Escatologia, criação literária e profecia: o pensamento religioso de Nicolas Berdiaev no contexto da tradição russa
Eschatology, literary creation and prophecy: the religious thought of Nicolas Berdyaev in the context of Russian tradition

Ramon Maia
Doutorando em Teologia (FAJE). Mestre em Teoria e História Literária (Unicamp). Bacharel em Filosofia (UFMG). Email: maiaramon@gmail.com.
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Resumo
Neste ensaio, pretendemos mostrar as linhas fundamentos do pensamento religioso de Nicolas Berdiaev. Para ele, a filosofia da história só pode ser compreendida como uma metafísica religiosa que é composta por uma filosofia do tempo e uma escatologia ativa cristã. Há uma maneira passiva, mas, também, uma maneira ativa para se compreender o Apocalipse. Através da última maneira, nós, seres humanos, nos concebemos como cooperadores de Deus, pois o mundo se encontra em estado de inacabamento. Finalizar esta obra divino-humana significa dissolver o mundo em êxtase criador. Nesta tarefa, Berdiaev faz o elogio do profeta que anuncia um outro mundo, um mundo por vir. O poeta estaria na esteira do profetismo, pois ambos lutam contra este mundo, contra a apatia, a pusilanimidade espiritual e possuem uma santidade da audácia e da renúncia. A transfiguração do mundo depende da sinergia entre o homem e Deus, tempo em que um novo homem e um novo cosmos será revelado.

Palavras chave: Criação; Profecia; Escatologia; Berdiaev; Rússia

 

Abstract
In this essay, I intend to show the fundamental lines of religious thought of Nicolas Berdyaev. For Berdiaev, the philosophy of history can only be understood as a religious metaphysics which is composed of a philosophy of time and a active Christian eschatology. There is a passive way to understand the Apocalyspse but also an active way to do it. Through the active way humans being conceive themselves as co-workers of God because the world is in a state of incompleteness. To conclude this divine-human work means to dissolve the world into creative ecstasy. In this task, Berdyaev praise the prophet. The prophet announces another world, a world that will come. The poet would be in the wake of prophecy. Both fight against this world, against apathy, against spiritual pusillanimity and they possess a sanctity of audacity and renunciation. The transfiguration of the world depends on the synergy between man and God at which time a new man and a new cosmos will be revealed.

Keywords: Creation; Prophecy; Eschatology; Berdyaev; Russia

Introdução

O pensamento religioso de Nicolas Berdiaev (1874, Kiev – 1948, Clamart) se insere no movimento conhecido como renascimento religioso-cultural russo no início do século XX. Enquanto tal, este movimento se caracteriza pela recepção mais equilibrada da obra de Dostoiévski e Tolstoi, bem como uma tentativa de libertar o pensamento das amarras do positivismo e do cientismo reinantes na vida mental russa do século XIX. Berdiaev não era propriamente um teólogo ou um filósofo. Ele se insere nas grandes linhas do que o renascimento cultural concebeu como pensamento religioso.

Um pensamento religioso russo se vê diante do desafio, na aurora do século XX, de superar o utilitarismo característico tanto do niilismo quanto do pensamento revolucionário – revelado nos manifestos e nas obras de Serguei Nechaev, Bakunín e Lênin – e, ao mesmo tempo, se vê constrangido a responder espiritualmente, para além do oficialismo opressor do tradicionalismo da Ortodoxia, às demandas de “um novo céu e uma nova terra”, clamadas pelo povo russo mergulhado na fome e na miséria. Junto a Berdiaev nesta tarefa aparecem, entre outros, Serguei Boulgakov, Paul Florenski e Léon Chestov.

A sede de absoluto, no início do século XX na Rússia, pôde ser observada em ambos os lados, entre revolucionários e religiosos rebeldes. Por detrás de suas formulações, como uma sombra, pairam a formulação triádica de Joaquim de Fiore – a idade do Pai, do Filho e do Espírito Santo – e também o imaginário eslavo-bizantino concebendo Moscou como “Terceira Roma”. Desta forma, podemos dizer que o pensamento religioso contém variadas “heterodoxias”, não só pela penetração de ideias ocidentais, mas, também, pela abertura para as temáticas sociais.

Paul Evdokimov, teólogo ortodoxo, é um dos principais herdeiros do renascimento religioso-cultural russo. Sua teologia da beleza bebe nas fontes da teologia do ícone de Boulgakov e sua antropologia teológica testemunha sua filiação ao pensamento religioso de Berdiaev e à literatura de Dostoiévski. Buscando reabilitar a patrística grega, Evdokimov a combina com a escatologia berdiaeviana que, segundo ele, é o télos (plenitude de sentido) da trajetória humana que, começada (arché) na imagem (essência), é chamada à semelhança (existência).

Paul Evdokimov, herdando fontes de pensamento heterodoxo, pôde, assim, abrir caminhos para o aprofundamento da relação Oriente e Ocidente, ainda tão urgente em nossos tempos. A importância de Nicolas Berdiaev pode ser medida também por sua influência na conversão do poeta e teólogo ortodoxo Olivier Clément à Ortodoxia. Clément confessa ter descoberto a riqueza inesgotável dos Padres da Igreja através de Berdiaev e Vladimir Lossky.

Nicolas Berdiaev acreditava que a filosofia da história só poderia ser compreendida como uma metafísica religiosa, pois o messianismo é um dos seus problemas capitais. “Toda tragédia da história está ligada à realidade da ideia messiânica, a seu desdobramento constante na consciência humana” (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 226). O paradoxo do fim dos tempos consiste no fato de que o tempo não pode ter fim no interior do próprio tempo. O fim, todavia, quer dizer que “tudo isto se produz no tempo existencial; é uma passagem da objetividade da existência à subjetividade da existência, uma passagem à espiritualidade” (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 260).

O homem enquanto númeno pertence ao começo e ao fim, embora seu destino seja vivido enquanto fenômeno. Tal experiência é vivida em constante conflito. “Não é uma experiência de evolução, mas de um choque, de uma catástrofe no interior da existência pessoal e histórica.” (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 260) Por isso, o fim é vivido com uma antinomia: por um lado, o tribunal da consciência e o Julgamento, por outro, a liberdade e o advento do Reino de Deus.(BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 260) Paul Evdokimov aproxima-se desta visão. Segundo ele:

A história e a escatologia se compenetram, existem uma dentro da outra. A significação do Pentecostes e dos dons do Espírito Santo, o sentido universal da epiclese, sobretudo escatológica e parusíaca, determinam, segundo a fórmula de São Máximo, a vocação fundamenta dos cristãos no mundo: “unir a natureza criada [o mundo] com a energia deificadora incriada” (cuja Igreja é a fonte viva). A Igreja no mundo qualifica o tempo e a existência pelo escáthon, qualificação que julga toda existência, replica sobre sua própria imanência e afirma, assim, a própria vocação sacerdotal do mundo. O mundo não se torna Igreja, mas, em acordo “sinfônico” com a Igreja, “sem confusão e sem separação”, realiza sua própria tarefa por meio dos seus próprios carismas (EVDOKIMOV, 1972, p. 51).

Para Berdiaev, não bastam à metafísica religiosa uma filosofia do tempo e uma teoria da história; necessita-se ainda de uma escatologia cristã. Ela será oferecida com base na compreensão de que há duas maneiras de se compreender o Apocalipse: uma passiva e outra ativa. A primeira é a mais comum na história da consciência cristã. Trata-se de esperar passivamente o fim do mundo que deve ser obra e julgamento de Deus. Por outro lado, a forma ativa de compreender o Apocalipse significa que o “fim do mundo pode ser ativamente preparado pelo homem, depende também da atividade humana, quer dizer, é uma obra teo-antrópica.” (BERDIAEFF, 1946, De l’esclavage, p. 295) “Nós somos cooperadores [synergoi] de Deus” (1 Cor 3,9) Trata-se de uma sinergia criadora divino-humana.

O homem, entretanto, nunca é um meio para Deus. Se a existência do homem pressupõe a existência de Deus, a existência de Deus pressupõe a do homem. A pessoa humana é um valor absoluto para Deus, ela é seu “outro” e seu “amigo” de quem Deus espera uma livre resposta de amor e criação. A solução é teândrica: “a coincidência dos dois Pleromas em Cristo” (EVDOKIMOV, 1972, p. 56). É porque o homem escatológico não vive uma espera passiva, senão, a preparação a mais ativa da Parusia (EVDOKIMOV, 1972, p. 56).

A atitude ativa em direção ao fim da história pressupõe um longo período de transformação da estrutura da consciência.(BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 296) Trata-se de uma revolução espiritual e social, uma atividade divino-humana, que se produz já no tempo histórico. (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 296) Embora não seja somente obra do homem, tal revolução pressupõe todo o emprego de suas forças, não pode ser uma espera passiva (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 296)

Um cristianismo histórico, uma Igreja histórica significa que o Reino de Deus não veio, significa um fracasso, uma adaptação da revelação cristã ao reino deste mundo. Permanece no cristianismo uma esperança messiânica, uma espera escatológica e ela é mais forte no cristianismo russo do que no ocidental. A Igreja não é o Reino de Deus. Se a Igreja apareceu na história, não significa que isto seja a transfiguração do mundo, a aparição de um novo céu e de uma nova terra. O Reino de Deus é, ao contrário, o fator de transfiguração do mundo, não somente ao nível do indivíduo, mas da sociedade e do cosmos inteiro. É o fim deste mundo, de um mundo de injustiça e de indignidade, o início de um mundo novo, mundo de justiça e beleza (BERDIAEV, 1969, p. 203).

As revoluções sociais, por exemplo, não podem se constituir, como de costume na história, apenas como uma mudança aparente (BERDIAEFF,1951, p. 86). Elas deveriam ser uma transformação integral do homem e da sociedade humana. “Não se pode realizar a justiça social sem a verdade e sem a beleza” (BERDIAEFF, 1951, p. 86). Haverá uma corrupção interior na revolução social se, após sua realização, ainda permanecer o disforme e um baixo conhecimento da verdade (BERDIAEFF, 1951, p. 86):

A beleza, enquanto valor superior, é necessária para reorganização social da sociedade. Do contrário, o tipo mesmo do homem se encontrará deformado, não haverá nem estilo, nem forma, nem rosto, nem harmonia” (BERDIAEFF, 1951, p. 86).

Na Septuaginta, o texto grego da narrativa bíblica da Criação não diz “e Deus viu que era bom (ἀγαθός)”, mas, sim, “e Deus viu que era belo (καλὸς).” A beleza se difere marcadamente do bem. “A beleza, longe de ser um aspecto particular da existência, constitui a mais elevada característica do estado qualificativo do ser” (BERDIAEFF, 1947, p. 171). Na ordem da criação, o bem é o caminho, o meio; a beleza é o fim (BERDIAEFF, 1947, p. 171).

A beleza diz respeito à criatura transfigurada do Reino de Deus, o bem, por sua vez, nos fala da criatura sobre a via que conduz até lá, seja dito, ainda inscrito no nosso mundo marcado pelo mal (BERDIAEFF, 1947, p. 173). O bem só pode ser pensado em sua relação com o mal. O bem tem sua existência marcada pela contaminação pelo mal num mundo manchado pelo pecado. Há uma dualidade trágica no mundo entre bem e mal que é impossível de ser superada pelo primeiro. A beleza está para além do bem e do mal. “Quanto ao Bem, ele só se encontra além do conhecimento do Bem e do Mal quando o Mal é esquecido, é então que estamos na presença da Beleza.” (BERDIAEFF, 1947, p. 171). Para Paul Evdokimov, a beleza de Deus, como toda sua luz:

não é nem material, nem sensível, nem intelectual, mas ela se dá através das formas deste mundo e se deixa contemplar pelos olhos abertos do corpo transfigurado. Não se trata da mística “sensível” dos messalianos, nem uma redução ao único inteligível, nem uma materialização grosseira do espiritual, mas da comunhão bastante concreta da natureza criada do homem inteiro com a natureza incriada das energias divinas. Trata-se do mistério do “oitavo dia”, mas sua realidade já é inaugurada nos sacramentos e iniciada na experiência dos santos (EVDOKIMOV, 1972, p. 32, 33).

É na criação artística, no entanto, que mais bem se revela o sentido do ato criador (BERDIAEV, 1955, p. 290). A arte é, por excelência, a esfera da criação. E este elemento criador, no sentido artístico do termo, pode ser fazer sentir em todas as esferas da atividade do espírito, seja no domínio da ciência, na filosofia, na moral ou na política (BERDIAEV, 1955, p. 290).

A dimensão da criação

O que é próprio do ato criador é transfigurar. Se a ciência, a filosofia, a moral ou a política estão investidas de um ato criador, observamos uma transfiguração. Deste modo, a beleza não é apenas contemplação, mas também “criação, vitória criadora contra a escravidão do mundo” (BERDIAEFF, 1946, Essai, 270). A beleza nos diz da “participação do homem, da cooperação entre o homem e Deus” (BERDIAEFF, 1946, Essai, 270). A beleza nos diz da “participação do homem, da cooperação entre o homem e Deus” (BERDIAEFF, 1946, Essai, 270). Todas as grandes produções criadoras entram no Reino Deus, não só as artísticas. O ato criador possui uma dimensão profética e escatológica. Ele é, por vez, um “já” e um “ainda não”:

O Reino de Deus só pode ser concebido como reino da Beleza. A transfiguração do mundo é uma manifestação da beleza, e toda beleza que existe no mundo ou é uma reminiscência do paraíso ou uma profecia anunciando o advento de um mundo transfigurado (BERDIAEFF, 1947, p. 173; 174)..

A arte, em um sentido mais largo, é, assim, não somente transfiguração, mas prefiguração, pois ela anuncia um estado do mundo que está por vir, embora ela jamais possa ser sua total realização. A arte reflete uma beleza vindoura que só será integral após uma transfiguração última, apocalíptica, do mundo. A transfiguração artística é, portanto, parcial.

O êxtase criador é um lançamento para fora do tempo cósmico e do tempo histórico. Ele é produzido no interior do tempo existencial. “O êxtase está próximo do delírio.” (BERDIAEFF, 1946, De l’esclavage, p. 204). A potência criadora possui uma característica individual e pessoal, mas o homem nunca está só. O gênio sempre parece estar possuído por um daimon que o domina. Isto se deve ao fato de que “a potência criadora não é somente humana: ela é divino-humana” (BERDIAEFF, 1946, De l’esclavage, p. 204). No ato criador, há liberdade, graça e dom. Em Púchkin, por exemplo, parece haver um parentesco entre a poesia e a profecia:

O PROFETA


Num ermo, eu de âmago sedento
já me arrastava e, frente a mim,
surgiu com seis asas ao vento,
na encruzilhada, um serafim;
ele me abriu, com dedos vagos
qual sono, os olhos que, pressagos,
tudo abarcaram com presteza
que nem olhar de águia surpresa;
ele tocou-me cada ouvido
e ambos se encheram de alarido:
ouvi mover-se o firmamento,
anjos cruzando o céu, rasteiras
criaturas sob o mar e o lento
crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios, rasgou minha
língua arrogante, que não tinha,
salvo enganar, qualquer intuito,
da boca fria onde, depois,
com mão sangrenta ele me pôs
um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
tirou-me o coração do peito
e colocou carvão que ardia
dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
o Senhor disse-me: “Olho aberto,
de pé, profeta, e, com teu verbo,
cruzando as terras, os oceanos,
cheio do meu afã soberbo,
inflama os corações humanos!” (PÚCHKIN, 2013, p. 240, 241).

A poesia de Púchkin não tem o poder ou a capacidade de transformar o mundo. Ela é apenas a recapitulação de um mundo transfigurado. A arte e a beleza são uma preparação anunciadora, uma prefiguração. “A posse real, imediata da beleza, não seria mais arte, seria o início da transfiguração deste mundo em um novo céu e em uma nova terra” (BERDIAEV, 1955, 315). Neste mundo, arte e beleza são símbolos e, não, propriamente, realizações. Aparece, então, o drama do ato criador e as tensões na estética da modernidade e nos projetos de reformas sociais. Há, portanto, uma dimensão trágica, no ato criador, entre o que se concebe e o que se realiza:

O objetivo de todo ato criador é de criar um Ser novo, uma vida nova, é um fim teúrgico, mas a realização deste ato não é mais que uma obra diferenciada, respondendo a necessidades estéticas definidas, e que coloca não em um outro mundo, mas entre os valores culturais deste aqui (BERDIAEV, 1955, p. 201).

Paul Evdokimov afirma que a fé cristã contém um paradoxo, pois ela estimula a criação no mundo, mas, em sua fase final, devido à sua dimensão escatológica, obriga a sair dos quadros deste mundo. (EVDOKIMOV, 1972, p. 62). O teólogo ortodoxo faz referência à antinomia, em Berdiaev, entre Cultura e Santidade. Segundo Evdokimov, Berdiaev,

ficou impressionado pela coexistência, no século XIX, de um grande santo Serafim, e de um grande poeta, Púchkin, que, contemporâneos, não se conheciam. Ele encontrou a solução na passagem dos símbolos às realidades. Ministro, general, professor, bispo, são símbolos, funções; ao contrário, um santé uma realidade. Uma Teocracia histórica, um Estado cristão, uma República são símbolos; “a comunhão dos santos” é uma realidade. A cultura é um símbolo quando ela reúne as obras e constitui um museu de produtos petrificados, de valores sem vida. Os gênios conhecem a profunda amargura da distância entre o fogo do seu espírito e as obras objetivadas. Talvez mesmo uma cultura cristã seja impossível. Com efeito, os grandes sucessos criadores são fracassos da criação, pois eles não mudam o mundo (EVDOKIMOV, 1972, p. 62, 63).

Mikhail Bakhtin afirma que o conhecimento cria a natureza e o ato ético funda a humanidade social (BAKHTIN, 2014, p, 32). Desse modo, fica excluída da atividade estética o poder de originar algum tipo de realidade inteiramente nova. A arte é responsável pela transferência da realidade para um outro plano axiológico, submetendo-a a uma unidade concreta, estabelecendo-lhe os valores e recriando-a desde um ponto de vista estético (BAKHTIN, 2014, p. 32):

A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade social –, enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela cria a unidade concreta e intuitiva desse dois mundos, coloca o homem na natureza, compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e naturaliza o homem (BAKHTIN, 2014, p. 32).

De fato, a arte parece possuir uma função litúrgica ao celebrar, ornar e evocar a realidade para a qual ela se volta. Para Berdiaev, contudo, a potência criadora, busca ultrapassar o plano axiológico e a recriação estética; tal é o sentido da arte, de toda arte. A arte não se contenta em possuir e ser um valor cultural. A potência criadora porta em si mesma um elemento escatológico. Ela carrega as sementes do fim do mundo e as do começo de um mundo novo.

O mundo, segundo Berdiaev, é também uma obra humana, afinal, ele se encontra inacabado. Trata-se de uma criação teândrica. Ora, a realização da criação do mundo é o fim deste mundo. O mundo deve se transformar em imagem de beleza, se dissolver em êxtase criador (BERDIAEFF, 1946, De l’esclavage, p. 200). A história não possui nenhum vestígio ou traço jurídico, ou seja, seu ponto culminante não é o Julgamento Final, senão a restauração integral da natureza inicial de todos os seres, inclusive o homem, portador do Espírito (BERDIAEFF, 1946, De l’esclavage, p. 200).

Profecia, santidade e literatura

Berdiaev, faz o elogio do homem religioso, não propriamente do asceta, senão do profeta. Para ele, a mística profética possui o seu tipo específico cujo protótipo eterno são os profetas do Antigo Testamento (BERDIAEFF, 1936, p. 108). “Este tipo não se encontra apenas no domínio religioso, senão ele inclui todos iniciadores, inovadores, reformadores, revolucionários do espírito” (BERDIAEFF, 1936, p. 108).

O estudo psicológico do ascetismo nos faz perguntar se é mesmo desejável que o homem se inflija torturas e sofrimentos. Diferentes religiões e confissões religiosas lançam mão de algum tipo de ascetismo. Os católicos romanos e muçulmanos praticam jejuns e abstinências em determinadas ocasiões; algumas vertentes do hinduísmo se utilizam da ioga e os monges católicos ortodoxos do Montes Atos são conhecidos pela doutrina e prática do hesicasmo.

O culto de uma santidade ascética é mais favorável à ritualidade. A santidade ascética é reconhecida como a grande via dotada de valor religioso, pois ela é o caminho da obediência e da exaltação. A atividade mundana de Púchkin não poderia ser comparada a tal via. O poeta, em sua criação, se destrói na viagem genial que o faz sair de si mesmo. Por outro lado, o caminho da autodefesa e do fervor interior no ascetismo podem ser inimigos da criação (BERDIAEV, 1955, p. 225).

Podemos considerar, todavia, que a ideia de vocação é uma ideia religiosa. Púchkin, assim, possuía uma santidade particular, não canônica. Trata-se de “uma santidade da audácia, não da obediência” (BERDIAEV, 1955, p. 226). Berdiaev afirma que “talvez que esta submissão feliz não seja agradável a Deus. No obscuro nó da vida circula ainda o sangue da revolta e da luta deicida, e aí que jorra a fonte da livre criação (BERDIAEV, 1955, p. 226).

O poeta e o asceta têm algo em comum, eles se insurgem contra o mundo, eles devem “vencer o mundo”. O asceta, contudo, se volta contra seu próprio corpo. Ele tenta se livrar do que ele considera as regiões mais baixas do ser. O próprio corpo “é um conjunto de sensações orgânicas interiores, de necessidades e desejos reunidos em torno de um centro interior.” (BAKHTIN, 2011, p. 44).1 O ascetismo promove uma diferença entre corporeidade e materialidade como afirma Serguei Boulgakov (1990, p. 238). A matéria, concebida como carne, carnalitas, é tomada como “princípio de redução e de pecado” (BOULGAKOV, 1990, p. 238). Aí estão as raízes ontológicas do platonismo, da moral paulina e do imperativo categórico kantiano que “julga uma vontade humana tornada impotente pela carne” (BOULGAKOV, 1990, p. 238).

Se, de fato, a matéria ou a carne terrestre é surda, vazia e inerte, observarmos, no entanto, a vitória de uma entelequia na forma das flores, árvores, frutos que saem da natureza para voltar a ela (BOULGAKOV, 1990, p. 238).Da mesma forma, a arte é iluminação da matéria pelo espírito, pela ideia (BOULGAKOV, 1990, p. 238). O corpo, assim, é um produto em movimento de um trabalho espiritual dinâmico e constante que o ser humano efetua sobre si mesmo, e não, glacialidade e obscuridade (BOULGAKOV, 1990, p. 238).

Não há oposição entre corporeidade e espiritualidade. A definição exclusivamente negativa da corporeidade não é precisa conceitualmente. Mesmo porque há uma corporeidade espiritual, pneumática (1 Cor 15, 44). “A corporeidade como negação da espiritualidade é somente um estado, aliás patológico; não é sua natureza.” (BOULGAKOV, 1990, p. 231). As sensações são um elemento fundamental da corporeidade. É por elas que o ser humano pode aceder à beleza, se a tomarmos como sentimento não discursivo das ideias (BOULGAKOV, 1990, p. 233). Assim, “a beleza supõe a corporeidade em geral ou a realidade em geral, a qual, sendo inteiramente impregnada pela beleza, é sentida enquanto seu substrato alógico, para além das ideias” (BOULGAKOV, 1990, p. 233).

“Nós somos cooperadores [synergói] de Deus” (1 Cor 3,9). Seria, então, esta obra teândrica, do ponto vista humano, um estetismo? O estetismo tem como fundamento certo enfraquecimento do ser humano, pois, nele, há o “desparecimento do valor da pessoa e o deslocamento do seu centro existencial” em nome de suas partes constitutivas (BERDIAEFF, 1946, Essai, p. 264). A parte é tomada pelo todo e a parte, neste caso, são os estados emocionais.(BERDIAEV, 1955, p. 264). O ser humano se torna escravo de tais estados.(BERDIAEV, 1955, p. 264). Esta fragilidade e o extremo refinamento do estetismo só podem surgir em épocas em que se observa uma “ruptura com as tarefas mais rudes, mais graves da vida” (BERDIAEV, 1955, p. 264).

A beleza salvará o mundo? “A beleza salvará o mundo” é uma famosa sentença do romance O idiota, de Dostoiévski, que guarda profundos laços enunciativos e cognitivos com a filocalia, o amor à beleza. Com efeito, a santidade ascética é uma busca por segurança. O asceta, o cristão de modo predominantemente, acaba por extinguir as paixões do homem, seu Eros e sua inspiração, produzindo uma aridez no espírito e transformando o corpo em mumia(BERDIAEFF, 1943, p. 120).

Efetivamente, poderíamos dizer que algum tipo de prática ascética favorece a sublimação dos desejos ou a recondução do Eros de destruição ao Eros de criação. No entanto, virtude e paixões são feitas da matéria, da criatividade, cujos fundamentos fazem morada no nada.(BERDIAEFF, 1943, p. 120). A inspiração bem como o amor e o ato criador são, assim, extremamente perigosos (BERDIAEFF, 1943, p. 121). A aventura da vida está ligada ao risco, às tentações, à experimentação, ao engano, ao erro, à mentira. “Somente o emburguesamento religioso procura um terreno seguro e sólido, baseado em garantias” (BERDIAEFF, 1943, p. 121).

Os perigos da obediência e da humildade estão conectados, por sua vez, ao problema do mal. O obediente pode se tornar um escravo, transferindo a responsabilidade sobre seu corpo, sobre seu espírito para uma outra pessoa. “Os homens mais obedientes servem facilmente ao mal, renunciam a sua consciência.” (BERDIAEFF, 1943, p. 121). Existe também a degeneração da humildade em orgulho, “a forma mais funesta de orgulho”, segundo Berdiaev. “A humildade se transforma também facilmente em hipocrisia. Ela toma um caráter convencional e retórico, isto é, falta-lhe sinceridade” (BERDIAEFF, 1943, p. 121). Observamos isto em gestos, palavras e expressões mecânicas. A fonte desta falsa submissão é o egocentrismo e o amor-próprio que se veem incapazes de suportar uma libertação, um desprendimento real do espírito e do corpo. Assim, “a humildade e a obediência se transformam em afirmação de si” (BERDIAEFF 1943, p. 121).

Por outro lado, o tipo psicofísico do criador se assemelha sobremaneira ao iurodstvo russo. O iurodstvo ou louco por Cristo é uma mulher ou um homem que rejeita, voluntariamente, sua própria ipseidade. Ele é um peregrino, um andarilho que segue a trilha dos profetas do Antigo Testamento, desafiando cada comunidade pelo caminho, falando, praguejando e anunciando a mensagem dos Evangelhos. Colocando em xeque a ordem estabelecida da vida e a fé confortável e segura do povo, ele se sujeita ao perigo e à perseguição dos seus ouvintes. “Como o profeta bíblico, o louco por Cristo profere predições de calamidades e de desgraças e lança reprimendas tanto às pessoas comuns quanto às autoridades” (KOBETS, 2008, p. 17, 18)2.

Lançando-se assim fatalmente no obscuro nó da vida, aquele que se engaja na via da criação renuncia, antes de tudo, ao abrigo e à proteção. “Ele se recusa a todo estabelecimento sólido e seguro” (BERDIAEV, 1955, p. 226). O poeta, o profeta, o revolucionário do espírito, o reformador abre mão, até mesmo, da estabilidade existencial e psíquica. Sua personalidade é dinâmica, está em constante movimento e ebulição. O que torna capaz tal abnegação é o entusiasmo criativo, afinal, o criador, como dissemos, parece habitado por daimon. Importa dizer que, para Berdiaev:

a qualidade da genialidade pertence ao homem e não somente ao artista, ao sábio, ao pensador, ao reformador social, etc. A genialidade não é um dom especial, - mas o ato do espírito humano completo e estendido na sua plenitude (BERDIAEV, 1955, p. 227).

Dostoiévski, em seu discurso sobre Púchkin, proferido a 1880 na Sociedade dos Amantes das Letras Russas, busca indicar o caráter profético da literatura do autor de A dama de espadas. Púchkin seria um poeta dotado de “compaixão universal”, pois capaz de “espantosa profundidade”, qual seja, “a personificação do seu espírito no espírito de outros povos.” (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 421). Sua poesia prefiguraria, desse modo, a “união universal e fraterna de todos povos”. “Na arte, ao menos na obra literária, ele demonstrou essa aspiração universal do espírito russo de forma indiscutível, e isso já é muito significativo.” (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 423). Púchkin, além disso, encarnou a voz dos desterrados, dos humilhados e ofendidos, sonhadores, que ainda almejavam a liberdade à época da repressão autocrática de Nicolau I contra os dezembristas revoltosos condenados ao degredo:

MENSAGEM À SIBÉRIA


Fundo nos veios da Sibéria,
rende paciência e brio;
jamais é vão sofrer pena severa
quando são altos os ideais.
Constante irmã da desventura,
logo a esperança propicia
júbilo e ardor na furna escura;
há de chegar o ansiado dia:
hão de alcançar-vos amizade
e amor, rompendo a tranca atroz,
como, através de muro ou grade,
chega-vos livre a minha voz.
Vereis, sem peso de correntes,
ante as masmorras arrasadas,
a liberdade – e irmãos contentes
devolverão vossas espadas (PÚCHKIN, 2013, p. 243).

Púchkin é profético porque testemunha um “outro mundo”, um mundo ainda por vir. Sendo profeta, ele possuía um élan que aspirava acessar esta outra realidade que se opõe à fragmentação, à disformidade, ao mal e às injustiças neste mundo. O profeta possui uma experiência espiritual contrária “à apatia, à impassibilidade, à indiferença em relação ao mundo e à história”.(BERDIAEFF, 1947, p. 215). O coração do profeta é ferido pelo destino do homem, dos povos e da história universal. Ele é incapaz de repouso. “O profetismo na literatura, na arte, na filosofia, nos movimentos sociais é uma manifestação da atividade criadora do homem.” (BERDIAEFF, 1947, p. 215).

As religiões podem se abir para a dimensão religiosa da genialidade enquanto genialidade potencial. “A genialidade é, antes de tudo, uma vontade apaixonada em direção a outra essência.” (BERDIAEV, 1955 p. 230). A vontade oposta estaria associada à “humildade e à pobreza de dons”, o que Berdiaev nomeia como pusilanimidade espiritual. Talvez, possamos dizer que as imperfeições religiosas de Púchkin foram capazes de mais beleza do que a perfectibilidade religiosa de algum fiel devotado (BERDIAEV, 1955, p. 232):

A concepção religiosa, segundo a qual, a descoberta final do conhecimento e da beleza estaria reservada somente aos buscadores de santidade, retirando do homem seu impulso criador, conduz à esterilidade e à morte (BERDIAEV, 1955, p. 232).

A via da criação pode ser compreendida como uma espécie particular e específica de santidade, pois exige, tal como a santidade reconhecida, abnegação e renúncia. O caminho do gênio, enquanto criador, reformador social, revolucionário do espírito, profeta, visionário, testemunha é o caminho de um monge imiscuído no mundo. A santidade particular e específica do gênio é apocalíptica, não possui nenhum resquício de utilitarismo, ele jamais se ocupa da segurança do seu corpo, da estabilidade interior, de algo que possa estar relacionado à sua salvação ou de algo que tenha semelhança com ela. Não se trata de uma via média e moderada como no caminho dos buscadores de santidade. “Na genialidade, deve se descobrir o segredo criador do ser, quer dizer, um ‘outro mundo’” (BERDIAEV, 1955, p. 233).

Fim: a escatologia ativa

A fórmula da salvação do mundo pela beleza, com efeito, contém em si uma concepção religiosa, segunda a qual, a autonomia da arte não seria caminho de salvação. Ao contrário, a salvação se daria, mais propriamente pela beleza da santidade (EVDOKIMOV, 2014, p. 88). Ou seja, a atividade criadora que prepara, em cooperação com Deus, o Reino, não é propriamente uma atividade artística, mas uma ética teológica:

Se a beleza é a imagem de Deus no mundo, o homem a reconhece na medida em que ele comunga com o Espirito Santo. A alma tem já em si alguma coisa deste Espirito e é isto que o faz desejar a beleza. Na santidade, no Espirito, o homem possui a intuição imediata da verdadeira beleza e concebe o mundo como “pneumatóforo”, como portador de espírito (EVDOKIMOV, 2014, p. 88).

Isto implica dizer que a vitória do tempo existencial sobre o tempo histórico em Berdiaev somente seria possível pela colaboração entre Deus e um ser teóforo. Antes disso, é preciso dizer que a beleza para Dostoiévski não é aparência ou ilusão subjetiva, mas real, possuindo um fundamento ontológico na natureza, ela é “harmonia” (EVDOKIMOV, 2014, p. 90, 91). Embora a beleza natural seja impessoal, mesmo pneumatófora, ela somente encontrará salvação na beleza do santo. “A concepção do mundo em sua beleza primitiva deve se acompanhar de uma força transfigurante que faz do mundo como lugar ontológico do homem santo” (EVDOKIMOV, 2014, p. 91).

Não é suficiente dizer, contudo, que Deus se faz presente no homem. É necessário afirmar, também, que “o homem é o rosto de Deus e é ele que realiza o desenvolvimento divino” (BERDIAEV, 1955, p. 406). Ele está presente no mistério da Trindade. O homem não é apenas um microcosmos, senão, também, um microtheos, contendo “a forma e a semelhança do universo, e a forma e a semelhança de Deus” (BERDIAEV, 1955, p. 406). Segundo Paul Evdokimov, Dostoiévski acredita que “na comunhão perfeita com Deus, em sua semelhança com ele, o homem se torna microtheos, e, na harmonia universal, microcosmo” (EVDOKIMOV, 1972, p. 91). O ser humano é um compêndio do universo pelo fato de conter em si todos os níveis da criação. Ele “sintetiza a criação gradual dos cinco dias da qual é o sexto dia, o dia do acabamento, da conclusão” (KOUBETCH, 2004, p. 40, 41).

A preparação do Reino de Deus pelo homem também só é possível porque ele é uma criatura visitada: “o Espirito nela habita e a inspira de dentro, na fonte mesma do seu ser. A sua relação com o conteúdo do coração, lugar da inabitação divina, constitui a sua consciência moral, na qual fala a verdade” (KOUBETCH, 2004, p. 41). Paul Evdokimov afirma que a teologia ortodoxa procura pensar com o coração reportando-se às suas noções bíblicas. O homem é o homo cordis absconditus (1Pd 3,4) que pode estar aberto a Deus, fechado (Lc 24, 25) ou em suas “decomposição demoníaca” em “vários” (Mc 5, 9) (EVDOKIMOV, 1979, p. 66).

Talvez, a transfiguração escatológica do mundo em beleza passe pelo caminho do monarquismo interiorizado universal preconizado por Paul Evdokimov. Nele, a obediência a Deus faz com que o homem domine o mundo e seja realmente livre. A castidade significa o dar a si mesmo como oferenda completa do seu ter e do seu ser em consagração total de sua existência. A pobreza é a abertura total a Deus e a aspiração a mais nada a não ser aos sopros do Espírito. A oração, fazendo todo o trabalho, assinala a presença viva de Deus (EVDOKIMOV, 2011, p. 113).

O maximalismo escatológico é esta violência que se apodera do Reino de Deus, este totalitarismo da fé que só procura a transformação do mundo em Reino e sua justiça; à luz do Fim, se vê e se contempla “a chama das coisas”. Trata-se de uma atitude existencial estendida em direção ao último que só pode ser ativa, que só pode ser a Parusia. Através de sua própria vida o homem mostra o que viu em Deus. Ele o faz e não pode fazer diferentemente. É no homem-testemunha que o Reino já está presente e é ele que o anuncia, mesmo através dos seus silêncios (EVDOKIMOV, 2011, p. 114).

Nos dois últimos séculos, observamos que a crise da arte é também a crise do homem, refletindo o estado do mundo (BERDIAEFF, 1947, p. 181). “O mundo atravessa uma fase de liquefação, ele perde suas formas, não contém mais corpos sólidos” (BERDIAEFF, 1947, p. 181). As teorias da física moderna “abrem” o cosmos e retiram dele a solidez. A psicanálise e a filosofia do desespero fizeram o mesmo com a alma humana. A crise da arte, bem como de toda a cultura, evocam o tema da escatologia. “O sentimento direto da beleza do cosmos se enfraqueceu, se foi, e isto pela simples razão de que não há mais cosmos” (BERDIAEFF, 1947, p. 181). O cosmos foi destruído pelas ciências físicas e o poder da técnica sobre a alma humana destruiu o sentimento da beleza3.

Não se deve, contudo, adotar uma postura pessimista ou romântica diante deste quadro. A máquina não mata o espírito, senão “a matéria orgânica, a carne do mundo” (BERDIAEV, 1976, p. 205). A vida espiritual, por sua vez, é indestrutível, A introdução da máquina nos produz uma angústia romântica pelo passado perdido, mas esta nostalgia não trará o passado de volta. “A vida espiritual do homem deve procurar outras vias para atingir a integridade e a beleza”.(BERDIAEV, 1976, p. 205).

A máquina é dúbia e antinômica, ela nos oprime o espírito, mas ela também o liberta: “como uma pinça, ela extrai o espírito da matéria orgânica dentro da qual ele havia começado a cochilar para, em seguida, despertar.” (BERDIAEV, 1976, 205). A civilização técnica complica, desdobra, duplica nossa vida espiritual, tornando possíveis manifestações mais finas. Se por meio do tempo existencial o homem pode escapar do tempo histórico e tempo cósmico, é chegado o momento, também de ele se assenhorar da técnica, tornando-se livre:

Somente pelo princípio espiritual, quer dizer, por sua ligação com Deus, que o homem torna-se independente tanto da necessidade natural quanto do poder da técnica. Mas, o desenvolvimento da espiritualidade no homem deve conduzi-lo a, não escapar da natureza e da técnica, mas a dominá-las. Com efeito, o problema que se coloca para o homem é mais complexo ainda (BERDIAEV, 1951, 48, 49).

A Revelação comporta o estado da revelação na natureza, da revelação na história e da revelação escatológica. “É do futuro que vem os raios de luz. O futuro final virá se enlaçar às fontes do passado” (BERDIAEFF 1947, p. 241). Na fase da revelação escatológica, Deus se mostrará em toda sua plenitude. Ela é precedida de uma época de uma ruptura com Ele, quando se manifestam “um estado de angústia”, “uma mecanização da natureza diante da qual se experimenta um sentimento de vazio”, “uma secularização da história” e “uma passagem pelo ateísmo” (BERDIAEFF, 1947, p. 241):

A revelação escatológica é a revelação no Espírito e na Verdade, uma revelação eterna. Um conflito trágico se desenvolverá entre o mundo e a Verdade, mas a Verdade pura, não deformada, não viciada, reduzirá o mundo em cinzas. O objetivo consiste em restabelecer a integridade, a colocar fim à duplicação, à falsa autonomia das ideias, dos sonhos, das paixões, das emoções, dos desejos (BERDIAEFF, 1947, p. 241).

A revelação não é somente do Espírito, mas também de um novo cosmos e um novo homem. Novo homem que, diante da indestrutibilidade de sua vida espiritual e da descoberta de dobras no interior de si, pode, por obra de liberdade e graça, ter dentro do seu coração algo diferente do princípio de utilidade, tão característico da civilização técnica. Na civilização técnica, um santo, a Beleza e seus ícones ou, até mesmo, Deus parecem ser extremamente inutéis diante das demandas por um crescente ativismo. Paul Evdokimov, no enanto, pensa que:

Ao lado de uma civilização técnica, altamente prática e utilitária, se coloca a Cultura e o espírito, que é um campo predestinado a “cultivar” os valores “inúteis”, mais exatamente “gratuitos”, até o momento da última ultrapassagem em direção ao “único” não “útil”, mas “necessário” segundo a palavra do Evangelho (EVDOKIMOV, 1972, p. 44).

Dostoiévski em O idiota pretendeu construir um personagem positivamente belo. Berdiaev afirma que Míchkin é “seráfico”, “angélico” e “luminoso” (BERDIAEV, 1974, p. 49). Paul Evdokimov, por sua vez, mostra que, para construir o personagem positivamente belo, Dostoiévski não escolheu um juiz de paz, nem um reformador social. Diante do que se poderia chamar sua “visão iconográfica do mundo”, ele pede emprestado “seu tipo bom às vidas dos grandes espirituais”. “Dostoiévski traça um rosto de santo e o suspende na parede de fundo, como um ícone” (EVDOKIMOV, 1972, p. 43).

Berdiaev, por sua vez, animado pela sentença “a beleza salvará o mundo”, também compreende a beleza como santidade e harmonia. Contudo, diferentemente de Paul Evdokimov, ele não possui uma perspectiva pictural do mundo, senão, uma percepção dinâmica, musical do universo, em que, o profeta, o visionário, o artista, o inventor exercem o papel determinante de colaboradores da Obra Divina num mundo ainda inacabado. Para Berdiaev, energias – divinas e humanas, em cooperação – atuam em direção à transfiguração do mundo. Nesta dinâmica, a Igreja como sobornost possui a missão apocalíptica de semear a boa semente (Mt 13, 37-38). Por ser criado no tempo, o mundo se encontra em germe. O mandamento inicial de cultivar o Éden abre grandes perspectivas para a Cultura, para os “bons operários”:

O cosmos cristianizado, no qual o caos é vencido, constitui a beleza; é porque a Igreja pode ser definida como sendo a beleza autêntica do ser. E toda aquisição de beleza no mundo é, num sentido profundo, uma cristianização. A beleza é o fim da vida universal; ela é a deificação do mundo. A beleza salvará o mundo como disse Dostoievski. A obtenção da beleza constitui a salvação do mundo. Uma concepção integral da Igreja é concepção em que ela se encontra tomada como o cosmos cristianizado, como a beleza (BERDIAEV, 1947a, p. 349).

O élan criador e os êxtases estão fora do tempo cósmico e do tempo matemático, eles se manifestam na dimensão vertical do espaço. (BERDIAEV, 1946, Essai, 293). Contudo, os resultados do ato criador se exteriorizam, ou seja, o tempo existencial faz sua irrupção no tempo histórico. Isto explica o fato de que a história não seja um processo ininterrupto, mas marcada pela ação de grandes homens interrompendo seu fluxo contínuo.(BERDIAEV, 1946, Essai, 293):

Existe no interior da história uma meta-história que não é produto da evolução histórica. A história tem um lado milagroso que não se explica pela evolução histórica e pelas leis históricas: os milagres da história são a irrupção dos eventos do mundo existencial no mundo histórico que não é amplo o suficiente para conter estes eventos tais como são produzidos, isto é, em seu estado completo. A revelação de Deus na história é uma dessas irrupções do tempo existencial no tempo histórico. Todos os eventos significativos da vida do Cristo se desenvolveram no interior do tempo existencial e só foram transparecer, através do meio mais pesado, do tempo histórico (BERDIAEV, 1946, Essai, 293).

A meta-história nunca coincide totalmente com a história. A história faz com que a meta-história sofra deformações a fim de que esta se adapte ao seu próprio nível. “A vitória definitiva da meta-história sobre a história, do tempo existencial sobre o tempo histórico significaria o fim da história.” (BERDIAEFF 1946, Essai, p. 294). Isto representaria a coincidência da primeira aparição do Cristo com a segunda. As duas aparições são metaistóricas. Entre uma e outra, o homem sofre todos os tipos de tentações e está sujeito a todos os tipos de servidão (BERDIAEFF 1946, Essai, p. 294).

O tempo histórico, tomado em si mesmo, não tem fim; ele está lançado em direção ao infinito, mas não pode ser transformado em eternidade.(BERDIAEFF 1946, Essai, p. 294). Só há duas maneiras de escapar do tempo histórico: através do tempo cósmico ou através do tempo existencial. O primeiro caso pode se revestir de uma mística de submissão ao circuito cósmico. No segundo, dá-se entrada na escatologia (BERDIAEFF 1946, Essai, p. 294). Assim, a história ou é naturalista ou escatológica. Importa notar que a irrupção existencial não é só obra do homem, “é igualmente a obra de Deus, uma obra realizada em comum pelo homem e por Deus, uma obra teo-antrópica” (BERDIAEV, 1946, Essai, 295).

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Notas

[1]O indivíduo experimenta uma necessidade absoluta de ser amado, mas algo como um ascetismo não é uma volição emocional advinda do próprio corpo. Ele parece advir da relação com o outro ou com outros e, enquanto tal, é tributário de uma dimensão axiológica. O ascetismo como prática social compartilhada, entre o eu e o nós, que está voltada para o próprio indivíduo está relacionado ao valor externo do próprio corpo. Isto significa que, mesmo como atitude individual, o que está em jogo, na prática ascética, é um conteúdo ético do corpo numa relação eu e outro ou eu e Outro.

[2]O iurodstvo e o poeta são uma vox clamantis in deserto. Todavia, não se pode dizer que sua trilha seja da solidão e do isolamento. Eles estão inseridos em situações dialógicas. A matéria-prima de ambos é a palavra. O meio utilizado pelo iurodstvo é a oralidade, o que implica em uma “compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia” (BAKHTIN, 2011, p. 272). Lançando imprecações ao seu auditório, o iurodstvo espera obter uma resposta, uma objeção, uma participação, uma condenação. Vale dizer, ele não é o primeiro falante no universo, portanto, faz uso de enunciados que o antecede. Ele se baseia neles, ora como polêmica, ora como asserção. Do mesmo modo, o poeta, embora fazendo uso da palavra escrita, se inscreve em uma rede comunicativa. A obra do poeta já é uma resposta no interior de um diálogo. O aspecto responsivo de um livro de poemas se mostra pela “influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores.” (BAKHTIN, 2011, p. 279).

[3]A técnica produz uma terrível aceleração do tempo. O instante presente só possui valor como meio para o instante seguinte. A civilização técnica é a civilização da velocidade. “O atualismo da civilização impõe ao homem uma atividade cada vez maior e só termina quando o escraviza, o transforma em um mecanismo.” (BERDIAEV, 1946, Essai, p. 144) O homem, dessa maneira, ganha o status de meio em uma cadeia de utilidades. Ele é um meio a serviço de “processo atual, técnico e industrial, se bem que não é o atualismo que existe para o homem, mas o homem é que existe para o atualismo” (BERDIAEV, 1946, Essai, p. 144) No mundo onde a técnica domina o homem, onde o povo dá lugar às massas, onde o quantitativo é um valor superior, onde a aceleração do tempo pode ser observada não há lugar para a beleza (BERDIAEV, 1947, p. 182)