Cenas iniciáticas em “Ulisses entre o amor e a morte” de O. G. Rego de Carvalho
Scenes of initiation in “Ulisses entre o amor e a morte” by O. G. Rego de Carvalho
José Wanderson Lima Torres
Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor do Mestrado Acadêmico em Letras da Unidade Estadual do Piauí. E-mail: wandersontorres@ hotmail.com
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Resumo
Este estudo investiga as cenas iniciáticas presentes na obra Ulisses entre o amor e a morte, do escritor O. G. Rego de Carvalho. Procura-se demonstrar que a literatura não apenas resguarda e recria mitos e ritos como também, no que tange à sua proximidade com a vivência sacral do homo religiosus arcaico, oferece uma experiência distinta de vivência temporal. Tal experiência destoa da concepção linear e progressiva da sociedade secular moderna.
Palavras chave:Religião. Iniciação. Literatura. Rego de Carvalho.
Abstract
This study investigates the scenes of initiation in Ulisses entre o amor e a morte by O. G. Rego de Carvalho. The work seeks to demonstrate that literature not only protects and recreates myths and rituals but it also, in terms of its proximity to the sacral experience of the archaic homo religiosus, offers a distinctive experience of temporality. This experience differs from the linear and progressive conception of modern secular society.
Keywords: Religion. Initiation. Literature. Rego de Carvalho.
Literatura e experiência religiosa
Uma das hipóteses mais instigantes do pensador romeno Mircea Eliade (1992, 2006, 2008) é a da camuflagem do religioso nas atividades cotidianas, competições desportivas e celebrações do homem das modernas sociedades secularizadas.A experiência imaginativa e a atividade onírica desse homem, afirma Eliade, continua permeado de símbolos e temas religiosos.Ainda que se sinta como agente e produto da história, e não precise, assim, recorrer a nenhuma transcendência para justificar sua conduta e seus valores, o comportamento do homem moderno está pontuado de resquícios de arquétipos, mitos e ritos sagrados.
Não é estranho, portanto, que esse homem busque satisfazer suas necessidades religiosas profundas, suprimidas ou preenchidas de modo insatisfatório, através da leitura de certas obras literárias1 que, sob a aparência de relatos arreligiosos, representam aventuras mundanas moldadas pelo mito e oferecem ritos iniciáticos sob a aparência de conflitos cotidianos (ELIADE, 2008 e 1992)2. Isto é muito recorrente nas produções massivas da indústria cultural, de que as narrativas e filmes em torno da figura Harry Porter constituem um exemplo recente, mas que estão presentes, também, em monumentos da literatura do século XX, a exemplo do Ulisses de James Joyce, do Doutor Fausto de Thomas Mann e do Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa.
Poderíamos ir mais longe e, ainda com o apoio de Eliade (2006), lembrar que a literatura não apenas resguarda e recria mitos e ritos como também, no que tange à sua proximidade com a vivência sacral do homo religiosus arcaico, oferece uma experiência de vivência temporal que destoa da concepção linear e progressiva da sociedade secular moderna. Muitas narrativas modernas propõem ao seu leitor uma fuga ou negação do tempo histórico e pessoal e uma aproximação do tempo mágico do mito, um tempo que se renova e parece moldável ao nosso sonho; um tempo radicalmente distinto daquele que rege nosso dia-a-dia e nosso trabalho. Nas sociedades arcaicas, a recitação do mito representava um retorno aos eventos fundadores, que aconteceram in illo tempore e que, recordados, dotavam de sentido e coesão social a vida daqueles povos; isto porque, naquelas sociedades pré-modernas, toda e qualquer ação dotada de sentido participa do sagrado e requer um modelo exemplar narrado através do mito. Os romances e outras formas narrativas modernas, ainda que não possuam o poder fundador do mito, narram uma aventura humana procurando dotá-la de sentido –e isto é, segundo Eliade (1980, 2006), uma necessidade estrutural do ser humano. O ser humano reconhece sua condição no ato de narrar ou de ouvir uma narração. Dirá, assim, o pensador romeno:
Seja qual for a gravidade da atual crise do romance, a necessidade de se introduzir em universos “desconhecidos” e de acompanhar as peripécias de uma “história” parece ser consubstancial à condição humana e, por conseguinte, irredutível. É uma exigência difícil de definir; sendo ao mesmo tempo o desejo de comunicar com os “outros”, os “desconhecidos”, de compartilhar de seus dramas e de suas esperanças, e a necessidade de saber que pode ter acontecido.É difícil conceber um ser humano que não se sinta fascinado pela “recitação”, isto é, pela narração dos eventos significativos, pelo que aconteceu a homens dotados da “dupla realidade” dos personagens literários (que refletem a realidade histórica e psicológica dos membros de uma sociedade moderna, dispondo, ao mesmo tempo, do poder mágico de uma criação imaginária) (ELIADE, 2006, p. 164).
Em suma, as postulações de Mircea Eliade nos permitem identificar, nos gêneros narrativos modernos, a presença de estruturas míticas e demonstrar a sobrevida de ritos e símbolos arcaico-religiosos nestas mesmas narrativas, ainda que tais ritos e símbolos apareçam transformados e, não raras vezes, até mesmo camuflados.
Ritos iniciáticos
A introdução de aspectos do pensamento eliadiano neste estudo serve de mote para a proposição de uma nova leitura na obra Ulisses entre o amor e a morte, de O. G. Rego de Carvalho. Nosso objetivo é verificar nesta obra a presença do tema iniciatório ou da iniciação, como preferem alguns, a exemplo do próprio Eliade. A narrativa de Ulisses, consoante nossa leitura, se pauta no mito do Herói-Redentor, que deverá passar por um conjunto de provas a fim de tornar-se um uma nova pessoa, um sujeito maduro, cujo estatuto, após a superação das provas que enfrenta, sofre uma guinada psicológica e social.
O primeiro passo de nosso estudo é tratar, ainda que brevemente, do tema iniciatório, explicando o que vem a ser um rito de iniciação e quais suas peculiaridades.
O estudo clássico sobre o tema data de 1909 e é do etnólogo alemão Arnold Van Gennep, tendo recebido no Brasil o título Ritos de passagem. Nesta obra tão erudita quanto racionalmente divida e clara, Van Gennep estuda uma imensa gama de ritos, dedicando àqueles de iniciação o sexto capítulo. O ponto de partida do etnólogo é simples e amplamente aceito pela comunidade acadêmica. Em qualquer tipo de sociedade, afirma, a vida do indivíduo consiste em passar de uma idade a outra e de um ofício a outro; em nossa sociedade, tais passagens são amparadas por um sistema instituído de aprendizagem, enquanto nas sociedades arcaicas tais passagens consistem em cerimônias – uma vez que nenhuma atividade dos povos arcaicos ou pré-modernos é desvinculada do sagrado (VAN GENNEP, 2008).
Os ritos de passagem consistem, assim, em um interstício, um momento de crise, que permitem ao indivíduo refletir sobre sua posição na sociedade e, se são bem sucedidos, levam este indivíduo a reposicionar-se dentro de sua comunidade e a reconsiderar seus valores e visão de mundo. Segundo Van Gennep, são compostos de uma fase de separação e outra de agregação, sendo que entre elas há um período liminar ou de margem.
Especificamente tratando dos ritos iniciáticos ou iniciações, que constitui um entre tantos outros ritos de passagem, Eliade (2008) os define como um corpo de cerimônias e ensinamentos orais cuja finalidade é produzir uma alteração no estatuto religioso e social do sujeito iniciado. Nas sociedades arcaicas ou pré-modernas, o sucesso na iniciação é condição sine qua no para o noviço partilhar das benesses do mundo adulto. Através dela, o noviço recebe um corpo de tradições míticas, reveladas a ele no decorrer da iniciação. Enfatize-se a palavra “revelada”, para diferenciarmos este saber sacral do processo de transmissão objetiva de conhecimento tal como ocorre nas sociedades modernas. Conforme afirma René Girard (2002), os ritos iniciáticos prefiguram o papel desempenhado pelos nossos atuais sistemas de educação.
Durante o processo de iniciação, por mais distintos que sejam seus esquemas, o noviço passa por uma morte simbólica, condição fundamental para que ascenda a uma regeneração espiritual. O sagrado lhe foi revelado e ele nasceu uma segunda vez; ontologicamente, é uma nova pessoa (ELIADE, 2008).
Cabe perguntar se é plausível considerar a existência de ritos iniciáticos no seio da vida moderna. Eliade (2008) considera que os temas iniciáticos vivem, sobretudo, no inconsciente do homem moderno. Há em todos nós uma nostalgia da renovatio iniciática. Diante de momentos de alta crise, por mais arreligiosos que sejamos, é difícil que não surja em nós a esperança de um novo nascimento, de uma vida inteiramente nova. Se não é, pois, possível que a iniciação produza uma mudança radical no nosso ser, como acontece em sociedades tribais, nosso plano vital e psicológico sente-se afetado pelo anseio de um segundo nascimento. A leitura de obras literárias e a apreciação de filmes, em grande medida, recobrem essa carência ontológica. Acompanhar a aventura de um herói que sofre mil reveses mas no final consegue voltar para casa ou redimir seu povo revela-nos uma experiência de completude ontológica que é catártica para muitas pessoas. Não por acaso, um grande estudioso do tema do herói, o mitólogo Joseph Campbell (1993), reconhece três fases essenciais na trajetória deste: a partida, a iniciação e o retorno. Na iniciação, o herói enfrentará provas e tentações a fim de vencer seus opressores pessoais e voltar ao lar (triunfo microcósmico recorrente nos contos de fadas) ou a fim de redimir seu povo ou mesmo o mundo (triunfo macrocósmico recorrente no mito).
Para Eliade (2008), toda vida humana autêntica é permeada pela obsessão da renovatio iniciática, afinal a existência do homem leva consigo o risco da crise, da angústia e da perda; toda vida humana se revela, em algum momento, como vida malograda.
É preciso lembrar enfim, para que reforcemos o argumento do caráter residual dos ritos iniciáticos em nossa sociedade, que o cristianismo, ainda que acolha no seu seio iniciações como o batismo, tornou-se religião universal justamente porque se recusou a ser uma crença de iniciados, como era comum nos mistérios gregos e orientais, e se autoproclamou uma religião salvífica que acolhe a todos, indistintamente. A regeneração espiritual antes alcançada nas iniciações pode, nas sociedades cristianizadas, ser obtida através dos sacramentos cristãos, acessível a todos.
Temas e motivos iniciáticos em Ulisses
Regina Zilberman foi a primeira pesquisadora a apontar em Ulisses entre o amor e a morte a presença e a funcionalidade da iniciação. Em seu breve e arguto ensaio aquela obra, Zilberman (2011) chama a atenção para a cena, situada quase rigorosamente no meio obra de Rego de Carvalho, em que o pai de Ulisses leva-o ao barbeiro para cortar os cachos, a contragosto da mãe do garoto. Nota a pesquisadora o sentido simbólico-ritual da cena, constituindo um divisor de águas no livro do escritor oeirense, e busca antecedentes na tradição veterotestamentária (Livro dos Juízes) e, no âmbito da literatura nacional, em obras de Raul Pompeia (O Ateneu) e de Coelho Neto (O morto). Dirá: “O corte dos cabelos transforma-se num ritual de iniciação, uma modalidade de batismo, como a circuncisão ou o bar mitzah entre os judeus” (ZILBERMAN, 2011, p. 317).
No entanto, o foco central de Zilberman é outro. Interessa-lhe cotejar a novela de Rego de Carvalho com a epopeia clássica – Homero, principalmente –e com a narrativa biográfica. De modo que a alusão à iniciação não constitui uma hipótese geral de leitura, mas apenas a marcação do ponto de virada da obra.
Nossa tentativa é operar uma leitura global na novela a partir do conceito de rito iniciático. Sob esta ótica, a obra de Rego de Carvalho constitui, em sua macroestrutura, o desenrolar de um rito em duas etapas ou que exige do herói a superação de duas provas: o enfrentamento da morte do pai em Oeiras e a descoberta do amor em Teresina. Ou seja, trata-se de uma macroestrutura que comporta dois ritos em seu bojo: o rito de separação (rito funeral) do pai em Oeiras, seguido de um período liminar ou de margem no sítio Selga, que anunciará um rito de agregação (rito matrimonial), o possível enlace de Ulisses com Conceição, que será frustrado. Portanto, a macroestrutura se parte em duas microestruturas interdependentes na medida em que só a fusão de ambas permite a formação da imagem integral da experiência que fará de Ulisses um novo homem.
Tal bipartição da macroestrutura afeta todas as camadas de sentido da obra: Oeiras e Teresina; morte e amor; segregação e agregação; rito funeral e rito matrimonial. E não seriam estas as únicas dicotomias presentes na obra, outras poderiam ser apontadas: a doçura da mãe sempre saudável em oposição ao silêncio frequente do pai adoentado; os remorsos do irmão José em contraste com a dissimulação de Anália, a irmã namoradeira; a vida religiosa em Oeiras, onde o pequeno Ulisses sonhava com o Menino Jesus, e a vida mundana, cheias de transgressões e mentiras, que passou a levar em Teresina. Não menos interessante seria a constituição da paisagem: a ambientação montanhosa e rochosa de Oeiras em contraste com a onipresença do rio Parnaíba na parte da narrativa transcorrida em Teresina, aspecto que se duplica na clivagem psíquica e moral do protagonista no decorrer da narrativa: a segurança da fé e do amor materno, sólidos como o ambiente rochoso da antiga capital do Piauí, que acalantavam o menino Ulisses, em oposição às águas agitadas da adolescência – a lembrar aquelas misteriosas do rio Parnaíba –, que produzia incertezas, inseguranças e até, por certo tempo, um desentendimento do protagonista com a mãe.
Marcada, pois, por estas dicotomias, cujo par morte versus amor seria o paradoxo mais assentado, a obra divide-se em cinco partes, equilibradas quanto à extensão e cada uma concentrando o enredo em um dilema específico. A primeira parte – “Viagem de cura” – é ambientada em Oeiras e incide especialmente na doença e morte do pai de Ulisses e na difícil aceitação da morte paterna por parte deste. O autor reconstrói, numa linguagem de rara concisão e sugestividade poética, a ambiência religiosa e tradicionalista de Oeiras e introduz o dilema que irá afetar a Ulisses e aos demais membros da família: a doença do pai.
Logo na primeira cena, o menino Ulisses está afastado dos pais: encontra-se numa procissão junto a uma “criada”. Introduz-se, já nos primeiros parágrafos, o elemento da insegurança do protagonista, que está mais interessado em tornar ao lar e rever a mãe que em professar a fé. A atmosfera que cerca o pequeno é de um mistério afeito ao imaginário católico da cidade: há um horto “em que o Menino Jesus costumava brincar” (1997, p. 11); numa rocha em frente a uma cruz de pedra divisa-se “o sinal de um pé, o qual nem beijos piedosos, nem as chuvas de inverno conseguiram apagar” (1997, p. 11). Uma idosa que se abaixa para escrever no lajedo assombra-o, a ponto de ele precisar segurar firme a mão da criada. Por fim, o caminho de volta para casa é descrito como íngreme, cheio de mato e grotas que dificultam a passagem. Não bastasse a ambiência cercada de mistérios e as dificuldades do caminho, Ulisses ainda teme ser repreendido pela mãe. Mas como? Ele estava numa procissão, cumprindo um dever de fé, e não se atrasou a chegar a casa.Em tudo e por tudo, vê-se, Ulisses é inseguro, excessivamente apegado à mãe.
Mircea Eliade (2008) nos lembra de que um dos motivos mais recorrentes nos ritos de iniciação consiste na separação do neófito de sua mãe. Se assim for, as primeiras páginas da narrativa demonstram que Ulisses não está preparado para tal tarefa. É simbolicamente significativo que, no passo seguinte da narrativa, Ulisses interrompa o primo Olavo no exato momento em que este vai recolher um nino (cf. 1997, p. 14). Ele próprio não quer ser recolhido do ninho, assim como não quer que recolham o pai que está doente e precisa ir à Teresina. Quer-se ver atado à família, recolhido ad aeternum na segurança uterina do lar.
Quando à ida do pai de Ulisses a Teresina se mostra irrevogável, ele afirma: “Era a primeira ocasião em que me viria afastado dos pais, e a terceira, da mana. Pensar como seria a ausência, que tanto poderia durar um mês ou até anos, dependendo de o velho curar-se, trazia para mim uma onda de emoções [...]” (1997, p. 16). Evidentemente, a insegurança faz o menino Ulisses exagerar o tempo de possível ausência dos pais. A ocasião, finalmente, forçou a separação necessária, segundo Eliade (2008), para que ocorra o processo de iniciação. Por mais generosa que seja, “tia” Julinha não pode substituir a contento a mãe dos inseguros Ulisses e José. Na ausência dos pais, Ulisses incomodará a tia em busca de informações sobre os genitores, enquanto o estranho José buscará, como os românticos alemães, uma reconciliação com a natureza, encontrando a paz interior no chamado que esta faz ao homem. Mesmo com medo dessa voz estranha, é na copa das árvores ou no ermo de terrenos baldios que o irmão de Ulisses encontrará refúgio e paz interior, ainda que de modo provisório.
Quando o pai de Ulisses não resiste e morre, a linguagem de O. G. Rego atinge o zênite de contenção e sugestividade poética. Eis o capítulo na íntegra: “Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo” (p. 26). Para além da beleza poética, este fragmento lança um mistério que será fundamental para o desenvolvimento da segunda parte da narrativa, intitulada “A ‘Selga’”. Como não foi dito de forma denotativa que o pai morreu, fica sempre um clima de ambivalência que seduz o leitor a aceitar com mais naturalidade as “aparições” do pai de Ulisses nos primeiros movimentos da segunda parte da narrativa.
Quando nos damos conta de que tais aparições são fantasias do menino Ulisses3, fica claro que o período de margem em que Ulisses ficou com “tia” Julinha não foi suficiente para ele cogitar (não diríamos aceitar, o que só uma alta maturidade ou uma consciência mística o fariam) a possibilidade da morte do pai. No âmbito da poética formal, poderíamos explicar as aparições do genitor do protagonista pela tópica do “auxílio sobrenatural” que Campbell (1993) estudou no mito do herói e que Eliade (2008) detecta igualmente em alguns ritos inciáticos. Quando o herói aceita o chamado para percorrer uma provação, observa Campbell (1993), na sua primeira jornada ele é auxiliado por alguma figura protetora, sábio ou ser sobrenatural, que o orienta e, em muitas ocasiões, lhe presenteia com algum amuleto ou poder que lhe ajudará a enfrentar os desafios que estão por vir. Uma vez que Ulisses é um herói da jornada interior, não ganha qualquer amuleto, mas o fantasma do pai segue com ele alguns dias a fim de que ele aprenda a aceitar a realidade da morte. Uma vez aceita a morte do pai, nunca mais o fantasma aparecerá para o garoto.
O verdadeiro desafio de Ulisses começa, pois, quando ele “descobre” a morte do pai, isto é, quando a estratégia da negação (FREUD, 1976) não se sustenta mais. Neste ponto, o rito de separação se conclui, mas o pequeno herói, ferido, precisa ficar um tempo no purgatório –ou na margem, se seguirmos a denominação de Van Gennep (2008) – a fim de ganhar fôlego para enfrentar novos desafios. Cabe, neste ponto, um olhar atento sobre o fragmento da segunda parte denominado “Noturno”.
Os fragmentos anteriores a “Noturno” (p. 36-38) trataram das aparições do pai e da “descoberta” de Ulisses de que ele havia morrido, seguido das consequências de tal descoberta. “Noturno” introduz um novo espaço na narrativa, um espaço intersticial entre Oeiras e Teresina, entre o rito de separação (morte) e o rito de agregação (amor): o sítio Selga.Neste ponto, Rego de Carvalho, tendo mudado o espaço, modifica também o motivo iniciático. Inicialmente, o motivo era a separação do noviço de sua mãe; depois, veio a despedida do pai, que morre; em seguida, ocorre o auxílio sobrenatural do fantasma paterno; agora, trata-se de outro motivo bastante conhecido e muito recorrente nos contos populares: o retiro do indivíduo na selva ou em espaço equivalente. Vale ressaltar aqui a semelhança entre os nomes selva e Selga, que não deve ser mera coincidência levando em conta que a descrição da chegada à Selga é estruturalmente semelhante às descrições de chegada de heróis e heroínas à selva – lembremos, a título de exemplo, das recorrências dessa situação nos contos dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Campbell (1993) denomina este momento de “passagem pelo primeiro limiar”; nele, o herói dá seu primeiro passo rumo ao desconhecido e ao perigo. Vejamos como Ulisses retrata este momento:
Procurei animar-me com lembranças felizes. Mas o ambiente soturno começou a sobressaltar-me, e logo me vi presa de temores. Da mata não partia o menor ruído: nem de leve balançavam as frondes das aroeiras e paus-d’arco.
Ainda que me convencesse de que não me achava perdido, foi-me irreprimível o impulso de gritar (1997, p. 36).
O espaço purgativo de Ulisses, que lhe causa tanto medo, é mais interior que exterior, ou melhor, é uma insegurança interior que se projeta para o exterior e lhe empresta o aspecto soturno. Na Selga, mais adiante, essa mesma natureza que lhe pareceu lúgubre, agora lhe servirá de refúgio e lhe dará doces frutos (Cf. 1997, p. 39). Já o irmão José profanará um templo sagrado da natureza pela destruição de um ninho, o que prenunciará sua tentativa de autodestruição (suicídio) mais adiante.
A saída de Ulisses da Selga marca uma dupla reviravolta na vida dele: a entrada no limiar da adolescência e a chegada ao novo lar em Teresina. Estamos na metade do livro, no episódio do corte dos cachos argutamente analisado por Zilberman (2011).Se na primeira metade do livro tivemos um rito de separação, o noviço a se despedir do pai, agora, nesta segunda parte, prevalece o rito de agregação, no namoro de Ulisses com Conceição.
Dir-se-ia, seguindo os passos de Eliade (2008), que a Selga é o local da “morte simbólica” do menino Ulisses, que prenunciará o adolescente Ulisses que aportará em Teresina. Na Selga, Ulisses enterra o luto pelo pai e a criança que foi. Não por acaso, a terceira parte do livro intitula-se justamente “Adolescência”. Nela, acompanharemos as transformações no corpo e na mente do protagonista, suas traquinagens com os amigos Norberto e Arnaldo, o primeiro desentendimento com a mãe.Temos, embutido nesta parte, um esboço de rito narrado nos três últimos fragmentos. Neles, Ulisses transgride os conselhos maternos (separação), passa um longo período doente e afetivamente distante da mãe (margem), mas ao fim se reconcilia com a genitora (reintegração). Tal episódio parece completar a formação do adolescente, que agora está preparado para conhecer o amor.
A quarta parte da obra, “Os pombos”, reproduz, em quadros como sempre concisos e sugestivos, o destino amoroso de Ulisses, sua irmã Anália e, por negação, seu irmão José. Anália namora às escondidas da família; o estranho José, depois de matar misteriosamente os pombos que tanto amava, tenta matar-se e, ao fim, tendo escapado do envenenamento, resolve dedicar-se à obra de Deus. Entre dois extremos, a sexualidade sem laivo de culpa de Anália e a sublimação sexual pela fé de José, o tímido Ulisses encontra num espaço idílico a prima de Arnaldo, Conceição, mais tímida que ele. A cena (que se passa num quintal à antiga, espécie de selva domesticada) mostra Ulisses dividido entre três desejos: a aproximação com a arisca Conceição, a contemplação dos pombos de Arnaldo e a volta para casa, por medo de a mãe estar preocupada: o homem, o menino e o filho travam no interior de Ulisses uma luta que embaralha seus sentimentos.
Nessa mesma cena, Arnaldo presenteia Ulisses com um casal de pombos; estas aves, que, entre outras conotações, simbolizam a sublimação dos extintos animais, são mortas pelo angustiado irmão do protagonista, sinalizando antecipadamente a morte da relação entre Ulisses e Conceição (adiamento forçado dos extintos) e a morte simbólica de José (fuga deliberada dos extintos), representada por seu ato de “morrer para o mundo”, quando ele opta por entrar no seminário.
A quinta e última parte da obra, intitulada “Conceição”, mostra o enamoramento e a ruptura entre o protagonista e a prima de Arnaldo. Aqui, a linguagem de Rego de Carvalho, em suas frases curtas, diretas e sugestivas, atinge um grau de eficácia incomum seja na extração da poesia que brota da inocência de uma paixão juvenil, seja na elaboração de um clima ambivalente através do qual o leitor sente dificuldade de fixar com precisão o retrato de Conceição e de Ulisses. Ela era dissimulada e não o amava de verdade? E nele, o capricho era mera estupidez ou na verdade seu amor se arrefecera? É difícil fixar os sentimentos dos dois personagens. Machadianamente, Rego de Carvalho, nesta e noutras obras, consegue elaborar atmosferas em que a ambivalência é um sinal de respeito à complexidade dos sentimentos humanos. No entanto, o fundamental é saber que houve uma ruptura entre Ulisses e Conceição e, portanto, o herói passou pela segunda prova.
IV
Ulisses, então, saiu derrotado da segunda prova? A reposta é sim, se tomarmos como parâmetro de vitória o enlace matrimonial entre o protagonista e Conceição, que definitivamente não ocorreu. No entanto, poderíamos dar como resposta um não, se observarmos que o narrador do livro é o Ulisses maduro, que está narrando uma história que, sem se adequar aos padrões das ficções e biografias de autoajuda em voga, não deixa de ser uma história de superação. É significativo, a este respeito, o primeiro parágrafo do penúltimo fragmento da última parte, cujo título é “A primeira desilusão”: “Somente agora, passados muitos anos, posso reconstituir a cena que encerrou, para mim, as ilusões da adolescência” (p. 96).
Ulisses, mais maduro, pode não apenas reconstituir a cena que lhe causou dor, como logra ainda dar a ela um significado para sua vida: foi a primeira desilusão, não a única nem a última. Ele, portanto, não sucumbiu. É presumível que pode ter sentido a necessidade de outra pausa, como a que fizera na Selga, embora possivelmente menos dramática. Mas aí já seria outra história, com outros desafios; poderia ser narrada e o livro estendido – no entanto, não nos faz falta porque a imagem da experiência que transformou Ulisses foi completada.
O. G. Rego de Carvalho optou, acertadamente, por dar um final aberto à narrativa. Caso o final fosse absolutamente concluso poderíamos ter a impressão de que estas duas experiências ou provas enfrentadas pelo herói Ulisses deram a ele um caráter definitivo quando, na verdade, a vida humana não costuma atingir uma zona de conforto dessa natureza. Como dirá Van Gennep (2008), viver é uma contínua aventura de desagregar-se e reconstituir-se, morrer e renascer; a lei da vida nunca será o repouso, mas sim o mudar de forma e de disponibilidade espiritual. Rego de Carvalho narra um ciclo, bipartido, com um rito de despedida e um rito matrimonial –o conhecimento das experiências fundamentais da morte e do amor –que juntos constituem etapas de uma estrutura maior: o rito de passagem de um menino que, superando provas, amadurece o ego e se torna um rapaz.A narrativa de Ulisses entre o amor e a morte ilustra como um segundo nascimento, proporcionado pela iniciação, depende de disponibilidades pessoais para enfrentar as inseguranças do ego e assimilar valores partilhados pela comunidade a que pertence. Cada deslocamento espacial do personagem Ulisses na história desafia as disponibilidades do protagonista e simbolizam, por meio da linguagem lacunar e poética do escritor oeirense, um ganho, custosamente doloroso, de autoconsciência e consciência social.
No mundo arcaico, conforme lembra-nos Girard (2002), os ritos iniciáticos desempenhavam um papel que prefiguravam os nossos atuais sistemas de educação: sancionavam normas, celebravam padrões de comportamentos exemplares, marcavam mudança de status social, distribuíam ofícios. Isto hoje, nas sociedades seculares, é em grande parte papel da escola. Mas nem tudo. Por exemplo, a nossa educação sentimental, isto é, aquilo que, segundo Julián Marías (1992), nos permite o encontro com o melhor de nós mesmos, protegendo-nos da despersonalização e do primitivismo afetivo tão em voga em nosso mundo, é uma tarefa humanizadora que cabe às formas narrativas da literatura e do cinema. Tal tarefa pode ser facilitada pela escola, sem dúvida, mas como sabemos a apropriação da literatura feita no espaço escolar racionaliza o discurso literário e imprime um uso pragmático e imediatista do texto artístico.
Uma das funções primárias do mito e do rito sempre foi “fornecer os símbolos que levam o espírito humano avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás” (1993, p.21) – essa função, parece fora de dúvida, cabe hoje aos sucedâneos do mito e rito, isto é, às narrativas literárias e cinematográficas. Se, pois, os ritos se modificaram e foram ressignificados, porém não morreram, é porque eles recobrem uma parte de nossa experiência nem sempre assistida pela educação. E se a literatura resguarda estes tesouros da experiência humana, é mais um motivo para insistirmos em seu caráter formativo.
Referências
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CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1993.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
________. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.
________. Muertes e iniciaciones místicas. La Plata: Terramar, 2008.
FREUD, S. A negativa (1925). In: O Ego e o Id e outros trabalhos. Edição Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.19.
GIRARD, René. Veo a Satán caer como el relámpago. Barcelona: Anagrama, 2002.
MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
MARÍAS, Julián. La educación sentimental. Madrid: Alianza editorial: 1992.
REGO DE CARVALHO, O.G. Ulisses entre o amor e a morte. Teresina: Corisco, 1997.
VAN GENNEP, Arnold. Los ritos de paso. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
ZILBERMAN, Regina. Ulisses entre a tradição literária e o tempo presente. In: Letras em Revista. Revista do Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Piauí. Teresina, ano 02, nº 02, 2011, p. 315-323.
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Notas
[1] Não só as obras literárias cumprem este papel. A música pop, os games e mesmos as drogas tomam muitas vezes este mister para si, especialmente entre os jovens. Conforme argumenta Franz Brüseke (2001), isto tudo responde “à falta do êxtase ritualizado” (2001, p. 1999) na sociedade criada pela técnica moderna. O sagrado, na perspectiva de Brüseke, deu lugar em nossa sociedade à sacralização, que nada mais é que a transferência de potências intuídas no religioso para o campo histórico. Neste processo, o homem moderno sacraliza “coisas, momentos, objetos de consumo e hábitos adquiridos” (2001, p. 2001). Cf. o ensaio “A técnica moderna e o retorno do sagrado” em Brüseke (2001).
[2] Mircea Eliade, em toda sua obra, opõe o comportamento do homem das sociedades arcaicas ao homem moderno, no que tange ao papel da religião e do sagrado no processo de organização da vida social e no modo de ser no mundo; poderíamos, no entanto, afirmar que a dicotomia eliadiana continua válida no contexto da pós-modernidade. Ainda que na pós-modernidade se presencie um retorno ao religioso, tal retorno dá-se numa perspectiva estetista e sincrética na qual o sagrado não resgata seu antigo poder de fundar realidades. Cf. Eliade (1992) sobre a dialética do sagrado e do profano e Maffesoli (2004) sobre a religiosidade pós-moderna.
[3] Enfrentar uma dada realidade difícil negando que ela exista é um processo que em psicanálise pode ser compreendido através do conceito de negação. Dirá Sigmund Freud: “A maneira pela qual nossos pacientes apresentam suas associações durante o trabalho de análise fornece-nos oportunidade para realizar algumas observações interessantes. ‘Agora o senhor vai pensar que quero dizer algo insultante, mas realmente não tenho essa intenção.’ Compreendemos que isso é um repúdio, por projeção, de uma ideia que acaba de ocorrer. Ou: ‘O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe’. Emendamos isso para: ‘Então, é a mãe dele.’ Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de escolher apenas o tema geral da associação. [...] A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido” (FREUD, 1976, Vol. XIX, p. 139-140).