. O Porta dos Fundos, em contraponto com a porta da frente, nos dá uma dimensão de contraste que materializa o confronto do humor com o cristianismo nas criações do grupo, e na necessidade da junção de ambas as portas – o sagrado e o profano6 – para se efetivar o resultado final: os vídeos de humor com temática cristã. Já a porta enquanto imagem, e sua soleira, nos apresenta uma série de reflexões.
A soleira é o espaço de contaminação, o dentro-fora, o limite, “o passo através do qual se penetra em um domínio ou se sai dele. Através da soleira somos acolhidos ou eliminados”. (CACCIARI, 2005, p. 14). Esta porta aberta faz com que esse limite seja também aberto, ele transita, ele atravessa a fronteira da soleira e se deixa contaminar com o lado oposto. Ali na soleira está o confim,conceito apresentado por Cacciari, que nos diz que “o termo parece indicar a ‘linha’ ao longo da qual dois domínios se tocam” (CACCIARI, 2015, p. 13). Essa linha de contato essa intersecção, esse confim, esse entrelugar, é o ambiente da soleira que permite a fluidez, onde a relação entre dois ambientes, dois corpos, dois lugares, duas ideias, se estabelece.É o contato entre o outro lado, o lado oposto a esse outro lado e,consequentemente,o choque de ambos. O objeto é contaminado e vai se tornar contaminador. Não existe uma fronteira fixa, estanque e limítrofe. “Não são os corpos a transgredir, mas é o próprio confim que sempre transgride. (...) O confim não é transgredível, pois é transgressão” (CACCIARI, 2005, p. 18). A transgressão7 é o espaço de contato e onde se percebe o confronto. O confim é o cerne desse lugar aberto,que permite a percepção de fissuras, traços, indícios, sinais, brechas.
Fechar o lugar não é, de fato, protegê-lo, ou defendêlo, mas anulá-lo, significa violentar-lhe a natureza e o próprio étimo, não reconhecê-los. Todas as tentativas voltadas a ‘fortificar’ o lugar, longe de torná-lo seguro, golpearão mortalmente todo habitar, já que o lugar que define por exclusão de outro, que não quer que o outro o toque, que exige o seu confim imune ao outro, se transforma inevitavelmente em prisão para aqueles que ali residem. (CACCIARI, 2005, p. 18).
Abrir o lugar e permitir o contato com o outro faz com que o confim deixe de ser fronteira e se transforme em um ato de libertação. No caso da religião, quanto mais ela se fecha, mais ela fica vulnerável. Assim como na guerra, quanto mais se fecha, menos se conhece o inimigo. Quanto menos você conhece a contaminação mais exposto você está.
O Estado moderno move em direção ao próprio ultrapassar-se e dessa maneira produz ‘lugares fechados’, transforma o confim em fronteira – fronteiras não tanto ou não mais físico-geográficas ou políticos estaduais, mas culturais, econômicas, ecológicas. A lógica imanente da ‘globalização’ elimina os confins e multiplica as barreiras: se falta o confim, de fato cessa a relação, que pode ter lugar somente entre individualidades, e a diferença, então, não pode se afirmar senão como desigualdade. (CACCIARI, 2005, p. 20)
A modernidade caminha para o choque entre os desiguais. O ambiente da intersecção, que poderia ser de crescimento, de conhecimento do outro, se transforma em barreira e conflito, gerando grupos isolados, que pensam de uma determinada forma e excluem a maneira de pensar diversa à sua.
Em História do Riso e do Escárnio, George Minois cita Howard Bloch: “(...) como Merlim, o riso é um fenômeno liminar, um produto das soleiras, ... o riso está a cavalo sobre uma dupla verdade. Serve ao mesmo tempo para afirmar e subverter”. (2003, p. 16) E Minois continua: “Na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco e na indeterminação. Portanto, tem tudo para seduzir o espírito moderno” (2003, p. 16). Ao mesmo tempo que Cacciari nos fala que o estado moderno tende a construção de fronteiras, Minois (que lançou o livro em 1946) acredita que essa soleira, essa dupla verdade, tem espaço na modernidade, no que diz respeito ao riso. Duas ideias complementares que convergem para o mesmo fim: a necessidade de ultrapassar as barreiras e criar meios para o preenchimento dos espaços de contato. O contato entre afirmação e subversão no humor é apresentado como um caminho para o confronto e o crescimento.
A clareza despertada pelo conceito de soleira e confim fez com que eu identificasse nos vídeos com temática cristã do Porta dos Fundos esse lugar de cruzamento, sem fronteiras, um “lugar aberto”, o espaço de contaminação entre ambos os conteúdos que se chocam: humor e cristianismo. E essa intersecção me permite identificar onde os redatores-criadores-humoristas percebem o espaço para criar a partir de temas cristãos, que é justamente esse limite, essa soleira, esse confim, essa brecha. A brecha é aberta nessa fronteira de contato, onde é possível identificar,tanto no texto bíblico, quanto na doutrina cristã ou no contexto sócio-político-religioso, o espaço da dúvida, do vazio, do não dito, das contradições, do questionamento. O contato entre humor e cristianismo cria um abismo de questões, que para o cristão, é preenchido pela fé, pela sua crença, e para os humoristas, é preenchido com o bom humor, criação de situações inusitadas, criativas, subversivas e divertidas. O humor se dá ao luxo e ao prazer de responder perguntas sem respostas da forma que bem entende. Justamente pelo fato de o humor ser vinculado ao profano – criação do homem –, em contraponto com as crenças e a fé, que estão diretamente ligados ao sagrado – uma única verdade.
Na Bíblia, no livro do Êxodo, Deus revela a Moisés e Aarão na terra do Egito, em época de Páscoa, que as famílias deveriam matar um cordeiro macho, sem defeito e de um ano. Na tradução da Bíblia de Jerusalém diz: “Tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre os dois marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerem” (Êxodo, 12:7). Já na tradução João F. Almeida Atualizada lemos: “Tomarão do sangue, e pô-lo-ão em ambos os umbrais e na verga da porta, nas casas em que o comerem” (Êxodo, 12:7). Os marcos, a travessa, os umbrais, a verga da porta são as soleiras e são nestas soleiras que o sangue é colocado. Na sequência Deus diz que passará pela terra do Egito e ferirá todos os primogênitos, mas explica que “O sangue, porém, será para vós um sinal nas casas em que estiverdes: quando eu vir o sangue, passarei adiante e não haverá entre vós o flagelo destruidor, quando eu ferir a terra do Egito” (BIBLIA DE JERUSALÉM, Êxodo, 12:13). Portanto, quem estiver com sangue na soleira da porta estará a salvo. O sangue na soleira é o limite da salvação, é o sinal que diferencia o sagrado do profano, é a marca que delimita o bem e o mal. É nesta brecha que a salvação reside.
O preenchimento da brecha enquanto métodofica claro na transcrição do vídeo “Especial de Natal” no início do texto, no qual uma série de dúvidas, ou seja, brechas, são colocadas em evidência para criar humor e suscitar o riso: o fato de Maria ser casada com José, engravidar do filho de Deus, mas continuar sendo virgem; a virgindade de Maria grávida, por ser algo biologicamente improvável, é colocada em dúvida; a figura do Anjo Gabriel como um mediador de crise matrimonial por se tratar de um assunto delicado para anunciar a um casal; a questão da veracidade da data do Natal é citada de forma irônica; a falsa traição de Maria que gera o título de “corno” a José; o desconforto de José sobre a disseminação da novidade e como lidará com os comentários no seu trabalho; e, finalizando, uma crítica na voz de Deus sobre a crença em eventos aparentemente inexplicáveis: “o pessoal acredita em qualquer coisa. Vai por mim!”. Todo o roteiro é permeado por preenchimento de brechas no texto original. Uma descrição mais detalhada da anunciação está no Evangelho de São Lucas:
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! ” Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: “Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz a um filho, e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, se pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. Maria, porém, disse ao anjo: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum? ”. O Anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a tua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado de filho de Deus. Também Isabel, tua parenta concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível. ” Disse, então, Maria: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra! ” E o Anjo a deixou. (Lucas 1: 26-38)
O texto bíblico desperta nos criadores a necessidade do preenchimento das brechas. Esse contato entre texto original (Bíblia/cristianismo) e redatores (humor) faz com que o confim, a soleira, o limite, se choque e se preencha de forma fluida e com liberdade criativa, permitindo a criação humorística a partir do texto bíblico.
O teólogo e professor da Universidade Estadual da Paraíba, Antônio Magalhães, no livro Deus no espelho das palavras, nos informa que:
Existe uma arte da significação nos textos bíblicos, de forma tal que a história pode ser ouvida e lida diversas vezes, suas falas rememoram e incomodam, seus silêncios e suas frases evocam a reescritura e o recontar. A arte da significação e a arte da abstração estão juntas e tornam o leitor/ouvinte alguém em profundo processo de reescrever, recontar e rememorar, ao mesmo tempo que projetam para novas leituras. A arte da significação evoca a interpretação ininterrupta. (2009, p. 138)
Existe no texto bíblico um espaço a ser preenchido pelo leitor, assim como qualquer texto literário. E o preenchimento dessas lacunas pode ser feito de diversas formas. A partir da análise dos vídeos do Porta dos Fundos com temática cristã, identifiquei três segmentos de criação humorística a partir das brechas: a criação de paródias e apropriações do texto bíblico; as observações acerca de doutrinas cristãs; e, por fim, críticas ao contexto sócio-político-religioso atual do país. Teríamos um quarto segmento, que seriam os vídeos religiosos que envolvem humor com outras religiões, mas como o foco desse trabalho é o cristianismo, estes vídeos não fazem parte do escopo da pesquisa.Para exemplificar as brechasnos três segmentos, citarei dois vídeos de cada um.
A paródia é uma recriação, uma forma diferente de contar a mesma história, mas sob outro ponto de vista, com uma lente de aumento, com cores não vistas em leituras mais unilaterais. No caso das paródias e apropriações de textos bíblicos, temos vídeos como “Dez Mandamentos”, no qual o grupo recria a cena de Moisés anunciando as leis de Deus e sendo questionado pelos ouvintes. O outro seria o “Especial de Natal” já citado que, além da cena da anunciação do Anjo Gabriel, apresenta mais quatro esquetes: o primeiro com os três reis magos em torno da desproporcionalidade dos presentes a Jesus (ouro, incenso e mirra). O segundo em um jantar de família entre José, Maria, Jesus e Maria Madalena, insinuando uma relação entre Jesus e a “autônoma” Maria Madalena. O terceiro, uma cena sobre a dificuldade de Jesus conseguir uma mesa em uma taberna para a última ceia, pois precisa de 26 lugares para ele e os 12 discípulos ficarem do mesmo lado da mesa (fazendo referência à obra “A Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci). E finalmente a crucificação e os problemas referentes a dor da martelada, aos pregos, a madeira eas farpas. Nestes vídeos, o grupo se apropria das histórias bíblicas para criar os roteiros.
Já nas brechas referentes à doutrina cristã, em “Deus”, uma mulher morre e quando chega diante de Deus descobre que ele é polinésio e que a sua religião – católica – não era a correta. Nesse vídeo é explorada a lacuna da dúvida referente ao que acontece após a morte, já que em vida existem diversas religiões, com inúmeras crenças distintas, portanto, se alguém estiver certo (no caso do vídeo, a tribo da Polinésia), muitos outros estão errados, fazendo assim humor a partir de uma pergunta sem resposta concreta. Em outro roteiro, intitulado “Bíblia”, um pastor lê a palavra do Senhor diante dos fiéis e faz conexões, interpretações e leituras nas entrelinhas como, por exemplo: “(...) a mulher merece o acoite. Não fui eu que disse, foi Jesus! Tá aqui, pelo amor de Deus, vocês nunca leram a Bíblia? (Lê) ‘Ali onde estará o amor, estará também o nosso coração. Lucas 12:34’. Amor - mãe, mãe - mulher. Que estará em nosso coração – sangue, sangue que só sai das veias quando provocado por objetos violentos como um açoite! Tá clara, a palavra é clara. Amém?”. Neste vídeo, a ironia e o humor se dão através do exagero da interpretação do texto bíblico.
E, por último, os vídeos onde a brecha está no contexto sócio-político-religioso. Quando o projeto chamado popularmente de “cura gay” estava tramitando na Comissão de Direitos Humanos do Governo Federal, o grupo lançou o vídeo “Cura”, no qual um personagem gay afeminado pedia para Jesus curá-lo do fogo que o consumia. Jesus cura-o e nada muda, ele continua afeminado. Todos os presentes não entendem, e Jesus explica: “Gastrite! ”. Todo o texto encaminha para o olhar preconceituoso do expectador, mas o fogo que o consumia era gastrite e não o que o público pensa. Este vídeo é um exemplo de manifestação humorística em um contexto social-político-religioso a partir de um fato específico. Expõe-se a discussão acerca de um projeto de lei através da figura de Jesus, que não julga uma minoria. Outro esquete nessa mesma ver tente chama-se “Pão Nosso”, onde fiscais da Receita Federalabordam uma padaria, pois ela não paga nenhum tipo de imposto. O dono se justifica dizendo que ali não é uma padaria, mas uma igreja, a “Igreja Universal do Pão em Cristo”, e que as pessoas doam dinheiro em troca de “croasanto”, “pãotecostal”, “pastel de Santa Clara”, “pão do céu”, entre outros quitutes abençoados. Uma crítica à isenção de impostos a entidades religiosas.
Identificada a brecha a partir das ideias propostas por Massimo Cacciari, parto para o filósofo Giorgio Agamben. O autor nos apresenta na obra Signatura Rerum o conceito de assinatura como “a ciência através da qual tudo o que está oculto é descoberto”. (AGAMBEN, 2010, p.43 e 44, tradução nossa). A assinatura é uma marca, um indício, um traço, um sinal que é identificado e se sobressai. Agamben cita uma analogia de Jakob Böhme para elucidar a definição de assinatura:
A assinatura está na essência e é semelhante a um alaúde que permanece silencioso e é mudo e incompreendido, mas se alguém fizer um som, então se escuta [...]Na mente humana a assinatura é artificialmente predisposta como a essência de todo o ser e ao homem sozinho falta o professor que pode executar seu instrumento. (AGAMBEN, 2010, p. 56, tradução nossa)
A assinatura é algo que emerge, que não é visível em um primeiro momento, mas que é identificada através do aprofundamento. Assim como o estudo de um instrumento para a descoberta dos acordes. Vale ressaltar que Agamben, ainda em Signatura Rerum, apresenta a ideia de arqueologia filosófica de Michel Foucault, onde o saber não é linear, fundamentando-se no presente, como os olhos no passado como referência para assim, vislumbrar o futuro. A arqueologia destrói e reconstrói com outro ponto de vista. No caso do Porta dos Fundos, existem duas vertentes de arqueologia: a arché dos grupos de humor com temática cristã, que o precederam e que o inspiraram, estimularam e serviram de referência, e a arché bíblica que vem através dos séculos criando rizomas que sobrevivem e permitem sempre novas releituras e reinterpretações.
Partindo desses princípios, posso concluir que a brecha,preenchida pelo Porta dos Fundos em seus vídeos com temática cristã, é a assinatura do grupo. É na contaminação, na intersecção, que encontramos a assinatura. Assinatura é diferente da intertextualidade. A intertextualidade chega até o ponto onde há o toque dos dois espaços, lugares. A assinatura transcende, aprofunda, comprova o contato e constata o cruzamento deste entrelugar tornando-os visíveis. Identifica a singularidade, um olhar específico, original. A originalidade está nas diferenças, diferente do cânone que é definido por suas semelhanças. As assinaturas são as diferenças que chamam a atenção sem a obviedade. É enxergar nas sombras, ver onde os outros não veem, é o que está por trás (nos fundos). No caso do Porta dos Fundos, a assinatura é a identificação das brechas que, num primeiro momento, não são perceptíveis, que muitos entendem como uma simples piada despropositada, agressiva, blasfematória e de mau gosto. O olhar apurado, a lente de aumento, a visão crítica, o preenchimento dos vazios, as respostas inverossímeis para perguntas concretas, colocam um foco de luz na cena que interessa, na intersecção que se destaca, na ousadia que ultrapassa a soleira da porta, permitindo assim que as coisas aconteçam nesse entrelugar e que a assinatura emerja.
Conclusão
A partir desta investigação, creio poder afirmar que os conceitos de soleira e/ou confim e assinatura contribuíram para que eu encontrasse a metodologia para pesquisar humor e cristianismo. A identificação da brecha e o preenchimento dela, se transformou no caminho a ser trilhado para compreender a forma como se cria o humor e se chega ao riso. Portanto, os extremos do “problema” nós já conhecemos (o cristianismo e o humor), o que interessa agora é o cruzamento entre ambos. Talvez essa brecha seja muito além de um método de pesquisa, mais que um entrelugar para onde siga a verdade do contato, mais que um choque entre ideias divergentes, mas, sobretudo, o ambiente no qual possa se exercitar a tolerância e a libertação criativa para ultrapassar fronteiras, limites, confins, soleiras.
Analisar os vídeos do Porta dos Fundos, sob a perspectiva do preenchimento de brechas, me permite investigar com maior foco e clareza o que cada vídeo se propõe e também, identificar onde os redatores se apegaram para desenvolver cada ideia. Assistir aos esquetes com um novo ponto de vista faz com que a essência de cada ideia emerja em cena e facilite o entendimento para a pesquisa acerca de cada história criada e analisada. O confim, a soleira, a brecha se transformam na metodologia necessária para identificar a assinatura do grupo nos vídeos com temática cristã e assim, tornar a investigação mais direcionada e eficiente. Os conceitos de Cacciari e Agamben atrelados aos roteiros do Porta dos Fundos, despertam em mim um novo olhar, fazendo com que eu possa ultrapassar as minhas fronteiras e perceber o espaço de contato entre mim e minha pesquisa.
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Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum. Traducción Flavia Costa y Mercedes Ruvituso. Barcelona: Editorial Anagrama, 2009.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo. Editora Paulus, 2002.
MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2009.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.
PORTA DOS FUNDOS.Porta dos Fundos. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2013.
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Sites e artigos virtuais
BÍBLIA. Tradução João F. Almeida Atualizada. Disponível em: http://biblia.com. br/joao-ferreira-almeida-atualizada/exodo/ex-capitulo-12/
CACCIARI, Massimo. Nomes de lugar: confim, publicado em Revista de Letras. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/viewFile/56/48, consultado em 26 de agosto de 2015.
JIMENEZ, Keila. Matéria na Folha de São Paulo “Porta dos Fundos chega a Portugal e negocia entrada nos EUA, Inglaterra e América Latina”, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/03/1602218porta-dos-fundos-chega-a-portugal-e-negocia-entrada-nos-eua-inglaterra-e-america-latina.shtml, consultado em 10/08/2015
KIBE LOCO – A verdade é ácida e o kibe é cru: www.kibeloco.com.br
PORTA DOS FUNDOS: www.portadosfundos.com.br
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Vídeos
Deus – Porta dos Fundos, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=t11JYaJcpxg, consultado em 20/08/2015
Bíblia – Porta dos Fundos, disponível em:https://www.youtube.com/ watch?v=wkSIBBAWhWU, consultado em 20/08/2015
Dez Mandamentos – Porta dos Fundos, disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=eLawrQ1KQno, consultado em 20/08/2015
Cura – Porta dos Fundos, disponível em:https://www.youtube.com/ watch?v=bS_ablLRIAA, consultado em 20/08/2015
Pão Nosso – Porta dos Fundos, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=C2xCNlvDA28, consultado em 20/08/2015
Especial de Natal – Porta dos Fundos (00:00 a 02:38), disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=2VEI_tn090c, consultado em 20/08/2015
Porta da Frente: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LfEaq_ XREfg, consultado em 24 de setembro de 2015.
Porta dos Fundos, canal no Youtube: https://www.youtube.com/user/portadosfundos
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Notas
[1] Transcrição livre da primeira cena do vídeo “Especial de Natal” do coletivo de humor da internet Porta dos Fundos, publicado em 23 de dezembro de 2013. O vídeo possui mais de 6 milhões e 800 mil acessos até agosto de 2015. O vídeo está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2VEI_tn090c.
[2] O caráter subversivo, a subversão, é utilizado aqui como o ato de oposição, e especificamente no caso do humor: “O riso vai se insinuar sobre todas as imperfeições humanas”, como nos diz George Minois.
[3] Todos os vídeos do Porta dos Fundos estão disponíveis em www.portadosfundos. com.br ou no canal do grupo no Youtube.
[4] Site Kibe Loco – A verdade é ácida e o kibe é cru: www.kibeloco.com.br
[5] Canal do Crente: Porta da Frente. Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=LfEaq_XREfg
[6] O entendimento de sagrado e profano aqui, se dá através da ideia de Giorgio Agamben, de quea esfera do sagrado – que de algum modo pertence aos deuses – está em contraposição ao mundo meramente humano – o profano.
[7] Assim como a subversão, a transgressão tratada aqui como é oposição, infração, violação de normas.