Atravessando as margens: Uma leitura do conto “A Terceira Margem do Rio” na Perspectiva do Rito de Passagem
Crossing the banks: A reading of the short story “The Third Bank of River” in the Perspective of the Rite of Passage

Welder Lancieri Marchini
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-SP, Bolsista CAPES, email: welder.marchini@gmail.com.
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Resumo
No conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, encontramos a história de um homem que decide viver seus dias numa canoa de pau. Seu filho, numa mistura absorta de encantamento e confusão, o acompanhará, mesmo que de longe, até o momento em que, à beira do rio presencia a passagem do pai à terceira margem, a margem do não-óbvio, do não-dado, a margem que transcende o cotidiano e o rotineiro. O presente trabalho busca fazer uma leitura comparativa entre o conto rosiano e as teorias antropológicas acerca dos ritos de iniciação. Van Gennep serve de base teórica para nossa leitura que entende a literatura como instrumento capaz de retratar os momentos limites da existência humana. O conto fala de uma iniciação pela qual passa todo aquele que busca viver sua vida para além do cotidiano, muitas vezes assumindo características religiosas, perpassando assim por questões tratadas pela religião e pela antropologia e vivenciadas também pela literatura

Palavras chave: “Terceira margem do rio”, Guimarães Rosa, rito de iniciação, religião e literatura.

 

Abstract
In the story by Guimarães Rosa, “The third bank of the river,” we find the story of a man who decides to live his life on a wooden canoe. His son, a rapt mixture of wonder and confusion, follow, even distantly, to the moment that the river witnesses the passing of the father to the third bank, the bank’s non-obvious, non-data, the margin that transcends the everyday and the routine. This study aims to make a comparative reading between Rosa’s story and anthropological theories about the initiation rites. Van Gennep serves as a theoretical basis for our reading to understand literature as an instrument to portray the limits moments of human existence. The tale tells of an initiation through which passes all who seek to live their life beyond the everyday, often assuming religious characteristics, thus permeating by issues addressed by religion and anthropology and also experienced the literature.

Keywords: “Third bank of the river,” Guimarães Rosa, initiation rite, religion and literature.

Introdução

Em seu livro onde descreve os ritos de passagem, o antropólogo Van Gennep descreve os estes ritos como algo inerente às mais variadas sociedades. Assim ele diz que “A vida individual, qualquer que seja o tipo de sociedade, consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra, de uma ocupação a outra” (2013, p. 24). Nessa dinâmica entre ritos e vida cotidiana o ser humano atribui valor às etapas e ritos vividos organizando sua vida a partir das categorias sagrado e profano. Para Van Gennep, os ritos de iniciação atribuem às experiências vividas o aspecto do sagrado (2013, pp. 23-24). Ao atribuir à experiência o aspecto de sagrado, os ritos aproximam o neófito da religião.

Desde já distinguimos o sagrado revelado do sagrado antropológico. Aqui não tratamos do sagrado como revelação. Este é dado pelas divindades que classifica aquilo que dela vem como algo relevante e, consequentemente, aquilo que dela não provêm como algo proibido ou que deve ser evitado ou, simplesmente, que é menos importante. No segundo entendimento do que vem a ser o sagrado, entende-se que ele é construído pelo próprio ser humano. Assim sagrado e profano são categorias que delimitam as situações e ambientes vividos pelo ser humano como atribuídos ou não ao religioso (DURKHEIM, 2003, p. 32).

Sabemos que fazer uma leitura do conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio” a partir dos conceitos dados por Gennep se constitui como um exercício complexo. Isso porque nos deparamos com um texto que traz consigo uma carga de mistério. Como um olhar diante do caleidoscópio que busca ver as mais variadas formas e possibilidades, o mistério é entendido aqui como aquilo que traz em si a dinâmica entre o oculto e o desvendado e por isso chama o leitor a vivenciá-lo em suas infinitas possibilidades. O próprio Guimarães diz: “‘A Terceira Margem do Rio’ veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão ‘de fora’, que instintivamente levantei as mãos para ‘pegá-la’ como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro” (apud. OLIVER, p. 116; cf. GALVÃO, 1978, p. 37). “A terceira margem do rio” traz em si algo de revelado e de religioso e nos dá, pelas palavras de seu autor, a possibilidade de analisarmos seu conto a partir dos parâmetros dos textos religiosos (GALVÃO, 1978, p. 37).

Também podemos dizer que o texto, na perspectiva das próprias palavras de Guimarães Rosa trazidas anteriormente, é trazido para ser experimentado, vivenciado, degustado e não apenas para ser lido como forma de entretenimento. Seria o texto de Guimarães Rosa, normativo? O autor estaria suscitando no leitor uma atitude consequente da leitura de um texto?

Dentre as várias possibilidades de leitura desta obra que transita entre o misterioso e o revelado, nos ocuparemos de perceber como o personagem do filho vive sua relação com o pai, que no decorrer da história faz seu rito de passagem para a terceira margem. Poderia ser “A terceira margem” uma literatura iniciática? Se a analisarmos a partir de suas artimanhas internas, poderíamos dizer que o filho está, a todo momento, passando por um processo de iniciação? Algumas características do texto, se comparadas às descrições que estudos da antropologia fazem dos ritos de iniciação, nos levam a dizer que podemos fazer este paralelo. Num primeiro momento, este artigo se propõe a trazer algumas informações sobre o conto rosiano que acreditamos ser importantes. Depois faremos um paralelo entre o conto e as reflexões da antropologia acerca do rito de passagem.

Sobre o conto

Muitas são as perspectivas sob as quais é possível ler o conto “A terceira margem”. Alguns estudiosos fazem sua leitura a partir da perspectiva da morte (OLIVEIRA, 2009; OLIVER, 2001). Além de uma situação biológica, a morte se apresenta como acontecimento existencial inevitável a qualquer ser humano e o conto rosiano traz alguém que decide passar por esse processo. Outra leitura que se faz do conto rosiano é a das duas margens do rio como sendo a vida visível, terrena, cotidiana. A terceira margem seria aquela que não é vista, que sai do cotidiano, do lógico, é a transcendência diante do dado, do rotineiro. Assim a terceira margem falaria das dimensões da vida humana que não podem ser explicadas aos olhos do pensamento lógico-racional, mas que só poderiam ser vivenciados na perspectiva existencial, não precisando sequer ser explicado.

No enredo do conto, ao ver a iniciativa do pai, também o filho decide passar pela mesma experiência, mas transita entre a coragem e a fraqueza no processo não só de assumir o lugar do pai na canoa, mas de construir sua própria canoa. O pai torna-se o enigma a ser desvendado, o símbolo da morte que sonda a existência e que deve ser assimilada (OLIVER, 2001, pp. 118-119). O raciocínio da premissa acerca da morte em muito nos serve, mas a enxergaremos mais no contexto existencial.

Nas poucas páginas onde se encontra o conto, em nenhum momento o autor fala literalmente de uma terceira margem. O termo é utilizado apenas em seu título. Seria esse um artifício literário para que o leitor se envolva procurando dar resposta a essa questão? Seria a terceira margem uma chave-de-leitura já oferecida pelo autor desde o início da leitura? Walnice Galvão diz que as duas margens são enquanto que a terceira margem é aquilo que não o é (GALVÃO, 1978, p. 37). A terceira margem aponta à negação, ao atemporal, ao descontínuo, inserindo o leitor na vivência de questões humanas mais profundas a partir da ausência que participa da vida. Há por parte do autor uma explícita intenção de que o leitor busque enxergar, no texto, a terceira margem.

O paradigma existencial presente em “A terceira margem do rio” leva o leitor a um conto que fala da vida humana, de seu sentido e seu fim. A literatura, assim como outras formas de arte, se torna lugar privilegiado para que se fale da existência humana por fazer uso da linguagem figurada, metafórica. A linguagem literal, fundada na lógica dos argumentos filosóficos-helenistas ou científico-iluminista, consegue menos interação com o leitor que o metafórico, que dá margem para a contribuição daquele que lendo, participa da obra ou permite que ela incida sobre sua vida1.

O rio se apresenta como cenário principal no conto rosiano. É nele ou ao seu redor que os personagens passam a maior parte do tempo. Logo no início o pai adentra as águas do rio e mesmo o filho, que está sempre fora dele, se coloca sempre às suas margens, tendo-o como cenário referencial para suas ações. Mas o rio é mais que um simples cenário. Mais que literal, ele é simbólico e metafórico. Se o leitor buscar uma leitura do conto de Guimarães Rosa percebendo o rio em seu sentido denotativo não conseguirá compreender o significado da terceira margem, mas apenas da primeira e da segunda (GALVÃO, 978, p. 37). A terceira margem se apresenta conforme os personagens desenvolvem o enredo da história. Ela está mais na atitude dos personagens que no próprio rio.

O conto leva seus personagens como também seu leitor a uma viagem. As viagens são constantes nos vários escritos de Guimarães Rosa. Elas revelam as descobertas dos personagens, seus anseios e entoam o enredo de suas histórias. Na obra de Guimarães Rosa, existir e viajar se confundem (NUNES, 2013, p. 80). Nos livros rosianos, dificilmente os personagens se encontram em ambientes fechados. Eles se encontram caminhando. Ou o cenário caminha à medida que, em muitas situações, oferece elementos importantes para o entendimento da obra.

O livro “Primeiras histórias” é repleto de chegadas e partidas, andanças e peregrinações, mas que trazem consigo um diferencial: não têm um horizonte definido (NUNES, 2013, p. 84). Se em outros contos se caminha para algum lugar, neste conto se navega para a terceira margem, se navega para o nada, para um horizonte indefinido e que, apesar de ser horizonte, não é palpável, previsível e muito menos descrito. Em “A terceira margem do rio” a viagem tem como destino justamente a terceira margem com seus enigmas. Essa viagem é que será encarada pelo pai ao mandar confeccionar para si uma canoa e ir viver no rio. Também será encarada pelo filho, mas não haverá barco nem rio.

As viagens são uma constante na literatura rosiana. A “terceira margem” mostra a viagem do ser humano que pode ser entendida na perspectiva da morte, da vida e seu sentido ou para o encontro consigo mesmo que, no fundo, é sempre um ato solitário que deve ser enfrentado pelo próprio sujeito (OLIVER, 2001, p. 118). A viagem, seja a da morte, seja a do sentido da vida, deve ser enfrentada pelo próprio sujeito. O pai faz uma canoa onde cabe apenas uma pessoa. A viagem é dele e não é possível levar o filho. Se o filho quiser enfrentar a viagem para a terceira margem, que faça sua própria canoa.

Diante do pedido “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” o pai apenas olha, “bota a bênção” e afasta o filho, mandando-o com um gesto para trás (ROSA, 2001, p. 80). Ao não aceitar o filho em sua canoa, onde cabia apenas uma pessoa, o pai parece apontar para o fato de que cada um deve ter sua própria canoa. Na relação entre pai e filho se estabelecerá um processo que culminará num rito de passagem, no momento em que o filho, vendo o pai já velho, se propõe a tomar seu lugar na canoa. E o pai acena como se respondesse afirmativamente. O filho passa por um momento em que, independente de sua decisão, se constituirá como paradigmático em sua existência. Nos parágrafos que se seguem, faremos uma leitura deste momento a partir das reflexões da antropologia acerca dos ritos de passagem.

O conto como rito de passagem

As gerações antigas são responsáveis por fazer com que as novas passem pelos ritos de iniciação ou de passagem. Mas antes, aqueles devem ser iniciados. Ninguém aponta para um caminho que não percorreu. No conto, o primeiro personagem a enfrentar a auto epopeia é o pai. Suas características nos levam a entender as implicações deste rito.

O conto inicia por apresentá-lo como “homem cumpridor, ordeiro, positivo” (ROSA, 2001, p. 79). O pai é o homem da rotina. A descrição apontada pelo próprio conto evita o entendimento da atitude do pai como uma fuga da realidade e refuta a ideia de que seja entendida como uma consequência de uma depressão ou patologia e é reafirmada na parte final do texto onde o filho diz que na casa não se cogitava o pai ser doido ou então todos o eram (ROSA, 2001, p. 84). Não se tratando de um caso patológico, se sobressai a interpretação da busca da terceira margem como processo iniciático, seja para a morte, seja para a vida do sujeito, seja para a vida em sociedade.

Outra característica que faz com que entendamos o conto como a caracterização de um processo iniciático é a solitude pela qual passa o pai. Ele encomenda uma canoa especial, para “caber apenas o remador” (ROSA, 2001, p. 79). Não se trata de um isolamento de alguém que não consegue se relacionar. Ele não é solitário por não se dar com a família. Se trata de um processo que deve ser vivido pela própria pessoa.

Outra característica é que a viagem é sem volta. Diante de algumas escolhas não há volta, principalmente diante daquelas que iniciam e levam o ser humano a um outro estágio ou posto existencial. Um iniciado nunca mais não o será. Há uma mudança ontológica. Quando o pai decide ir para o rio a mãe logo indaga “Cê vai, ocê fique, você nunca volte” (ROSA, 2001, p. 80). E é isso mesmo o que acontece: o pai nunca volta. Mas o conto traz no relato desta viagem sui generis. O filho assim a descreve: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dele não saltar, nunca mais” (ROSA, 2001, p. 80).

A viagem presenta no conto não pode ser entendida, como já afirmamos várias vezes, de forma literal. Conforme nos diz o próprio título, se trata de uma viagem à terceira margem. Mas o que é a terceira margem? Ao narrar a história o filho diz que “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de toda a gente” (ROSA, 2001, p. 80). Por que o filho usaria a palavra verdade? Tendo o autor a característica de pensar cada palavra e tendo a palavra verdade tamanha força semântica, seria inviável pensar o seu emprego como uma coincidência. Seria a terceira margem, expressão não mais utilizada no corpo do texto, uma viagem rumo à verdade? Aqui é importante dizer que não entendermos essa verdade no sentido ontológico ou transcendental, mas existencial ou hermenêutica. A postura do filho é imprescindível, muito mais que a do pai, para entendermos tal busca.

Inspirado na postura do pai, o filho assume seu caminho iniciático. Seguindo seu exemplo o filho decidirá percorrer o mesmo caminho. Mas ao mesmo tempo o caminho é personalizado. Não se trata de percorrer os veios do mesmo rio ou fazer as mesmas coisas que o pai fez. Antes se trata de traçar seu próprio caminho, construir seu próprio barco, assumir sua própria existência. Ao ver o pai construindo sua canoa, o filho diz: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” (ROSA, 2001, p. 80). Tal pedido expressa o desejo de ser iniciado.Diante de tal pedido o pai apenas olha e dá a sua bênção acenando com um gesto mandando o filho para trás (ROSA, 2001, p. 80). A partir deste momento o filho lhe acompanhará, mesmo que de longe, como se fosse um neófito que se prepara para participar de um processo de iniciação. Mas o filho ainda está na primeira margem. Não adentra o rio e não o adentrará até o final do conto. Mas o filho acompanha o pai como aquele que serve aos líderes da comunidade iniciática, levando-o comida e roupa deixando-as à margem do rio para que o pai pegasse, quase que numa postura de oferenda e reverência (ROSA, 2001, p. 81).

Os ritos de passagem, chamados assim por Van Gennep, marcam as grandes passagens da vida humana. São momentos paradigmáticos onde o ser humano assume uma função ou posição existencial. Eles obedecem uma certa estrutura que se universaliza. Entre a situação vivida antes e o novo status assumido após o ritual, o indivíduo enfrenta um período em que fica à margem de sua sociedade uma espécie de purificação ou iluminação. Cria-se do rito de passagem um ser novo, muitas vezes com outro nome e dotado do segredo iniciático (LABURTHETOLRA; WARNIER, 1997, p. 207).

Já os ritos de iniciação se ocupam de inserir o indivíduo ao domínio de um novo conhecimento. Participando de um rito, que geralmente é um momento culminante de um processo, o iniciado passará a fazer parte de um grupo ou status. Em geral eles também obedecem à estrutura vista por Van Gennep: separação – liminaridade – agregação (LABURTHETOLRA; WARNIER, 1997, pp. 207-208).

O pai segue seu caminho e conforme se aproxima da terceira margem suas aparições serão menos constantes. Avistar o pai ao longe, em sua canoa, se torna cada vez menos comum. Permanece a memória do pai. A memória no sentido religioso se torna bem maior que uma mera lembrança. É um reavivamento, um fazer acontecer novamente. O pai é lembrado quando se come uma comida mais gostosa ou nas noites de chuva (ROSA, 2001, p. 83). A memória dos antepassados acontece quando estes não mais se fazem presentes. O pai passa a ser uma recordação, ou ainda, uma abstração e uma imagem. Mais que sua presença física, se tornam vivos seus ensinamentos. O filho ressalta aquilo que aprendeu com o pai: “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”, frase que é sucedida pela observação de que essa informação “não era o certo, exato; mas que era mentira por verdade” (ROSA, 2001, p. 83). Como os textos religiosos que se diferenciam dos jornalísticos, as narrativas sobre o pai são consideradas a partir das impressões do filho e nisto não há demérito, mas intenção. Os fatos são menos importantes que as impressões que deixam nas gerações seguintes. São elas que reavivarão a presença e a história do pai que foi para a terceira margem.

Nos ritos de passagem os participantes se encontram na liminaridade, que segundo Turner, se caracteriza na transição entre aquilo que eram antes dos ritos e a posição que ocuparão depois. Geralmente, neste estado, a pessoa se encontra numa posição de passividade para que sejam modeladas de acordo com sua nova função ou posição (2013, p. 98). O filho pouco ou nada interfere no itinerário percorrido pelo pai. Ele é receptivo às situações trazidas e busca assimilá-las. O filho estaria sendo iniciado. O pai, nessa perspectiva, se constituiria como um líder iniciático que mostrará o caminho ao discípulo.

Em muitos casos aquele que é iniciado assumirá tarefas que lhe exigem um empenho maior e até exclusivo. Assim acontece com o filho. Mesmo não se mostrando capaz de assumir seu lugar na canoa, ele assume a condição de garantir a passagem do pai. Ao longo do conto o processo iniciático faca cada vez mais evidente até chegar ao ponto de o filho assumir que não poderia se casar. Ele é cúmplice do pai nesse processo. Diferente dos outros integrantes de sua família que têm poucos episódios com o pai que não participa do seio familiar e muitas vezes nem é lembrado, o filho é o único que continua a segui-lo de maneira próxima. Ele busca dar continuidade aos feitos do pai, “com as bagagens da vida” (ROSA, 2001, p. 84). Uma das missões do filho, ao assumir seu espaço na canoa, seria garantir a memória do pai.

O processo em que o filho acompanha o pai é longo. Depois de muito tempo acompanhando o pai, visto que já apontava seus primeiros cabelos brancos (ROSA, 2001, p. 84), o filho passa por um momento análogo ao de um rito de passagem. Momento paradigmático é aquele em que o filho propõem ocupar o lugar do pai na canoa. Não se trata de ocupar um lugar junto do pai, mas em ocupar o lugar dele. Seria o momento do filho ocupar seu próprio lugar no mundo? Conta assim o filho:


[...] Só fiz, fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. (Rosa, p. 85, grifo do autor)

Mas diante da primeira situação real e iminente de passar para a terceira margem, o filho esmorece. O rito é o momento auge, ápice, simbólico de todo um processo pelo qual o filho passou. O aceno do pai é a “prova de fogo”, é o gesto que sacramentaria a iniciação do filho estabelecendo-se como um rito. O pedido de ocupar o lugar do pai e não um lugar junto dele mostra que o filho se preparou para passar por tal iniciação. É o discípulo que assegura sua autonomia diante de seu mestre e não mais precisa dele para ditar aquilo que deve ser feito ou não. O filho se mostraria capaz de seguir seu caminho solitário.

O compasso do coração acelerado mostra a importância do momento que antes era possibilidade e agora se concretiza. Para ser iniciado o filho necessitava da aprovação do pai. O aceno do velho pai é tal aprovação. Agora o filho é chamado a ocupar seu lugar no barco, no rio, na vida...

Mas mesmo não se mostrando capaz de assumir o lugar do pai, o filho sai transformado da experiência de iniciação. Aquele que passa por tal experiência não sairá igual. O fracasso diante da iniciação transforma tanto quanto o sucesso. O filho agora será um renegado, não pela família e muito menos pelo pai, mas por si mesmo que se sente um envergonhado por não ter alcançado êxito diante de um longo processo de iniciação.

Em uma síntese sobre a antropologia da religião, Guerriero traz o rito como característica essencial como formas dos membros de um grupo se definirem e se perceberem a si mesmos e comunicar sua existência aos deuses. Além disso os rituais definem as funções e status sociais (2013, pp. 252-253). Socialmente o filho assume, de forma processual, o lugar do pai. Talvez nem tanto na ordem prática no que se refere ao cotidiano familiar, mas assume o lugar do pai no que se refere à sua memória. Ele presa pelo fato de as lembranças do pai não se perderem com sua ausência.

Em “a terceira margem” o rito de passagem não pode ser resumido à ideia de um homem que passa pela puberdade e chega à idade adulta. Ele tem um significado que está na relação do pai com o filho. Ao falar o filho que “(...) apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos” (ROSA, 2001, p. 84) parece dizer de uma fase que não diz respeito ao cronológico. Há uma tentativa da parte do filho de ocupar o lugar do pai, não como um déspota ou um tirano, mas como um neófito que herda a posição do pai na canoa.

Para Roberto da Matta a expectativa do rito de passagem está mais na moldagem e atribuição da identidade, como num ato de nascimento (1973, p. 137) e não necessariamente na passagem da puberdade ou de determinada idade. A circuncisão no judaísmo ou o batismo no cristianismo são exemplos de ritos de iniciação que modificam ontologicamente seus adeptos. Ao ser batizado o cristão, segundo muitas das construções teológicas cristãs, tem apagada a culpa do pecado original. Na cultura popular o batismo recebe a atribuição de livrar o cristão dos males e das doenças. A circuncisão para os judeus marca a entrada a um povo, a eleição de Israel que vai em direção da terra prometida. Como rito, ela não deve ser entendida por seu caráter fisiológico, mas pelo seu significado e alcance social (GENNEP, 2013, p. 75).

Por seu caráter e alcance nas sociedades onde são realizados, mesmo os ritos de puberdade não podem ser entendidos unicamente por seu aspecto fisiológico. Ritos como o do corte do clitóris, a perfuração do hímen ou mesmo a circuncisão têm aspectos sociais e étnicos (GENNEP, 12013, pp. 76-77). No ambiente católico a ordenação dos sacerdotes também é um exemplo de rito de passagem. Aquele que é ordenado passa a pertencer a um novo grupo – neste caso o clero – com funções e identidade bem estabelecidos.

Ao descrever os ritos de iniciação do candomblé de rito nagô, Bastide fala da filha-de-santo que preparará o próprio colar (2001, p. 45). Ao passar pelos ritos de iniciação do Candomblé, a filha-de-santo passará pela lavagem das contas e pela preparação do bori. Feitos os ritos preparatórios, como jogo dos búzios pelo babalaô para conhecer o nome do orixá, passa a candidata pelo banho de ervas. Esses rituais remetem à nova vida que a pessoa assume. Segundo a descrição de Bastide, é “a passagem da vida profana para a vida mística” (2001, p. 48). No conto, os personagens são “convocados” a confeccionar suas próprias canoas.

Para Vallado, também ao tratar de ritos nagôs, o ritual de iniciação se baseia numa tríade que compreende a criação do ser humano por Oxalá, o próprio ser humano criado e a constituição sagrada deste ser humano e seu comprometimento com o divino, que se consolidará no ritual de iniciação (2002, pp. 90-91). Assim o ritual de iniciação é entendido como parte de um processo que permite ao ser humano vislumbrar sua relação com a cosmologia nagô. No conto percebemos que a terceira margem é esse totalmente outro, essa realidade que impele tanto o pai como o filho assumem uma nova cosmologia: a da terceira margem.

Nos ritos chineses a criança é inserida na vida social aos 16 anos. Não mais tutelada pela “Mãe”, ela estará sob o olhar dos deuses em geral. A criança participa de um rito onde passa por uma porta. A porta representa a passagem entre duas fases: a infância e a maturidade. Tendo passado por ela, toda a infância é destruída junto da porta (GENNEP, 2013, pp. 66-67).

Os exemplos dos ritos de passagem presentes nas mais variadas religiões nos auxiliam a perceber que “A terceira margem” traz consigo algumas características que nos permite lê-lo como um retrato literário de um rito de passagem. Mas por outro lado algumas das características do conto rosiano traz consigo características que contradizem os ritos de passagem. Os ritos de passagem têm como característica a agregação. Seu objetivo é introduzir o indivíduo no mundo marcando a inserção na sociedade. Van Gennep retoma de outros autores a expressão “lançar no mundo como um barco na água” (2013, p. 63). O conto rosiano não fala de um rito que dê um novo sentido à vivência em sociedade, mas num rito transgressor do próprio constituir-se da sociedade, evadindo-se dela. Assim o rito da terceira margem se caracteriza como um rito transgressor do mundo da primeira e da segunda margem, e de iniciação à terceira margem.

Outra característica a ser analisada no conto rosiano é a de não proporcionar uma situação que seja irreversível. Para Victor Turner o rito de passagem só tem sentido se modifica o status do indivíduo, sendo irreversível (2013, p. 37) e isso não acontece no conto. O filho não constrói para si uma canoa nem tampouco vai à terceira margem. Para Revière o rito de passagem só tem sentido se muda o status do ser humano (1996, p. 131). Assim, se após passar pelos ritos de passagem ele volta ao status anterior, o rito perde seu sentido e eficácia.

Um rito de passagem, aparentemente frustrado, faz com que o filho diga “Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado” (ROSA, 2001, p. 85). O filho fica nas margens do cotidiano, do rotineiro. É condenado a “ficar calado”, não é digno nem capaz de falar a ninguém sobre o que vivenciou, ou melhor, sobre o que não conseguiu vivenciar. Não alcança a terceira margem. O pai, agora ausente, vira lembrança, vira terceira margem, “longe das beiras” (ROSA, 2001, p. 85) vira um só com o rio. Após o insucesso de seu rito, o filho passa a viver à margem inclusive da sociedade da qual pertencia antes. Diz o filho “Sofri o grave frio dos medos, adoeci” e passa a viver “nos rasos do mundo” (ROSA, 2001, p. 85).

Diferenciando o rito de iniciação do rito de passagem, Rivière ressalta que a iniciação traz consigo muito mais que uma simples transição ou aprendizado. Ele “leva a uma radical transformação pessoal e cultural. Marca uma descontinuidade de estatuto e implica uma divisão do campo social entre não-iniciado, separando pela barreira do segredo e por uma interação sutil de mistificação-estímulo” (1996, p. 139).

Junto dos ritos de iniciação encontramos os ritos de banimento, expulsão e excomunhão, também retratados por Gennep (2013, pp. 104105). Não encontramos características similares a eles em “A terceira margem”. A exclusão ou o banimento acontece como consequência da vontade do filho que não foi capaz de passar pelo rito de passagem nem tampouco se sente confortável na sociedade que deixou como consequência do processo que viveu.

Por outro lado, estaria o filho ainda, como diz Van Gennep, na fase de separação? Se sim, estaria ele numa espécie de roncó, espaço onde ficam os iniciados do candomblé e da umbanda, se preparando, ainda na passividade própria daqueles que são iniciados, para o rito definitivo que acontecerá quando ele tomar a iniciativa de entrar e sua própria canoa.

Considerações finais

Sabemos dos limites de uma pesquisa como esta. Um estudo que aproxime a literatura da religião só se storna possível se tomamos como base o pressuposto que ambas falam das situações vividas pelo ser humano buscando muitas vezes dar sentido à existência ou ao cotidiano. O próprio Guimarães Rosa, como vimos anteriormente, nos abre o pressuposto para uma leitura de “A terceira margem” como um texto religioso, mesmo que não se remeta a uma religião.

Em “A terceira margem”, há uma questão de linguagem que pode apontar para uma abertura à participação do leitor. Em vários momentos da história, o autor usa o pronome “nosso” ou “nossa”. O filho, narrador da história, sempre se refere ao pai como “nosso pai”. O pronome nosso, aqui, se refere aos seus irmãos? Muito improvável, visto que os irmãos não têm uma participação relevante no conto. Esse artifício parece remeter-se ao leitor. Teria o autor a intenção de envolver o leitor no enredo? Se sim, a ideia seria a de que o leitor se inserisse no processo de iniciação tal como o filho? O conto rosiano parece buscar estabelecer um estreito diálogo com o leitor, levando-o também a vivenciar literariamente este rito de passagem.

Bibliografia

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Notas

[1]Também poderíamos ler o conto rosiano na perspectiva da construção de uma postura dogmática. Na leitura do autor uruguaio Juan Luís Segundo, o ser humano traz consigo a característica de construir dogmas. Mais que regras – como costumeiramente são lidos os dogmas do universo religioso –, eles se constituem como atitudes paradigmáticas de um ser que, tendo vivenciado uma situação, estabelece critérios de vida (ver citação de Juan Luis segundo, 2000).