O Romance Caim de José Saramago desde a Teologia Narrativa de Paul Ricoeur
René Dentz*
* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP. Doutorando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte. Contato: dentz@hotmail.com.
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Resumo
A intenção do presente artigo é abordar o pensamento de Paul Ricoeur, filósofo contemporâneo francês, em sua vertente teológica e, a partir de sua proposta de Teologia Narrativa, estabelecer uma hermenêutica da obra Caim, de José Saramago. Embora cientes da advertência elaborada por Ricoeur do cuidado em se estabelecer os limites e aproximações entre a teologia, a filosofia e a literatura, de fato, o nosso pensador sempre recusou a etiqueta de “filósofo cristão”, procurando manter eqüidistante sua confissão de fé e o procedimento filosófico. Do mesmo modo, Saramago se dizia ateu e buscava uma desconstrução profunda da teologia. No entanto, a partir da abertura hermética proposta por Ricoeur em relação à teologia, torna-se possível interpretarmos também a obra de Saramago sob outro prisma, abrindo-lhe também uma possibilidade teológica (original).
Palavras chave:Mundo-da-vida, Narratividade, Historicidade.
Abstract
The present text aims to approach Paul Ricouer’s thought, a contemporary French philosopher, regarding to his theological strand trying to set an interpretation of his literary work called Cain through Ricouer’s proposal of narrative theology. The French philosopher was thoughtful to establish the limits and approaches of theology, philosophy and literature, in spite of the fact that Ricouer sought to keep the distance between his faith and the philosophical procedure. Similarly, Saramago called himself an atheist and sought a profound deconstruction of theology. Although, the hermetic openness proposed by Ricouer turns possible an interpretation of Saramago’s work under a different view which opens up a theological (original) possibility.
Keywords: World of life, Narrativity, Historicity.
Introdução
A intenção do presente artigo é abordar o pensamento de Paul Ricoeur, filósofo contemporâneo francês, em sua vertente teológica e, a partir de sua proposta de Teologia Narrativa, estabelecer uma hermenêutica da obra Caim, de José Saramago. Embora cientes da advertência elaborada por Ricoeur do cuidado em se estabelecer os limites e aproximações entre a teologia, a filosofia e a literatura, de fato, o nosso pensador sempre também recusou a etiqueta de “filósofo cristão”, procurando manter equidistante sua confissão de fé e o procedimento filosófico. Do mesmo modo, Saramago se dizia ateu e buscava uma desconstrução profunda da teologia. No entanto, a partir da abertura hermenêutica proposta por Ricoeur em relação à teologia, torna-se possível interpretarmos também a obra de Saramago sob outro prisma, abrindo-lhe também uma possibilidade teológica (original). Essa abordagem inicial que propomos é corroborada por Amherdt quando afirma em relação à Ricoeur:
Algumas de suas expressões típicas tornaram-se parte integrante do fundo comum da teologia, por exemplo: “o símbolo dá a pensar”, “os mestres da suspeita”, “o conflito das interpretações”, “a segunda ingenuidade”, “o mundo do texto”. Numerosos autores o consideram agora como uma “passagem obrigatória” para a exegese e teologia atuais (AMHERDT, 2006, p.14).
Com isso, é possível lançar luzes sobre a teologia narrativa na concepção de Ricoeur, que mais do que o arcabouço dogmático de sistemas e códigos de referências teológicas com foco estrito no sujeito é, primeiro: a reconstrução da teologia sobre uma base narrativa; e, segundo: um instrumento de mediação que aproxima o sentido religioso do desenvolvimento da história, mediante efemeridade da própria narrativa. De igual modo, a partir da leitura de Caim, é possível desconstruir e reconstruir as narrativas bíblicas do Antigo Testamento. O escritor português se utiliza da intertextualidade com a Bíblia para propor um novo homem a partir de Caim. Fato que havia ocorrido em sua obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991).
Se ao longo de sua obra, Saramago vai diretamente ou indiretamente cutucando o caráter nada santo de Deus por meio de falas de personagens ou revistando episódios bíblicos, se n´O Evangelho Segundo Jesus Cristo, revela um Jesus humano vítima de Deus cruel, se havia revistado antes em vários de seus romances episódios do Velho Testamento, em 2009 publica o romance Caim, no qual um autor ateu e deicida cria um personagem deicida. Se n´O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o autor mata Deus, em Caim, ele vela o cadáver de Deus e depois crema suas cinzas. (FERRAZ, 2011, p. 111).
Ora, num mundo moderno e complexo onde as estruturas se tornam voláteis e passageiras, minimizando a constituição de uma possível identidade para pequenos agrupamentos de vida social, a reflexão pautada por uma teologia narrativa respeita e realça a experiência do sujeito religioso na sua ação ética e na singular percepção da tradição religiosa que lhe é inerente, ajudando-o a se apropriar de sua identidade. Desse realce, decorre a possibilidade de percepção de uma identidade religiosa que, por sua vez, é também uma identidade narrativa. De fato, a perspectiva de uma identidade religiosa, coligada à teologia narrativa favorece o entroncamento ético e político de pessoas e comunidades distintas, segundo a lógica da intersubjetividade que é o processo de constituição da ipseidade do sujeito em total simultaneidade com a constituição da alteridade.
Conceituando a teologia narrativa
Com a finalidade de alcançarmos o objetivo proposto em nossa introdução, cabe-nos agora um debruçar mais específico com vias a uma possível conceituação de teologia narrativa.
De antemão, precisamos afirmar que a base da hermenêutica filosófica de Ricoeur parte da intuição fundamental de que a existência humana é portadora de sentido. Com essa premissa, podemos conceber, de fato, que em todos os campos possíveis da reflexão humana, é possível uma percepção do sentido de ser e de existir no mundo. No campo vasto da teologia, essa busca de sentido também é exequível.
Ora, torna-se tarefa complexa definir de forma clara e evidente o surgimento das primeiras noções de uma teologia narrativa, mesmo porque ela nuca se pretendeu definitiva e fechada dentro de um conjunto sistemático. Nasce, sim, de uma compreensão de que a vida e a história dos seres humanos são histórias narradas. Assim, podemos verificar que a relação entre literatura e teologia torna-se viável em Saramago, sobretudo, a partir do modelo pensado como Teologia Narrativa. Saramago constrói, destrói e reconstrói os personagens bíblicos. Não se trata de uma pura exegese bíblica, mas de um alargamento de horizonte teológico.
Ricoeur (1975) ainda aponta que “os principais recursos da teologia narrativa são as prodigiosas aquisições que podemos constatar no campo da narrativa”, que estão dispostas sob quatro rubricas: 1) Na arte de tecer a intriga; 2) No estatuto epistemológico da inteligibilidade; 3) No papel da tradição; 4) Na “significação de uma narração”. Essa última afirmação ganha mais atenção justamente porque a significação de uma narração decorre da interseção entre o mundo do texto e o mundo do lei tor. É, sobretudo, na recepção do texto pelos leitores que a capacidade de intriga de transfigurar a experiência é atualizada.
Enfim, ao lado de outras teologias, a teologia narrativa sinaliza a possibilidade de criação para a ressignificação de identidade, o relato de histórias e a percepção do outro como outro na perspectiva dialética da ipseidade/alteridade. Essa reconstrução empreendida por Ricoeur na dialética entre ipseidade e alteridade é cruzada e não unilateral.
Inter-subjetividade
“Interssubjetividade”, no pensamento de Ricoeur significa inicialmente que a ideia de sujeito corresponde a um movimento sobre si mesmo, “que percorrendo seus atos, experiências e objetivações, é capaz de se retomar reflexivamente, de se apropriar de sua identidade” (PIVA, 1999, p. 206). Ora, para Ricoeur, o sujeito é sempre um “sujeito capaz”, mas a sua realização somente pode ser alcançada no nível da interssubjetividade e da política. Ricoeur chama essa problemática na sua obra Le Soi-même comme un autre (1990) de ipseidade (ipse), onde seu ponto de partida não é o eu, mas o si.
Entretanto, somente pode ter consciência do si, subjetivamente, para responder “eis-me aqui” se tiver implicações com o “mesmo” que, por sua vez, possui dupla significação com o idem “(uso comparativo do mesmo no sentido de idêntico, semelhante) e de ipse (uso do mesmo para reforçar a expressão si, para indicar que se trata do seu ou da coisa em questão)” (PIVA, 1999, p.208). É nesse ponto que surge a correlação entre idem e ipse que tem o sentido de uma implicação, de uma alteridade constitutiva da própria ipseidade, por intermédio de três dialéticas da hermenêutica do si: “o ‘desvio da reflexão pela análise’ ou dialética da reflexão e da análise, a dialética da ipseidade e da mesmidade e a dialética da ipseidade e da alteridade”. Nessa perspectiva, uma questão decisiva para Ricoeur é a da constituição dialógica, pois, “o si só constitui sua identidade numa estrutura relacional que faz prevalecer a dimensão dialógica sobre a dimensão monológica” (RICOEUR, 1990).
Cabe dizer, ainda que sucintamente, que a interssubjetividade é o processo de constituição da ipseidade ou da identidade pessoal e irrepetível do sujeito em total e irrestrita simultaneidade com a constituição da alteridade. Há aqui uma aplicação mútua entre ipseidade e alteridade.
Ricoeur reconstrói, no nível fenomenológico e ontológico, a dialética entre ipseidade e alteridade do outrem de forma cruzada e não uni-lateral, isto é, cruzando o movimento da ipseidade para a alteridade e o da alteridade para a ipseidade [...]. Esta dialética só pode ser pensada a partir da dialética anterior entre mesmidade e ipseidade, a partir das duas significações do sujeito. Esta nova dialética vai possibilitar uma significação mais rica da identidade do sujeito: a identidade é entendida, ao mesmo tempo, como capacidade de designar-se como sujeito falante até a capacidade de ser responsável moralmente de seus atos, e como identidade dada pela destinação à responsabilidade pelo outro. Pensar a dialética entre ipseidade e alteridade é pensar dialeticamente a destinação à responsabilidade pelo outro e o poder de auto-designação do sujeito (PIVA, 1999, p. 209).
Temos consciência do fato de que demos à interssubjetividade uma atenção sucinta, entretanto voltaremos ao tema quando formos trabalhar a questão das narratividades. De qualquer forma, parece-nos claro que um elemento fundamental que compreende o sentido de ser no mundo, como o é a memória, não pode ser lido ou interpretado numa perspectiva puramente subjetiva, tampouco objetiva, mas, essencialmente, intersubjetiva. Interssubjetividade que podemos perceber nas três principais figuras do romance de Saramago: Eva, Abel e Caim.
Aí está Eva, fundando a filosofia, Eva se tornou como um de nós, já que o texto bíblico informa que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. Eva, o Prometeu de saias hebraico, quer saber porque afinal foram criados. Não conhece o medo, louca pode ser, medrosa nunca. A Adão talvez caiba a fundação da Teologia, ele crê e fé não exige argumentos nem explicações. Não duvida, não raciocina. No diálogo com o anjo, Eva se mostra perspicaz quando pede as frutas. (FERRAZ, 2011, p. 114)
E Caim? Talvez pudéssemos pensar Caim como o representante da Literatura. Caim ultrapassa o tempo, se reinventa, não está preso a mundos abstratos e pré-determinados. Caim escapa a qualquer mimesis. É original, espírito livre, alcançando mundos inimagináveis.
Nessa perspectiva, a dimensão poética da narrativa, que evoca o tempo narrativo, faz com que os episódios históricos se configurem como uma série aberta de acontecimentos, que permite acrescentar ao “então-e-então” um “e assim por diante”.
(...) O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que Abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho Isaac. (SARAMAGO, 2009, p. 79).
Na configuração dessas abordagens do pensamento de Ricoeur fica-nos evidente o fato de que a narrativa de uma história, sem sofrer uma deformação de sua estrutura marcada pela genialidade do ponto final, ainda está em aberto, pois pode ser recriada ou inovada de dentro da circularidade da mimese. De qualquer forma, a solução às aporias apresentadas anteriormente se regula mediante a solução poética da temporalidade.
Mundo do texto e Mundo do leitor
Nesse estágio de nossa argumentação, torna-se crucial iniciarmos a discussão que vai nos ajudar na conceituação de mundo do texto e de mundo do leitor. O conceito de mundo no pensamento de Ricoeur é um conceito caro para a estruturação da constituição da narratividade no tempo. O mundo do texto é “o mundo apresentado pela ficção diante dela mesma, por assim dizer, como o horizonte da experiência possível no qual a obra desloca seus leitores” (RICOEUR, 2006). E por mundo do leitor, Ricoeur entende o mundo efetivo em que a ação real se desvela. Em outras palavras:
É um mundo no sentido em que a ação se produz no meio de circunstâncias que, como o termo sugere, “rodeiam” a ação; ou, para utilizar a expressão de Hannah Arendt, na Condição Humana, a ação passa-se em uma “rede de relações” no meio das quais o agente é desvelado em palavras e ações. É o “desvelamento de que é o atuante”, que implica um mundo como o horizonte das circunstâncias e das interações que constituem a rede próxima de relações de cada agente (RICOEUR, 2006, p. 126).
O que importa de forma mais efetiva para nós é a composição oriunda do entroncamento entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Ora, é preciso sinalizar que essa junção possui características fictícias, mas não irreais. É que ocorre o encontro do si com o outro. Todo texto literário projeta em si o que Ricoeur chama mundo do texto. Esse mundo é um mundo possível, mediado pela ficção. Apesar da perspectiva ficcional, o mundo do texto indica para além de si seu próprio mundo. Ocorre nesse ponto uma primeira mediação, onde o leitor se apropria de algo que não é somente a intenção perdida do autor, mas o próprio mundo do texto diante do texto. Daí, na junção do mundo do texto com o mundo do leitor, abre-se outro mundo, permeado pela ação. Embora a crítica literária faça uma distinção entre o “fora” e o “dentro” do texto, para Ricoeur, essa distinção não dialética entre “dentro” e “fora” não é óbvia.
Caim não sabe onde se encontra, não percebe se o jumento o estará levando por uma das tantas vias do passado ou por algum estreito carreiro do futuro, ou se, simplesmente, vai andando por qualquer outro presente que ainda não se deu a conhecer. (...) Caim passou por aqui, isso sim, é certo. Vai descobri-lo quando de súbito lhe aparecer o que resta da casa arruinada onde em tempos se resguardou da chuva e onde não poderia abrigar-se hoje porque o que ainda havia de teto caiu já, agora não se veem mais que uns troços de muros esboroados que, com a passagem de mais dois ou três invernos, definitivamente se confundirão com o chão onde se erguiam, terra que tornou a terra, pó que tornou ao pó (SARAMAGO, 2009, p. 122-123).
Do cruzamento entre mundo do texto e mundo do leitor decorre a dimensão de mundo-horizonte ou de horizonte do mundo, que nos insere na perspectiva de uma dialética que mantém sempre aberta as possibilidades do encontro do leitor com o seu mundo e os desdobramentos inerentes desse encontro. Ora, pode ocorrer nesse processo de leitura do mundo que o mundo real ou fictício passe a não sê-lo, pois certamente outro mundo já se formou. Sinteticamente, depois da leitura de mundo, o mundo deixa de sê-lo, pois se torna outra coisa. O que ocorre nesse deslocamento é o “refazimento”, que, enfim, confirma, nega ou amplia o mundo horizonte. No intercurso desta aporia que permite sempre a abertura de sentidos, cabe-nos entrar no foco primordial da nossa discussão, e que se estabelece na noção de identidade narrativa. Ela nos ajudará a melhor compreendermos a abertura de sentido no mundo-horizonte, como é possível ilustrar a partir da perspectiva da obra de Saramago.
Sob a ótica saramaguiana Deus não pode ser morto, mas pode-se matar o que ele representa. Saramago com essa afirmação tangencia Nietzsche, proclama o super-homem, mas não matando Deus e sim o reinventando. Então, pela intenção Caim matou a Deus? Agora Caim tem a possibilidade de ver a “verdadeira face de Deus”, ou seja, ele está livre dos dogmas e tradições religiosas podendo, então, fazer uma leitura crítica da divindade. Quando Saramago escreve sobre Caim, ele transforma Caim em um profeta, não um profeta no sentido bíblico, mas sim um profeta “às avessas”. Essa identificação de profeta “às avessas” é utilizada pela maneira que Caim confrontava a figura de Deus no decorrer da narrativa do romance, condenando-o em uma perspectiva humana tencionando colocá-la perante sua “verdadeira face”, demonstrando a incoerência de suas ações (CARVALHO, 2011, p. 38).
Dessa forma, podemos entender o Deus saramaguiano presente em Caim, como a imagem e semelhança de sua criatura, seus defeitos são os mesmos do homem, como entrecruzamento entre mundo do texto e mundo do leitor. O confronto entre Caim e Deus é iniciado no episódio do assassinato de Abel. Caim afirma que matou Abel por não poder matar a Deus!
A questão da identidade narrativa
Toda a discussão sobre a identidade narrativa tem seu surgimento na evocação das teses de Hannah Arendt, que afirmava o fato de que contar história de uma vida diz o “quem” da ação. É com base nessa janela aberta por Arendt que Ricoeur vai adentrar o campo da discussão sobre a identidade narrativa.
Nesse sentido, Caim é o quem, por isso possui uma identidade. Interessante notar aqui que, na perspectiva de Ricoeur, ele seria uma Pessoa, pois está inserido na dimensão do quem e da fala.
Este lugar, apenas para dar um exemplo das dificuldades de orientação que Caim vem enfrentando, tinha todo o aspecto de ser um presente há muito passado, como se o mundo ainda se encontrasse nas últimas fases de construção e tudo tivesse um aspecto provisório. Lá longe, vinda mesmo a propósito, na beirinha do horizonte, distinguia-se uma torre altíssima com a forma de um cone truncado, isto é, uma forma cônica a que tivessem cortado a parte superior ou que ainda lá não tivesse sido colocada. A distância era grande, mas a Caim, que tinha excelente vista, pareceu-lhe que havia gente movendo-se ao redor do edifício. (...) À medida que se aproximava, o rumor das vozes, primeiro tênue, ia crescendo e crescendo até se transformar em perfeita algazarra. Parecem malucos, doidos varridos, pensou Caim. Sim, estavam doidos de desesperação porque falavam e não conseguiam entender-se, como se estivessem surdos e gritassem cada vez mais alto, inutilmente. Falavam línguas diferentes e em alguns caos riam-se e troçavam uns dos outros como se a língua de cada qual fosse mais harmoniosa e mais bela que as dos demais. O curioso do caso, e isto não o sabia Caim, é que nenhuma dessas línguas havia existido antes no mundo, todos os que aqui se encontravam falavam de raiz um só idioma lá na sua terra e compreendiam-se sem a menor dificuldade (grifo meu) (SARAMAGO, 2009, p. 84-85).
A Linguagem é uma condição da Pessoa. Assim, Saramago desconstrói o humano presente no episódio da Torre de Babel. Ali há Deus, não o homem. E Caim, por atestar esse fato, expõe sua humanidade. Na mesma linha de raciocínio, Gentil afirma que a grande conclusão de Temps et Récit se dá no conceito de identidade narrativa, que para ele é a síntese entre conhecimento de si e transformação. Segundo este autor:
A formulação desse conceito nas conclusões de TR permite a Ricoeur retornar à questão básica do cogito na tradição da filosofia reflexiva que constitui uma das raízes de sua filosofia – e propor uma compreensão mais detalhada do modo como esse cogito é “ferido”, inserido no mundo e na história, sujeito de ação, linguagem e valores, sujeito que se transforma ao longo do tempo (GENTIL, 2004, p. 234-235).
Na esteira da identidade narrativa se estabelece também a pergunta pelo ser e pelo sujeito. Como ficou claro na citação de Gentil, as conclusões de Ricoeur percebem um sujeito que vai se transformando paulatinamente na dimensão do tempo. Gentil propõe, assim, como pensar a identidade de um sujeito que age no mundo [...], que muda e permanece o mesmo ao longo do tempo.
Um sujeito que se reconhece e é reconhecido como sendo o mesmo, apesar das transformações de si e do mundo [...], um sujeito que faz uso de uma linguagem, identificando-se através dela e identificando com ela seus sentimentos, desejos e percepções, nomeando-as. Também nomeia esse mundo ao redor de si, este mundo no qual se encontra instalado, estabelecendo relações significativas com ele através da linguagem e da ação, estabelecendo relações significativas também com seus diferentes semelhantes, semelhantes tão diferentes [...]. Um sujeito que tem uma história e que participa de uma história, um sujeito que lembra e que se esquece do seu passado [...] De modo semelhante, também encontra este sujeito inserido numa rede linguística, se assim podemos dizer: faz parte de uma comunidade lingüística, uma comunidade que compartilha uma linguagem, uma linguagem que ele vai usar para nomear e compreender a si mesmo e ao mundo (GENTIL, 2004, p. 235-236).
É nesse mundo de reconhecimento que se dá a construção da identidade, melhor dizendo, a identidade narrativa. Com o conceito de identidade narrativa, Ricoeur procura resolver a aporia do sujeito. Em Temps et Récit, expressa:
Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à questão: Quem fez tal ação? Quem é o seu agente, o seu autor? Essa questão é primeiramente respondida nomeando-se alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Mas qual é o suporte da permanência do nome próprio? Que justifica que se considere o sujeito da ação, assim designado por seu nome, como o mesmo ao longo de toda uma vida, que se estende do nascimento à morte? A resposta só pode ser narrativa (RICOEUR, 1983, p. 421)
Paralelamente, podemos afirmar que Saramago descreve um Caim que vai e volta no tempo, que está inserido na temporalidade e porta sua ambiguidade: apresenta mudança e continuidade.
(...) Sou apenas Caim, aquele que matou o irmão e por esse crime foi julgado, Com bastante benignidade, diga-se de passagem, observou Lilith, Tens razão, seria o último a negá-lo, mas a responsabilidade principal teve-a deus, esse a que chamamos senhor, não estarias aqui se não tivesses matado Abel, pensemos egoisticamente que uma coisa deu para a outra, Vivi o que tinha de viver, matar o meu irmão e dormir contigo na mesma cama são tudo efeitos da mesma causa, Qual, Estarmos nas mãos de deus, ou do destino, que é o seu outro nome, E agora, que tencionas fazer, perguntou Lilith, Depende, Depende de quê, Se alguma vez chego a ser dono da minha própria pessoa, se acabar este passar de um tempo a outro sem que a minha vontade tenha sido para aí chamada, farei aquilo a que costuma chamar-se uma vida normal, como os demais (...) (SARAMAGO, 2009, p. 129-130).
Não podemos deixar de explicitar o fato de que, para Ricoeur, a narrativa no tempo é como uma ponte lançada sobre o espaço que a especulação não cessa de abrir entre o tempo fenomenológico e o tempo cosmológico. Dessa forma, o filósofo francês tem como ponto de partida o contraste entre tempo histórico reinscrito sobre o tempo cósmico e um tempo entregue às variações da ficção. Para resolver esse paradoxo, afirma: “O frágil rebento oriundo da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos chamar de identidade narrativa” (RICOEUR, 1983). Como exemplo, o próprio filósofo define: “A comunidade histórica que se chama o povo judeu tirou sua identidade da recepção mesma dos textos que ela produziu” (RICOEUR, 1983). Mais do que isso, a constituição dos textos e a consequente formulação de identidade se deu também pelo trabalho da memória e a polissemia do símbolo.
Conclusão
A resposta da narrativa se torna basilar, principalmente porque faz surgir o conceito de mundo-horizonte. Ora, a percepção desse mundo horizonte somente é possível mediante o entroncamento entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Assim, a proposta de Saramago de fazer uma abordagem própria da história da salvação se torna pertinente, mesmo em se tratando de um horizonte teológico.
Cabe-nos ainda destacar a crítica que o próprio Ricoeur faz a respeito dos limites da identidade narrativa. Mesmo diante da constatação factível de que, a constituição da identidade narrativa ilustra muito bem o jogo cruzado da história e da narrativa na refiguração do tempo que é ele próprio indissoluvelmente tempo fenomenológico e tempo cosmológico. O primeiro limite refere-se ao fato de a identidade narrativa não é estável e sem falhas. De forma semelhante, a partir da obra de Caim de José Saramago, podemos entender a narrativa bíblica a partir do mais profundo grau de humanidade de Deus, mesmo que, para isso, seja necessário destruir os elementos que o sustentam. Caim é um homem comum, errante: um ser-nu-mundo.
Referências
CARVALHO, Darleyson. Deus em Saramago a partir da leitura do romance Caim. In: Congresso de Teologia da PUC/PR. Curitiba: Champagnat, 2011.
FERRAZ, Salma. Caim decreta a morte de Deus. In: Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, 2012.
GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da Modernidade. Uma aproximação à arte do romance em Temps et Récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 2004.
MENDOZA, Carlos-Álvarez. O Deus Escondido da Pós-Modernidade. São Paulo: É Realizações, 2011.
PIVA, Edgar Antonio. A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur. Belo Horizonte: Revista de Filosofia/ FAJE, v. 26, no. 85, 1999
RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983.
RICOEUR, Paul. A Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Loyola, 2006
RICOEUR, Paul. Le Juste. France: Éditions Esprit, 1995, p. 14.
RICOEUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Seuil, 1975.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Portugal: Res, 1983.
RICOEUR, Paul. O Si-mesmo como um Outro. Campinas/SP: Papirus, 1991.
SARAMAGO, José. Caim. São Paulo: Cia das Letras, 2009.