Um protocolo de leitura bíblica: o códice 2437 - fólio 151 recto
A Biblical Reading Protocol: The Codex 2437 - The Folio 151 Recto

Anderson de Oliveira Lima
Doutor em Literatura pela Mackenzie. Email: anderson.angela.lima@gmail.com
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Resumo


Este artigo propõe um estudo parcial do códice 2437, um manuscrito grego escrito entre os séculos XII e XIII que traz os quatro evangelhos do Novo Testamento canônico. O estudo se concentrará no fólio 151 recto, que traz o começo do capítulo 18 do Evangelho de Lucas e no seu protocolo de leitura, que será reconstruído hipoteticamente por meio de uma detalhada e contemporânea análise literária.

Palavras chave: Interpretação bíblica; Teoria Literária; Códice 2437; Protocolo de leitura; Roger Chartier.

 

Abstract


The concept of narrative identity developed by Paul Ricoeur present the self-configuration that was define by the narratives that were make about the person. This study seeks to understand the narrative identity of Jesus from the perception that the Gospel texts not simply tell the story of Jesus or have a doctrinal treatise about him, but tell stories about him. These stories articulate the elements of history, theology and literature and point to an identity defined from the idea of Messiah.

Keywords: Jesus of Nazareth; Messiah; narrative identity; Paul Ricoeur; Adolphe Gesché.

Introdução

O ano de 2015 nos colocou diante de um novo desafio acadêmico, o estudo de um objeto incomum dentro do estágio pós-doutoral em Ciências da Religião em que ingressamos pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. O objeto ao qual nos referimos é conhecido como códice 2437, um antigo manuscrito escrito em língua grega que hoje é parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e que contém os quatro evangelhos que são os primeiros livros do Novo Testamento bíblico. Acredita-se que o manuscrito foi produzido entre os séculos XII e XIII, o que faz dele o documento escrito mais antigo conhecido em território latino americano (ALAND; ALAND, 2009, p.236-237; SARAIVA, 2011, p. 100-118), o que, por si só, justifica nossa pesquisa.

Para o estudo desse manuscrito escolhemos uma metodologia de análise que une a teoria literária à história do livro e da leitura, adotando parte da obra do historiador francês Roger Chartier como referencial teórico (LIMA, 2015). Há dois conceitos conhecidos, mas definidos por Chartier de um modo peculiar, que nos importam de maneira especial neste empreendimento: são eles os protocolos e as práticas de leitura. No primeiro deles (o único que será desenvolvido neste artigo), faz-se uma análise literária de um texto escrito a fim de identificar nele o conjunto de dispositivos utilizados pelo escritor com a finalidade de controlar a interpretação de seu texto. Para identificar o protocolo de leitura, pressupõe-se que há na mente de todo autor uma leitura ideal de sua obra e que essa leitura pode ser desvendada pelo exame das qualidades coercitivas empregadas para evitar os devaneios dos leitores em seus criativos atos de leitura.

Uma importante contribuição de Roger Chartier à ideia de protocolo de leitura é que ele também reconhece que o autor não e o único produtor do livro que assina. Ele afirma em diferentes trabalhos seus que os leitores não leem os textos que os autores escrevem sem que antes estes passem por diversos processos que os transformam em livros impressos que são, necessariamente, obras coletivas (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 13; CHARTIER, 2006, p. 2; CHARTIER, 2010, p. 40; CHARTIER, 2014, p. 38). A identificação hipotética de um protocolo de leitura, portanto, exige que o crítico considere o produto que de fato o leitor manuseia, levando em conta sua materialidade, o suporte que transmite o conteúdo, os paratextos envolvidos, assim como as convenções sociais que condicionam seus usos:

[...] todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo de leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo que esboça seu leitor ideal [...] É possível, portanto, interrogando de novo os textos e os livros, revelar as leituras que pretendiam produzir [...] (CHARTIER, 2011, p. 20)

Neste artigo, escrito especialmente para este número de TeoLiterária, estamos divulgando uma parte inédita de nossa pesquisa, limitada à análise cuidadosa de uma única página do códice 2437, o fólio 151 recto, que contém o começo do capítulo 18 do Evangelho de Lucas além de algumas intervenções escribais que nos deram condições de recriar, hipotética e parcialmente, o protocolo de leitura implícito no códice.

Especificidades no Estudo do Códice 2437

Um dos maiores interesses de nossa pesquisa está nas delimitações de unidades textuais que são feitas no texto grego do códice 2437. Sabemos que quando os textos bíblicos foram produzidos no primeiro século E.C. a linguagem escrita de que se dispunha não contava com todos os sinais gráficos facilitadores que hoje conhecemos. Isso torna o estudo desses textos antigos sempre mais difícil e nos coloca diante do problema que é a incerteza em relação a todos os sinais que hoje estão presentes no texto, obviamente incluídos em momentos posteriores por pessoas que os utilizaram ao longo da história. Isso, todavia, é apenas uma das peculiaridades das pesquisas que se concentram sobre a literatura bíblica.

A Bíblia toda é uma coleção de livros que foram formados pela justaposição de unidades textuais menores, colhidas da tradição oral e escrita e reunidas por um redator que, de forma imprecisa, é quem ao cabo chamamos de autor. Um dos desafios da interpretação bíblica é, e sempre foi, delimitar essas unidades textuais num texto contínuo, fazer distinção entre textos razoavelmente autônomos para que a leitura, a interpretação e a teologia se pautem em passagens completas e não em aforismos criados por escolhas pessoais e recortes feitos sem critérios. Não por acaso a exegese bíblica costuma ensinar que a interpretação dessa literatura deve começar justamente pela chamada delimitação de perícopes, isto é, pela escolha criteriosa e devidamente justificada de uma unidade textual de sentido completo sobre a qual se possa trabalhar (WEGNER, 1998, p. 84-88; MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 43-54).

Buscando auxiliar o leitor na delimitações das perícopes as Bíblias de hoje apresentam uma segmentação numerada que é aceita quase que universalmente: a que divide os livros bíblicos em capítulos e versículos. Contudo, o códice 2437, escrito entre os séculos XII e XIII, está no meio do caminho entre os autógrafos e nossas Bíblias modernas. Seu texto grego continua precário quando comparado aos nossos hábitos modernos de escrita, mas já notamos nele o uso de alguns recursos que não estão presentes nos manuscritos bíblicos mais antigos. Para começar, o grego desses evangelhos já conta com a maior parte dos sinais que hoje se tornaram comuns à escrita grega, como escreveu Maria Olívia de Quadros Saraiva: “Usam-se sistematicamente os espíritos e os acentos agudo, grave e circunflexo, bem como trema sobre alguns iotas e ípsilons em posição inicial. Usam-se também ponto alto, ponto baixo e vírgula” (SARAIVA, 2003, p. 6).

Uma segmentação universalmente padronizada que enumerava capítulos e versículos inexistia nos séculos XII e XIII,1 mas no códice já há um bom número de divisões que nos dão informações sobre as fases formativas dessa forma segmentada. Caberá a essa pesquisa, portanto, investigar essas marcas individualmente e suas relações, avaliar o tipo de leitura que o livro em si parece sugerir a partir dessas intervenções impostas pelos agentes históricos que leram e copiaram os livros bíblicos definindo, assim, o protocolo de leitura do manuscrito.

As próximas páginas apresentam a imagem original do fólio 151 recto (fornecida pela Fundação Biblioteca Nacional) seguida da edição paleográfica produzida a partir da versão desenvolvida por Maria Olívia de Quadros Saraiva em sua tese doutoral (2011, p. 234-235) e de nossa própria tradução do texto grego para o português, que incluirá a tradicional segmentação em capítulos e versículos para facilitar a localização do leitor. Depois, durante as análises, acrescentaremos observações sobre alguns dos paratextos inclusos.

[Fólio 151 recto: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil]

[Fólio 151 recto: Edição Paleográfica]

O Juiz da Injustiça: A Leitura Idealizada para o Fólio 151 Recto

Para a realização das análises voltaremos a citar nossa tradução do texto gradualmente, conforme se sucedam nossos comentários. E nossas primeiras observações se voltam para o começo do fólio 151 recto que, antes de tudo, traz uma espécie de título:

O título, escrito pelo próprio escriba em letras vermelhas que hoje estão um tanto quanto apagadas, traz a inscrição “evp’ tou/ kritou/ ths/ avdiki,as”, o que traduzimos por “Sobre o Juiz da Injustiça”. Títulos como esse são comuns nos fólios do códice 24372 mas, certamente, nenhum deles estava presente nos autógrafos. São, portanto, acréscimos escribais, evidências de uma longa trajetória de usos e cópias.

A presença dos títulos parece ter a finalidade auxiliar o leitor ao anunciar de maneira resumida e antecipada o conteúdo do texto que a página traz; o leitor poderia localizar mais depressa a passagem que procurava, amenizando a dificuldade natural que lhe é imposta pelo manuseio de um texto corrido como era o daquele grego bíblico. Mas para os interessados no protocolo de leitura do manuscrito, a presença desse tipo intervenção paratextual, acrescidas ao texto bíblico ao longo da história de sua transmissão, possui maiores implicações. Acontece que tais títulos, se não são meros excertos do texto bíblicos, são intepretações dele, resultados de leituras posteriores, intervenções que transformam o texto recebido. Isto é, por meio desses paratextos os escribas e leitores que manuseavam os manuscritos bíblicos passaram a oferecer no próprio livro os resultados de seus atos interpretativos. Consequentemente, cada novo leitor passaria a ser influenciado nalguma medida por essas intervenções que se impunham ao texto bíblico.

Também podemos sempre julgar se os tais títulos transmitem de maneira correta o conteúdo resumido do texto bíblico. Pode acontecer de o título sugerir um acento temático que não corresponda aos objetivos do texto e de seu primeiro autor, mas à criatividade e interesses do leitor/ escriba que, deveras, se tornou um segundo autor ao incluir no livro um título inédito. Neste caso, em vez de ignorar o título acrescido ou trata-lo como inclusão espúria que compromete a originalidade da obra, nossa pesquisa teria que considerar esse título e a leitura que ele sugere como um protocolo de leitura presente no códice. A distinção entre o texto bíblico e o título, ambos colocados no couro do códice pela pena de um mesmo escriba, só é feita de maneira artificial num experimento acadêmico de análise, um procedimento que, se levado muito a sério, nos conduziria a resultados exóticos e demasiadamente hipotéticos que nos afastariam ainda mais das práticas reais de leitura

O título “Sobre o Juiz da Injustiça” é, portanto, parte indissociável do fólio 151 recto, e partindo dessa posição supomos que o leitor idealizado do códice, após decifrar essa primeira forma de comunicação, passaria a esperar pelo texto em que o personagem juiz da injustiça estaria em cena. Entretanto, as primeiras linhas do texto bíblico ainda estão encerrando o conteúdo daquilo que conhecemos como o capítulo 17 do Evangelho de Lucas. Se o leitor já havia lido a página anterior, deveria deixar o anúncio sobre o juiz da injustiça em suspenso até que a unidade narrativa anterior chegasse a termo. Se o leitor viesse diretamente a essa página em busca da narrativa sobre o juiz da injustiça as primeiras linhas tornar-se-iam um empecilho que atrasaria o início da leitura desejada. Imaginando esse processo, o escriba se antecipa e emprega outro mecanismo de localização para solucionar este problema.

Façamos a leitura das primeiras linhas da página:


1 (17.37) E disse a eles: “onde (estiver) o corpo
2 aí serão reunidas as águias”. (18.1) E contava
3 também parábola a eles, sobre o dever de
4 eles sempre orar e
5 não desanimar, (18.2) dizendo: “Certo juiz
6 Havia em uma cidade; a Deus não temia [...]

Nas primeiras duas linhas temos a conclusão de uma unidade narrativa desenvolvida anteriormente. No final da segunda linha começa o que hoje nós identificamos como o capítulo 18 de Lucas, em que o narrador abre uma nova seção que seria dedicada às parábolas de Jesus. Nesta introdução (Lc 18.1) o narrador não apenas anuncia o gênero parabólico que formatará as próximas linhas como já antecipa o tema da primeira parábola, dizendo que é “sobre o dever de eles sempre orar e não desanimar”. A parábola começa de fato no final da linha 5, quando o narrador lucano dá voz ao personagem Jesus, já no começo de Lucas 18.2. Jesus, o protagonista do Evangelho de Lucas, começa sua parábola dizendo: “certo juiz...”. Temos, enfim, o início da parábola sobre o juiz da injustiça, um ponto de partida que nos parece difícil de localizar no texto grego antes de uma leitura mais atenta.

O instrumento localizador que mencionamos há pouco é a letra maiúscula eta (H) escrita com a mesma tinta vermelha que foi usada no título e que está colocada à esquerda do corpo do texto, antes da linha 6, como se pode ver no recorte abaixo:

O uso dessas letras maiúsculas é recorrente em todo o códice 2437 (SARAIVA, 2011, p. 120). Elas são marcas extremamente visíveis, tanto pelo lugar em que estão postas (sempre às margens do texto) e pela cor vermelha com que foram escritas, quanto por serem maiúsculas presentes num códice que, como a grande maioria das cópias bíblicas do século XII, faz uso quase que exclusivamente de minúsculas. Essas maiúsculas sequer correspondem às primeiras letras das palavras, não atendem às nossas expectativas quanto às leis da linguagem escrita, mas desempenham bem o seu papel se o propósito delas for o de sinalizadores. Ou seja, julgamos que tais maiúsculas são utilizadas para chamar a atenção do leitor para algo no ponto em que estão colocadas na página. Diríamos que elas ali estão para marcar algum tipo de divisão interna relativa ao conteúdo do texto grego, o que as torna um importante instrumento visual (e verbal) empregado pelo copista para influenciar a recepção.

O leitor modelo cujo ato de leitura estamos recriando de maneira hipotética, após ler o título “Sobre o Juiz da Injustiça”, poderia se guiar pela maiúscula em destaque e da mesma cor do título para saltar os olhos direto à linha 6, que é a primeira totalmente dedicada à parábola de Jesus em que o tal juiz da injustiça aparece. O sinalizador, todavia, não é exato, já que o verdadeiro início da parábola estava no final da linha anterior. Ainda assim, podemos concluir que o título e a maiúscula, elementos visuais acrescidos ao texto bíblico pelo copista (ou por outros leitores e copistas anteriores cuja obra este reproduziu), tornam a leitura do códice 2437 particular.

A parábola que Jesus conta possui características conhecidas (BERGER, 1998, p. 51-55): ela é breve, narra um acontecimento de caráter único, não costumeiro, e coloca em cena dois personagens cuja relação social é verticalizada (poder/subalterno). O texto vai até o final da linha 16, e diz:

Certo juiz havia em uma cidade; a Deus não temia e não do homem não se envergonha. E (uma) viúva havia também naquela cidade, e ia até ele dizendo: “Faze-me justiça contra meu adversário”. E (ele) não queria durante (um) tempo. Mas depois disso falou para si mesmo: “Mesmo que a Deus não temo e do homem não me envergonho, contudo, por causar para mim incômodo essa viúva, farei justiça a ela, para que vindo a mim no fim não me importune”.

Numa análise rápida vemos que dois personagens são colocados em cena: o tal juiz e uma viúva. Os dois personagens habitam o mesmo cenário urbano (“certa cidade”) mas desempenham papéis temáticos opostos que estão bem definidos na narrativa: o juiz é um aristocrata detentor de autoridade e de cuja função profissional se espera o estabelecimento de justiça em casos específicos. Ele, todavia, é apresentado de modo negativo; o que há de ruim no juiz é a ausência nele de temor a Deus e vergonha dos homens.

Trata-se de um personagem negligente no exercício de seu dever, insensível às necessidades alheias e avesso à religião que, no mundo do texto (obviamente construído a partir do contexto sociocultural do autor), era a principal fonte para o desenvolvimento de comportamentos moralmente aceitáveis. A viúva, por sua vez, é um personagem carente. No mundo bíblico em geral a classe das viúvas se caracteriza por não ter a proteção de um homem, o que naquelas circunstâncias muitas vezes implicava em miséria, já que as mulheres não possuíam independência econômica. Ela ocupa, portanto, um nível desprestigiado dentre as classes sociais da época e, ao lado dos deficientes físicos e dos órfãos, só pode subsistir pelo auxílio de outros.

Apresentados os personagens, vemos que a viúva aparece envolvida nalguma causa não mencionada e, por sua fragilidade, recorre às instituições legais em busca de uma solução justa que certamente a favoreceria. Temos o estereótipo da carência econômica envolvida num conflito de interesses com um adversário que, neste caso, permanece anônimo; e temos um adjuvante capaz de mediar o conflito, capaz de proporcionar à frágil mulher o poder para vencer o embate e conquistar o que desejava. A crise que a narrativa suscita é que ansiamos pela vitória da viúva frente a seu adversário, mas isso depende da atitude de um juiz que, pela descrição dada, tende à inércia, independentemente de seu dever e da injustiça decorrente dessa negligência. Porém, tudo leva a crer que a viúva insistiu até ser atendida. O juiz foi manipulado por um tipo de intimidação; ele não queria ser importunado e, para evitar tal consequência, fez à viúva o que deveria ter feito antes se desempenhasse corretamente sua função, se tivesse vergonha dos homens e temor a Deus. A viúva, por fim, parece ter alcançado a justiça que procurava alcançando seu objetivo e estabelecendo para a história narrada o seu desejado final feliz.

Lembremos que a pequena história da viúva e do juiz foi contada por Jesus, o qual também é um personagem no interior da narrativa lucana. Ou seja, o que acabamos de ler é uma história dentro da história; o narrador do evangelho atribui a criação do conteúdo da parábola a Jesus e, por isso mesmo, não devemos nos esquecer que ao final da parábola há uma conclusão ou aplicação que é oferecida pelo próprio Jesus. O versículo 7 (entre as linhas 18 e 22) diz: “Ora, Deus não faz a justiça aos seus escolhidos, aos que clamam a ele dia e noite, e sendo paciente com eles?”. A ideia é simples: se aquele fictício juiz negligente da história, sem temor a Deus e vergonha dos homens, que não se importava com aquela viúva e sua necessidade, atendeu ao clamor da mulher por conta de sua irritante insistência, não parece óbvio que Deus (personagem perfeito e real no imaginário religioso que está por trás do evangelho como ato comunicativo) também atenderá aos pedidos feitos com insistência por esses sujeitos que ele já demonstrou apreciar (seus escolhidos)?

É verdade que após a pergunta “Ora, Deus não faz a justiça aos seus escolhidos, aos que clamam a ele dia e noite, e sendo paciente com eles?”, o próprio Jesus a responde dizendo: “Digo a vós que fará a justiça para eles em breve”. Antes não consideramos essa resposta porque este parece ser o modo de ler mais próximo ao protocolo de leitura do códice 2437, pelo menos conforme nossa maneira de entender a presença de uma segunda letra maiúscula e vermelha presente no fólio 151 recto. Esta segunda letra maiúscula antecede a linha 22 e parece separar a pergunta do versículo 7 da resposta que está no versículo 8.

A nova maiúscula que antecede a linha 22 é um tau (T), substituído pela letra e em nossa tradução


18 diz o juiz! (18.7) Ora, Deus não faz
19 a justiça aos seus escolhidos,
20 aos que clamam a ele dia
21 e noite, e sendo paciente com
22 Eles? (18.8) Digo a vós que fará a jus-
23 tiça para eles em breve. Contudo, vindo
24 o filho do homem encontrará a fé

Como a anterior, essa nova maiúscula pede a atenção do leitor. O tau é apenas uma consoante das que formam o pronome grego auvtou.s, e não nos parece provável que sua função seja sinalizar exatamente o pronome. Poderíamos supor que a maiúscula em questão visa destacar a próxima frase que naquela linha se inicia, iluminando a afirmação de que Deus fará justiça aos seus escolhidos em breve e, indiretamente, reafirmando o conteúdo da parábola. Porém, nos parece mais sensato entender que, em conjunto com a maiúscula anterior, esta desempenhe especialmente um papel delimitador; o tau, em particular, praticamente torna a afirmação conclusiva (e o que segue) uma nova unidade textual, dando-lhe certa independência em relação ao conteúdo da parábola e gerando uma nova sentença. Na verdade nossa hipótese para a reconstrução do protocolo de leitura do códice para este fólio é a de que o leitor deveria, guiando-se por duas letras maiúsculas e vermelhas postas à margem esquerda, conseguir ler apenas o texto que se refere ao juiz da injustiça, conforme a proposta feita pelo título

Após nossa análise diríamos que a história bíblica original possui seu próprio acento temático; serve como incentivo à oração, como o próprio narrador anunciou entre as linhas 2 e 5: “E contava também parábola a eles, sobre o dever de eles sempre orar e não desanimar”. Daí deveria o escriba ter extraído o título para o cabeçalho. Todavia, quem criou o título optou por um acento figurativo, destacando o personagem juiz e induzindo seu leitor a um caminho interpretativo diferente. Outra crítica relativa ao título incluso pode ser feita pelo fato de que o juiz não age sozinho na narrativa; a viúva (que aliás é o personagem valorizado positivamente) possui tanta importância quanto ele, ou até mais. Por qual motivo a mulher não é mencionada no título? Indo além ainda poderíamos dizer que, mantendo o destaque dado ao juiz, ele deveria ser adjetivado de um modo diferente, ou seja, o chamaríamos de juiz negligente e não juiz da injustiça.

Conclusão

Finalizando, o texto bíblico copiado no códice 2437 não apresentaria qualquer novidade que justificasse seu estudo hoje se nesta análise não estivéssemos empregando um referencial teórico particular, pautado nos trabalhos de um historiador da cultura (Roger Chartier), que nos conduziu à busca de seu protocolo de leitura. Mais importante do que o texto bíblico, neste caso, são as três marcas que foram inclusas na página pelo escriba em letras vermelhas e fora da mancha do texto, marcas que, segundo nossa análise, querem conduzir o leitor à uma produção de sentidos peculiar.

No contato visual do leitor com o fólio 151 recto seu olhar provavelmente será conduzido ao título “Sobre o Juiz da Injustiça”, escrito na parte superior da página com tinta vermelha. O título, como vimos, condiciona a leitura, sugere um caminho interpretativo distinto. A partir desse primeiro contato o leitor, procurando pelo conteúdo anunciado deveria se guiar pelas duas letras maiúsculas que delimitam o conteúdo a ser lido (com alguma imprecisão). Se aceitasse a proposta de leitura que lhe é feita, o leitor deixaria qualquer pretensão à leitura contínua e se submeteria à leitura fragmentária proposta pelo livro, deixando de considerar as primeiras linhas da página que sugerem um acento temático próprio ao texto bíblico, assim como as últimas linhas da conclusão do discurso parabólico de Jesus.

Este é, em resumo, o protocolo de leitura que supomos operar sobre o leitor modelo do século XII ou XIII para que ele opere o uso idealizado para o fólio 151 recto. Como já vimos, este protocolo não é exatamente fiel ao conteúdo bíblico herdado da tradição, nem idêntico aos protocolos de leitura de outras cópias bíblicas. Deveras, o códice é um novo livro e nele as formas dadas, as intervenções do escriba, procuram gerar uma experiência de leitura única.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Jacyntho Lins. O códice 2437 do Novo Testamento grego (evangelho grego da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Ágora – Estudos Clássicos em Debate. Aveiro, v. 4, p. 39-56, 2002.

BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010

______. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

______. (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

______. Materialidad del texto, textualidad del libro. Orbis Tertius, vol. 11, n. 12, p. 1-9, 2006.

CRAIN, Jeanie C. Reading the Bible as literature: an introduction. Malden: Polity Press, 2010.

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LIMA, Anderson de Oliveira. A história da cultura escrita e suas possíveis contribuições à interpretação bíblica contemporânea. Revista de História Comparada (UFRJ), vol. 9, n. 2, 2015, p. 18-35.

MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.

SARAIVA, Maria Olívia de Quadros. O Evangelho de Lucas no manuscrito grego da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (cód. 2437): edição e glossário. Tese (Doutorado em Linguística Teórica e Descritiva) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

______. O Evangelho de Mateus no manuscrito grego da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (folha 24 recto – Mt, 18:32-35; 19:1-5). Scripta Classica On-Line. Literatura, Filosofia e História na Antiguidade. N. 1, 2003. Disponível em:

SARAIVA, Maria Olívia de Quadros; BARBOSA, Tereza Virginia Ribeiro. Manuscrito grego 2437 da Biblioteca Nacional: pesquisas desenvolvidas de 1952 a 2012. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.

Notas

[1] Essa conhecida divisão dos textos bíblicos em capítulos já é bem antiga: foi desenvolvida no século XIII por Stephen Langton, um arcebispo de Cantuária. Depois, na metade do século XV, a Bíblia Hebraica ganhou sua divisão em versos pelas mãos do Rabino Nathan. Ainda mais tarde, o tipógrafo Robert Estienne (ou Stephanus) fez o mesmo com o Novo Testamento, tornando-se o primeiro a imprimir a Bíblia toda com essa forma em meados do século XVI (CRAIN, 2010, p. 4).

[2] Citaremos algumas linhas de Jacyntho Lins Brandão a esse respeito: “Nas margens superior e inferior, em tinta vermelha, o mesmo copista do texto identificou as passagens através de títulos, embora os mesmos não correspondam exatamente à lista de capítulos apresentada nos sumários (kefa,laia) que antecedem os Evangelhos de Marcos, Lucas e João, nem haja títulos em todos os fólios, ainda que vários apresentem dois, um no alto e outro embaixo”. (BRANDÃO, 2002, p. 43)