Narrar a vida dos pobres: Literatura Bíblica, Crítica ideológica e Compromisso social
Narrate the lives of the poor: Biblical Literature, Ideological Criticism and Social Commitment

Antonio Manzatto* e Alex Villas Boas**
*Doutor em Teologia pela Université catholique du Louvan. Professor no Programa de Estudos Pósgraduados de Teologia da PUC SP. Líder do Grupo de Pesquisa em Literatura, Religião e Teologia (LERTE PUC SP). Email: amanzatto@pucsp.br.
**Doutor em Teologia pela PUC Rio. Professor Livre docente em Teologia do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC PR. Professor visitante no Programa de História e Teoria Literária da UNICAMP e do Programa de Estudos Literários da Universidade de Aveiro, Portugal. Email: alex.boas@pucpr.br
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Resumo
En 1957 Octavio Paz publicaba su gran poema Piedra de Sol, un poema extenso, 584 endecasílabos que sugieren una búsqueda compleja. El autor nos advertía en una nota que aparecería sólo en la primera edición, que, “este número de versos es igual al de la revolución sinódica del planeta Venus, que es de 584 días, [ciclo temporal que los antiguos mexicanos llevaban en su cuenta]” (Paz, Libertad bajo palabra, 333). Desde la figura estelar de Venus hasta las serpientes que rodean la piedra del sol cerrando/abriendo un círculo, se nos presenta a nosotros una constante evocación a la divinidad. La escritura en endecasílabos, según el poeta, se acerca al modo más natural del habla, su lectura pausada evoca un vaivén que por momentos hace pensar precisamente en un laberinto en donde el camino toma direcciones insospechadas que van y vuelven, para luego continuar un sendero que no se sabe bien a dónde conducirá.

Palavras chave:Narrativas, Literatura Bíblica, Compromisso Social, Fredric Jameson, Paul Ricoeur.

 

Abstract
If the official history accounts for the victories of the landlords, then, the narratives which preserves the memory of the poor, is not only an alternative for understanding the world, but a proper affirmation of their life. If they are not present in the official history, nor do they stop to circulates among the little ones. Likewise, the biblical text narrate the whole process of the presence of God next to the little of land. These narratives appears in several literary genres, and they are not absent in the legislative texts, that registered their life experience and affirmed their way of seeing the world. Therefore, the heart of Torah and the center of Gospel of Jesus refer to God who reveal himself to the little ones. He make present in their side like mercy, including in the experience of social formation or design of the new society. To this end, it is intended to distinguish the social content of the biblical narratives of “ideologems”, such as ideological reductionism, according to the political unconscious of Fredric Jameson and the conception of ideology as a system of belief in Paul Ricoeur.

Keywords:Narratives, Biblical literature, Social commitment, Fredric Jameson, Paul Ricoeur.

Introdução

"La vida no es la que uno vivió, sino lo que recuerda para contarla y como contarla” (MARQUEZ, 2002).

A frase de Gabriel Garcia Marquez em seu livro autobiográfico ressalta a importância da narração e da memória. Lembrar-se para contar, lembrar-se porque conta. Narrar é uma forma de colocar a memória em claro para que outros a vejam, mas é também faze-la perpetuar-se e, assim, não ser esquecido aquilo que se conta. O esquecimento pode provocar a volta de injustiças. Deste modo as narrativas bíblicas que se consolidam em uma literatura, a saber as Escrituras Hebraicas e Cristãs em torno de uma comunidade leitora, é primeiramente uma narrativa da história do Povo de Deus, que se faz memória, ou ainda, a memória de uma presença que se faz na história desse povo.

Dizer que Deus se revela e age na história é fazer referência a um dado fundamental da fé cristã. Para nós, porém, a leitura desta revelação se faz através de narrativas. Não temos acesso ao evento histórico em que Deus se revela, apenas a narrativas que nos contam a história. Falamos, então, da Revelação de Deus nas histórias que nos narram sua ação a partir do ponto de vista das pessoas de fé. Evidentemente estas histórias fazem uma interpretação do evento e, na sequência, são reinterpretadas para que se possa dizer uma palavra de significado sobre o evento. Aí reside a importância de se fazer referência às narrativas em boas interpretações destas histórias que nos dão a tônica do que devemos conhecer de Deus.

Entretanto, os livros oficias de história sempre narram os fatos a partir do olhar dos vencedores, já que a história oficial é por eles contada. A memória dos vencidos é como que subversiva porque lembra que quem venceu, o fez de maneira nem sempre apropriada pois o jogo da história nem sempre é limpo, ou não é limpo para todos. A memória dos vencidos é por isso combatida, se busca destruí-la exatamente por seu potencial subversivo, talvez até revolucionário. As utopias históricas ou suas ideologias, vivas ainda hoje, procuram dizer que não se trata de histórias de vencidos ou vencedores, pois a afirmação de que há vencidos e vencedores indica existência de conflito, e isso nem sempre existiu. Dizem que na história se realizam encontros ou relações que se desenvolveram em várias direções. Mais uma vez se escamoteia o ponto de vista dos vencidos, indicando que ser vencido é perder o direito à história, às histórias.

A ideologia em geral diz respeito a um modo operacional pelo qual a consciência acredita em algo, indicando que tal anuência é condicionada por fatores externos à própria consciência de ordem histórica, social, cultural, psicológica compondo assim o imaginário pessoal determinando aquilo que se pensa. Ao mesmo em que é um aspecto externo se instala como interpretação imediata da experiência vivida, uma interface que configura o olhar para com o vivido, e a sensibilidade para com os fatos e sua reminiscência, os afetos.

Assim, a ideologia pode ser entendida com os fatores que atuam de forma inconsciente no modo de pensar da pessoa, e consequentemente sentir a vida. Dada a condição de serem fatores fora do alcance imediato da pessoa, a ideologia é vista como aquilo que produz tanto uma relação inautêntica para com as coisas, quanto o que propicia a relação com as próprias bases daquilo que acredita. Dito de outro modo, pode-se entender como fatores ideológicos aquilo que promove uma aceitação incontestável para com aquilo que se acredita, sem que tenha passado pelo crivo da consciência de quem acredita, o que configura a ideologia como um modo próprio de crença, ou ainda, um sistema de crença que estrutura o ato de acreditar em algo e pensar a partir desta crença.

Em tempos de pós-verdade, há uma guerra ideológica que utiliza estratégias de desqualificação de pessoas e discursos a respeito do compromisso social sob a égide de um “pancomunismo” do discurso social. Há que se melhor explicitar o fenômeno ideológico, o compromisso social e a relação destes com a fé cristã.

Nesse sentido, o ato de acreditar a priori em uma narrativa, independente de qual seja, é visto como uma fé ingênua, ou seja, que sequer cogita as razões de credibilidade do que se acredita. Os chamados “mestres da suspeita”, assim ficaram conhecidos por estruturarem seu pensamento como uma desconfiança das razões de credibilidade da modernidade, ou seja, do sentido da modernidade. A fé ingênua na Revolução Industrial tinha origem na Teodiceia moderna, enquanto forma de teologia que substituía as causas históricas da produção miséria a partir do enriquecimento sistemático de alguns, por causas divinas (VILLAS BOAS, 2016, p.56-96).

A questão ideológica aqui, será vista como questão de linguagem que se pretende abordá-la como um sistema de crença, ou seja, como uma forma de linguagem que estrutura um modo de pensar, sentir e agir.

1. O inconsciente político de Fredric Jameson

Fredric Jameson segue a hermenêutica da suspeita vendo fundamentalmente a base da inautenticidade da verdade na própria linguagem, assumindo a contribuição de Nietzsche, e que, portanto, por ser linguagem está vinculada a tradição psicanalítica do inconsciente, como expressão das psicodinâmicas que interferem no modo de ser, de modo a esconder de si próprio a próprias intenções narcísicas. De modo que tanto quanto mais se negam tais intensões, mas elas têm livre acesso na interferência das ações pessoais. Deste modo o pensar ideologicamente se instala na consciência não somente como visão de mundo, mas dada a relação intrínseca das intuições isoladas dos mestres da suspeita (Marx, Freud e Nietzsche), também como interpretação do sentimento de estar vivo [pathos] e atuante no mundo [diké], relação intrínseca entre linguagem e práxis.

Jameson ao tratar especificamente da ideologia tendo sua raiz na linguagem, fala deste inconsciente político, portanto, como uma sensibilidade que se instala no modo de ser pessoal, social, e consequentemente político. Tal qual a dinâmica do ato falho, se manifesta o ato contraditório da política que se faz visível no fenômeno particularmente humano da linguagem, modo por excelência do âmbito político. Deste modo o político é por excelência o lugar do conflito e do antagonismo, sinais típicos de manifestação do inconsciente. De modo especial o crítico literário norte-americano crítica a estética realista por se pretender esclarecer algo que é próprio da complexidade da dinâmica do profundo. Os elementos complexos e dinâmicos dessa profundidade inconsciente do político são apresentados como movimentos de que se interpenetram em três círculos concêntricos, a saber o nível político, social e histórico desse dinamismo.

O primeiro nível do é o âmbito do político, e se dá por excelência no uso da palavra, e portanto, no primeiro nível de linguagem, mais precisamente a linguagem política do primeiro nível é a crônica dos fatos, como “narrativa do político” que se pretende como “ato simbólico”, e assim sendo, mobiliza a sensibilidade. O segundo nível é o âmbito social, que se configura como linguagem de conflito, onde se chocam o que Jameson chama de “ideologemas”, ou seja, maneiras de se pensar o mundo que se instalam na visão de mundo dos indivíduos como discursos prontos que são reproduzidos. O âmbito social polariza o conflito, que inaugura uma guerra insolúvel de “ideologemas”, promovendo uma transvalorização, e não uma negação do que existe. Dito de outro modo, o que uma facção social considera ruim, a outra transvaloriza e considera bom, porém ambos participam de um código semiótico comum, a saber os valores, que se instala no antagonismo social, categoria típica do social. O terceiro nível é o âmbito histórico, que Jameson vincula com a história da sucessão dos modos de produção, que operam como uma espécie de onda que se choca com a outra antes da ressaca, produzindo assim um efeito de percepção sincrônico, dando a impressão que nenhum outro modo de produção é possível, além daquele que se vive naquele momento da história. Dado esse efeito de percepção sincrônica incorre-se no risco de ver o conflito social como algo natural, como algo que não tem solução incorrendo em um conformismo. Nesse sentido, para Jameson a “História sob a forma textual” é “inacessível”, e portanto, “só pode se abordada por meio de uma (re)textualização anterior”. Por isso a História “não é um texto”, mas o lugar no tempo em que se manifesta a “necessidade” do momento histórico, que Jameson se refere como a expressão d’ “o que dói”, daquilo que “fere” e que “impõe limites inexoráveis ao indivíduo e à práxis coletiva” (JAMESON, 1992, p. 32: 75-92).

Nessa perspectiva a História pede uma outra hermenêutica em que narrativa é um ato socialmente simbólico, mas que precisa ser lida a partir do conflito como sintoma da necessidade de um povo, que não pode ser silenciado, sendo antes, necessário redefinir a questão da ideologia como linguagem do inconsciente político, do desejo e sua representação, e a história como necessidade negada e a produção cultural dentro da referencialidade oferecida para ler a história. Tal hermenêutica deve perguntar qual é a estrutura narrativa que um ato simbólico do indivíduo expressa e qual contradição pretende ser resolvida nesse ato simbólico? Sem deixar de enfrentar o conflito deve procurar a “dialética” do fenômeno da “heteroglosia” dos ideologemas procurando a contraposição dos modos de produção, a partir dos respectivos sintomas como “caminho” para a “transcendência do ‘ético’ em direção ao político e ao coletivo” (JAMESON, 1992, p. 36-37).

Para o teorista político, sua crítica literária evolui para o estudo da cultura como elemento fundamental para a compreensão do funcionamento do capitalismo na contemporaneidade, pois a cultura sempre expressa o modo de produção, e este produz sempre uma ferida, ou seja, uma necessidade social, como chave da leitura da história, e fonte de Utopia, como finalidade existencial, ou ainda, “um mundo em que sentido e vida aparecem outra vez como indivisíveis, no qual homem e mundo são unos”, não como “pensamento abstrato” de “filósofos utópicos”, mas como narrativa concreta, que se constitui na base para toda atividade utópica” (JAMESON, 1971, p. 375) no qual permite imaginar o ético no desafio concreto.

A modernidade, contudo, não raro elaborou um imaginário totalitário que produziu, na expressão de Habermas, uma lógica de excomunhão na qual a exclusão de outrem fora vista como solução que ocorre primeiramente na e pela linguagem (1981). Por meio da linguagem não somente produziu um raciocínio, mas uma subjetividade de eleitos que se retroalimenta na adoção de uma linguagem, e sendo assim, uma insensibilidade ao outro, e consequentemente uma distopia da transformação social, uma vez que a solução para o conflito nessa perspectiva é vista com eliminação daquele que, para usar uma expressão jamesoniana, reclama coletivamente da dor social.

2. A ideologia como sistema de crenças em Paul Ricoeur

Para Paul Ricoeur é necessário “cruzar Marx” no que toca a questão das ideologias, ou seja, assimilar sua contribuição, mas superar alguns pontos cegos, ampliando a análise da função social da ideologia, de modo a descrever primeiro sua função geral, e depois sua função de dominação social e de inversão de percepção, está propriamente dita, é a leitura de Marx (RICOEUR, 2011, p. 77-86).

Para o filósofo francês a função geral da ideologia é provocar unidade social, ou seja, há uma função positiva de ser integradora de grupos sociais na medida em que ela promove um sistema de crenças, como por exemplo a crença em valores que permitem integrar grupos distintos, como o valor de fazer o bem, ser justo, procurar a paz, pois na medida em que pessoas, mesmo de grupos distintos acreditam em tais valores, ocorre em alguma medida uma unidade social a respeito da questão. Tal função possui cinco traços principais enquanto função social geral.

O primeiro traço é o da representação como necessidade de grupo de ter uma imagem de si mesmo, enquanto sistema de significações que permite que o comportamento humano seja significante para os agentes individuais do grupo, ou mais precisamente, quando o comportamento de um é orientado em função do comportamento de outro. O significado do comportamento social é representado por uma pessoa que passa a ser significante para o grupo, e desta para outros que retroalimentam tais signos, como uma dinâmica teatral de representar personagens significativos encarnados pelo grupo, promovendo um consenso significativo, ou seja, um credo.

O segundo diz respeito ao dinamismo promovido pela ideologia ou ainda pode ser entendida como teoria da motivação social na medida em que confere um caráter de justificativa, ou seja, imprime um nota característica de que tal visão de mundo é justa, e com isso e para além disso, ainda imprime um caráter de projeto, de empreendimento de que tal credo promovido resultará em uma transformação social, no qual o credo transformado em projeto indica a necessidade, por ser justa, da instituição de uma nova práxis social.

O terceiro traço é responsável pela preservação do dinamismo ideológico e tem a ver com a sua capacidade de simplificar e esquematizar um sistema de crenças, ou ainda pode ser visto como a capacidade de mutação de um sistema de pensamento para um sistema de crenças, promovendo uma idealização da imagem que um grupo possui de si mesmo.

O quarto traço é chamado por Ricoeur de dóxico, pois transforma ideias em opiniões que funcionam como máximas em forma de slogans, fórmulas lapidares, frases de efeito, e atualmente poderia se incorporar os “memes”. Este traço dóxico aproxima a ideologia ou o sistema de crenças a uma função retórica e onde opera a eficácia social das ideias. Enquanto função retórica se assemelha aos “ideologemas” de Jameson.

Por fim, o quinto traço promove uma tipificação, que Ricoeur também chama de temporal, em que o novo só pode ser recebido a partir do típico, ocorrendo uma sedimentação da experiência social, âmbito em que surge a identificação mais forte de um indivíduo a um grupo, que passa a ler a sociedade com a consciência do grupo, de modo que é a partir da ideologia que se pensa, mesmo quando se pretende pensar sobre ela. Dito de outro modo a consciência se dá dentro de um código cultural. Também aqui se incorre no risco de reforçar o caráter irracional e não transparente do sistema de crença que passa a racionalizar a partir dos pressupostos doxológicos, chegando a promover a dissimulação em relação a crítica e outras visões, como atitude de defesa do sistema de crenças, incorrendo em um dogmatismo ideológico.

E nesse aspecto que emerge a função de dominação, enquanto segunda função da da ideologia está diretamente relacionada com o poder e a autoridade, como gestão do poder promovendo uma certa fé na autoridade e se acentua a dissimulação que passa para o primeiro plano, como uma forma de se esquivar de críticas. Tal função se acentua no Ocidente nos períodos eleitorais, de modo que quanto maior a fé em um candidato e/ou partido, maior a chance de ocupar o espaço de poder, sendo, historicamente, a manutenção desse sistema de crença a condição para permanência no poder. A função de dominação é praticamente o uso deliberado de um sistema de crença para promover e/ou manter o poder.

Por fim, a função de inversão que diz respeito propriamente a análise sobre a ideologia de Karl Marx trata da substituição da percepção do processo da vida real por uma vida imaginária, promovido por um sistema de crença no qual a fé resulta na produção de ingenuidade, ou ainda uma crença sem consciência crítica. Para Marx quem promove essa inversão é a religião, ao apregoar que a realidade social é vontade de Deus. Mais precisamente Pierre Bourdieu nomeou tal inversão como sociodiceia, ao nomear as teodiceias como forma de mentalidade religiosa que justifica a condição social pela substituição das causas históricas pelas causas divinas (BOURDIEU, 1998: 58-59).

A polarização desses dois aspectos ideológicos, dominação e inversão, geram contudo um paradoxo social, ao fazer com que a ideologia como sistema que promove uma integração social, enquanto crença na própria sociedade, também se torne um fator de contradição porque divide a sociedade, sendo o fenômeno mais drástico a violência, coincidindo com o que Habermas chamou de lógica de excomunhão, em que a solução para os conflitos reais é deslocada para a culpabilidade de um grupo como responsável pelo problemas da sociedade.

3. O compromisso social entre ideologemas e narrativas bíblicas

Tanto a análise de Jameson quanto a de Ricoeur apontam para o risco dos processos ideológicos resultarem no fenômeno da violência. A promoção de um discurso de violência e não raro de ódio pode ser visto como um sintoma de um conflito entre a necessidade (aquilo que dói na história do povo) e os interesses de quem faz a gestão do poder, mais precisamente entre a necessidade do povo e os interesses de uma classe que chegar a ter um representante nos espaços de poder. O conflito é distinto do confronto, sendo o primeiro parte da condição humana, dada a diferença de perspectivas e experiências sociais e culturais, porém não ouvir o conflito é um fator promotor de confronto, quando não criminógeno.

Pensando com Jameson e Ricoeur os atos políticos são apresentados a sociedade em forma de crônicas pelos meios de comunicação, especialmente os meios de comunicação de massa, enquanto função retórica da ideologia e possuem sua intencionalidade dirigida a determinados ideologemas, tidos como uma espécie de credo que substitui a reflexão, em detrimento de outros. Tais ideologemas são recebidos dentro da ambiguidade natural do âmbito social como forma de um inconsciente político no qual os ideologemas, anti e pró-direita ou anti e pró-esquerda são aceitos ou não dentro de um sistema de crença, dispensando a criticidade racional a adesão a essas crenças. Aqui cabe a expressão de senso comum ao identificar algum “discurso ideológico”, que optamos pelo conceito jamesoniano de ideologemas, por ser menos ambíguo. Olimite da análise marxista, segundo Ricoeur, é achar que uma parte da sociedade poderia estar imune aos processos ideológicos, mas ao contrário a ideologia é inclusive necessária para a consolidação de uma tradição política, quer seja mais conservadora, quer seja mais progressista.

O problema então não reside no fato da existência de ideologias, mas sim na substituição radical de um sistema de reflexão sobre a realidade e suas consequências sociais dos processos históricos por um sistema de crenças a ponto de instalar a dissimulação diante da crítica e das necessidades históricas, ou ainda para falar como Jameson, a dissimulação diante da dor daqueles que mais sofrem com as necessidades impostas a muitos pelos meios de produção que beneficiam a poucos. Neste momento passa-se a debater sobre veracidade ou mentira a respeito dos ideologemas, procurando condenações de outrem justificadoras do próprio ideologema, ao invés de focar os debates nos reais sintomas das necessidades históricas, debate esse que desvela muito mais a intenção de ocupar espaços de poder do que uma disposição efetiva para procurar resoluções concretas para a sociedade, que só ocorre em períodos eleitorais, em que os extremos tendem ao centro, incorporando em seus respectivos ideologemas até mesmo as agendas de outro cenário político, a fim de sensibilizar o eleitorado e assim ocupar os espaços de poder.

Deste modo, as os discursos religiosos que pululam o cenário social, cultural e políticos, na medida em que polarizam um sistema de crença em detrimento a reflexão, se tornam ideologemas que dissimulam o debate e acreditam ingenuamente ou convenientemente. O ideologema é refratário a autocrítica e os ideologemas religiosas evocam razões divinas para a dissimulação.

A divisão bipolar entre esquerda e direita, por exemplo, não são o essencial para a hermenêutica teológica que o Cristianismo desenvolveu na ocasião da Revolução Industrial, como fator de transformação social, mas sim, a posição contrária de um grupo que entendia a desigualdade social como natural (chamado no século XVIII de direita), e dela se servia, e o alinhamento de perspectiva de um outro grupo que a compreendia como um processo histórico e social que deveria ser enfrentando (chamado na ocasião de esquerda). Dito de outro modo, o Cristianismo não é nem de direita e nem de esquerdas, o que resultaria na redução de narrativas bíblicas a ideologemas, mas o Cristianismo se entendeu como um fator cultural e social de combate à desigualdade social, ou dito jamesonianamente, o Cristianismo se propôs a escutar a dor da história, enquanto necessidades históricas não atendidades.

Se impõe ainda, na perspectiva ricoeuriana, duas falsas ideologias, enquanto “concepção cega” ou “falsificadora” da realidade, que são, todavia, mais promotoras de violência do que catalisadoras de reais soluções, a saber: 1) a ideologia do diálogo a qualquer preço, a ponto inclusive de negar a gravidade do conflito, insistindo em uma espécie de irenismo ou de política sem conflito, no qual não raro acaba por gerar mais violência ao promover um consenso com o silenciamento de quem sofre e/ou discorda, e; 2) a ideologia do confronto a qualquer preço no qual se exclui a possibilidade do diálogo e não raro se volta a um ideal perdido, insistindo naquilo que não deu certo na história, por falta de radicalidade. O primeiro é mais próprio do cristianismo, e o segundo, mais próprio do marxismo.

Mesmo a reflexão crítica pensa a partir da ideologia e em sua busca de honestidade intelectual mantem uma relação de autocrítica a mesma e abertura ao debate. O risco ideológico se dá quando um sistema de crença se torna um instrumental de hegemônia, enquanto função de dominação, resultando em formas de totalitarismo alimentadas por fundamentalismos, que podem ser tanto de direita como foi o fascismo e o nazismo, como de esquerda como o stalinismo, ou ainda religiosas como o jihadismo do Estado Islâmico. Vale ainda citar a indústria cultural que não somente conta como o uso de ideologemas, como também não elimina o antagonismo social, mas dele se aproveita. O vulgarismo dos ideologemas não permitem pensar globalmente e agir localmente, mas pensam e agem genericamente, sem reconhecer os processos históricos (passado-presente-futuro) que causam o conflito. Quer sejam ideologemas de direita que mantém a crença em uma espécie de idealismo aristocrático de uma elite que quer salvar o povo e para isso apregoa a conservação ou a volta dos costumes que mantinham a ordem e o combate aqueles que deles discordam. Quer sejam ideologemas de esquerda em forma de protesto contra o sistema, que insiste em formas anteriores de produção (industrias agrícolas e caseiras), alternativas que se desvinculam das instituições, como leitura romântica do passado, que não raro, moldam legítimas narrativas proféticas, com perspicácia de diagnóstico, porém com prognósticos por demais utópicos.

Uma nova estratégia do conflito precisa mudar o modo de ser para uma postura que implica aumento da autoconsciência de posturas conscientes de riscos sim, porém mais consensuais junto a participação popular, um alargamento da consciência crítica sem bipolarização moral que não raro resultam em violência, sintoma da miopia social, pois toda revolução sabe onde quer chegar, mas nunca sabe onde termina. Do mesmo modo, não foi só o comunismo histórico que falhou na realização de seus ideais, mas também e principalmente o capitalismo neoliberal entrou em colapso, e continua falhando em suas apostas, pois não há nenhum sistema que funcione substituindo a dignidade humana por interesses escusos, e olvidando as necessidades da população. O messianismo político brasileiro é um produto tanto da esquerda quanto da direita, e sempre se apresentou como salvação mediante a instalação de uma narrativa de crise (SINGER, 2016, p. 21-54).

Se impõe assim, não um reforço entre a briga de ideologemas, que como já disse Jameson, é irresolúvel, mas sim a tarefa de ouvir a dor da história, em suas necessidades históricas não atendidas, e desde aí discernir formas de diálogo social como contribuição para a paz, analisando como os atores políticos, econômicos e sociais historicamente atuaram para sanar tal dor. A opção pelos pobres não se reduz aos ideologemas, mas é antes fruto da memória narrativa do Povo de Deus que testemunha sua presença que o anima com esperança atuante, fé confiante e amor que conjuga a justiça e a solidariedade entre os que mais sofrem e com eles. A “recepção do anúncio” se configura como “opção pelos pobres” e se traduz como um “efetivo amor fraterno” (Evangelii Gaudium [EG], 178) que “compreende, assiste e promove” os mais necessitados. A escuta da dor da história é para o Cristianismo um “imperativo de ouvir o clamor dos pobres” (EG 179-180) e é graça a ser desejada , pois tem “início no mais íntimo de nós mesmos” (EG 193).

Esse imperativo de ouvir a dor da história se desenvolveu na Literatura Bíblica como narrativa da vida dos pobres.

4. Deus se revela junto aos pobres

A história não precisa ser vista apenas pelo olhar do grande vencedor. Os pequenos, os fracos, os vulneráveis, também têm direito à memória e às histórias, e suas narrativas são importantes porque se trata, ali também, de histórias de vidas (ARGERICH, 2016). Seja do ponto de vista político, religioso ou social, não importa, os pequenos têm direito aos seus pontos de vista e suas narrações.

Não podemos deixar de pensar no famoso diálogo dos 12 franciscanos com os líderes religiosos dos povos da América Central1, onde os indígenas diziam: “nossos deuses foram vencidos, estão mortos”. Parece haver uma relação entre a história como decorre na terra e sua correspondente no céu, no mundo dos deuses (RICHARD, 1982). Esta visão não é estranha à própria escritura, que sabe muito bem que ao combate entre povos na terra corresponde um combate entre deuses no céu, porque cada deus sustenta seu povo como seu grande protetor. Daí que o discurso religioso não deve estar ausente da necessária manutenção da memória dos pequenos.

Mais ainda se olharmos com atenção para o Deus revelado pelo judeu-cristianismo, que dizemos plenamente revelado em Jesus de Nazaré. Ele é o Deus dos pequenos e faz transparecer esta certeza. Só é Deus de todos, aliás, exatamente porque é o Deus dos pequenos, já que se não for dos pequenos, não será de todos (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2011). A teologia demorou certo tempo para formular esta certeza, e as religiões ainda não se encontram muito à vontade com tal compreensão.

Olhando as histórias da revelação de Deus à humanidade, principalmente as contidas na Bíblia, nos damos conta de que ali não temos histórias de muitas vitórias, mas de um povo que muito lutou. Mesmo a história de Jesus parece ser a de um derrotado, crucificado, muito mais que a de um poderoso fazedor de milagres.

A base da fé de Israel começa com a afirmação de que o povo era escravo no Egito. Não há dúvidas nem meias palavras: se trata de um povo oprimido pela escravidão. Do ponto de vista histórico, talvez nem se fale ainda de povo, mas já se fala de escravidão (SKA, 2016). A libertação que Deus realiza, então, tem um objetivo bastante claro: os últimos, os escravos, aqueles com quem ninguém se importa (GRENZER, 2007). E se o credo histórico de Israel vai ainda mais longe no tempo para afirmar que “meu pai era um arameu errante” (Dt 26,5), isso significa, ainda uma vez, afirmar a origem do povo de Israel nascendo entre os mais insignificantes da Terra.

O Deus que protege os fracos e pequenos estabelece com eles uma aliança, um pacto. Sim, Deus está disposto a protege-los e defende-los diante das outras nações por mais poderosas que sejam, mas ele quer que o povo se organize e se configure como um povo: “eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo” (Jr 30,22). A história desta aliança nem sempre foi gloriosa porque o povo muitas vezes a rompeu, isto é, não foi povo, deixou-se levar pelas ânsias de dominação e viu cair sobre si o mesmo destino que caiu sobre todos os outros povos que colocavam na dominação sua esperança.

4.1. A aliança de Deus com seu povo

É básico pensar a fé de Israel baseada em uma aliança que afirma que Deus quer que se constitua como povo. Não o mais forte, nem o mais poderoso ou rico: mas povo, o seu povo, condição para serem suas testemunhas mundo afora. A experiência de convivência na igualdade social é percebida como revelação da vontade de Deus, e nessa chave é que se compreende o alcance da Aliança. Ela está descrita na Escritura em várias passagens (como Gn 17,3-11; Ex 34,10; Is 59,21; Jr 31,31-34, por exemplo) e está expressa, também no entendimento dos judeus, no ensinamento da Lei. A Torá é expressão da vontade de Deus e por isso ela é a afirmação da aliança contraída entre ele e o povo. O resumo da Lei nós a encontramos no Decálogo, aquela célebre perícope que, tanto no texto do Êxodo como no do Deuteronômio (Ex 20,1-17; Dt 5,6-21), diz do desejo de Deus para com seu povo.

A interpretação cristã tradicional, catequética, enxerga o Decálogo como “dez mandamentos” e diz que os três primeiros devem ser cumpridos com relação a Deus e os outros sete, em relação ao próximo. Na verdade, esta leitura esconde o fato de que a aliança se baseia na exigência de o povo ser efetivamente povo, e por isso, mais do que interditos, proibições ou exigências, o decálogo apresenta a forma de convivência social que as tribos de Israel conheceram e construíram na história. E enxergaram nela uma experiência tão completa que proclamaram em sua fé: esta é a vontade de Deus. O relato, tal qual o conhecemos, nos dá a grandeza desta perspectiva: Deus deu a Lei ao Povo.

Existem outras maneiras de ler o Decálogo, ou os Dez Mandamentos, como os conhecemos com ligeiras adaptações sobre o texto bíblico. Por exemplo, podemos lê-lo, em fidelidade à Escritura, a partir de seu centro, o chamado quinto mandamento e sua vontade de proteger a vida, raiz e fundamento de toda convivência social. A proteção da vida não precisa de detalhamento: toda a vida humana deve ser protegida, por isso não destruí-la é a palavra de ordem. Dito de maneira positiva, existe a obrigação de proteger e preservar a vida de todos, daí a importância de proteger a dos que a tem mais ameaçada. O centro do Decálogo é este: proteger a vida, base da convivência social porque isso evitará conflitos, guerras intestinas, ânsia de dominação e de destruição. Consagrar a defesa da vida como central na legislação é proteção aos fracos, uma vez que os fortes dispõem de outros meios de defesa.

Correlato a este, o quarto mandamento versa sobre a família e vem expresso na linguagem do “honrar pai e mãe”. Não se trata de simples preceito de obediência, mas de honrá-los. A vida sempre começa em uma família como projeto de amor de pai e mãe; os filhos são continuadores deste projeto, honrando com suas vidas os sonhos e utopias de seus pais. Exemplar é a figura de Abraão, que partiu em busca de terra, descendência e bênção e teve apenas um filho e a terra da sepultura de sua mulher (Gn 23,20). Quem seria esse Deus que lhe tirou tudo e lhe deu apenas incertezas? Abraão não conseguiu encontrar tudo o que buscou, mas fez história e deixou, depois dele, outras pessoas para continuarem a mesma história. A vida não se mede pelo que se conquista, mas pelas marcas que se deixa na história, inclusive a daqueles que continuarão a mesma luta. Honrar os pais é, de alguma maneira, continuar seus sonhos, seus projetos, seus ideais, e isso é muito mais importante do que gastar seus bens deixados em herança.

Ora, se é necessário respeitar a família, fonte de vida, também é necessário respeitar a família dos outros. Por isso o interdito do adultério, lido na Escritura como o sexto mandamento. Não é simples interdito de ordem sexual, como se deixa compreender na formulação catequética. Trata-se da proteção à família de todos porque o adultério é aquilo que liquida com a família, não porque seja sexo, mas porque é traição. Daí a radicalidade na leitura de Jesus (Mt 5,28), indicando que o amor traído acaba substituído por outra coisa, e a família deixa de existir. O problema é grave porque se trata da proteção da família dos outros, que não podem ter sua base de amor substituída por outra realidade. O adultério, por isso, é proibido, mas se deve perceber que há outros perigos rondando as famílias, como os adultérios não sexuais, isto é, comportamentos de quem têm tempo para tudo, menos para a família. Mas também há os perigos de ordem social: desemprego, excesso de televisão, salários aviltantes, perda de direitos trabalhistas, violência, falta de condição digna de moradia, transporte, saúde, as migrações... enfim, tantas situações em que as famílias são expostas ao perigo da destruição, se não destruídas efetivamente. Por isso o sexto e o quarto mandamentos são correlatos, e assim também na sequência.

A vida que nasce na família precisa ser cuidada, alimentada, cultivada, e para isso são necessários meios inclusive econômicos, e aí se situa o mandamento do “não roubar”, que dizemos ser o sétimo mandamento). Em boa linguagem, ele afirma a interdição de se apropriar do fruto do trabalho das outras pessoas. Mais do que não pegar suas coisas, afirma-se a proibição de se tomar o fruto do seu trabalho, já que sem ele a vida não teria condições de ser protegida e cultivada. O trabalho é que possibilita a vida, nutre a vida, e apropriar-se do trabalho dos outros significa, em outras palavras, ameaçar sua vida. Muitas são as maneiras disso acontecer: salários injustos, flexibilização da legislação trabalhista, desemprego, desajuste na seguridade social e tantas outras maneiras de se atentar contra a vida através da imposição de dificuldades para o recebimento daquilo que é o fruto do trabalho de alguém.

Da mesma forma como é preciso respeitar o trabalho dos outros, também é importante ter consciência de que a vida humana não se resume em acumular, mas seu significado situa-se na linha do conviver. Por isso o mandamento do descanso ou impedimento do trabalho, expresso como o terceiro mandamento, que manda guardar o Dia do Senhor. Ora, o dia do Senhor é também o dia da comunidade, dia da convivência porque nele não se trabalha, não se é simplesmente um profissional, mas uma pessoa. Nesse dia as pessoas podem se encontrar em igualdade fraterna e não em superioridade profissional. Mais do que mandamento religioso, aponta para a convivência: ser pessoa.

A vida que nasce na família e que precisa ser alimentada pelo trabalho, é vida que não será vivida sem honra, sem dignidade. Roubar o nome de alguém é roubar-lhe a dignidade como ensina o oitavo mandamento, e sem dignidade não se pode viver, não se pode ser pessoa. O falso testemunho nos tribunais leva, sim, à destruição da pessoa, e o falso testemunho na convivência faz o mesmo, exatamente impedindo a convivência. Não é sem interesse notar que as grandes ditaduras, e nós as conhecemos, não apenas acusam as palavras de seus opositores, mas os criminalizam, inclusive a atual ditadura da mídia. Destruir a reputação, a fama, o nome das pessoas é impedir a sã convivência social.

Por isso o respeito à honra, à dignidade, ao nome de Deus, como dizemos no segundo mandamento. Assim como deve ser protegido o nome das pessoas, assim também deve ser protegido o nome de Deus. Claro que não se trata de proibições acerca da pronúncia da palavra Deus, mas sim do fato de se dizer mal dele, de se falsificá-lo, de não reconhecê-lo presente na vida dos pobres e revelando-se ao lado dos pequenos. Mudar o ser de Deus, domá-lo e domesticá-lo para que ele atenda desejos e expectativas, tudo isso é ir contra seu nome, porque é não reconhecer sua dignidade, sua liberdade e os seus projetos de fraternidade para toda a humanidade.

No final, então, se coloca a afirmação de que ele é absoluto e está antes e acima de tudo e não se o resume a uma imagem segundo nossa vontade, como dito no primeiro mandamento2. Amar não é exatamente um mandamento, mas o fundamento de todas as coisas, sobretudo da convivência fraterna. Amor é o outro nome de Deus (1Jo 4,8), nos ensina Jesus, afirmando que o Amor é a base de nossa vida. O povo só é povo verdadeiramente no amor, onde se é capaz de reconhecer outro como pessoa e com ele conviver. Fora do amor, o outro será concorrente ou adversário, nunca irmão.

Exatamente por isso o interdito final é o da cobiça3, porque ela faz tornar absoluto aquilo que é relativo, faz tornar final aquilo que é intermediário, faz se tornar importante aquilo que não tem importância. A cobiça é mãe da idolatria, que não apenas falsifica a ideia de Deus, mas falsifica o próprio ser humano, torna-o falso. E o faz porque insensibiliza. A imagem bíblica da idolatria (Sl 115) é exatamente esta: insensibilização, que leva a uma separação dos outros, a uma não compaixão, e faz esquecer que a misericórdia é o jeito de Deus ser. O caminho será o de opor às falsas ideias do divino a verdadeira revelação de Deus que acontece entre os pequenos. Contar suas histórias, pois, é guardar a liberdade do ser de Deus, e aprender de sua Revelação quem ele é.

Na história de Israel a referência constante será a esta aliança, referência que não estará apenas no culto que a atualiza, mas na pregação dos profetas que continuarão a exigir o seu cumprimento através e a partir do estabelecimento da justiça social. No entender dos profetas, não há aliança se não há justiça social, e é isto que faz o povo ser povo de Deus, é isto o que faz com que Israel seja diferente dos outros povos. Sem isso, será mais um povo igual aos outros, com o mesmo destino dos outros. A manutenção da memória da experiência de formação social do pequeno povo de Israel é fundamental para se entender o ser e a revelação de Deus. Narrar a vida dos pequenos e pobres, incluindo sua experiência de formação social, é compreender a Palavra de Deus como orientação para a convivência, estabelecendo o princípio do compromisso social como maneira de viver e de se referir aos fundamentos da fé.

4.2. A Nova Aliança em Jesus

Em Jesus a perspectiva não é diferente. Nele se concretiza a Nova Aliança e se torna explícito o Novo Mandamento que nada mais é que a retomada daquilo que os antigos mandamentos já referiam em relação à antiga aliança. O resumo que Jesus faz da Lei é exatamente aquele que encaminha para a convivência na igualdade: amar a Deus e ao próximo. O que significa que o amor vem antes de tudo, e aquele endereçado a Deus se historiciza naquele vivido com relação ao próximo. Próximo, aliás, que é bem desenhado na parábola do Bom Samaritano (Lc 10), figurado naquele que está caído na beira do caminho.

Para Jesus, a concretização da Aliança efetiva a presença do Reino de Deus entre os seres humanos. Reino é onde Deus governa, ou seja, onde tudo se realiza segundo sua vontade. Portanto, é lugar primacial e absoluto de convivência humana, com privilégio para os pobres, os pequenos, os excluídos, porque eles não são considerados iguais aos outros. Daí a sociedade igualitária ser compreendida como boa-notícia para eles. O Messias de Deus se identifica com os últimos da história, para quem o Reino é evangelho. É tão solidário a eles que acaba sofrendo a mesma sorte: abandonado, preso, condenado, morto. Não há dúvidas de que a crucificação de Jesus acontece por conta de sua dedicação ao Reino, razão, aliás, de sua titulação messiânica, pois o Messias é aquele que instaura o Reino. Vida entregue pelo Reino e que torna possível a convivência igualitária entre todos, Jesus é morto por aqueles que preferem a sociedade dividida.

A narrativa da morte de Jesus não é, absolutamente, narrativa das maravilhas realizadas por alguma entidade espiritual. Ela é uma narrativa bem lúcida que mostra a crueldade da qual ele foi vítima, como tantas outras vítimas na história. É, sim, a narrativa sobre um derrotado, um dos pequenos. E que bom que a narrativa existe, porque se não fosse assim, se passaria rápido para as afirmações de Ressurreição, como acontece hoje em muitos ambientes religiosos. Em cristianismo não se pode escamotear a morte de Jesus e sua identificação com os últimos, porque existe uma narrativa evangélica sobre isso. Ela faz com que permaneça a memória do Nazareno e, a despeito da confissão de fé, da maravilha da Ressurreição e dos grandes milagres, prodígios e sinais que aconteceram naquela época e em tempos posteriores, é ela que impede de esquecer a realidade da cruz e dos crucificados.

Duas coisas, portanto, se destacam quando se percebe a Escritura por este caminho: o primeiro é de que a convivência em igualdade e fraternidade não é apenas uma coisa boa, humana, mas é também o próprio projeto de Deus, sua vontade, expressa na pregação do Reino de Deus feita por Jesus depois de toda a história, de certa forma preparatória, narrada no Antigo Testamento. Exatamente por isso há que trazer para a convivência humana aqueles que estão fora, que estão à margem, deixados à beira do caminho da história, desprovidos de bens mas, sobretudo, despidos de sua dignidade fundamental, e é este o segundo ponto. Socorrer os que sofrem em autêntica prática de misericórdia é a ação necessária dos cristãos, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Por isso se diz que é necessário descer da cruz os povos crucificados (SOBRINO, 1994), porque nossa ação, nossa fé e nossa esperança, é a de que nossos povos tenham vida, como nos lembrava a conferência de Aparecida4. Não é sem razão, portanto, que Francisco insiste muito nesse aspecto de solidariedade com os que sofrem, com os pobres, inclusive coletivamente: aqui se joga a credibilidade da fé cristã e, para dizer em uma palavra, a do próprio Deus.

Conclusão

As narrativas bíblicas, do Antigo e do Novo Testamento, apontam para a Revelação de Deus que acontece na história humana, mas no lugar e a partir dos pobres. Esta, como se disse, é sua condição de universalidade: só é de todos o que inclui os pobres, porque senão se os deixa de fora. Começar por eles indica seu privilégio, marca característica da Revelação do Deus cristão.

Como fenômeno de linguagem e na perspectiva da crítica literária, as Escrituras Hebraicas e Cristãs são narrativas da dor da história desde a vida dos mais pobres. De um lado, guardar suas histórias é guardar suas memórias, afirmar sua dignidade humana, fazer referência à importância que têm no mundo porque são pessoas. Tais histórias nos colocam diante de nossa situação existencial também, não apenas porque nos refiguramos diante destas histórias, mas porque nos situamos em um mundo onde elas denunciam os equívocos do caminho da humanidade e indicam a necessidade de aperfeiçoamento de nossa civilização, exatamente porque o mundo não está bom para todos. Ainda há caminho a ser percorrido, ainda há espaço para melhoras e desenvolvimento social, de maneira que se pode pensar um mundo onde seja menos difícil viver. Por mais que a ciência tenha avançado e que a tecnologia tenha facilitado uma série de coisas, ainda há caminho de humanidade a percorrer porque ainda há gente sofrendo. Para essa consciência, a necessidade de se narrarem as vidas dos mais pobres.

Por outro lado, é extremamente importante lembrar que nós lemos a revelação de Deus e fazemos teologia a partir de narrativas de vida dos empobrecidos. Deus está no meio deles porque sempre esteve ali. Para se conhecer algo de Deus, para se fazer experiência de Deus, é preciso atentar para a vida dos pobres que nos são narradas em tantos e tantos relatos de sofrimento, dor e miséria. Sim, aqui e ali há histórias de vitórias, de conquistas, de avanço. Ainda bem que é assim, mas não podemos desviar o olhar e contemplar apenas os vitoriosos. É sempre preciso, para se conhecer o Deus de Jesus, olhar para a vida dos pobres em tantas e tantas histórias que eles mesmos compõem e fazem chegar até nós.

Esta perspectiva bíblica não pode ser confundida com ideologemas, se impondo a tarefa hermenêutica de discernimento os elementos ideológicos da fé, na medida em que também é um sistema de crença, para serem primeiramente autocriticados, sob risco de uma fé ingênua, e consequentemente irresponsável e que corrobora para aumentar a dor dos mais pobres. Há que se afirmar o vínculo indissolúvel entre Evangelho e enfrentamento da desigualdade social. O Papa Francisco lembra a todo momento a importante tarefa de nos solidarizarmos com os pobres e sofredores. Não necessariamente para resolver-lhes todos os problemas, até porque vários deles são muito grandes e complexos. Não é preciso mudar o mundo de uma vez, mas é preciso solidariedade para com os pobres. E o Francisco que nos fala sempre da prioridade dos pobres, gosta muito destas histórias onde se percebe solidariedade, esforço, grandeza humana e, sobretudo, presença salvadora de Deus. Para se conhecer a Deus, é preciso que ouçamos as narrativas de vida dos mais pobres, sofredores e excluídos, porque é ali que Deus está salvando e sustentando suas vidas.

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Notas

[1]Veja-se o célebre texto de Bernardino de Sahagun, História geral das coisas de Nova Espanha.

[2]No texto bíblico, o mandamento se desdobra em dois: amá-lo acima de tudo e não ter outros deuses ou fazer imagem dele (Ex 20,4-6). Na linguagem catequética, unem-se os dois preceitos em um único.

[3]O décimo mandamento ensina a não cobiçar, mandamento que a linguagem catequética divide em dois: a mulher do próximo e as coisas alheias (Ex 20,17).

[4]Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que, nele, nossos povos tenham vida. Este é o tema da Conferência de Aparecida que elaborou o Documento de Aparecida, 2007.