The Transgressive Poetic of Gilka Machado
And the movie generated the reader: a study about The Chronicles Of Nárnia In Brazil

Júlio César Tavares Dias*
* Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Possui graduação em Letras pela Universidade de Pernambuco (2007) e em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Tem particular interesse pelo Discurso Religioso e pelo Movimento Pentecostal. É professor da rede pública estadual de Pernambuco. Tem atuado como professor da rede particular e de cursinhos preparatórios para concursos. Trabalhou no projeto Aprender Mais no ano de 2009. É poeta, tendo publicado com colegas em coletâneas e participando ocasionalmente de eventos relacionados a Literatura. Contato: juliocesartdias@hotmail.com.
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Resumo
A poética de Gilka Machado é transgressora à medida que não se adequa às expectativas sociais de sua época referentes ao que uma mulher poderia dizer/escrever. Nos versos dessa autora vemos ser constante a temática do desejo, o que lhe causou a rudez da crítica, por romper com os pudores que condenavam que a mulher expressasse desejar, restando-lhe o lugar de esperar ser desejada pelo homem. Neste artigo buscamos ler os poemas de Gilka Machado relacionando-os com os mitos de transgressão. Verificamos, curiosamente, que quando nesses mitos é um homem que transgride a sua ação é vista como positiva e heroica, ainda que sofra sanções, já a transgressão feminina é sempre malvista. Propomos então que se leia a transgressão feminina de forma positiva.

Palavras chave:poesia feminina, erotismo, transgressão, Gilka Machado.

 

Abstract
The poetic of Gilka Machado is transgressive due to the fact that it does not adequate itself to social expectations from its time concerning to what an woman could speak/write. In verses of this author, the theme o desire is constant, resulting in the rudeness of criticism because she transgressed prudishness that condemns women who express their desires: she should wait to be desired by the man. In this paper, we intended to read Gilka Machado’s poems in connection with myths of transgression. Curiously, it verifies that, in these myths, when a man is the transgressor, his actions are seen as positive and heroic, even suffering sanctions, but feminine transgression is always considered bad. Our purpose is to read feminine transgression in a positive way.

Keywords:feminine poetry, erotism, transgression, Gilka Machado.

Primeiras Palavras

Tomamos o termo “poética da transgressão” de Viviana Gelado (2006) que o usou para se referir às vanguardas literárias dos anos 20 do século passado na América Latina. Aprendemos com Bataille (1980, p. 13) que o erotismo transforma o que é meramente sexual (e portanto, meramente animal) em “uma busca psicológica” (portanto, humana), em que se questiona o ser (BATAILLE, 1980, p. 27). Assim, o erotismo é um aspecto da vida interior sempre vivido como transgressão (BATAILLE, 1980, p. 27-35; p. 56-62). A poesia de Gilka Machado é eminentemente erótica e, por conseguinte, eminentemente, transgressora.

Tendo estreado ruidosamente em 1915, aos seus vinte e dois anos, com o livro Cristais Partidos, Gilka Machado chocou o público com sua lira amoroso-erótica. Na época em que publica seu primeiro livro, duas mulheres já tinham alcançado destaque no mundo das letras brasileiras: Francisca Júlia (1871-1920) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), ambas não revelam, entretanto, como Gilka Machado o fez, um Eu feminino que se declara e se revela intimamente. A poesia gilkiana mostra-se, então, mais do que erótica, um “pioneirismo na abertura de espaços contra o paradigma masculino dominante” (SOARES, 1999, p. 93).

Em 1933, foi eleita “a maior poetisa do Brasil”, por concurso da revista O Malho. A marginalização em que caiu sua obra se deve à atuação da crítica que a considerou uma “matrona imoral” (MACHADO, 1978, p. IX). Muitas das controvérsias envolvendo seu nome surgiram não baseadas no conteúdo de seus versos, mas por terem confundido o eu-lírico neles expresso com a vivência da autora, quando, na verdade, “a autora de Mulher Nua praticava a sinceridade fingida ou o fingimento sincero” (MOISÉS, 1984, p. 257).

Sobre Mulheres e Serpentes

Sobre “O enigma” freudiano, “Ser mulher” e “sobre o qual os homens sempre meditaram”, Lacan escreve: “Não é vão observar que o desvendamento do significante mais oculto, que era o dos mistérios, era reservado às mulheres” (LACAN apud AULAGNIER-SPAIRANI, 1990, p. 69). A questão é que a mulher têm sido um ser sempre dito pelos homens, o que nos leva a pensar que as imagens criadas da mulher dizem pouco da realidade e que, assim, a simples autoria feminina já seria uma forma de resistência à dominação masculina: “a feminidade é, antes de mais nada, uma invenção dos homens e, se não chegarei a dizer como Freud que para as mulheres ‘a questão não se coloca, pois são elas próprias o enigma do qual falamos’” (AULAGNIER-SPAIRANI, 1990, p. 69).

Mas, se era permitido à mulher escrever e publicar, não significava que elas poderiam se colocar na posição de desejante sem sofrer sanções sociais. A poesia feminina nos fins do século XIX era vista como o “sorriso da sociedade”, representando conforme um crítico da época, “eterna mesmice” (COELHO, 2001). Michelle Perrot em sua obra Minha História das Mulheres nos afirma que:

Então as mulheres têm uma alma. Mas teriam espírito, isto é, a capacidade da razão? Sim, diz Poulain de la Barre, um dos primeiros a afirmar, no século XVII, a igualdade dos sexos, na esteira de seu mestre Descartes, para quem “o espírito não tem sexo”. (...) Mas as mulheres são suscetíveis de criar? Não, diz-se frequente e continuamente. Os gregos fazem do pneuma, o sopro criador, propriedade exclusiva dos homens. (...) [Assim, durante muito tempo] Recusam-se às mulheres as qualidades de abstração (as ciências matemáticas lhes seriam particularmente inacessíveis), de invenção e de síntese. Reconhecem para elas outras qualidades: intuição, sensibilidade, paciência. (...) Escrever, pensar, pintar, esculpir, compor música... nada disso existe para essas imitadoras. (...) Escrever, para as mulheres, não foi uma coisa fácil. Sua escritura ficava restrita ao domínio privado, à correspondência familiar ou à contabilidade da pequena empresa (PERROT, 2008, p. 96-97).

Se escrever era difícil, devemos considerar que “Outras fronteiras são ainda mais resistentes: as ciências, principalmente a matemática, cuja abstração foi, por muito tempo, considerada um redibitório ao exercício das mulheres. E a nata do pensamento: a filosofia” (PERROT, 2008, p. 100). De modo que, conquistar a fronteira da literatura deve ser considerado como um passo importante para que outras fronteiras fossem conquistadas. “Assim, o papel das mulheres na criação artística, ontem e hoje, precisa ser reavaliado” (PERROT, 2008, p. 106). A grande transgressão de Gilka Machado se caracteriza pela ousadia da mulher em suas poesias atrever-se a falar aos homens o que deveria esperar que os homens falassem a ela, ou seja, o lugar da mulher é o lugar da espera. Tendo ficado viúva cedo, a motivação erótica de Gilka Machado talvez seja a ausência e não a presença, lembremos pois que a ausência usualmente faz parte do discurso feminino:

Historicamente, o discurso de ausência é sustentado pela Mulher: a mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é conquistador (navega e aborda). É a mulher que dá forma à ausência: ela tece e ela canta (...) De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: este homem que espera e sofre está milagrosamente feminizado (BARTHES, 2000, p. 53).

O que é ser mulher? Conforme Chauí, “A mulher, ambiguamente, é vista essencialmente como corpo (virgem, mãe, esposa, prostituta) ou como “fêmea” – isto é, como um ser que permanece determinado pela Natureza – e, ao mesmo tempo, como um “bem” – isto é, como coisa natural” (apud DURIGAN, 1986, p. 16). Assim, a obra de Gilka Machado representa uma “corajosa transgressão das expectativas sociais com respeito à mulher” (MOISÉS, 1984, p. 255), ao ousar romper com a mesmice em que se encontrava a literatura produzida pelas mulheres, tida como “sorriso da sociedade” e sempre como de leitura amena: “É contra o panorama dessa ‘mesmice’ (...) que vão se fazer ouvir as primeiras vozes transgressoras, - as que expressam um eu que se busca dono de sua própria verdade” (COELHO, 2001). A voz de Gilka é transgressora à medida que se diz por si mesma e a si mesma, vejamos o poema seguinte:

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
Para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
Tentar da glória a etérea e altívola escalada,
Na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
Para poder, com ela, o infinito transpor;
Sentir a vida triste, insípida, isolada,
Buscar um companheiro e encontrar um Senhor...

Ser mulher, calcular todo infinito curto
Para a larga expansão do desejado surto,
No Ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!
Ficar na vida qual uma águia inerte, presa
Nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
(MACHADO, 1978, p. 56)

Assim, Gilka Machado se mostra consciente da sua situação de gênero. Todo poema se constrói na base da antítese entre o desejo e a força da lei que interdita a sua execução. O uso das reticências frequente nas estrofes parece indicar, todavia, que mesmo sofrendo a repressão o desejo permanece. O que Gilka Machado parece querer nos mostrar é que além da repressão do super-ego e da repressão externa imposta pelas várias instituições sociais, a mulher sofre a carga repressiva de que as leis sempre foram feitas pelos homens (SOARES, 1999. p. 97). Sua crítica à condição social da mulher aparece em imagens fortes, como a referência que ela faz a um mito de transgressão, o mito grego de Tântalo que “castigado por roubar os manjares dos deuses e entregá-los aos homens, não podia mais beber água nem comer frutos, já que os rios se retraíam e as árvores encolhiam os galhos, à sua aproximação” (HOUAISS, 2001) e a imagem da águia presa por grilhões enormes.

No poema Volúpia outro mito de transgressão é evocado, o mito do Éden1 (ou de Eva):

Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios,
à tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.

Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo sutil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,
minha íntima, nervosa e rúbida serpente.

Teu veneno letal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços.

Teu veneno letal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.
(MACHADO, 1978, p. 71)

Nesse poema, vemos ser retomada a figura bíblica da serpente vista sempre como tentadora. Não podemos nos esquecer também que é a serpente um símbolo eminentemente fálico. A volúpia aí é recriada pela sensação do veneno percorrendo todo o corpo, essa sensação parece reforçada pelo recurso das anáforas, a aliteração do “l” e a repetição constante de vogais nasais contribui para a sensação de amolecimento e languidez. Porém, a alma pura repudia essa volúpia, consciente, ao contrário de Eva2 no mito bíblico, da letalidade que a tentação oferece, porém mesmo assim a alma cede à tentação, arrisca-se, sem poder ou sem querer resistir-lhe para o desgosto da crítica da época.

Vemos, o eu-lírico (feminino) se unir à serpente (símbolo do masculino) e desse adquirir algo: “Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,/ o teu modo sutil, o teu gesto indolente”. Uma das formas que Freud viu da mulher resolver seu Complexo de Castração foi o dela se unir ao homem para assim possuir o seu falo. Parece ser isso que é apontado nesse texto. Porém, em Gilka Machado o sujeito feminino aparece sempre como desejante e o homem normalmente como seu objeto. No poema Ser Mulher, contudo, o verso “Buscar um companheiro e encontrar um Senhor”, parece já fazer eco ao mito edênico, quando Deus dirigindo-se à mulher fala: “teu desejo será para o teu marido e ele te dominará”. Essa fala, tão amplamente tomada para justificar dominação masculina, seria o castigo da transgressão feminina, no entanto, atentemos para ambiguidade dela: por quem a mulher será dominada? Por seu marido? Ou pelo desejo que ela sente? Em um verso de Gilka Machado lemos “Cedo casei. Fui pelo sexo vencida”3 (MACHADO, 1978, p. 274), assim a mulher vive o paradoxo de que viver o desejo não é gozá-lo, mas ser vencida por ele, o que constituiria uma “gloriosa ruína”.

Mas evoquemos outro mito de transgressão, o de Pandora que movida por sua curiosidade abre a caixa que lhe foi dada espalhando males por sobre a Terra, e ainda lembremos o mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e como castigo é amarrado e uma ave lhe come todo dia o fígado, que após regenerar-se a noite, é comido novamente no dia seguinte. Assim, temos mitos de transgressão onde as personagens são tanto homens como mulheres, no entanto, enquanto os homens são heroicizados pelas suas ações, embora sofram sanções do parto dos deuses, as mulheres são vistas sempre de forma negativa. Parece que isso demonstra o pensamento de que transgredir é próprio dos homens que são movidos pelo ímpeto e pelos ideais de coragem e virilidade, mas a transgressão não pode ser aceita quando vinda da parte das mulheres, pois a elas cabe ser submissas (Efésios 5,22). Cientes disso, não deveríamos ler os mitos de transgressão femininos de uma forma positiva? Esse é um desafio:

A narrativa mitológica contada a partir do seu final nos diz: Adão e Eva, fora do Jardim, fizeram sexo e desta relação de amor nasceu o seu primeiro filho. Este primeiro orgasmo da vida humana mitológica só foi possível porque Adão e Eva transgrediram a ordem de Javé e foram expulsos do Jardim. O decreto de expulsão de Javé ocorreu porque Eva e Adão tiveram, dentro do Jardim, desejo sexual um pelo outro. Este desejo nasceu em razão de terem comido do fruto da árvore do bem e do mal, que lhes era proibido e lhes foi ofertado por um Deus concorrente, em forma fálica de Serpente, o qual despertou neles o desejo da sexualidade. Antes do desejo, a vida de Adão e Eva era sem graça, eles não tinham identidade, ficavam nus um diante do outro e nada sentiam. Esta castração era promovida pela lógica da ordem e da obediência cega imposta por Javé dentro do Jardim. Ficar no Jardim significaria morrer. A vida em plenitude estava fora dele. É possível perceber nesta narrativa que há uma grande alternativa religiosa que mora fora do Jardim e não dentro dele. Esta alternativa proposta pelo Deus Serpente, alimentada pelo sentimento do desejo, fez romper não só com a ordem imposta pela tirania do Deus Javé, mas também lhes permitiu desfrutar da sexualidade e, mais ainda, lhes abriu o portal para um novo mundo, muito mais amplo do que a morada restrita e restritiva do Jardim. (VERGARA, 2011, p. 351).

Claro que ler ou sugerir ler de outra forma um mito de transgressão é também uma transgressão, dessa vez contra a ortodoxia, esta consiste na interpretação oficializada por uma tradição, que se esforça por fazê-la parecer a mais natural e a única possível. A ortodoxia é reducionista, porque contraria o princípio de que o texto é polissêmico. Ela se estabelece não por ser a interpretação mais coerente, mas pelo “poder dizer” que têm os que a sustentam: os que não concordaram foram mortos, assim que nasceu a sã doutrina. Mas pode ser sã uma doutrina que não promova uma vida sã? Baseado na transgressão de Eva, ou na narrativa dela ter sido criada a partir da costela de Adão4, tem-se justificado a dominação masculina e “os pesados grilhões dos preceitos sociais” impostos à mulher dos quais Gilka fala: “as grandes religiões monoteístas fizeram da diferença dos sexos e da desigualdade de valor entre eles um de seus fundamentos. A hierarquia do masculino e do feminino lhes parece da ordem de uma Natureza criada por Deus” (PERROT, 2008, p. 83). No entanto, isso não seria considerar que a mulher seja menos imagem de Deus do que o homem? O que significa que “macho e fêmea os criou, à imagem de Deus os criou”? Isso não significa que toda humanidade, composta dos elementos feminino e masculino, compõem o retrato de Deus? Ou devemos manter unicamente uma imagem masculina de Deus?

A transgressão de que falamos é o “pecado original”. Original não por ser o primeiro, mas por ser a partir dele que se origina nossa existência como ela é: já nascemos culpados na doutrina cristã, e uma das consequências do pecado original é a concupiscência que todos carregamos, isto é, o pecado habita nossa vida fazendo-nos querer pecar5. Vista como responsável pelo pecado original é natural que a mulher se sinta como pecadora. É isso que vemos neste soneto de Gilka Machado:

REFLEXÕES (IV)

Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado, na Terra, amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.

Filha de um louco amor desventurado,
trago nas veias lírico fervor,
e, se meus dias a abstinência hei dado,
amei como ninguém pode supor.

Fiz do silêncio meu constante brado,
e ao que quero costumo sempre opor
o que devo, no rumo que hei traçado.

Será maior meu gozo ou minha dor,
ante a alegria de não ter pecado
e a mágoa da renúncia deste amor?!...
(MACHADO, 1978, p. 151)

Neste soneto, há a confissão do pecado, mas o pecado no decorrer do texto se transforma em virtude, a maior das virtudes: o amor. No entanto, embora se assuma a virtude e o pecado, ambos não estão pacificados, o que se assume é o conflito e a angústia que causa, não a sua resolução. Cria-se um paradoxo entre erotismo e pudor: amor e pecado estão em conflito, mas não se abre mão de um em prol de outro, o que seria mutilar a personalidade que é composta pelos dois:

REFLEXÕES VI

Ó meu santo pecado, ó pecadora
virtude minha! ó minha hesitação!
bem diferente esta existência fora,
ermo de ti tão frágil coração!...

Se ora és sensualidade cantadora,
instinto vivo, alegre volição,
logo és consciência calma, pensadora,
silenciosa tortura da razão.

Contudo, eu te bendigo, eu te bendigo,
ó dúbio sentimento, que comigo
vives, minha agonia e meu prazer!

Quanto lourel minha existência junca,
por ti, pecado, que não foste nunca,
por ti, virtude, que ainda sabes ser!
MACHADO, 1978, p. 152)

Como numa alternativa ao soneto Volúpia, aqui é a virtude que e mantém vencedora, embora o “pecado” que nunca concretizado pareça também saír vitorioso: justamente porque nunca realizado que ele permanece sempre presente na alma e no pensamento.

Já no poema Carne e Diabo, a poética da transgressão de Gilka Machado “afronta ousadamente a costumeira exaltação da virtude, considerando, paradoxalmente, que o diabo, autor de todos os males, deve ser bendito por essa mesma razão, pois dá ao homem e a mulher motivos para fortalecerem suas virtudes - a virtude só se fortalece com o exemplo do vício, parece dizer” (PY, 1978, p. XXVI). Assim, Gilka Machado faz o que propomos fazer aqui: ler o mito de transgressão de uma forma positiva, ou seja, “tresler” o mito.

A carne
é o céu do Diabo
e o Diabo é a mais terrível
e a mais possante
das criações divinas
(...)
o velho anjo rebelado
- criação invejosa6
de seu próprio Criador -
começou a plagiá-lo,
e, ansiando ineditismo,
deu ao corpo a volúpia,
deu ao espírito a astúcia,
num e noutro encerrando
todas as seduções
terrenas
e celestes.
(...)
e, olhos tediosos
a passear
pelas distâncias,
súbito, estremeceu de pasmo,
divisando
a obra-prima de Deus,
a inspiração suprema,
na fresca e frágil
formosura de Eva.
E monologou
num sorriso:
- Carne, a terra serás
onde minha semente
maligna
lançarei
para eterna vingança;
florescerei nos teus olhos,
nos teus movimentos
e nas tuas quietudes,
nas tuas frases
e nos teus silêncios:
nessa paradisíaca beleza
hei de ter meu jardim
de corolas inférias
e o perfume de tua florescência
há-de, por certo,
envenenar o mundo”.
(...)
Deus criou o céu,
a terra,
(...)
o Diabo engendrou
apenas o pecado,
com ele revolucionando
toda a epopéia divina.
O Diabo é para Deus
o que é a luta para os heróis,
o que é a treva para a luz,
o que é a morte para a vida.
O Diabo é o estímulo de Deus:
não existisse o monstro encantador,
e, ensimesmado,
em tudo e em todos se encontrando,
nunca evoluíra Deus em sofrimento,
descendo à humanidade
em Jesus
em perdão.

Carne
bendiz o Diabo que te espia
do fundo de teu ser
e faz com que te venças
a ti mesma
e faz com que a ti mesma não mereças.
Mulher
bendiz o Diabo
que te embeleza a beleza:
por ti quantos subiram,
em quedas,
às alturas celestiais!
quantos, por teu abismo, os céus venceram,
pois a rubra semente da volúpia,
floresce em gozo
e frutifica em mágoa.

Bendito seja o Diabo
que investindo
contra o poder criador
soube excedê-lo,
pois, o pecado criando,
fez Deus maior,
humanizou-o,
sugeriu-lhe a ternura
sugeriu-lhe a piedade
e o homem divinizou com o sofrimento,
e às almas deu uma alma nova
- o amor.
(MACHADO, 1978, p. 208-211)

Fernando Py (1978, p. XXVI, grifo do autor) considerou esse poema como “o ponto crucial da sublimação”. Neste poema, a transgressão engendrada pelo Diabo passa a ser o clímax de toda epopeia humana, e mesmo da teodiceia: pelo pecado não é só o homem que evolui, mas o próprio Deus se vê desafiado e evolui – passa do iracundo Jeová do Velho Testamento para o amoroso e acolhedor Jesus cristão. Assim que o mea culpa pode ser visto na verdade como felix culpa: expulsa do paraíso a humanidade pode cumprir melhor seu papel de dominar a natureza, passou de estar confinada a um ‘jardim’ para se expandir por todo o mundo.

O poema Carne e Diabo é seguido no livro Sublimação por outros dois cujos títulos também dão sugestões de tema religioso: Quarta-Feira de Cinzas e Viagem ao Sétimo Céu. Em Quarta-Feira de Cinzas há o encontro do santo e do profano, pois nesse dia ao mesmo passo que os amados acordam ressacados de prazer e da folia de Carnaval, é o dia que na tradição cristã começam as penitências para a Páscoa, a Quaresma: a alegria é uma máscara da Mágoa, é hora de tirar a máscara, de pagar a penitência que é a própria vida, na qual amar é dar as mãos e juntar as tristezas:

- “Mas os braços estendes para mim e guardas minhas mãos nas tuas presas; vão ser mais tristes nossas tristezas, juntas assim.”
(MACHADO, 1978, p. 212).

Viagem ao Sétimo Céu é um poema orgásmico: o êxtase religioso é tomado como metáfora do orgasmo sexual.

e em toda a espiritualidade
do infinito
vislumbrei o desejo humano
de se precipitar
sobre o céu novo da cidade
infernalmente iluminada.

E em meus membros senti
uma súbita fuga,
um desagregamento de mim mesma,
uma ânsia de adormecer
nos teus braços
esta velha fadiga de ser alma.
(MACHADO, 1978, p. 213, 214).

Enquanto no cristianismo, “com suas ideias neoplatônicas sobre a dualidade do espírito e da matéria” (VALLET, 2002, p. 196), o sexo é falado lembrando pecado, os religiosos da Índia, desenvolveram a “oração do corpo”, que se dá através da prática do ioga e do tantrismo: “Na comparação com a ascese cristã dos Pais da Igreja, a ioga e o tantrismo pressupõem que é preciso dominar o corpo, mas sem modificar a carne (...) relacionam-se mais a prática do que com a renúncia” (VALLET, 2002, p. 196). Assim, “Essa interioridade não separa o aspecto sensível do inteligível” (VALLET, 2002, p. 197). As “ideias neoplatônicas sobre a dualidade do espírito e da matéria”, é que causam a “fadiga de ser alma”, precisando descansar sendo corpo junto a outro corpo: “uma ânsia de adormecer nos teus braços”. Assim, como na espiritualidade indiana, a Viagem ao Sétimo Céu aparece como uma oração do corpo, num desejo que opostos se completem: “sobre o céu novo da cidade/ infernalmente iluminada”. O inferno e o Diabo são reabilitados, então, na poesia gilkiana, que aceita elementos do paradoxo sem tentar resolver o paradoxo.

Se é verdade que a exigência de submissão feminina foi legitimada pela religião, a poética gilkiana é transgressora ao ousar uma nova forma de dizer os termos da religião, uma nova forma de dizer “Deus”, é o que vemos no soneto seguinte, que foi dedicado ao crítico João Ribeiro, um dos poucos a falar em defesa de Gilka Machado quando a maioria a condenava, onde ela questiona a metáfora de Deus como luz:

Deus é luz? mas por que? (minha razão trepida,
e, exânime, baqueia, e desfalece quase).
Deus é causa da luz, Deus é causa da vida,
a luz vem pois de Deus, sem que lhe seja a base.

Nunca pude descrer, por uma longa fase
desse oculto criador que a amá-lo nos convida;
quem poderá rasgar a misteriosa gase
que enubla sua forma etérea, indefinida?

Sinto Deus, muita vez, ouço-lhe a voz sombria,
mas na treva compacta e na calma absoluta,
não ao fulgor do Sol, aos ruídos do dia.

Verás a gestação da vida, a tua alma eleva,
Homem! penetra a noite, o amplo silêncio escuta:
não poderás negar que seja Deus a treva.

A luz, normalmente associada a Deus, é um elemento-simbólico masculino, como a chuva, desce dos céus, onde está o “Pai nosso”. Já associar Deus à treva é associá-lo a um elemento feminino, o que para nós é muito importante, na medida que permite ao self identificar-se como imago Dei. Mas o poema não se constitui apenas da oposição entre luz e trevas. Nele também está a oposição equivalente de silêncio e som. É na treva e no silêncio que se ouve “a voz sombria” de Deus. Esta não é uma imagem intra-uterina?

Mea Culpa, Felix Culpa – ou Juízo Final

O último livro de Gilka Machado, Velha Poesia, foi publicado em 1965, “já velha e doente, ainda assim, Gilka Machado inseriu grande cópia de inéditos no volume, os quais sem exceção, falam de seus desenganos, suas reminiscências, da proximidade da morte” (PY, 1978, p. XXVII). Um dos últimos poemas desse livro chama-se, o que é muito sugestivo, Juízo Final:

Juízo Final


Aqui me tens horrivelmente nua,
liberta e levitante,
sem atitudes, sem mentiras,
sem disfarces,/
ante o infinito da bondade tua
Perdoa-me Senhor,
o sonho de outro mundo
(meu pobre mundo tão
efêmero e inferior)
desdenhosa do teu
perfeito e eterno!
Perdoa-me Senhor,
por meus excessos
de timidez e de audácia,
de ódio e paixão,
de acolhimento e de repúdio!
Perdoa-me Senhor,
pelos ímpetos que não refreei,
pelas lágrimas que provoquei,
pelas chagas que não curei,
pela fome que não matei,
pelas faltas que condenei,
pelas idéias que transviei
Perdoa-me Senhor,
por ter amado tanto o amor
com toda sua falsidade,
com todo seu infernal encanto
que ainda perdura
nesta saudade!
Perdoa-me Senhor,
pelo que sou
sem que o tivesse desejado,
pelo que desejei e não fui nunca,
pelo que já não
mais poderei ser!...
Perdoa-me Senhor,
os pecados conscientes
que te trago de cor!
Perdoa-me Senhor,
porque não te perdôo
o não me haveres feito
um ser perfeito,
uma criatura melhor

É forte a imagem da mulher “horrivelmente nua”, uma vez que, “a novidade do cristianismo era justamente a afirmação da igualdade espiritual entre homens e mulheres, que estarão iguais e nus no Juízo Final” (PERROT, 2008, p. 83). Mas agora, dirige-se a Deus “não mais aquela que cantava outrora o seu belo corpo despido e jovem” (PY, 1978, p. XXVII), mas a senhora da “velha poesia”, cheia de memórias de seus tempos de juventude e à espera da morte, vista num de seus últimos poemas como um pássaro que já levara suas amigas.

Entre pedir perdão e não perdoar (nos últimos versos) vemos a razão que move a transgressão: o espírito feminino não cabe nos planos predestinados para ele. Transgredir, em sua etimologia, pode ser entendido como ir além, e neste sentido que pode ser visto como uma ação positiva. A transgressão que Gilka Machado empreendeu é de ousar dizer de si, do desejo e de coisas íntimas, ousar dizer de coisas que só aos homens era permitido dizer.

Mas no decorrer de seus poemas transgressores aparece o tema da transgressão bíblica, e não somente isso, mas o tema da espiritualidade e da religião, “rastros de sagrado”, são relativamente recorrentes em sua obra sem que ainda, embora já muitos pesquisadores tenham se debruçado sobre sua obra no intento de reabilitá-la, tenha recebido a atenção devida.

Referências

AULAGNIER-SPAINARI, Piera. Observações sobre a feminidade e suas transformações. In: CLAVREUL, Jean et al. O Desejo e A Perversão. Tradução Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1990. p. 67-96.

ARMSTRONG, Karen. Uma Pequena História do Mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BARTHES, Roland. Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. 15ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. 2ª edição. Tradução João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes, 1980.

BÍBLIA SACRADA. Versão Almeida Século XXI. Disponível em: Acesso em: 17/04/2018.

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Notas

[1]. Ou da Queda, ou de Eva. Esse mito é narrado em Gênesis 2 - 4. A palavra Éden significa “delícias”. Outras religiões têm também mitos de um paraíso perdido, ideia que segundo Karen Armstrong (2005) acompanha a humanidade desde o período paleolítico.

[2] Vide 1 Timóteo 2,14: “E Adão não foi enganado; mas a mulher é que foi enganada e caiu em transgressão.” Milton imagina, em seu Paradise Lost, que Adão comeu o fruto proibido por não suportar a ideia de ser separado de Eva, sobre quem já caía a condenação de ser expulsa do paraíso. Um ponto interessante é que Deus não dissera a Eva, mas a Adão, que não lhe era permitido comer do fruto.

[3]“Na Nova Aliança, o dever conjugal parece mera concessão à sensualidade, ‘pois é melhor casar do que arder’ (1 Coríntios 7,9). Esse desinteresse pela sexualidade e pela procriação pode estar relacionado com o ambiente apocalíptico da época: muitos, certos de que o fim dos tempos se aproximava e a volta do Messias era iminente, não se preocupavam com o futuro de suas famílias e de seu povo” (VALLET, 2002, p. 69).

[4]Uma versão do mito bíblico da criação mostra homem e mulher sendo criados ao mesmo tempo (Gênesis 1,27), noutra versão (Gênesis 2,21-22) a mulher teria sido criada a partir do homem “’vinda de um osso sobressalente’, como lembra Bossuet para incitá-las à humildade, tendo a Igreja Católica [e grande parte do mundo cristão] adotado essa segunda visão” (PERROT, 2008, p. 84).

[5]O apóstolo São Paulo trata deste ponto na epístola aos Romanos 5 – 7.

[6]Vide Sabedoria 2,24: “Mas, pela inveja do diabo a morte entrou no mundo e a experimentaram os que são do seu partido”. Uma tradição diz que o Diabo teria tido inveja do homem, que Deus elegera como príncipe da criação, mas também se diz que a queda de Lúcifer se deu por sua ambição de querer ser igual a Deus (Isaías 14,12-15).