O ideal de cavalaria medieval d’O Livro da Ordem de Cavalaria, de Raimundo Lúlio, n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
The ideal of chivalry of The Book of The Order of Chivalry, by Raimundo Lúlio, in The Lusiads, by Luís de Camões

Robson Rafael de Oliveira Nascimento
Mestre em Literatura Portuguesa e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). E-mail: rrafaelnascimento77@ gmail.com
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Resumo
Este artigo tem como objetivo mostrar a ressonância do ideal medievo de cavalaria, modelado por Raimundo Lúlio n’O Livro da Ordem de Cavalaria, na epopeia Os Lusíadas, de Luís de Camões. Como essa épica maneirista enaltece, ainda no século XVI, os valores cavaleirescos, através de seus reis e heróis, elogiando as virtudes por eles demonstradas. A épica de Camões, portanto, reverencia, em suas personagens, as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e cardeais (prudência, temperança, justiça e fortaleza), mais especificamente, coragem, honra e palavra empenhada, atributos indispensáveis ao combatente, conforme recomendado por Lúlío em seu Livro, manual com vistas à prescrição do guerreiro ideal. Mostra-se nesse artigo a permanência do pensamento medieval na poética camoniana, que canta a expansão do império lusitano e de sua fé nos territórios alcançados pela colonização portuguesa. Os marinheiros portugueses e outros personagens do poema épico são, deste modo, figurados com as qualidades dos cavaleiros medievais cuja missão é a dedicação à guerra santa moderna contra os inimigos da cristandade.

Palavras chave:Cavaleiro, épica, Os Lusíadas, Literatura Medieval, Ordem.

 

Abstract
This article aims to show the resonance of the medieval ideal of chivalry, modeled by Raimundo Lúlio in the Book of the Order of Chivalry, in the epic The Lusiads of Luís de Camões. This Mannerist epic extols even in the sixteenth century, the knightly values through their kings and heroes, praising the virtues they demonstrated. The epic of Camões, so reveres, in their characters, the Theological virtues (faith, hope and charity) and the Cardinal virtues (prudence, temperance, justice and fortitude), specifically courage, honor and pledged word, attributes indispensable to fighting as recommended by Lúlio in his Book, a manual with a view to prescribing the ideal warrior. This article shows the permanence of medieval thought in the Camonian poetics, which sings the expansion of the Portuguese empire and its faith in the territories reached by Portuguese colonization. Portuguese sailors and other characters from the epic poem are thus figured with the qualities of medieval knights whose mission is the dedication to modern holy war against the enemies of Christianity.

Keywords:Knight, epic, The Lusiads, Medieval Literatur, Order.

Introdução - A luta pela defesa da fé cristã

A epopeia camoniana inaugura boa parte da mitologia que é a base da cultura do povo português. “Reino cristão”, “nação navegante” e o sebastianismo são alguns dos mitos criados ou fixados pel’Os Lusíadas. A obra tornou-se, assim, central nos estudos sobre a história e cultura lusitanas. Os fundamentos de nacionalidade do país foram firmados pelo poema de Camões, que lança os alicerces da identidade portuguesa, conforme o comentário de Eduardo Lourenço:

A sua primeira identidade e matriz quase intemporal da sua futura mitologia, aquela que no século XVI o poema nacional Os Lusíadas fixará, é de “reino cristão” obrigado a definir-se ao mesmo tempo contra o reino vizinho de Leão e Castela e a presença muçulmana que ocupa o futuro espaço português até o Douro. (...) Camões, que conferiu à nova idade de Portugal a sua máxima expressão simbólica e épica, conhecedor desses “dois Portugais”, falou da “alma (portuguesa) pelo mundo repartida”. (...) O sebastianismo é apenas a forma popular desta crença de uma vinda do Rei vencido. O verdadeiro Sebastião é o texto d’Os Lusíadas, que, desde então – embora só o Romantismo lhe conferisse este estatuto – se converteu na referência mítica por excelência portuguesa (LOURENÇO, 1999, p. 90, 94, 97).

E é precisamente a referência mítica de “reino cristão” que foi arraigada pelo sentimento belicoso de luta contra os mouros. A obra será caracterizada principalmente pelo combate contra os inimigos da cristandade, personificado no árabe, que dará a’Os Lusíadas o tom cavaleiresco notabilizado na Idade Média.

Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, narram as aventuras marítimas de Vasco da Gama, navegante português, e a sua tripulação. Eles dispõem-se na perigosa empreitada além-mar para conquistar novos territórios e riquezas em nome de sua pátria, além de objetivo da expansão da fé cristã. Com heroísmo mitológico, esses nautas embrenham-se nos oceanos a fim de levar a todo o mundo o domínio lusitano:


As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram (CAMÕES, 1980, I, 1).

No poema de Camões há o engrandecimento dos empreendimentos marítimos que marcaram a Idade Moderna na Europa. Teófilo Braga lê na épica lusitana um símbolo daquele tempo, elegendo-a como representante do orgulho europeu de ter alcançado os mais longínquos territórios pelo mundo. Para ele, Camões é “o creador da epopea da civilisação moderna (BRAGA, 1873, p. 65) e “é o poeta da Europa moderna, da Europa cosmopolita, pacífica e científica que começa no séc. XVI” (BRAGA, 1884, p. 18). O estudioso ainda afirma que “o poema de Camões, além da relação íntima com a Nacionalidade portugueza é tambem um monumento europeu, que está ligado a esta phase nova da Civilisação e da consciencia moderna” (BRAGA, 1891, p. 62). O autor ainda afirma que “As Navegações dos Portuguezes e a Renascença do seculo XVI, terminam a Edade Média, e abrem a Éra dos Descobrimentos como o início do mundo moderno: Camões fez nos Lusiadas essa synthese nacional e universalista” (BRAGA, 1911, p. 336).

O cunho cavalheiresco medieval, no entanto, é evidenciado em toda a narrativa camoniana mostrando a retomada daqueles valores. Permanece n’Os Lusíadas a ideologia de uma universalização da fé cristã por meio das armas e da conquista, enaltecendo o espírito cruzadista que caracterizou boa parte da Idade Média e foi sistematizado n’O Livro da Ordem da Cavalaria, de Raimundo Lúlio. O Livro constitui-se num manual de conduta visando prescrever a postura correta de um bom cavaleiro.Baseado em Aristóteles em seu Ética a Nicômaco, o escritor tece uma doutrina sobre as virtudes manifestadas através da “justa medida”, ou seja, o equilíbrio perfeito entre o excesso e a falta de conceitos como prudência, fortaleza, temperança e justiça, virtudes cardeais, portanto: “Assim como no meio está a medida da virtude e seu contrário está nos dois extremos, que são vício, assim cavalaria está na idade que convém ao cavaleiro” (LÚLIO, 2000, III, 2).

De caráter essencialmente prescritivo, a obra, elaborada de 1279 a 1289, objetiva ensinar os preceitos da vida cristã àqueles defensores mostrando-lhes que, além das suas qualidades beligerantes de coragem e disposição para a batalha, devem apresentar também as virtudes de um bom cristão pregadas pela Igreja. Defender a fé em Cristo deveria, por conseguinte, ser a sua maior virtude, pois aquele momento da História era caracterizado pela oposição religiosa com os mouros na Europa e em outras partes do mundo. O cavaleiro tinha como obrigação maior pautar-se pelos ensinamentos da Igreja, determinação inquestionável ao homem medieval:

Ofício de cavaleiro é manter e defender a santa fé católica pela qual Deus, o Pai, enviou seu Filho para encarnar na virgem Nossa Senhora Santa Maria, e para a fé ser honrada e multiplicada sofreu neste mundo muitos trabalhos e muitas afrontas e grande morte. Por isso, Deus honrou neste mundo e no outro tais cavaleiros que são mantenedores e defensores do ofício de Deus e da fé pela qual nos havemos de salvar (LÚLIO, 2000, II, 2).

Os portugueses, por sua vez, na narrativa de Camões, são elevados à categoria de heróis cristãos capazes das maiores façanhas. Feitos que eternizaram-nos como “poucos quanto fortes” (CAMÕES, 1980, VII, 3) e como vencedores sobre as forças da Natureza: “Ó gente forte e de altos pensamentos,/ Que também dela hão medo os Elementos!” (CAMÕES, 1980, II, 48). E, no processo, demonstram as obrigações requeridas do cavaleiro de Lúlio, uma vez que este também tem a missão de defender a fé cristã por meio da espada. O cavaleiro precisa, segundo Lúlio, entregar a sua vida em prol da luta pelo cristianismo, ideologicamente e por meio das armas, assim como os marinheiros de Camões que, por meio de muitas intempéries marítimas, se esmeraram em dilatar “a Fé e o Império”. N’O Livro de Lúlio, cumpre ao cavaleiro estar condizente com a missão que lhe foi confiada de proteger a fé cristã, primeiramente em seu procedimento pessoal e depois os da mesma fé em sua comunidade:

Assim o Deus da glória elegeu cavaleiros que por força das armas vençam e submetam os infiéis que cada dia pugnam em destruir a Santa Igreja. Por isso, Deus honrou neste mundo e no outro tais cavaleiros que são mantenedores e defensores do ofício de Deus e da fé pela qual nos havemos de salvar (LÚLIO, 2000, II, 2).

A cavalaria tinha como função principal defender, por força belicosa, o mundo cristão de possíveis ataques de mouros. A Idade Média caracterizou-se por grandiosos conflitos entre cristãos e muçulmanos por posse de grandes territórios e pela cidade de Jerusalém, sagrada para as duas religiões. No tempo da escrita d’O Livro, em 1279, as Cruzadas já haviam acabado, porém, era conveniente propagar ideais de guerra pelo cristianismo, pois o projeto de dominação da Cidade Santa ainda era cogitado. Sendo assim, surgiu a idealização do guerreiro como forma de fazer retornar o desejo de luta pela fé cristã. Elabora-se um novo ícone a ser imitado pela população cuja posição devesse ser cobiçada e prestigiada por todos.

Sobre a função dos cavaleiros de defesa do cristianismo temos exemplos em lendas elaboradas há alguns séculos. A Demanda do Santo Graal narra as aventuras dos fabulosos cavaleiros liderados pelo rei Artur, na busca do cálice que teria contido o sangue de Jesus Cristo. Os guerreiros cristãos caracterizam-se pela grande disposição no cumprimento do dever dando suas vidas e, acima de tudo, demonstrando grande fé e abnegação no processo. Sua missão de resgatar o cálice sagrado era a demonstração, acima de tudo, de seu compromisso com Deus:

34. Como o homem velho disse que nenhum levasse consigo amiga na demanda. (...) - Cavaleiros da távola redonda, ouvi. Vós jurastes a demanda do santo Graal. E Nascião, o ermitão, vos manda dizer por mim que nenhum cavaleiro desta demanda leve consigo mulher nem donzela, senão fará pecado mortal. E não seja tal que nela entre, se não for bem confessado, porque em tão alto serviço de Deus como este, não deve entrar se não for bem confessado e bem comungado e limpo e purificado de todos os danos e de pecado mortal; porque esta demanda não é de tais obras, antes é demanda dos segredos e das coisas escondidas de Nosso Senhor, que fará ver conhecidamente ao bem-aventurado cavaleiro que ele escolheu para seu servo entre todos os cavaleiros terrenos, (...)Então se afastaram do paço e foram pela vila, mas nunca vistes tão grande lamentação como faziam os cavaleiros de Camalote e a outra gente que ficava. Mas os que haviam de ir não mostravam nenhum sinal de tristeza, antes vos pareceria, se os vísseis, que iam muito felizes e muito alegres, e, sem dúvida, assim era (A DEMANDA DO SANTO GRAAL, 2008, p. 35, 39).

Os cavaleiros do rei Artur deviam, na narrativa lendária, despojar-se de tudo que podia constituir-se em embaraço à missão para cumprir seus ofícios jurados a Deus. Nem mesmo suas esposas podiam acompanhá-los na demanda que era, principalmente, a realização da vontade divina e a prova de sua fidelidade à fé de Cristo. A execução do “alto serviço de Deus” era o que importava como “servos entre todos os cavaleiros terrenos”. Outra prova do valor e função dos cavaleiros no contexto medieval está na Divina Comédia, de Dante Alighieri. Um lugar reservado no paraíso é dado a esses combatentes da fé em Cristo que cumprem com êxito a sua incumbência:


Segui na guerra Imperador Conrado,
Que me armou cavaleiro na milícia,
Altos feitos me tendo assinalado.
Com ele pelejei contra a nequícia
Do infiel, que o direito vosso oprime
De culpado pastor pela malícia (ALIGHIERI, 2003, p. 640).

Na seção em que figuram os bem-aventurados de Dante estão também os cavaleiros que deram a sua vida no combate contra os mouros nas Cruzadas. Na quinta esfera, convenientemente chamada de “Marte”, de nove criadas pelo poeta italiano, estão as almas que se esmeraram na luta contra os assim eleitos inimigos da fé cristã. Eles receberam o prêmio da salvação por lhes ser enaltecida a coragem e a disposição no exercício da guerra.

Ainda, no Alto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, os cavaleiros também são considerados bem-aventurados por guerrear em nome de Deus:


ANJO - Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Santa Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal (VICENTE, 1983, p. 19).

A narrativa se inicia em um porto, cujos mortos embarcarão para serem levados aos seus destinos finais conforme seus comportamentos em vida. Eles são julgados para embarcarem rumo ao inferno ou ao paraíso de acordo com as suas ações. Dos que são submetidos ao julgamento somente quatro cavaleiros defensores da cristandade ganham o direito de comporem a tripulação que vai para o céu. Eles sobem na Barca da Glória e vão ditosos à sua recompensa por se esforçarem na luta pelo cristianismo.

Outra figura considerável representa o ideal de cavalaria no que diz respeito à defesa da fé cristã: o português Nun’Álvares Pereira, que também será destacado n’Os Lusíadas como verdadeiro cavaleiro. De ascendência nobre, já começa a ser relatado na Coronica do Condestabre [sic] (1373) desde os 13 anos, quando é associado ao casto e santo Galaaz, o cavaleiro lendário d’A Demanda do Santo Graal. No referido documento, Nun’Alvares e retratado como possuidor das virtudes do cavaleiro ideal, a semelhança de Marechal, e as recomendadas pelo Livro da Ordem da Cavalaria de Lúlio, inclusive fidelidade ao cristianismo. A Coronica retrata o desprendimento com que Nun’Álvares servia à Igreja, função que cabe ao cavaleiro segundo o manual de Lúlio:

A prática constante do culto é outro elemento retomado na peroração: ouvia duas missas por dia e três aos sábados e domingos; confessava-se amiudemente e comungava quatro vezes ao ano, no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e em Santa Maria de Agosto. Além do mais, edificou e reformou igrejas, capelas e mosteiros quase sempre em honra de Santa Maria, dentre “outras muytas obras meritorias” que realizou. (...) Caridoso, dava o dízimo de todas as suas rendas “por amor de Deos a pobres”; a estes, dava ainda vestimentas periodicamente, bem como a cavaleiros e escudeiros e outras pessoas honradas (MALEVAL, 2012. p. 12).

A função principal do cavaleiro, portanto, era combater os considerados inimigos de Deus tais como mouros e pagãos, ideologicamente e com a força das armas. O combatente devia estar à altura da missão confiada pela cavalaria e, acima de tudo, obedecer a Deus como princípio maior sob pena de ser considerado inimigo da Ordem:

Porque quanto mais nobres princípios tens, mais obrigado a ser bom e agradar a Deus é às gentes; e se és vil, tu serás o maior inimigo de cavalaria e mais contrário a seus princípios e sua honra (LÚLIO, 2000, II, p. 2).

Tem-se, por fim, que o valor primeiro do cavaleiro sistematizado por Lúlio n’O Livro é a fé em Cristo e a luta pela sua manutenção, independente do que isto possa causar ou que sacrifício requeira para ser cumprido. Era mister que o cavaleiro zelasse para que o cristianismo fosse estabelecido, mesmo que isto custasse a perda maior que é da sua própria vida. E, destarte, essa ideologia se reduplica na épica que é, no falar de Eduardo Lourenço (1999, p. 97), “referência mítica por excelência da cultura portuguesa”: Os Lusíadas.

Segundo Antônio José Saraiva, na sua Introdução a’Os Lusíadas, há, na épica, um ideário nacional, humanista e religioso: “N’Os Lusíadas confluem e combinam-se três correntes distintas de ideias: [um] ideário nacional, um ideário religioso e um humanístico”. (CAMÕES, 1978, p. 9). É precisamente esse ideal religioso que revelará o propósito de expandir e defender o cristianismo pelo mundo através das armas, intento que se verifica n´O Livro da Ordem da Cavalaria de Lúlio. Os combatentes deverão, assim, colocar como sua missão primeira proteger e propagar a religião de Cristo.

Mesmo que haja uma “fábula de Deoses”, conforme dito do inquisidor Bertolameu Ferreira, na obra de Camões, predomina na epopeia o desejo de ver estendida a fé cristã pelo globo, algo mostrado já na segunda estrofe do poema: “Daqueles reis que foram dilatando/ A Fé, o Império e as terras viciosas” (CAMÕES, 1980, I, 2). Volta-se, desse modo, ao ideal das Cruzadas, de reunir o mundo sob a religião cristã.

A missão dos portugueses n’Os Lusíadas consistia principalmente em descobrir novas rotas comerciais, mais seguras e rentáveis, mas, também, de levar a sua religião aos territórios alcançados. Crê-se numa responsabilidade de evangelização mundial e tal assertiva é notável no termo “barões assinalados”, já no primeiro verso do poema. Os portugueses são escolhidos (assinalados) por Deus para levar a sua palavra aos confins da terra:

(...) assinalados por Deus, que aponta para o mito do povo eleito. Deus elegeu os portugueses para fazer a travessia e encontrar a terra prometida, como na Bíblia elegera os hebreus. A Bíblia, sendo a história do povo hebreu, dá-se como história da humanidade, através desse mito. E Os Lusíadas, pelo mesmo caminho, transformam a história do povo português em história da humanidade, dando-lhe um conteúdo universal, como quer a ideologia expansionista (ALMEIDA, 1980, p. 96).

A autora propõe também que a eleição dos portugueses se deve à sua pequenez como nação, mas fortes quanto às dificuldades enfrentadas. Os lusitanos são eleitos por Deus porque, segundo o poeta, são humildes e reverentes a ele:


Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! (CAMÕES, 1980, VII, 3).

Somente Portugal seria capaz de ser a nação messiânica e cavaleiresca, pois estava focada humilde e servilmente no projeto de expansão da fé cristã. O poeta Fernando Pessoa reproduzirá, quatro séculos depois, o mito desse messianismo português em Mensagem, no qual elabora um Quinto Império, momento em que apocalipticamente Portugal ressurgirá com todo o seu esplendor, pois atualmente a sua glória estaria “encoberta”. Desse modo, fica claro que Camões imprime em sua obra um espírito cruzadista cujo objetivo é submeter o mundo à égide do cristianismo. Por meio da espada ou da pregação, Os Lusíadas cantam a expansão da dessa fé e conclamam a fazê-lo: “Conheça, pelas armas, quanto excede/ A lei de Cristo à lei de Mafamede.” (CAMÕES, IV, 48). Ainda que o seu maravilhoso seja protagonizado por deuses pagãos, Camões deseja que o mundo conheça e se curve diante de Cristo e de seus mandamentos, propósito final dos cavaleiros de Lúlio: “Ao cavaleiro é dada a espada, (...) assim o cavaleiro deve vencer e destruir os inimigos da cruz com a espada” (LÚLIO, 2000, V, 2).

Coragem

Disposição para o combate com coragem devia ser algo inerente ao cavaleiro. A bravura foi estimulada pel’O Livro da Ordem da Cavalaria para incutir nos guerreiros gana para a defesa da fé cristã, do seu senhor e da comunidade:

Assim como cavaleiro sem cavalo não se convém com o oficio de cavalaria, assim escudeiro sem nobreza de coragem não se convém com ordem de cavalaria; porque nobreza de coragem foi o começo da cavalaria e vileza de coragem é a destruição da ordem de cavaleiro (LÚLIO, 2000, III, 3).

Os cavaleiros são percebidos pela coragem no exercício de sua função. E tal conceito vem do ideal de combatividade cultivado desde sempre na história da humanidade. Os exércitos e milícias constituídos ao longo dos tempos são compostos de comandantes e soldados que vão para as batalhas não se importando com a possível perda da sua vida. O transcurso da existência humana é marcado por inúmeras guerras e, para que aconteçam, um dos fatores essenciais é a firme prontidão do soldado para a luta. Fato, portanto, que confere glória e louvor para o guerreiro mesmo que tombe em batalha. Enaltecer o combatente que dá a sua vida pela pátria, família ou povo pertence a todas as culturas:

Todas as civilizações praticaram a guerra, e a praticam ainda, e quase todas têm o guerreiro como máximo herói, geralmente no topo das classes sociais e dirigentes. É tido como uma mostra, ou um ícone, da questão de sobrevivência, pela necessidade de usar armas para defender o grupo, a cultura, a civilização ou o império (LUPI, 2010, p. 127).

Desse modo, O Livro da Ordem da Cavalaria recomenda que o guerreiro seja corajoso no cumprimento do seu dever, rechaçando toda a covardia, pois tal defeito vai de encontro à própria natureza do serviço que é de defender os seus senhores, a comunidade e o mais pobre e fraco:

Traidores, ladrões, salteadores devem estar sob o encalço dos cavaleiros, porque assim como o machado é feito para destruir as árvores, assim cavaleiro tem seu oficio para destruir os maus homens” (LÚLIO, 2000, II, 23).

Na simbologia do armamento dos cavaleiros, contida no capítulo V, a maça, arma medieval cujo cabo possuía na extremidade uma bola cravejada de saliências pontiagudas, representa a coragem que o guerreiro da Ordem deve ter:

Maça é dada ao cavaleiro para significar força de coragem; porque assim como a maça é contra todas as armas, e dá e fere de todas as partes, assim a força de coragem defende cavaleiro de todos os vícios e fortifica as virtudes e os bons costumes pelos quais cavaleiro mantém a honra de cavalaria (LÚLIO, 2000, V, 23).

Ainda no referido capítulo, a coragem será ilustrada pela sela do cavalo, a segurança que faz com que ele esteja na frente de batalha, sua função principal:

A sela em que cavalga cavaleiro significa segurança de coragem e carga de cavalaria; porque assim como pela sela cavaleiro está seguro sobre seu cavalo, assim segurança de coragem faz estar de cara o cavaleiro na batalha, pela qual segurança sucede ventura amiga de cavalaria (LÚLIO, 2000, V, 12).

O cavalo também simbolizará a coragem no serviço, pois destaca o cavaleiro entre os demais guerreiros do exército fazendo-o ser visto e temido pelos eventuais inimigos:

Cavalo é dado ao cavaleiro por significação de nobreza de coragem e para que seja mais alto montado a cavalo que outro homem, e que seja visto de longe, e que mais coisas tenha debaixo de si (LÚLIO, 2000, V, 13).

Fica claro, destarte, que a virtude da coragem é cara ao cavaleiro ideal de Lúlio, pois espera-se dele ser desprendido de temores e covardia para que defenda com afinco as pessoas e a fé que jurou proteger.

Os Lusíadas cantam os feitos dos portugueses em terra e mar motivados por essa coragem cavaleiresca. Os lusitanos são destacados por singrar os mais perigosos mares e enfrentar os mais terríveis inimigos porque são, entre outras coisas, corajosos:


Camões quer que os Portugueses se tornem divinos não só pela fortaleza de ânimo, mas pelo exercício das mais altas virtudes. Não só pela coragem física, diante do inimigo
... com forçar o rosto que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro
Pera o pelouro ardente, que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
(VI.98.1-4)
mas pela «lealdade firme e obediência» (V.72) para com o rei. (CAMÕES, 2000, XV).

O trecho supracitado apresenta o marinheiro português como “seguro”, “ledo” (alegre) e “inteiro” diante da letalidade do “pelouro ardente” que é a munição de armas de fogo usada à época que dilacerava os membros do corpo. A coragem é a virtude que faz aqueles homens enfrentarem a maior ameaça para se eternizarem na história. Outra referência à coragem cavaleiresca dos portugueses n’Os Lusíadas está no uso da palavra peito, que está empregada no verso “que eu cante o peito ilustre Lusitano”, logo na terceira estrofe do canto I:

“... o peito ilustre Lusitano”: a palavra peito é empregada pelo Poeta noventa e sete vezes (v. IAVL, s. v.) e em sete sentidos diferentes. (Dicionário dos Lusíadas, por Afrânio Peixoto & Pedro A. Pinto, 1924). Neste lugar está por valor, coragem: o valor, a coragem dos Portugueses; (CAMÕES, 2000, 31).

Ao fim do longo discurso de Vasco da Gama, de glorificação dos feitos dos reis de Portugal pelos tempos, o rei de Melinde enaltece as façanhas dos monarcas lusitanos e seus “sublimes corações”, termo que é lido novamente pelo comentarista Álvaro da Costa Pimpão como coragem (CAMÕES, 2000, p. 255): “Louva o Rei o sublime coração/ Dos Reis em tantas guerras conhecidos;/ Da gente louva a antiga fortaleza,/ A lealdade d’ ânimo e nobreza.” (CAMÕES, 1980, V, 90). A audácia dos marinheiros portugueses será marcada ainda pela travessia do temido Cabo das Tormentas, personificado na epopeia como o titã Adamastor. Os lusitanos atravessaram-no marcando-se como os primeiros com sua grande coragem, a conseguirem passar pelo local. Eles enfrentaram o gigante mitológico superando, assim, grandes heróis do passado clássico:


Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende (CAMÕES, 1980, V, 50).

Cita-se uma vez mais Nun’Álvares Pereira, fidalgo português e grande soldado na defesa da nação. Sua coragem como cavaleiro foi enaltecida na Coronica do Condestabre, que relata a sua vida dando destaque às suas especificidades como cavaleiro elogiável, e também foi cantada n’Os Lusíadas. Na Coronica há relatos de grandes manifestações de bravura, como na luta contra os castelhanos. O cavaleiro notável

lança-se ao mar temerariamente revolto para alcançar uma embarcação maior, objetivando lutar com a frota de Castela; sozinho enfrentara cerca de “duzentos e çinquoenta homens d’armas” dessa frota que cercava Lisboa, sendo apenas posteriormente socorrido pelos seus, que de início se recusavam ao combate por serem inferiores numericamente aos inimigos (MALEVAL, 2014, p. 9).

A épica de Camões louva a virtude da coragem cavaleiresca de Pereira ao destacá-lo na célebre batalha contra os castelhanos em Aljubarrota. O cavaleiro é o comandante das tropas portuguesas que, juntamente com o rei D. João I, o Mestre de Avis, dá a vitória aos lusitanos. A guerra é cantada em longas 34 estrofes e nelas evidencia-se o brio belicoso e desprendido do cavaleiro extraordinário:


Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo lião
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tutuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso; (CAMÕES, 1980, IV, 34).

Conclui-se que digno de referência é a virtude da coragem e que esta é exaltada como traço essencial do caráter do guerreiro, cavaleiro ou marinheiro. Nota-se, portanto, que os valores medievais de coragem e disposição para o combate são a condição para que o soldado seja reverenciado e elogiado na épica quinhentista de Camões.

Honra

Deus tem honrado cavaleiro e o povo tem honrado cavaleiro segundo é recontado neste livro. E cavalaria é honrado ofício e é muito necessário ao regimento do mundo. E por isso, cavaleiro, por todas estas razões e por muitas outras, deve ser honrado pelas gentes (LÚLIO, 2000, VII, 1).

Uns dos valores mais caros para o cavaleiro era a honra. Fazia-se necessário que as pessoas honrassem o cavaleiro e o próprio também zelasse para que sua reputação não fosse manchada, sob pena de ser considerado indigno da Ordem. Honra significa respeito, e este jamais poderia ser perdido pelo membro da cavalaria. As suas escolhas e atitudes dirão se o cavaleiro será honrado ou não. Os desvios de conduta tirarão a honra e a respeitabilidade do cavaleiro que neles incorrer, pois o membro a representa junto ao povo: “A qual nobre coragem é desonrada quando cavaleiro aí mete vis e malvados pensamentos, e enganos e traições, e expulsa de sua coragem os pensamentos nobres que pertencem à nobreza de coragem” (LÚLIO, 2000, VII, 7). O capítulo VII e último d´O Livro, cujo título é “Da Honra que Deve Ser Feita ao Cavaleiro”, trata da responsabilidade de se manter irrepreensível a fama do cavaleiro e de se dar o devido valor a estes combatentes da fé e da ordem medievais. Desse modo, o conjunto de virtudes apresentadas pelo cavaleiro de coragem, justiça, verdade e outras caracterizarão o perfil desejado por Lúlio em seu Livro daquele que deva ser o guerreiro ideal.

A epopeia camoniana sublimará também estas virtudes cavaleirescas através de seus personagens. Os marinheiros portugueses e alguns caracteres d’Os Lusíadas em especial mostrarão a honradez cultuada como virtude na Idade Média e sistematizada n’ O Livro como atributo indispensável ao cavaleiro.

Nun’Álvares Pereira, o comandante lusitano na batalha de Aljubarrota, também ficou notabilizado pela honra na defesa da terra portuguesa. Na Coronica do Condestabre,Pereira é figurado já desde a infância como valente e virtuoso tendo como exemplo o lendário Galaaz:

A vida de Nuno Álvares começa a ser narrada a partir dos seus treze anos, sendo apresentado já no Prólogo como “vallente e muy virtuoso”. Desde jovem assumira por modelo a Galaaz, o melhor e mais puro dos homens do rei Artur, cuja história era sua leitura preferida (MALEVAL, 2012, p. 14).

Ainda na Coronica, Pereira será destacado pelo desejo não de bens e recompensas materiais, mas de reconhecimento e honra:

A sua ambição é mostrada como restrita à busca de notoriedade e honra: “muyto desejava de servir el rey dom Fernando, que o criara, e de seer conhecido e aver nome de boom”. Daí que posteriormente, pela sua lealdade ao Mestre de Avis e à terra portuguesa, recusaria as vantagens que lhe prometia o rei de Castela, mesmo quando a sua própria mãe a este servia de mensageira; ao contrário, acabou por fazê-la aderir à causa do Mestre (MALEVAL, 2012, p. 8).

O fidalgo é enaltecido n’Os Lusíadas como legítimo cavaleiro pois, ao fim da peleja, recusou sistematicamente a ofertas preferindo, antes, ser lembrado e honrado pelos seus sucessos na guerra:

O vencedor Joane esteve os dias Costumados no campo, em grande glória; Com ofertas, despois, e romarias, As graças deu a Quem lhe deu vitória. Mas Nuno, que não quer por outras vias Entre as gentes deixar de si memória Senão por armas sempre soberanas, Pera as terras se passa Transtaganas (CAMÕES, 1980, IV, 45).

A história dos Doze da Inglaterra também é uma referência de Camões ao ideal cavaleiresco de honra. Para entreter os seus companheiros, Fernão Veloso, um dos marinheiros, narra a aventura de onze honrados cavaleiros portugueses que desafiaram doze nobres ingleses por estes ofenderem doze damas da corte bretã. Os cavaleiros puseram-se prontamente ao serviço de defender a honra das damas armando-se e tomando barcos para ir ao encontro dos ofensores. Um, no entanto, toma viagem por terra, o que o faz se atrasar. O grão Magriço, já chega no meio da violenta e desigual peleja contra os doze ingleses insultuosos. Nada, contudo, que tenha esfriado o ânimo dos onze portugueses que começaram o combate em clara desvantagem. Eles lutam e vencem os ingleses que estavam em superioridade numérica no início da luta:

Algum dali tomou perpétuo sono
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo, algum cavalo vai sem dono,
E noutra parte o dono sem cavalo.
Cai a soberba Inglesa de seu trono,
Que dois ou três já fora vão do valo.
Os que de espada vêm fazer batalha,
Mais acham já que arnês, escudo e malha (CAMÕES, 1980, VI, 65).

Mesmo estando em número inferior, os cavaleiros portugueses mantiveram seu código de honra cavaleiresco e entraram numa batalha de resultado favorável difícil. O que se quer exaltar com o episódio é, entre outras coisas, a luta pela honra manchada das damas e o cumprimento pronto do chamado de cavaleiros que eram reconhecidos justamente pelas qualidades na guerra e pelas qualidades de caráter: “Nos Lusitanos vi tanta ousadia,/ Tanto primor e partes tão divinas,/ Que eles sós poderiam, se não erro/ Sustentar vossa parte a fogo e ferro” (CAMÕES, 1980, VI, 48).

Os versos “Os que de espada vêm fazer batalha,/ Mais acham já que arnês, escudo e malha” (CAMÕES, 1980, VI, 65) mostram que há nos cavaleiros portugueses mais dos que armamento e proteção. Existe neles a coragem, o brio e honra que os fazem autênticos e vitoriosos combatentes, conceitos caros à Lúlio expressos n’O Livro da Ordem da Cavalaria.

Palavra empenhada

Valor importantíssimo ao cavaleiro é também o empenho da palavra. É nunca jurar falsamente, antes, dizer somente a verdade, virtude reverenciada nos tempos medievais. O Livro de Lúlio preceitua que o cavaleiro ideal deve se esforçar para manter a verdade sobre todas as coisas. O membro da Ordem devia empregar todos as suas forças para cumprir seus votos diante de Deus, daquela sociedade e de seus companheiros:

É mandamento de lei que o homem não seja perjuro. Logo, se fazer falsamente uma sagração não é a ordem da cavalaria, Deus, que fez o mandamento, e cavalaria, são contrários; e se o são, onde está a honra de cavalaria, e qual coisa é seu ofício? E se Deus e cavalaria são convenientes, convém que jurar falsamente não se dê naqueles que mantêm a cavalaria. E se fazer voto e prometer a Deus e jurar em vão não se dá no cavaleiro, o que é seu e em que está a cavalaria? (LÚLIO, 2000, II, 32).

O pouco zeloso com a verdade não era admitido na Ordem. O cavaleiro precisava andar lado a lado com a retidão na língua para pertencer à instituição:

Orgulhoso escudeiro, mal ensinado, sujo em palavras e em suas vestimentas, com cruel coração, avaro, mentiroso, desleal, preguiçoso, irascível e luxurioso, embriagado, glutão, perjuro, ou que possua outros vícios semelhantes a estes não conveniente à ordem da cavalaria (LÚLIO, 2000, VII, 19).

As transgressões referentes ao mau uso da língua deviam ser todas evitadas pelo cavaleiro ideal de Lúlio. O mesmo tinha como obrigação desviar-se de todo o engano e malícia em sua fala. À medida de seu compromisso com a Ordem deve ser devoção à verdade. Na epopeia de Camões a virtude cavaleiresca do cumprimento da palavra empenhada é reverenciada pela citação da história de Egas Muniz, aio do rei D. Afonso Henriques. No cerco castelhano à cidade de Guimarães, D. Afonso Henriques, ao ver em desvantagem suas tropas e vislumbrando sua derrota, promete ao rei de Leão, D. Afonso VII, entregar-se a ele como vassalo caso a tomada do Condado Portucalense se consumasse. Foi aí que entrou a garantia do cumprimento da promessa pelo cavaleiro Egas Muniz, que fiou a sua vida em troca da palavra de seu rei do qual cuidara desde criança. A batalha se tornou difícil para D. Afonso Henriques, mas este não se entregou à vassalagem ao inimigo conforme o combinado desonrando, portanto, a sua própria palavra. Egas Muniz, ao contrário, cumpre o prometido entregando a si próprio e a sua família para honrar a palavra que empenhou diante do rei D. Afonso VII, de Leão. O cavaleiro dispõe-se a receber o castigo pela falta de compromisso de seu rei com palavra.

O rei de Leão, vendo a disposição e a honradez do aio, resolve comovidamente dar-lhe a liberdade, livrando a ele e a sua família da morte:


Qual diante do algoz o condenado, Que já na vida a morte tem bebido, Põe no cepo a garganta e já entregado Espera pelo golpe tão temido: Tal diante do Príncipe indinado Egas estava, a tudo oferecido. Mas o Rei vendo a estranha lealdade, Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade (CAMÕES, 1980, III, 40).

Tal demonstração de cumprimento da palavra empenhada simbolizou para Camões o ideal cavaleiresco da gente portuguesa, que figura n’Os Lusíadas comparada ou suplantando a outras personagens célebres do passado:


Ó grão fidelidade Portuguesa
De vassalo, que a tanto se obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa
Onde rosto e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa,
Que mil vezes dizendo suspirava
Que mais o seu Zopiro são prezara
Que vinte Babilónias que tomara (CAMÕES, 1980, III, 41).

A disposição para o sacrifício em nome do cumprimento da palavra e da lealdade é o exemplo cavaleiresco representado por Camões em seu poema através de Egas Muniz. Na retomada da narrativa dos reis de Portugal, no canto VIII, quando Paulo da Gama explica as pinturas das bandeiras das naus ao Catual, novamente Egas Muniz torna-se digno de nota, com seu exemplo de abnegação em nome da palavra empenhada: “Egas Moniz se chama o forte velho,/ Pera leais vassalos claro espelho” (CAMÕES, 1980, VII, 13).

É interessante perceber como se contrasta os portugueses, em seu apreço pela verdade, como heróis que são na épica, com as artimanhas dos assim figurados vilões no poema: os mouros e o deus Baco, adversário maior dos lusitanos. Os inimigos se utilizam de vários estratagemas envolvendo engano e malícia para vencer os portugueses. Eles mentem e tentam ludibriar em diversas ocasiões. A começar por Baco que, no episódio da chegada dos lusitanos a Moçambique, inspira um soberano árabe local a enganá-los assumindo a forma humana: “E, por milhor tecer o astuto engano,/ No gesto natural se converteu/ Dum Mouro, em Moçambique conhecido,/ Velho, sábio, e co Xeque mui valido” (CAMÕES, 1980, I, 77). Em Mombaça, o deus do vinho arma mais uma emboscada através da mentira para matar os portugueses sobre a falsa segurança de desembarque na cidade. Ele se transforma num sacerdote cristão para mentir sobre a real situação do local: “Aqui os dous companheiros, conduzidos/ Onde com este engano Baco estava” (CAMÕES, 1980, II, 12). Em Calecute, Baco continua com as suas artimanhas de mentira fingindo-se de Maomé num sonho de um sacerdote muçulmano. Seu intuito era inventar várias mentiras para jogar os nativos e seu soberano contra os portugueses fazendo com que se trave contra eles guerra:

Diversos pareceres e contrários
Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traições, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam;
Mas, deixando conselhos temerários,
Destruição da gente pretendiam,
Por manhas mais sutis e ardis milhores,
Com peitas adquirindo os regedores (CAMÕES, 1980, VIII, 52).

Fato, portanto, que se contrapõe com as virtudes dos portugueses, em especial do capitão Vasco da Gama, que, neste mesmo episódio, consegue convencer o Samorim, governante da cidade, de sua integridade e verdade cavalheiresca, ao ser acusado de pirataria e embusteirice:


Atento estava o Rei na segurança
Com que provava o Gama o que dizia;
Concebe dele certa confiança,
Crédito firme, em quanto proferia;
Pondera das palavras a abastança,
Julga na autoridade grão valia,
Começa de julgar por enganados
Os Catuais corrutos, mal julgados (CAMÕES, 1980, VIII, 75).

A diligência, portanto, com a verdade nas palavras caracterizou o comandante luso e foi enaltecida pelos versos de Camões, virtude cultuada nos tempos medievais e estabelecida como regra de conduta por Lúlio n’O Livro da Ordem da Cavalaria. O cavaleiro, como já foi dito, deve honrar a sua palavra dizendo somente a verdade. Esse combatente deve ser leal aos seus princípios cristãos e jamais se valer de enganos e intrigas, sob pena de ser considerado indigno da Ordem. A palavra de um cavaleiro, precisava ser merecedora de crédito e confiança, o que só é propiciado pela fama do desvio constante da falsidade e perfídia.

Temos, por fim, que Os Lusíadas representam uma época de avanços tecnológicos, compartilhamento cultural e simbolizam as lutas e conquistas não só de Portugal, mas de toda a Europa. E enaltece os homens que se dispuseram a fazê-lo atribuindo-lhes os valores cultivados naquele momento. O poema faz referência ao colonialismo e à ciência empregada no processo, que leva aos territórios ocupados o domínio europeu e sua força. Demonstra, contudo, a permanência de ideais formulados séculos antes da celebração do humanismo e das conquistas científicas propiciadas pela Renascença. A reprodução dos ditames d’O Livro da Ordem da Cavalaria na epopeia de Camões revela a continuidade de valores que são a base da cultura ocidental e expõe as raízes desse pensamento cujos estudos são fundamentais para se entender a historicidade das guerras naquele período.

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