Hermenêutica à brasileira: quem disse que índio não pensa?
Hermeneutics in a Brazilian way: who said that indians don’t think?
Flávio Schmitt* e Eduardo Sales de Lima**
* Flávio Schmitt é doutor em Ciências da Religião pela UMESP, professor na Faculdades EST em São Leopoldo/RS. Contato: flavio@est.edu.br.
** Eduardo Sales de Lima é doutorando em teologia pela Faculdades EST. Especialista em diálogo inter-religiosos (ITESC). Professor no Unicesumar. Professor convidado no curso de especialização em NT da PUC (campos Maringá). Coordenador e professor no CETAD (Centro de Estudos Teológicos das Assembléias de Deus em Maringá). Bolsista CAPES. Contato: eduardo. lima@unicesumar.edu.br
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Resumo
O objetivo deste trabalho é propor um caminho hermenêutico à brasileira. Para isso, extrair-se-á reflexões hermenêuticas a partir das provocações presentes na narrativa sobre o índio Isaías,no livro Maíra de Darcy Ribeiro. A metodologia valer-se-á de elementos da reflexão pós/des-colonial. Primeiro, do texto à possibilidade de uma nova história. Toda hermenêutica é contextual, por isso, a imposição de uma perspectiva externa configura ato de violência. Segundo, a narrativa nos provoca a questionar o método. O objetivo é estabelecer uma vigilância epistêmica capaz de perceber as estruturas universalizantes ocultas no próprio método. Terceiro, as provocações nos levam para o elemento central na elaboração de uma hermenêutica à brasileira: a perspectiva vivencial retratada por uma leitura pluralista. Ao término, constatar-se-á que uma hermenêutica à brasileira surge como proposta a um caminho de interpretação plural, não sem ambiguidades, mas direcionado a prática da inclusão e do diálogo inclusive com outras hermenêuticas.
Palavras chave:Hermenêutica, contexto, colonialidade
Abstract
The objective of this work is to propose a hermeneutic road in a Brazilian way. For this, it will be extracted hermeneutic reflections starting from the present provocations in the narrative about the indian Isaias, in the Darcy Ribeiros’s book Maíra. The methodology will be been worth of elements of pós/des-colonial reflection. First, the possibility of a new history from the text. Every hermeneutics is contextual, so the imposition of an external perspective configures a violence action. In second, the narrative provokes us to question the method. The objective is to establish a epistmic surveillance capable to notice the universalizing occult structures in the method itself. Third, the provocations take us for the central element in the elaboration of a hermeneutics in a Brazilian way: the vivencial perspective portrayed by a pluralist reading. In the end, it will be verified that a hermeneuticsin a Brazilian way appears as a proposal to a plural interpretation road, not without ambiguities, but directed to the practice of inclusion and dialogue including other hermeneutics.
Keywords:Hermeneutics, context, coloniality
Introdução
A história da relação entre os povos tem sido marcada por encontros e desencontros. Os momentos de maior desencontro são caracterizados pela assimetria nas relações. Os momentos de maior encontro são marcados justamente pela superação desta assimetria, seja no terreno prático ou teórico.
Nesse trabalho pretende-se apresentar uma leitura da obra Maíra de Darcy Ribeiro. Para nossa análise utilizarei o texto sobre o índio Isaías. Por meio de um olhar crítico e pós/des-colonial, pretendo traçar algumas provocações à nossas hermenêuticas e sua relação com outras literaturas. No método de apresentação proponho uma leitura a partir das provocações que Darcy apresenta pelo seu personagem, o índio Isaías. Os desafios e provocações servem de base para construção de uma hermenêutica que resgate a brasilidade de nosso povo. Neste, pretende-se revelar as imposições e construções dominadoras presentes na epistemologia imposta pela lógica colonial. Nesse percurso, a sabedoria de Isaias se revela sabedoria do povo brasileiro, real base para construção de uma hermenêutica que faça sentido para nossa forma de ler Deus, as Escrituras Sagradas e a própria vida.
Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Colonialidade hermenêutica: Importadores de consciência enlatada
Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Padre serei, ministro de Deus da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas gente, eu sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja padre, assim poderei viver quieto e talvez até ajudar o próximo. Isto é, se o próximo deixar que um índio de merda o abençoe, o confesse, o perdoe.1
Na primeira pergunta da narrativa sobre o Índio Isaias, Darcy Ribeiro2, confronta nossa forma de olhar e interpretar o mundo. Por que não podemos ser diferentes? Por que é preciso nascer em outro lugar? Essa forma de olhar é também forma de pensar, por isso, hermenêutica. Não por técnicas e manuais densos com linguajar pesado e distante, mas pelo ato de perceber a vida como verdadeiro manual de interpretação, esse é o caminho que o índio Isaías nos provoca a percorrer. Mas, por que é importante nascer em Jerusalém? Não poderia nascer no Brasil? Será que índio não pode fazer hermenêutica? Será que para fazer uma boa interpretação temos que nascer em outro mundo? Mas, gente, eu sou? Não, não sou ninguém. Pode até ser que sejamos interpretes, isso é claro, se o próximo deixar que um índio de merda produza hermenêutica.
Em seu discurso produzido pela TED, Tecnology, Entertainmentand Design, realizado em 2009 e publicado posteriormente no Youtube3, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie discorreu sobre os perigos de uma história única. Apresentou como o olhar universalista exerce domínio, principalmente epistemológico, na formação do ser humano. Discorreu sobre como sua infância, devido a invasão britânica, foi marcada por personagens todos brancos e de olhos azuis que brincavam na neve, comiam maçãs e falavam sobre os dias ensolarados, o que destoava muito da realidade nigeriana. Esse tipo de influência fez com que Chimamanda olhasse o mundo de outra perspectiva, ao ponto de achar que pessoas pobres fossem inferiores e incapazes. Esse é o perigo de uma história única, ela define a realidade. Da mesma forma, ficou chocada quando uma colega da faculdade, nos EUA, pediu para ouvir uma música tribal e descobriu que Chimamanda ouvia Mariah Carey. Isso também ocorre nos estranhamentos culturais produzidos por ações não demarcadas pela “sabedoria” colonial, como os índios que usam tênis Nike e óculos Ray Ban. A impressão colonial é que isso está errado. Índio “verdadeiro” tem que andar de tanga e usar cocar de penas. São todas histórias únicas, grandes narrativas que não perderam sua credibilidade, apenas mudaram seu discurso4 e continuam a subordinar, organizar e explicar outras narrativas.
A narrativa sobre o índio Isaías é uma provocação para se abandonar o mundo de Alice5, a imposição da história-única, a colonialidade do Ser, do Poder e do Saber6. Pensamento decolonial 7 que não surge como uma escola ou um pensamento categórico, pelo contrário, torna-se crítica a esse tipo de pensamento universalista e excludente das diferenças. Já o conceito de colonialidade foi desenvolvido por vários teóricos, dentre os quais Anibal Quijano8 desenvolveu a critica a colonialidade como uma forma de poder, dominação econômica e cultural presente nas ex-colônias mesmo quando o colonizador já se foi, produzindo uma espécie de sub-pensamento, a colonialidade do saber9, situação onde a pessoa vê a si mesma de forma inferior, a colonialidade do ser, um olhar de si mesmo filtrado pelo olhar do outro10. Nesse sentido as questões do índio Isaias nos provocam para construirmos uma hermenêutica capaz de perceber a colonialidade envolta nas ilusões ocultas na lógica da casa grande. Uma hermenêutica capaz de confrontar a continuidade dos mecanismos de exploração e domínio sem chicote e sem senzala. Hermenêutica atenta ao poder drônico11, à dominação invisível12, ao mercado total13, ao totalitarismo14. Poder de tornar legal a exploração e inclusive a morte15. Poder classificador, por isso, excludente, seletivo e opressor. Poder que esvazia as formas populares de poder. Poder etnocêntrico e eurocêntrico16 que anula a criatividade, que escraviza o pensamento, que, parafraseando o manifesto antropofágico de Osvaldo de Andrade17 nos torna importadores de consciência enlatada, como se nossos pensamentos fossem inferiores, como se índios não pensassem. Precisamos de uma nova hermenêutica, que seja nossa, que reproduza a Revolução Caraíba, que reencontre seu poder, a nossa Nueva Coronica y Buen Gobierno18, a hermenêutica de pindorama.
Será que só existe uma história da hermenêutica? Essa história tem que começar em Jerusalém? Ou na Grécia Antiga? Por que não no Brasil? Por que somos índios? Por que não temos tradição? Mas raízes nós temos, estamos cheios!
“Um índio convertido?” Primeiro Passo: Descolonizar o método
Nesse manual de hermenêutica à brasileira, o discurso do Índio Isaías nos provoca a questionar o método, pois, pressupõe lógicas de poder e dominação.
Muitos até se comovem: “um índio convertido?” Quase sempre se espantam: “vai receber ordens?” E todos concluem: “para se dedicar às missões?” Nessa altura perguntam: “vai voltar ao seu povo?” Querem dizer: “à sua tribo”. “aos seus selvagens”. Eu vou? Não vou? Belga ou holandês pode catequizar índio. Espanhol e italiano e até norte-americano pode pregar na Itália, na França, no Brasil, onde quiser. Mas eu, índio mairum, posso ser sacerdote deles? Nunca!19
Quem no Brasil ao elaborar um artigo não baseia primeiro suas teses nos pressupostos das “grandes” escolas europeias e norte-americanas? Triste “elite de vegetais”20, o problema já foi definido pelo método, e a pesquisa, destinada a reproduzir conceitos alienígenas21 e exaltar o dono do chicote. Tal é o controle da colonialidade que se fossemos os dinossauros, votaríamos no meteoro! Somos índios convertidos e vivemos como se nossa reflexão não servisse nem para nós mesmos. Na hermenêutica do meteoro não há liberdade para novas histórias, só há espaço para quem reproduz ideais e conceitos alienígenas. O método indica o caminho, o problema é que o caminho condiciona o método.
Os métodos hermenêuticos percorrem caminhos particulares e contextuais, por isso, sua universalização, por si, constitui ato de violência para com outras realidades. O método de interpretação gramatical tem sua raiz no desenvolvimento cultural e literário da Grécia antiga, a hermenêutica da reforma teve suas bases no desenvolvimento literário advindo do humanismo e dos confrontos, reelaborações e aproximações com a religião e as ciências. O método sociológico de Marx depende da industrialização e dos conflitos entre empregado e patrão. O método de libertação latino-americano, nasce no confronto com as ditaduras de direita. Todos os métodos e seus desenvolvimentos tiveram contextos específicos. Toda hermenêutica é contextual. Entretanto, a construção das grandes narrativas, da história-única, surge com o nascimento das primeiras id-entidades: a Europa e a América22. Ideais globalizantes e totalizadores que passaram a ser usados como epistemologia. O universal como forma de dominação substituiu o contextual. Em relação às colônias, a Europa tornou-se “detentora” do saber verdadeiro, enquanto que todos os conhecimentos locais e diversos foram desprezados ou usurpados. Realidade colonial que ainda exerce influência devido a ação invisível da colonialidade.
Seguindo a lógica de Boaventura23, a solução seria desenvolver hermenêuticas que valorizem as epistemologias do sul24. Hermenêuticas que valorizem os saberes populares, que invertam o processo de universalidade para pluriversalidade, de con-cêntrico para ex-cêntrico. Ideais universalistas não dão conta da realidade,são classificadores e excludentes,características do saber universal. Precisamos de novas hermenêuticas atentas à voz dos subalternos25, que ouçam a diversidade e afrontem as ideologias classificatórias que reduzem o saber mundial a cinco países26. Parafraseando o Guerreiro Ramos, é preciso que uma nação tome consciência de sua condição, que ouça sua voz diante das muitas vozes externas que tentam dirigir o discurso. Só assim podemos construir um pensamento realmente crítico, capaz de pensar a realidade27.
Descolonizar o método hermenêutico começa com a compreensão de que os métodos de pesquisa e as epistemologias não são inocentes. É preciso desenvolver uma ação contínua de crítica para com elementos alienígenas, com a percepção de formas ocultas de dominação e controle, como a farda de alferes e o espelho da corte de D. João VI, narrados no conto “O espelho” de Machado de Assis28. As hermenêuticas coloniais são formas externas que vestimos para nos transformar em quem não somos,com o objetivo de falar o que não nos diz nada, para quem não nos houve. É preciso romper com as universalizações, com as literaturas de referência e aprender a ouvir os diferentes, valorizar a pluralidade, porque a referência é plural.
“Belga ou holandês pode catequizar índio. Espanhol e italiano e até norte-americano pode pregar na Itália, na França, no Brasil, onde quiser. Mas eu, índio mairum, posso ser sacerdote deles? Nunca!”Parece que ainda hoje os invasores continuam usando espelhos europeus para roubar as almas dos índios e as fardas de nossa hermenêutica se tornaram estruturas que, diante de espelhos europeus, nos fazem sentir alguém importante, sem as quais parecemos desaparecer.
Obrinha de merda, Deus que me perdoe. Segundo Passo: Crítica Vivencial
Preciso encontrar na fé a confiança e a aceitação de minha estampa e de minha essência. Mas rezo cada vez menos e com menos fé. Minha fé está minguando. Será de tanto pedir o que ela não me pode dar? Não tenho direito de esperar milagres. Ainda há milagres? Talvez nunca tenha havido. E afinal o milagre que peço, qual é? É que Deus mude minha substância, me faça genovês ou congolês ou brasileiro ou um homem qualquer. Isto não é problema pra Deus. É problema meu. Tenho é que me aceitar tal qual sou, para mais respeitar em mim a sua obra. Obrinha de merda, Deus que me perdoe29.
Em sua crítica à colonialidade e ao método, Darcy Ribeiro, por meio das reflexões do índio Isaías dá pistas de um fazer hermenêutico condigno à realidade brasileira. A principal pista é a centralidade da vida como base do fazer hermenêutico. A vida e suas experiências são o centro da interpretação para o Índio Isaías, assim como a raiz do problema é toda hermenêutica que nega a diversidade e emergência da vida.
A compreensão de hermenêuticas contextuais coloca a realidade brasileira/latino-americana em posição diferente das perspectivas europeias. É uma realidade de exploração, escravidão que foi sentida na pele de vários índios que morreram de esgotamento físico devido ao excesso de trabalho para acumular riqueza para os estrangeiros. Realidade de engano e violência que se faz sentir tão vividamente nas gravuras de Felipe Guaman Poma de Ayala. Violência, exploração e necessidade que conduzem nossa realidade para o vivencial, para o emergente. Nessa realidade não há tempo para sentar e ler um livro, todo tempo precisa ser usado para que haja alguma qualidade e dignidade de vida. Não é a falta de cultura que faz o brasileiro não ler, ou não ir ao teatro, mas a emergência da vida. Nós temos cultura, mas nossa cultura é diferente, está direcionada para a manutenção da vida. Rezar e interpretar só tem sentido se for para a vida.
Todos somos interpretes do vivencial. O que nos habilita à interpretação é a vida. Não há leituras profundas, nem sabedorias orientais, muito menos tradições orais. A experiência na diversidade é nossa interpretação, nossa verdadeira história. Toda interpretação que não esteja direcionada ao aspecto vivencial perde o sentido, é alienígena à nossa realidade. “Mas rezo cada vez menos e com menos fé. Minha fé está minguando. Será de tanto pedir o que ela não me pode dar? Não tenho direito de esperar milagres. Ainda há milagres? Talvez nunca tenha havido”
Como brasileiros, gostamos de ousar, de mudar, diversificar, provar novos sabores, conceber novas formas, novos aromas, novas sensações, e ao mesmo tempo odiamos as tabelas, os métodos, as regras, as fôrmas, as métricas, os livros estrangeiros que fazemos de conta que lemos, as teorias alienígenas que usamos para fundamentar nossas teses a fim de agradar os professores gringos e atender padrões internacionais.No fundo todo esse tratamento alopático apenas para tentar se estabelecer no mundo, para ser aceito, para tentar mudar nossa substância em genovês ou congolês, ou europeu ou ainda em norte-americano. Precisamos entender que a diversidade de nosso país aliada às lógicas de exploração fizeram com que a experiência de vida fosse a razão maior de nossa hermenêutica.
Esse saber popular deve ser a base do fazer hermenêutico. Não é pensar a vida pela vida apenas, mas perceber a realidade como local da interpretação, principalmente na América-Latina, repleta de mecanismos de exploração e estruturas de domínio.Por isso precisamos exercer o que os pensadores do pós/dês-colonialismo chamam de desconfiança epistêmica30, desconfiança que, devido às explorações, já é presente na vida do brasileiro, mas que deve ser direcionada às epistemologias, às formas de saber dominadoras presentes principalmente no discurso científico, nas academias e universidades. Parafraseando Guerreiro Ramos31, precisamos construir nosso pensamento autônomo, aceitar quem somos, assumir a postura caraíba contra os invasores ocultos nas formas variadas de discurso.
Portugal vestiu o selvagem. Cumpre despi-lo. Para que elle tome um banho daquella “innocencia contente” que perdeu e que o movimento antropophago agora lhe restitue. O homem, (falo o homem europeu, cruz credo!) andava buscando o homem fora do homem. E de lanterna na mão: philosophia.Nós queremos o homem sem a duvida, sem siquer a presumpção da existência da duvida: nú, natural, antropophago. Quatro séculos de carne de vacca! Que horror!32
Devemos superar as hermenêuticas universalistas, alienígenas à realidade brasileira. Será que realmente precisamos estudar as escolas críticas europeias para encontrar o sentido do texto bíblico que, a propósito, também é refém das ideologias eurocêntricas? Será que precisamos da dúvida filosófica? Devemos aos nossos antepassados caraíbas, pelo menos, a formação de uma disciplina hermenêutica antropófaga, onde a base da interpretação seja o pensamento brasileiro e os estrangeiros, apenas tira-gosto. Enfim, não podemos reclamar da ausência de um pensamento brasileiro enquanto as universidades são reféns da reflexão europeia.“Tenho é que me aceitar tal qual sou [...]”.
Nos esforçamos para aprender a interpretar como os europeus e nos esquecemos de quem somos, por isso, precisamos da crítica vivencial, precisamos de uma crítica que nos ensine a interpretar sem negar nossa realidade.
Cada um de nós, povos inviáveis, é uma face de Deus. Terceiro Passo: Interpretação da realidade a partir da diversidade
Este é o único mandamento que me comove todo: o de que cada povo permaneça ele mesmo, com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso dever, nossa sina, não sei, é resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais. Todos inviáveis, mas presentes. Cada um de nós, povos inviáveis, é uma face de Deus.33
Nesse ponto esse trabalho pretende propor outro padrão de análise da realidade. Os padrões “antigos” têm por base uma universalização conceitual e com isso produzem exclusão das diferenças, principalmente sociais. Esse processo de encontrar uma verdade universal é racionalizante e reducionista, por isso também excludente e superficial.
Os padrões universais, foram traçados a partir de pesquisadores que tinham uma visão de mundo, influenciada pelo racionalismo modernista europeu. Dessa perspectiva o desenvolvimento das ciências assumiu caráter universal não por pesquisa, mas por redução das sociedades “avançadas” aos colonizadores, enquanto os índios são os “não-desenvolvidos”, os bárbaros. Assim, quando estuda-se sociologia, por exemplo, parte-se do pensamento europeu como se fosse orientador da realidade, universal. Essa lógica reducionista aniquila a diversidade. A falácia dos universais está no fato da sociedade brasileira ser muito diferente da européia. Assim, parafraseando Boaventura34, deveríamos começar por uma revolução universitária. Não apenas sociologia, mas sociologia européia, brasileira, africana. Não apenas filosofia, mas filosofia européia, latino-americana, etc. O mesmo se diga das outras disciplinas. Elas como nós são uma face de Deus, não a única face de Deus.
O que isso muda? Muito. A episteme se rompe e passa-se a ver a realidade muito mais ampla. Plural. Esse é o mundo, não uma realidade única, mas uma realidade plural. Percebe-se então que a maioria dos problemas que se enfrenta na atualidade não diz respeito a necessidade de aceitar os diferentes, mas de romper com as ideologias reducionistas que negam o diferente para legitimar uma universalidade utópica. O que fica claro nessa postura é a identificação do universal como forma de domínio, controle e exclusão.
É preciso que as universidades se tornem pluriversidades. O saber não é universal, mas plural. Quando olhamos para o mundo atual, percebemos que as ciências desenvolvidas em cinco países foram propagadas como universais, excluindo o pensamento e as diversidades de todos os outros países. A verdade não está limitada a estes cinco países35. A realidade mundial é muito maior. Um conceito universal construído a partir da maioria, não pode se limitar ao saber desenvolvido por cinco países usados como centros universais que não representam nem trinta por cento da humanidade. A grande maioria da humanidade é plural, o que nos leva a uma nova episteme, uma nova forma de compreender a verdade pelo plural. É na riqueza da diversidade de pensamentos e relações que está a sabedoria e a verdade, não na exclusão dominadora dos diferentes.
A pluriversidade deve servir de base conceitual para o fazer hermenêutico. Toda interpretação deve partir da diversidade, compreender a face de Deus como uma realidade plural. Qualquer leitura fora dessa perspectiva torna-se classificadora36 e excludente.
No olhar plural a hermenêutica não deve buscar as definições nos dicionários, que por si já definem a realidade por meio de discursos excludentes, precisamos de pluriversionários que não limitem o sentido, mas que expandam. Para executar uma hermenêutica pluriversal e inclusiva podemos pensar em três procedimentos: O primeiro é o de questionar as fórmulas classificadoras e excludentes. Deve-se questionar os conceitos universalizantes, as verdades particulares, os conceitos absolutos. Isso porque a realidade não é universal, mas pluriversal. O segundo procedimento trata-se de dar voz aos excluídos. Perceber a realidade plural como doadora de sentido. Encontrar a verdade nas múltiplas vozes. É preciso perceber os detalhes e as formas populares como verdades pessoais doadoras de sentido. Olhar para o sentido negado e questionar a negação de sua validade. O terceiro procedimento está em olhar para o todo como doador de sentido. Deve-se perguntar inclusive por aqueles que não foram citados. A pergunta pelo que está faltando tem o poder de desvelar estratégias universais de negação da realidade.
No discurso do índio Isaias, uma nova hermenêutica transparece pela diversidade como centro da interpretação. A resistência como forma de questionamento das lógicas classificadoras. Ouvir a voz dos excluídos pela compreensão de que todos somos face de Deus e por isso valiosos demais para ser usurpados e, por último, o olhar do todo. A proposta de uma hermenêutica que restitua a dignidade roubada daqueles que são tidos por inviáveis, uma hermenêutica dos inviáveis: “Cada um de nós, povos inviáveis, é uma face de Deus.”
Isto vou dizer ao padre Ceschiatti, invertendo o seu argumento. Quarto Passo: Dialogar com outras hermenêuticas
Isto vou dizer ao padre Ceschiatti, invertendo o seu argumento. Sim, meu confessor, nós os mairuns, somos uma face de Deus, nosso criador, digna face d’Ele, que temos o mandado de preservar, em toda a sua singularidade, tal qual Ele nos fez. Qual a consequência desse mandado para mim? Eu que sou o Isaías da Ordem Missionária e ao mesmo tempo o Avá do clã jaguar, do povo mairum? Não, jamais. Longe de mim esta ambiguidade.37
O Manifesto Antropofágico de Oswaldo de Andrade, um dos principais momentos da literatura brasileira. Descolonialista no âmago. Crítico às estruturas alienígenas e à colonialidade/dominação cultural presentes do dia-a-dia do povo brasileiro vitimado pela síndrome do vira-lata. Impresso em 1928 na Revista de Antropophagia, apresenta um jogo de palavras no qual procura resgatar a brasilidade. Usa as descrições europeias, que descreviam os nativos brasileiros como antropófagos, para reavivar aquilo que dá medo nos europeus. Esse manifesto nos desafia a ressuscitar a revolução caraíba e deglutir toda colonialidade presente na literatura brasileira.
Esse sentimento do Índio Isaías reflete nossa realidade. Não podemos simplesmente aceitar as imposições externas. O hermeneuta brasileiro precisa preservar sua singularidade “[...] tal qual Ele nos fez [...]”. Devemos inverter o processo e não incluir a perspectiva latino-americana nos métodos europeus, mas incluir o método europeu na perspectiva latino-americana. A hermenêutica que proponho a partir das provocações do Índio Isaías, não deve abster-se das realidades externas, não é um chamado para o meio do mato, um isolamento acadêmico. Pelo contrário. Trata-se de uma proposta hermenêutica que seja pluriversal, que valorize as conexões e não as cisões, por isso devemos, não apenas incluir as propostas européias, mas olhar para todas as formas possíveis de interpretação. Nossa proposta é ser um método plural, por isso deve olhar para outras formas de interpretação.
Assim, na montagem de uma análise hermenêutica devemos:
1) Descolonizar os conceitos
2) Usar a crítica vivencial
3) Interpretar a realidade a partir da diversidade
4) Dialogar com outras hermenêuticas
Após entender o sentido para nossa realidade, exploramos outras perspectivas, outras propostas de compreensão do sentido, respeitando inclusive os contextos em que cada proposta foi construída. Dessa forma construímos uma hermenêutica que valorize a diversidade da face de Deus representada na criação.
Conclusão: E o índio comeu o catequista
De forma crítica e brincalhona, típica do brasileiro, nos aproximamos da narrativa do Índio Isaías que, em suas palavras finais, comeu o catequista e inclusive deglute até mesmo o próprio Isaías, produto europeu, restando apenas Avá38 do clã jaguar, do povo mairum.
Brincadeiras à parte, Darcy Ribeiro, reproduz o ideal da Revista Antropofagia. E o Índio Isaías, agora Avá, nos sinaliza com clareza que a hermenêutica brasileira deve ser antropófaga. Em nossa análise, a hermenêutica brasileira precisa parar de refletir apenas os ideais europeus e se concentrar em sua realidade. É preciso reencontrar o Avá em cada um de nós.
Primeiro, pela compreensão de que existem histórias únicas, moldes que sequestram nossa alma tornando-nos em importadores de consciência enlatada.Por isso é preciso desenvolver uma ação contínua de crítica para com elementos alienígenas presentes nos métodos científicos e suas universalizações, porque a realidade é plural.
Segundo, não precisamos de estruturas ideológicas européias para construir uma reflexão hermenêutica. Devemos parar de nos esforçar tanto para aprender a interpretar como os europeus. Já é passado o tempo de valorizar nossa forma de interpretar, nosso pensamento crítico que tem a vida como elemento central, uma hermenêutica que não nega nossa realidade, que aceita a face de Deus em nós, povos “inviáveis”.
Terceiro, uma hermenêutica que respeite quem somos. Nossa origem e história. Uma hermenêutica brasileira, guiada pela diversidade como guia da interpretação. Por isso precisamos: 1) Questionar lógicas classificadoras e excludentes. 2) Ouvir a voz dos excluídos. 3) Olhar do todo sempre a partir da vida.
Quarto, somente após entender o sentido para nossa realidade é que devemos explorar outras perspectivas, outras propostas de compreensão do sentido, respeitando inclusive os contextos em que cada proposta foi construída.
O Avá em nós precisa deglutir o Isaías e seus contínuos catequizadores ocultos na cultura. Dessa forma poderemos construir uma hermenêutica que valorize a diversidade da face de Deus representada em cada um de nós, sua criação.
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Referências
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QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2005.
RAMOS, Guerreio. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1969.
RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977
SPIVAC, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
TED. Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história. Disponível em — [1]RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977, p.19.
[2]Darcy Ribeiro, nascido em 1922, teve uma vida de intensa atividade. Em 1946, Bacharelou em ciências sociais pela USP e no ano seguinte já trabalha como etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio. Em 1953,criou o museu do índio. Professor de Etnografia e linguística tupi. Em 1961 ocupou o cargo de ministro da educação e cultura do governo Goulart. Foi o primeiro reitor da universidade de Brasília, chefe da casa civil da presidência em 1964. Atuou nas aldeias indígenas do Brasil central e Amazônia, realizou pesquisa de campo com diversas tribos no Brasil e foi ainda professor de diversas universidades fora do Brasil. Publicou inúmeros artigos e revistas, do qual Maíra (1977) marca sua estreia como romancista e mostra a profundidade de sua experiência indígena.
[3]TED. Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história. Disponível em [4] LYOTARD, Jean-François. La condición postmoderna. Informe sobre el saber. Buenos Aires: Cátedra, 1991, p.31.
[5]Teoria desenvolvida por Boaventura de Souza Santos onde se refere a obra Alice no Pais das Maravílhas para identificar a colonialidade como a imposição de uma visão de mundo opressora e castradora da realidade.
[6]BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro descolonial. Revista Brasileira de Ciência Política n.11. Brasília, maio – agosto de 2013, pp. 89-117.
[7]Em linhas gerais, convencionou-se dizer que o início dessa reflexão surgiu com Gayatri Chakrabarty Spivak, Homi Bhabha e Edward Said, ou ainda, pouco mais cedo com os livros Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador (1947), de Albert Memmi, Discurso sobre o colonialismo (1950), de Césaire, e Os condenados da terra (1961), de Franz Fanon.
[8] QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder, Globalización y Democracia. In: Utopias, nuestra bandera: revista de debate político. N.188. 2001. pp 97-123.
[9] Essa forma de colonialidade é estudada em diversos pensadores da teoria decolonial. Dentre as principais obras destaque-se a obra La colonialidad Del Saber: Eurocentrismo y ciências sociales perspectivas latinoamericanas, de Edgardo Lander (Org), Buenos Ayres: Clacso, 2000
[10]Dentre os críticos da colonialidade do ser destaque-se as obras de Franz Fanon e o livro O Retrato do colonizado precedido de Retrato do colonizador de Albert Memmi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
[11] ALICE CES. 2016_Master Class #1 - Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. Disponível em [12]O conceito de mercado total desenvolvido por Quijano apresenta a ideia de dominação colonial estendida pela imposição do mercado. Como se não existisse vida fora do mercado. Uma forma de dominação diferente, oculta, por isso Boaventura de Souza Santos denominou-a drônica, invisível, que subjuga e controla o outro por meio da mercadoria. No caso das colônias, um poder e dominação exercido por meio das demandas do mercado. QUIJANO, Anibal. 2001. pp 97-123.
[13] HINKELAMMERT, Franz J. Democracia y Totalitarismo. Costa Rica: Editorial Dei, 1990, p. 168.
[14] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p. 442.
[15]ITE. Escuela Dominical con Franz Hinkelammert. Disponível em [16]Conceito fundado pelo pós/des-colonialismo que apresenta a lógica colonialista como doadora de sentido global. Centraliza a visão de mundo a partir do pensamento Europeu, uma construção ideológica/epistêmica de dominação, o controle da produção de verdades.
[17] ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofago. In: Revista Antropofagia. Ano 1, n.1, 1928. Disponível em < http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/060013-01#page/1/ mode/1up >. Acesso em 03/10/2016.
[18]AYALA, Felipe Guaman Poma de.Nueva Coronica y Buen Gobierno. Disponível em [19] RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977, p.19.
[20]ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropofago. In: Revista Antropofagia. Ano 1, n.1, 1928. Disponível em [21] RAMOS, Guerreio. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1969. p. 10.
[22] QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 117.
[23] ALICE CES. 2016_Master Class #1 - Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. Disponível em [24] As epistemologias do sul é um termo cunhado por Boaventura de Souza Santos para indicar os saberes locais, não-colonizados, como saberes reais e valiosos. Uma espécie de desobediência epistêmica, para usar um termo comum à decolonização, onde a epistemologia do sul pretende assumir seu papel central e descentralizar as epistemologias do norte, uma referência a universalização epistêmica do saber de cinco ou seis países (o famoso grupo dos cinco) que de certa forma orientam a pesquisa e o pensamento mundial.
[25] SPIVAC, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
[26] ALICE CES. 2016_Master Class #1 - Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. Disponível em [27] RAMOS, Guerreio. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1969. p.48.
[28]ASSIS, Machado de. Obra completa. Vl 2.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em [29]RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977, p.20
[30]A necessidade de vigilância não apenas para com as estruturas, mas também com as epistemologias ocultas nas relações e na própria linguagem que fogem à compreensão perpetuando a dominação colonial de forma invisível.
[31]RAMOS, Guerreio. A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1969. p.48.
[32]COSTA, Oswaldo. A “Descida” Antropophaga. In: Revista Antropofagia. Ano 1, n.1, 1928. Disponível em [33]RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977, p.22.
[34] ALICE CES. 2016_Master Class #1 - Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. Disponível em [35] ALICE CES. 2016_Master Class #1 - Epistemologias do Sul: Desafios Teóricos e Metodológicos. Disponível em [36] QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 117.
[37] RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Círculo do Livro. 1977, p.23
[38] Avá, que no romance de Darcy Riberio parece tratar-se do nome de nosso personagem também é um possível trocadilho, uma vez que para os guarani significava homem indígena, após a invasão passou a significar selvagem, bestial, não humano. CHAMORRO, Graciela. Terra Madura, yvy araguyje: fundamento da palavra guarani. Dourados/MS, Ed. UFGD, 2008, p.210.Notas