Resenha

Angelo Vieira da Silva
Mestre em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória – Espírito Santo. Email: revavds@gmail.com.
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De fato, “pelo fascínio ou pelo desprezo, pelo medo, a angústia ou a fobia”, o apocalipse atribuído ao discípulo João é objeto constante de estudos dentro e fora do cristianismo. dentre as muitas teses que brotam a partir do último livro da bíblia cristã, a obra em apreço oferece algo novo na modesta opinião deste leitor, razão pela qual é resenhada.

Autor de muitas obras sobre a tradição cristã, bíblica e monacal, o padre ortodoxo francês Jean-Yves Leloup redigiu o livro. doutor em psicologia, filosofia e teologia, é reconhecido escritor e conferencista (principalmente no continente europeu), atuando como professor em diferentes universidades e institutos de pesquisa em antropologia fundamental na Europa, nos Estados Unidos e na américa do sul.

“O apocalipse de João”, do original francês L’Apocalypse de Jean, é composto por três grandes blocos de proposições: (i) introdução, (ii) tradução e (iii) interpretação e variações sobre o último livro da escritura cristã. aparentemente, leitores cristãos tenderão a identificar tal agrupamento nas perspectivas contextual, exegética e hermenêutica. Em tais blocos, o escritor apresenta a degradação acelerada dos diferentes planos do “real” a partir do apocalipse, em uma espécie de jogo consciente de palavras que se encerra tal como o evento da “grande decepção”, originador de movimentos sabatistas. ademais, salienta-se o anexo “simbolismo de algumas cores e números no apocalipse”.

O primeiro bloco de proposições estrutura a introdução da obra. são oito ao todo. Leloup faz sua leitura da revelação para hoje, longe do medo ou angústia. considerando as revelações do diabólico e do simbólico, firma que o apocalipse é “a revelação de uma saída, o exercício de uma lucidez não desesperada”. Portanto, o último livro da bíblia cristã é como “uma visão filosofal do real”, “o advento ou acontecimento da luz na carne derribada da nossa história (pessoal, coletiva, cósmica) ou ainda o advento ou o acontecimento do sujeito (Eu sou) na carne derribada do nosso ego (pessoal, coletivo, cósmico)”, “o parto do ‘novo’ no corpo dolorido do antigo”.

Leloup ainda expressa a respeito de uma fenomenologia do ‘Espírito’, pois “apocalipse” significa revelação daquilo que está oculto nos fenômenos, nas aparências do que se acreditava ser sólido e real. destarte, apresenta Yohanan (João) como o escritor da revelação, aquele que escreve “a história do combate entre injustiça e justos, entre a inocência e o mal”, estruturando o “pequeno livro” a partir das imagens amontoadas, do sonho que se torna visão, do que vê se tornando palavra.

Daí, o autor dispõe acerca do gênero literário da revelação, do estilo apocalíptico, que retira o véu “dos acontecimentos, dos sonhos, dos encontros, da história pessoal e coletiva”. Há muitas leituras do apocalipse e Leloup apresenta algumas, destacando a dificuldade de muitos estudiosos em conciliar as grandes etapas da história humana no que chama de “cálculos eruditos”. afinal, à medida que o tempo avança é necessário refazer a contagem.

Questões de vocabulário são abordadas na introdução, pois o autor não deseja que a tradução torne-se uma mistura de hebraico, grego e aramaico adaptada ao vernáculo. Leloup não deseja um “midrash”, uma interpretação do apocalipse aos estilos “midrash halakha” (no qual a conduta é definida a partir do texto), “midrashhaggada” (no qual o sentido texto traça o caminho) ou “midrash pesher” (no qual acontecimentos contemporâneos ressoam com o texto). O autor lê a revelação como “um livro de desvelamento, da revelação do homem e do seu mistério em todas as suas dimensões, bestiais e celestes, sombrias e luminosas. trata-se de ler o apocalipse como um sonho significante, no qual todas as personagens de texto fazem parte do próprio sonhador”. desse modo, encerra a introdução aludindo ao “messianismo do instante”.

Leloup oferece sua tradução pessoal do apocalipse no segundo bloco de proposições. versículo a versículo, transcreve o texto da revelação com notas laterais para outras referências bíblicas. Lendo-se a versão do autor, algumas expressões renderão certo interesse, tais como “aquele que é o ser que Ele é” (YHWH), “próximo é o instante” (Kairós), “Yohanan aos sete invocados que estão na Ásia”, “Eu sou o vivente”, “eu seguro as chaves da morte e do tempo que lá passaremos”, “eles estão à escuta do shatan”, “a nova Yeroushalaim”, “eles não abandonam nem seus homicídios nem sua farmacopeia”, “aquele que tem espírito, que ele interprete o número da besta”, “através da sua medicina foram desviadas todas as nações”, “do seu Enviado (aquele que é inspirado pelo sopro, o Ungido, o cristo)”, “sim, no instante, Eu sou, eu venho! amém, seja, venha, adôn Yeshua!”.

Após uma lista de abreviações dos livros bíblicos utilizados, Leloup abre o terceiro bloco de proposições que expõe a interpretação e variações sobre o último livro do novo testamento cristão, o apocalipse. são dezesseis ao todo, iniciando pelas primeiras revelações até antes das cartas. aqui, o autor reforça que a revelação é “o oposto de uma má notícia ou ao anuncio de uma catástrofe, [pois] é a revelação ou desvelamento de uma Presença que é sujeito dos acontecimentos e das circunstâncias”. Lá, na intitulada “carta aos sete chamados”, conclui-se que em quaisquer lugares “o chamado a ser, a viver, a amar, a conhecer, a fazer apenas um com aquele que faz ser, viver, amar, conhecer”, é mister.

Ao descrever acerca do “lugar” onde aparecem as imagens, Leloup registra como não se pode encontrar o sentido da história na história e, portanto, vê os personagens do apocalipse através de duas colunas (até uma terceira) que se encaram em uma relação óbvia de combate e de oposição, mais do que de diálogo ou dialética:

Leloup questiona: o apocalipse como revelação de um inconsciente? considerando a linguagem do imaginal e a linguagem dos sonhos, reconhece que é preciso se entregar ao exercício da interpretação que é o próprio exercício da liberdade, definindo que é o texto que lê o leitor. Logo, extraindo as consequências práticas quanto à ética e aos comportamentos, para o amplo, o autor fala da experiência do “real”, da provação do nada. afinal, “jamais conhecemos o real, apenas a realidade e as realidades que se manifestam a partir dele... apenas o ser é, o real é fonte de toda realidade”.

Outra parte da terceira proposição é intitulada “Eu sou e seu obstáculo: alguém, satã”. O autor vê “shatan” como a força obscura que impede o indivíduo de tornar-se alguém. apresentando o cordeiro e o dragão com atitudes antagônicas e a perspectiva que o dragão prepara inconscientemente a vitória do cordeiro, estabelece o tópico “amor e vontade de poder; O cordeiro, o dragão”.

com o uso de muitos gráficos, a perversão das faculdades e das qualidades do homem no apocalipse é descrita por Leloup através de um antagonismo entre os “quatro viventes” e os “quatro cavaleiros”, que nomeiam o tópico “a perversão à obra: os quatro viventes, os quatro cavaleiros”. a seguir, o autor aborda “a cólera do cordeiro ou a justiça imanente: ai ai ai, sete shofars, sete taças”, tópico no qual conclui-se que o que existe de “real” no homem não pode ser destruído, pois a “vida” é eterna ou ela não é. tudo pode desmoronar, “apenas morrerão a morte e o medo, sobra daquilo que não existe”.

Os últimos tópicos referem-se “a mulher, a criança, a prostituta”, “a besta”, “a comichão das asas”, “Eis que faço todas as coisas novas”, “as pedras da nova Jerusalém” e “as últimas palavras”. tais visões se sucedem e Leloup as subscreve em termos da “vinda ao mundo de uma nova consciência e de um todo outro amor que não é algo evidente para os poderosos”. daí levanta uma cronologia do primeiro século para situar as diferentes bestas, cabeças e chifres apocalípticos, até as doze palavras/pedras de transfiguração e metamorfose para que Babilônia se torne Jerusalém, aparentemente, em termos de alegoria.

finalmente, deve-se dizer que a obra apresenta interessantes aspectos. novos ou não, ressalta-se a tradução pessoal do apocalipse produzida por Leloup. traduzir o texto bíblico no presente, ao invés de “eu vi” por “eu vejo”, concede a este leitor um olhar realista e distinto da revelação. compactua-se com a descrição dos nomes de pessoas e lugares transliterados do original, dada a nítida intenção de lembrar o contexto histórico, o ambiente e o sentido da língua no período bíblico. O gráfico proposto dos nove “ego eimi” (eu sou) apocalípticos de Yeshua agregam valor à exposição do autor.

Por outro lado, o livro não foi tão claro em algumas inferências. Leloup, por exemplo, criticou o uso simbólico do apocalipse no decurso da história e, adiante, se utilizou do artifício a qual censurou: “vinte séculos mais tarde, o apocalipse de Yohanan ainda nos fala e nos diz que, apesar dos ditadores continuarem presentes, a força, a paciência e a fé no triunfo do humilde amor também continuam presentes”. E mais: situou as bestas, cabeças e chifres em figuras históricas como augusto, tibério, calígula, cláudio, nero, galba, Othon, vitellius, tito e domiciano.

É perceptível a interpretação apocalíptica direcionada para o aspecto social, instrumentalizada pela filosofia e psicologia. Ora, especialista que é, a abordagem de Leloup é mais filosófica do que teológica. O autor cita Hegel, fala de dialética e denomina o autor do apocalipse como filósofo e vidente de Patmos, por exemplo. não que seja um problema, mas é possível que tal tese não atenda aos interesses de um leitor tradicional das escrituras cristãs. concorda-se, todavia, que a linguagem do apocalipse não é psicótica e o livro possui coerência textual.

Em suma, a interpretação de Leloup é bem diferente daquela cristã tradicional. O autor fala em termos de “Este sujeito, na História, tomou o nome e a forma de Yeshua. Um ser histórico encarna ‘aquele que É o ser que Ele É’, ser totalmente ‘assim’ e inteiramente para o outro”. desconsidera o texto, por exemplo, a partir de duas vontades de poder que se afrontam, as forças do bem e as forças do mal, as forças da vida e as forças da morte, o imemorial combate entre a luz e as trevas, entre a carne e o espírito, o que denomina de “dualismo original na fonte de todas as dualidades e todas as guerras”.

Leloup não vê oposição entre YHWH e “shatan”, já que satã é uma de suas criaturas, uma de suas manifestações. Mas, em outro lugar, o chama de força da cegueira, da ilusão ou da mentira que impede o homem de ver deus em tudo e em todos. Ora, se a busca de autor é por “uma saída e um sentido para o absurdo, o mal e o medo”, “uma revelação, um desvelamento, colocar a nu aquilo que está escondido ‘sob’ o véu”, mais uma vez conclui-se que o apocalipse atribuído a João permanece explorável para uma ampla meditação aplicável ao cotidiano de cada leitor.