Religião e Literatura: Uma leitura a partir de Erich Auerbach

Sergio Ricardo Gonçalves Dusilek*
* Bacharel em Ciências Contábeis (Centro Universitário UNA/MG1995) e Teologia (Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil-1998), Pós-Graduado em História da Filosofia (UGF-2000). Mestre (2015) e Doutorando em Ciência da Religião - UFJF/MG. Contato: .
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Resumo
O presente texto procura apresentar o caráter mediador da literatura para a confluência entre a Teologia e a Ciência da Religião. Na literatura se encontram percepções religiosas, seja nos textos tidos como eminentemente religiosos, especialmente presentes nos livros considerados sagrados pelas religiões, seja nos demais textos que ao abordar a vida humana em suas facetas e expressões acabam por tangenciar, quando não aprofundar a dimensão religiosa da vida humana. Nesse sentido, por trabalhar com textos cristãos e aponta-los como fundamento para o surgimento do realismo literário na modernidade, é que se propõe aqui uma interface entre religião e literatura a partir do pensamento de Erich Auerbach. Em Auerbach a literatura bíblica ensejou o trato da realidade que influenciou o realismo literário. Segundo o mesmo filólogo, ao figurar a realidade, o realismo literário açambarca expressões, sentimentos e preocupações religiosas.

Palavras chave:Religião; Literatura; Realidade; Realismo; Auerbach.

 

Abstract
The following text seeks to introduce the literature mediator character between Theology and Religion Science. In the literature, religious perceptions can be found, either in the texts considered eminently religious , mainly present in the books regarded as sacred by religions, either in other texts that, when addressing the human life in its facets and expressions, end to tangent, instead of deepen the religious dimension of human life. On this regard, due to the work with Christians texts and to present them as foundation for the appearance of the literary realism in modernity, it is proposed here an interface between religion and literature from Erich Auerbach thought. In Auerbach, the biblical literature gave rise the tract of the reality that influenced the literary realism. According to this philologist, by figuring reality, the literary realism engross expressions, feelings and religious concerns.

Keywords:Religion; Literature; Reality; Realism; Auerbach.

Introdução – Herdeiro do pensamento humilhado

“Moisés disse ainda: Rogo-te que me mostres a tua glória. Respondeulhe o Senhor: Eu farei passar toda a minha bondade diante de ti, e te proclamarei o meu nome Iavé; (...) E quando a minha glória passar, eu te porei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá.”(Êxodo 33:18,19a,22-23).

A perícope acima se refere a um episódio presente na narrativa bíblica por ocasião da saída do povo hebreu do Egito. Sua escolha para esse momento está fundada em duas principais perspectivas: a primeira, na própria abordagem que Auerbach faz sobre o texto bíblico e que é recorrente em suas principais obras; a segunda, no flanco que se abre pelo próprio texto bíblico para uma abordagem sobre o divino que não se atém à religião. E ao fazê-lo o próprio texto bíblico abre espaço para uma abordagem da religiosidade que não esteja necessariamente envolta em uma determinada tradição.

Conquanto seja parte de um livro considerado sagrado, o que pode ser percebido no elemento religioso que se auto-evidencia no texto, ele sinaliza sua distensão, sua liberdade em relação ao mesmo. É um Deus que passa e que a própria literatura veterotestamentária o tange pelas formas, pela percepção obtusa, ainda que com certa proximidade segundo a figura bíblica1. O Deus que passa é aquele que se faz presente no texto, mas que também está além dele, revelando sua natureza mítica, pois o “mito não é projetado para descrever uma situação específica, mas para contê-la de tal modo que não restrinja seu significado àquela única situação. Sua verdade está dentro da sua estrutura; não fora dela” (FRYE, 2004, p.73). O Deus que passa é aquele que não pode ser contido por uma doutrina, ainda que essa o tente retratá-lo (e não consiga), pois de algum modo ele está sempre em movimento, não se sujeitando ao enquadramento. Isso implica numa presença de elementos da religiosidade para além do próprio âmbito religioso, pois que na história se fazem presentes (PANNENBERG, 2004, p.23). Essa compreensão para além do texto é bem retratada por Wolfhart Pannenberg que afirma:

Quando aprendemos a ver esse milagre transcendente e envolvente da natureza: a vida e a história como um sinal da presença de Deus entre nós; isso novamente se transformará em algo significativo para ser dito a respeito de Deus, quando quer que desejemos falar sobre o verdadeiro significado da nossa vida e história. (PANNENBERG, 2004, p.20).

Ora, o que é dito sobre Deus é o que se transforma especialmente em literatura. E essa apreensão não está restrita à uma literatura, mas sim espargida sobre a vida humana, de onde brota a inspiração para que se torne escrito. Nesse sentido há muito do divino no humano. Por isso a religião seria mais um componente humano do que divino. Sendo um reflexo do humano, ela aparece tanto na literatura religiosa quanto na não religiosa. A literatura passa a ser concebida assim como humana. Um exemplo foi o destaque de Auerbach sobre a reação do Romantismo ao processo de desintegração social que a Revolução Francesa tinha ocasionado, ao dizer que

A atmosfera se tornou mais favorável ao sentimento religioso e mesmo aqueles que permanecem estranhos ou hostis às instituições das Igrejas estão imbuídos de uma religiosidade vaga, mística ou panteísta, bastante distanciada do materialismo e do sensualismo que tinham dominado no século XVIII. Mesmo os ateus românticos dão a seu ateísmo um ar de desespero lírico que conserva algo de religioso” (AUERBACH, 1972, p.232 - grifo nosso)

Ao inferir essa interpretação percebe-se que a religião está para além das limitações ou cercas religiosas. O aspecto religioso pode ser visto, uma vez que ele se autodenuncia, fora da religião e para além das confissões. A título de ilustração, John Hick compreendia que o caráter absoluto da experiência religiosa não estava limitado ao cristianismo (HICK, 1998, p.13). Nem tampouco os elementos afeitos a religiosidade em si podem ser restritos a uma religião ou ao âmbito religioso.

Ao analisar, então, a relação entre religião e literatura nesse texto, é mister ficar claro que não se tem a pretensão de apresentar um quadro, um balanço atual dessa interação. O que se pretende aqui é falar e, por que não, evidenciar as possibilidades dessa relação, especialmente lastreando o fio condutor dessa análise na obra de Erich Auerbach. Deste modo, o principal apontamento de Auerbach que sustenta essa relação entre religião e literatura é a proveniente da relação circular entre a literatura bíblica e a história, a realidade.

Literatura Bíblica e Realismo Moderno

Para Auerbach a própria Bíblia forneceu as bases para o desenvolvimento do humanismo e do realismo moderno. É do cristianismo que emerge a dignidade humana (AUERBACH, 2012, p.270). Uma vez ocorrido o desprendimento das fontes cristãs, essa dignidade intrínseca do ser humano que estava presente no cristianismo adquiriu nova coloração na modernidade. Para Auerbach esse rompimento ocorreu devido ao que ele chamou de quebra da moldura, tipificado em Dante (AUERBACH, 2011, p.175), quando a figura do homem foi colocada à frente da figura de Deus, decorrendo o descolamento das fontes cristãs. Ressalta-se que este descolamento foi das fontes cristãs, porém não do elemento apriorístico da experiência religiosa (OTTO, 2007) com sua abrangência universal.

Já o realismo moderno teve na mistura de estilos do texto bíblico sua inspiração. É possível que Dostoievski esteja certo na sua percepção de que o realismo moderno tenha tornado o sobrenatural refratário (DOSTOIEVSKI, 2004, p.263). Mesmo assim é necessário que se reafirme sua origem a partir da literatura bíblica, envolta que está na mistura de estilos. Essa mistura envolvia desde o tipo de linguagem, de estilo usado, ao caráter universal dos destinatários, passando pelos temas que na literatura bíblica se faziam presentes (AUERBACH, 2012, p.24). Digna de nota também é a falta de decoro, ao retratar os heróis com suas imperfeições, marca da antropologia cristã que originou o realismo criatural (AUERBACH, 2011, p.225). A ausência de decoro era contrária à estética clássica, permitindo inclusive uma identificação do público com as histórias por eles vividas na narrativa bíblica. Estética clássica esta que Auerbach assim sublinha: “ninguém pode ser velho, doente, frágil ou deformado - não há lugar nesse palco para Lear ou Édipo, a não ser que se submetessem aos ditames da bienséance” (AUERBACH, 2012, p.245).

A literatura bíblica destoava da estética clássica apresentando seus heróis com todas as suas fragilidades, em toda sua criaturalidade. Um líder com dificuldade de falar (Moisés); um poderoso guerreiro e rei que tinha aspecto franzino e gentil (Davi); um patriarca que mancava (Jacó); o imbatível, mas promíscuo Sansão; o precipitado apóstolo Pedro; o míope apóstolo e voraz leitor Paulo, entre tantos outros. Sem um padrão estético para tratar o sagrado, o texto bíblico, ao fazer uso da realidade e nela denunciar a presença do divino, ou ainda fazer uso do divino e nele denunciar a presença da realidade, se tornou o catalisador de uma literatura que evidencia o religioso fora da religião.

Ao elencar sua constelação de “anti-heróis”, a narrativa bíblica não só permite a identificação do leitor com o personagem, uma vez que se percebe, se projeta nele, como também estabelece um convite para o processo de revelação pela modelagem. Os personagens durante os altos e baixos das suas narrativas na Bíblia sofrem um processo de maturação, pelo qual a consciência do personagem é transmutada ao longo do tempo para uma consciência com a perspectiva do divino. Não só a vida do personagem se torna o palco da revelação divina, mas sobretudo sua própria consciência. É assim que se processa a narrativa sobre José do Egito, o qual sofre diversas injustiças, bem como privações e provações até chegar ao ponto de no último capítulo do livro de Gênesis, perceber a Providência divina e seu guiar teleológico entendendo que os percalços duros e difíceis do caminho da vida foram primordiais para que ele chegasse ao posto de Governador do Egito, guiando o povo daquela nação, das nações vizinhas e salvando sua família durante um duro período recessivo, de “vacas magérrimas”. De modo interessante, os personagens que chegam a essa compreensão estendida acabam “saindo de cena”. Este fato parece-nos indicar que a modelagem dos personagens na narrativa bíblica visa esse ponto máximo em que a revelação divina se expressa na subjetividade, na consciência que o personagem adquire de uma história/trajetória que foi guiada, usada por Deus para um propósito maior, e pela qual ele se mostrou.

A mistura de estilos na literatura bíblica mantinha um vínculo estreito com sua abordagem universal. Ao retratar a vida de pessoas simples, humildes a narrativa bíblica quebrava com a tradição clássica que se voltava somente à nobreza como destinatária do texto e como modelo a ser retratado pelo autor. Se a pretensão da mensagem bíblica era a da salvação universal, o seu texto precisava ser compreensivo no tocante à realidade. A linguagem se torna também acessível. O modelo narrativo bíblico que aponta para essa mistura de estilos é então o “U”, no qual se observa um início trágico, um começo amargo, passando posteriormente a uma superação e realização da felicidade, o que caracteriza o texto bíblico como uma comédia (FRYE, 2004, p.206). Na narrativa bíblica a fé aparece não só como elemento de submissão ao querer divino, permitindo a moldagem do “herói” (ou seria anti-herói?), mas também como elemento de superação, que sinaliza a vitória final.

Por que se torna importante falar da mistura de estilos aqui? Porque segundo Auerbach foi à mistura de estilos presente no texto bíblico que possibilitou o desenvolvimento da literatura moderna e porque essa proposição universal, aliou-se com a universalidade da experiência, ou mesmo da conotação religiosa, como Auerbach destacou sobre a presença do elemento religioso no ateísmo romântico. O aspecto universalizante estava contido na retratação da realidade de modo abrangente, sem a distinção clássica entre o sublime e o humilde. Sua condição proposital, por sua vez, residia na intencionalidade presente no texto bíblico que visava alcançar toda a humanidade, afinal, o ideal salvífico era para todos. Essa nova abordagem, que à época feria a estética do realismo clássico-antigo (AUERBACH, 2011, p.20), por ser abrangente na sua confecção e na sua extensão, só foi possível pela mistura de estilos, o qual possibilitou a figuração da realidade no texto bíblico, alcançando depois os demais textos e desembocando no desenvolvimento do realismo moderno. Destaca-se que esta relação de aproximação e apropriação da narrativa bíblica ocorrida durante séculos foi que possibilitou o desenvolvimento da própria hermenêutica, especialmente em F. D. E. Schleiermacher (DREHER, 2008).

Ao falar da mistura de estilos que contribuiu para o desencadeamento do realismo moderno é preciso frisar que é possível perceber a presença de temas, sentimentos, aspectos, e até mesmo atitudes religiosas em textos não religiosos. Isso porque a literatura se desprendeu do texto bíblico, mas não daqueles temas que abrangem a preocupação última do ser humano e que são, portanto, eminentemente religiosos. Assim sendo a literatura adquire um aspecto escatológico, não como estudo das últimas coisas, mas sim como o “estudo das coisas de significado último” (DUSILEK, Darci: In: STEUERNAGEL, 1994, p.87). Ora, as coisas de significado último são as que brotam e as que alcançam a humanidade, que a conduzem para a perplexidade ou que a tiram de um estado catatônico. É a reverência do humano diante daquilo que Karl Jaspers chama de “situações limite” que promove sua elaboração nas “expressões-limite”, segundo Paul Ricoeur.

A Análise de temas religiosos na literatura

Importa destacar que em Auerbach não há purismos metodológicos2. Ele mesmo ao escrever Mimesis introduz uma nova forma de elaborar a crítica literária, conquanto tenha sofrido a crítica de se negar a assumir um novo método crítico. Dessa forma Auerbach dispensou o uso de teorias, assinalando para um modo que pretendia seguir em sua análise:

O método de me deixar dirigir por alguns motivos de forma paulatina e despropositada e de pô-los à prova mediante uma série de textos que se me tornaram conhecidos e vivos durante a minha atividade filológica, parece-me fecundo e factível; pois estou convencido de que aqueles motivos fundamentais da história de representação da realidade, se os vi corretamente, devem poder ser encontrados em qualquer texto realista escolhido ao acaso. (AUERBACH, 2011, p.494).

A representação da realidade tem por objetivo a interpretação da própria vida, captando esse fluxo contínuo que é a vida humana em todas as suas expressões. Na interpretação e formulação que dela decorre objetiva-se captar um sentido ou mesmo um ordenamento que nela esteja presente, tonalizando aquilo que é o essencial. Ao se penetrar no campo do sentido da vida, tangencia-se o universo teológico. Dessa forma pode-se produzir tanto uma abertura para a discussão sobre Deus, sua presença ou mesmo seu lugar no mundo quando apontado o desespero, quanto criar um efeito alentador. Parte desse movimento explica-se pela herança realista oriunda da literatura bíblica. Por outro lado os temas teológicos se fazem presentes pela relação e interação entre Realidade e Revelação.

É por isso que na sua seleção de textos encontra-se a literatura bíblica como ponto de partida para o surgimento do realismo literário na literatura ocidental. Auerbach faz uso do modelo figural de composição e interpretação do texto bíblico na representação da realidade presente nos textos que ele elencou como realistas. O que se pode perceber é então uma ausência de purismo metodológico que igualmente faz o caminho inverso: as observações que o filólogo alemão faz aos textos literários se intercambiam e se aplicam aos textos cristãos. Esse intercâmbio, sinal de uma integração, além de ampliado para os demais textos religiosos, é bem pontuado por Eduardo Gross ao falar que

A percepção dessa conjunção tem possibilitado o desenvolvimento de procedimentos analíticos e interpretativos que apontam para a possibilidade e mesmo a necessidade de se estudarem textos religiosos e literários de um modo integrado. Nenhuma literatura pode ter técnicas de análise e de interpretação que sejam próprias somente à sua forma particular. (GROSS, 2002, p.9).

Contudo é importante ressaltar, mesmo porque pode ser observado também na principal obra de Auerbach (Mímesis), que os “estudos da relação entre literatura e religião tem se pautado por uma ênfase na discussão de textos que apresentam características religiosas relativamente explícitas” (GROSS, 2002, p.10). O que reforça a escolha de um texto bíblico para iniciar a discussão aqui apresentada e espelha a circularidade latente, em Auerbach, entre religião e literatura.

Destaca-se que essa ausência de purismos que implica num método amplo (ou pelo menos em uma aplicação amplificada), não resulta, necessariamente, na perda da sacralidade de textos religiosos, nem tampouco na sacralização daqueles considerados “profanos”. O que se tem observado é que mesmo os textos compreendidos como “profanos” acabam por espelhar a religiosidade que os permeava (GROSS, 2002, p.9). A mais baixa profanação traz consigo os germes de sua mais elevada contraposição, advinda da noção do sagrado. A perspectiva é que as preocupações religiosas podem tanto ser explícitas quanto infiltradas na literatura. E essa amplidão metodológica reforça um traço do modelo figural auerbachiano que é a defesa de uma interpretação reinterpretativa do texto, implicando tanto na adaptação para que atinja um maior público, como também no afloramento dos elementos (religiosos ou não) do texto, naquilo que Heidegger chamou de “coisa do texto”.

A condição implícita de temas religiosos em textos não religiosos baseia-se na própria busca de compreensão da realidade. A crueza de algumas abordagens desfigura o divino e a temática religiosa no duro confronto com a realidade. Os modelos de figuração que surgiram nos mais variados tipos de realismos tipificados por Auerbach em Mimesis, desde o moderno (2011, p.395) ao caricaturesco (2011, p.37), passando pelo sentimental-burguês (2011, p.391) e pelo russo (2011, p.467), só para ficar em poucos exemplos, possuem uma pretensão de absorção da realidade, ora como ela se apresenta, ora como ela consegue ser captada. Essa absorção conduz a abordagem literária para o universo do sentido, das preocupações últimas, o âmbito teológico-religioso. Não é a toa que em todas estas formas, as preocupações últimas, a busca de sentido e da essência da vida se fazem presentes.

Exemplo disso está presente na obra “O Germinal” de Emile Zola, na qual o autor “segue a definição naturalista da religião” (DREHER: In: GROSS, 2002, p.36). Auerbach apresenta Zola como destacado componente dos realistas estéticos (2011, p.455), cujos textos eram capazes de provocar um misto de sensações: desde a repulsa à admiração (AUERBACH, 2011, p.457). Zola representava a sociedade como a via, abordando a questão social do seu tempo e procurando abranger toda a vida do seu tempo, especialmente a luta entre classes. Se Zola exagerou, “ele o fez na direção que interessava, e se tinha predileção pelo feio, fez dele o uso mais frutífero possível”, pontua Auerbach (2011, p.460). Ele também assevera:

Alegrias pobres e grosseiras; corrupção prematura e rápido desgaste do material humano; embrutecimento da vida sexual e, em relação às condições de vida, natalidade demasiado elevada, pois a cópula é o único deleite gratuito; por trás disto, no caso dos mais energéticos e inteligentes, ódio revolucionário, que se apressa para a eclosão: estes são os motivos do texto. (AUERBACH, 2011, p.459).

Por isso que o divino se torna subsumido no âmbito da mortalidade operária, imaginado no medo da natureza ou ainda na relação impessoal, imposta pelos meios econômicos (DREHER: In: GROSS, 2002, p.45). Por fim tem a esperança que vence o medo (DREHER: In: GROSS, 2002, p.47). A esperança além de ser uma virtude cristã, é também a “reserva religiosa e a obrigação religiosa” (TILLICH, 1992, p.208). O que mostra que a “religião persiste num mundo e num ambiente onde o divino é transfigurado” (DREHER: In: GROSS, 2002, p.47).

Por outro lado, ao analisar o realismo na literatura ocidental, Auerbach evidencia que os textos religiosos não escapam à realidade, à vida como ela se apresenta em toda sua espessura. Não só a religiosidade e os temas da religião estão presentes na literatura, pois que antes na realidade; nos textos eminentemente religiosos há uma forte presença do componente cotidiano. Ao tocá-la abordam elementos do cotidiano que pouca conexão tem com o espectro religioso. No entanto, é importante salientar que a mesma literatura religiosa que aborda o humano, que procura revelar o divino, e que açambarca a realidade, por possuir uma concepção do sagrado, revelará a “ausência de outras concepções concorrentes” (GROSS, 2002, p.8). Concepções estas que eventualmente correspondem ao sagrado. Esse caráter seletivo no processo de edição do texto religioso foi bem marcado por Harold Bloom, ao comentar a composição do texto javista no Pentateuco, quando afirmou que ficava fascinado não com o que era incluso na narrativa, mas sim com o que ficara de fora dela (BLOOM, 2012, p.13). O sagrado assim se manifestava no processo de seleção, tanto na inclusão quanto na exclusão das narrativas.

Outro fator, agora numa perspectiva moderna que explica essa ausência de purismo metodológico está na compreensão do que torna um texto religioso ou não, do que o faz “sacro” numa perspectiva, ou mesmo “profano” por outro lado. Conquanto os textos religiosos possam assim ser classificados pela presença de elementos e temas que o denunciam, assim como os elementos religiosos podem ser apontados pelo mesmo motivo num texto não religioso, a sacralidade segue sendo uma atribuição. Paul Ricoeur afirma que um texto se torna sagrado quando ele sofre uma leitura confessante, isto é, quando uma pessoa ou um grupo passam a encará-lo como sagrado. De modo semelhante Paul Tillich assim expressou: “Todas as pessoas, grupos e coisas são profanos; e só se tornam sagrados na medida em que se tornam símbolos da santidade divina” (TILLICH, 1992, p.246). O que permite o caráter simbólico é a conexão que fazemos com o divino. A sacralidade é uma atribuição, ou mesmo uma elevação, uma promoção daquilo que é considerado profano, usual, a um patamar superior. E essa classificação ou mesmo seleção é necessária que o homem faça.

A dificuldade que se apresenta com essa ausência de purismo metodológico está naquilo que Paul Ricoeur chamou de especificidade irredutível da linguagem religiosa, quando esta fala de Deus e do Reino (RICOEUR, 2006, p.56). Nessa perspectiva a literatura religiosa teria uma área privativa, circunscrita, para que a sua melhor compreensão pudesse ocorrer. É um convite a uma integração de algo bipartite; a uma análise conjunta que preserva as peculiaridades da linguagem que está envolta na construção de cada tipo de texto, religioso ou não. Isso porque a compreensão especialmente se dará através da linguagem e não somente na linguagem (RICOEUR, 1978, p.133), já que um traço da literatura religiosa assumida como canônica é sua assunção como revelação divina. Ela não só apresenta teofanias e as apropriações do divino contidas nas histórias dos seus personagens, mas, sobretudo, procura ter um caráter revelatório que aponta para o fato de que a revelação acontece primeiro na história antes de ter seu registro.

A linguagem religiosa possui então a especificidade de apontar para algo além dela mesma, do próprio uso da linguagem, guardando certa especificidade oriunda da sua pretensão transcendental e universalizante. O realismo bíblico-criatural registra a presença divina na história, na interação e moldagem dos personagens que viveram situações reais, cotidianas, passíveis de serem experimentadas na vida de qualquer um. A representação textual se torna viva uma vez atualizada pelo modelo figural, agora presente não mais somente na relação texto-texto, cujo maior exemplo é a relação entre o Velho e o Novo Testamento na literatura bíblica, mas, sobretudo na relação texto-leitor. A relação cumprimento-preenchimento passa a acontecer na perspectiva figura-experiência, realismo-realidade, texto-vida. Com isso demonstra-se que a revelação é maior do que o seu registro, sendo a literatura religiosa, sagrada, uma amputação, uma redução da experiência viva, do acontecimento, do evento (RICOEUR, 2004, p.2). Exemplificando tal fato, apelamos para Rudolf Otto (2007) que diferenciou este aspecto apresentando o conteúdo racional e por isso compreensível da religião, e também o conteúdo irracional, o numinoso no qual reside o cerne da experiência religiosa, e cujo “local” é de difícil nominação e descrição. Por conta disso há o reducionismo no registro, o que deveria ensejar uma visão mais ampla da relação entre Revelação e Palavra de Deus, tal qual expressa por Paul Tillich:

O termo ‘Palavra de Deus’ é ambíguo. Em geral se usa para designar a palavra escrita na Bíblia. Mas nenhuma palavra bíblica é a Palavra de Deus para nós enquanto tivermos que abandonar a realidade histórica para entendê-la. Nem mesmo essa palavra bíblica pode nos alcançar religiosamente se não se tornar contemporânea. O termo ‘Palavra de Deus’ designa qualquer realidade utilizada pelo poder supremo para entrar em nossa presente realidade; pode ser pessoa (por exemplo, o Cristo), coisa (objetos sacramentais), texto escrito (por exemplo, a Bíblia), palavra falada (por exemplo, sermões). As igrejas protestantes precisam encontrar urgentemente a melhor maneira de reunir na pregação a contemporaneidade com o poder autotranscendente. A terminologia eclesiástica e até certo ponto a bíblica estão longe da realidade de nossa situação histórica. Principalmente quando empregadas com certa atitude de arrogância sacerdotal que repete o texto bíblico e o deixa aos ouvintes para que sejam tomados por ele ou não. Nesse caso, certamente, o texto bíblico deixa de ser ‘Palavra de Deus’ e passa a ser, corretamente, ignorado pelos protestantes. (TILLICH, 1992, p.109)

Ao se expressar assim Tillich combatia a alienação produzida por uma pretensa pregação dogmatizante que excluía tanto a existência da multiforme manifestação divina, como também a própria realidade. Ao enquadrar o querigma, a pregação, a igreja se esvaziava do seu lastro histórico comum, tornando a pregação (função essencial no processo de atualização da literatura bíblica e da sua recepção) distante, mas não transcendente. Na contramão desta perspectiva, aqueles que buscavam se porfiarem somente na contemporaneidade reduziam o espectro religioso a um encontro social. Caberia então ao pregador o esforço de conjugar realidade e Deus, num esforço aplicativo, contextualizado, que visa a melhor compreensão do ensino bíblico.

Realidade e Revelação

Chegamos então no elemento externo que se mostra unificador e comum para a literatura religiosa e a não religiosa. Trata-se da realidade. Naquilo que denominamos real é onde o que de mais humano floresce. No que é chamado de realidade é que o divino aparece, na qual ele se chama à existência, mesmo porque uma revelação precisa ser tangível e apreensível, caso contrário o ato divino será somente mais uma forma de eclipsamento do seu ser.

A realidade pode ser vista também como espaço para a revelação. Nesse modo de compreensão que julgamos ser parcial, a revelação estaria contida na realidade, sendo esta última maior que a primeira. A revelação seria assim aquilo que preenche o espaço do cumprimento que é a realidade. Daí se constituiria, por conseguinte, em espaço para a religião. Da sua forma mais espessa advém um dos mais fortes convites à abertura religiosa que é o sofrimento humano. Os valores religiosos e o sentimento religioso encontram eco especialmente nas horas de terror, naquilo que desafia o bom senso e que angustia e aguça o ser humano a buscar um sentido, uma teleologia, ou mesmo um num processo de ressignificação da vida. É na história que a religião se desenvolve, guardando valores, resguardando tradições e reformulando suas percepções e convicções, e toda essa gestação vem à luz pela linguagem e ganha especial contorno na literatura. É aqui que Auerbach faz um destaque ao texto bíblico, ressaltando seu poder amalgamador com o leitor, mediante processos de identificação, uma vez que a revelação está contida no quotidiano dos personagens, no fluxo natural da vida. Não é a toa que a figura da sarça no mesmo livro bíblico citado está envolta pela claridade e pelo mistério presentes no fogo que arde, mas que não consome o arbusto. Não seria essa a própria alusão ao papel do texto sagrado?

A realidade é espaço também para a revelação. Não só o que do divino é alcançado pelo ser humano, mas também aquilo que é mostrado e que tem uma parte ainda obscurecida pela incapacidade de melhor compreensão. A revelação por ser aqui percebida como algo que acontece na realidade e cujo retrato da experiência humana se dá pela literatura abrange multiformes conceitos e percepções que produzem ao longo do tempo um mosaico sobre Deus. As contribuições interpretativas pretéritas não são dissolvidas no templo, mas são compreendidas como reflexo do esforço humano ao longo do tempo.

Nesse extrato encontra-se a literatura não religiosa, pois também é atingida pelas emanações decorrentes da revelação, uma vez que a “realidade toda com todos os aspectos da existência é inflamada, dominada e inspirada pelo ‘sagrado’ e pelo ‘santo’” (TILLICH, 1992, p.73). Paul Tillich avança nessa compreensão ao afirmar que “as épocas voltadas para o incondicional e abertas a ele demonstram possuir a consciência da presença do incondicional em seu meio, orientando todas as suas formas e funções culturais” (TILLICH, 1992, p.73), e dessa maneira atingindo a produção literária. A mesma natureza que ilumina a sacralidade artística inspira o poeta não religioso. Certamente será retratada com diferenças; contudo em ambos o teor religioso emergirá.

Com o intuito de complementar Tillich, numa perspectiva que pensamos ser mais abrangente, trazemos à baila a sinalização de Auerbach para o fato de que cada época se apresenta como fruto da presença humana e sua interação com o divino, estando apta para captar a junção destes espectros. A realidade passa então a ser encarada como composição dessas duas forças, se tornando uma espécie de instanciação do divino, em que cada época por ser vista imediatamente sob Deus. A plenitude das possibilidades humanas e a realização da idéia eterna de Deus acontecem para cada geração (TILLICH, 1992, p.69). O próprio tempo se torna fruto da realização divina e cada período da história se torna contemporâneo a Deus. O próprio Auerbach assim se expressa:

Se cada povo e cada época podem produzir suas próprias formas de arte e de vida, perfeitas cada qual em si mesma, desenvolvendo-se segundo suas próprias leis e seu próprio gênio, a História se torna uma evolução extremamente rica de formas humanas, e facilmente se é levado a ver nelas realizações sucessivas das ideias de um gênio universal, de Deus; concepção tão profunda quão dinâmica, e que propicia uma compreensão do desenvolvimento histórico mais ampla, rica e múltipla que a concepção de progresso contínuo numa única linha, corrente no século XVIII, em que cada nova etapa da civilização parecia superior à precedente e lhe retirava, em princípio, todo valor próprio. (AUERBACH, 1972, p.231).

A noção da presença de um “gênio universal” conduzindo a História, embora tenha ampla simpatia na esfera religiosa, não possui igual eco nas demais humanidades. No entanto, para Auerbach, é a visão que melhor expressa a riqueza e profundidade da concepção histórica. Ele estabelece desta forma uma ressalva ao naturalismo e à noção cientificista que defendia a crescente evolução do gênero humano, bem como critica entrelinhas, o nazismo e sua pretensão de ser considerado o ápice do Estado Alemão.

Em Auerbach o religioso adquire então uma dupla origem: a divina, mediante suas realizações ou condução da história e ainda a humana, pela percepção da dimensão religiosa inerente à experiência humana. Ressalta-se que o filólogo alemão fora aluno de Ernst Troeltsch em Marburgo (DUSILEK, S. 2015, p.54), autor conhecido também pela sua definição de “apriori religioso”.

Não obstante o peso da interpretação que valora, modula e até gradua diferentes níveis de experiência religiosa, parece-nos que uma vez a realidade entendida como instanciação do Absoluto, de Deus, exigiria de um ateu um esforço maior para excluí-lo de sua obra do que para inseri-lo. Novamente, pelo processo de seleção se caracterizaria a eleição dos elementos tidos como sagrados para aquele determinado autor. Seja na elaboração ou na confecção de uma obra literária, mesmo sem a menor inclinação religiosa, o religioso aparecerá, numa cena, numa fala, nos modos e costumes, num personagem, no ambiente onde acontece a narrativa.

A nosso ver a literatura não só contém essas “impressões revelatórias”, esse apontamento da presença do Absoluto na realidade, pois encaminha para uma interação mais abrangente entre o transcendente e o imanente, como também o realismo literário permite ver a realidade não só como um espaço para a revelação, mas como a própria revelação. Há na realidade um convite, uma abertura à religião. Em parte isso se explica pelo convite que a realidade faz ao transcendente, em parte por entender a história como uma realização sucessiva de Deus. Um pequeno exemplo disso é a compreensão de Auerbach de que foi a literatura bíblica que deu forma à visão da história dos cristãos (AUERBACH, 2012, p.59). É a realização de Deus na história, de um Deus “que não se revela apenas na história, mas também por meio da história como um todo” (TILLICH, 1992, p.53), o que a torna não só um palco para o personagem maior, mas a sua própria visualização. O realismo literário, notadamente o classificado como judaico-cristão em Auerbach, convida o leitor a ver Deus na história, não só na condução desta, como também nela contida. Só que ao fazê-lo, a literatura bíblica sugestiona então, para nós, uma interação pelo que a realidade é a própria revelação de Deus. Auerbach mesmo entende que a compreensão da realidade como revelação era uma forma não de negação do acontecimento histórico, mas sim de sua preservação, especialmente quando presente na estrutura figural (AUERBACH, 1997, p.58).

Se a realidade pode ser encarada como a própria revelação, o que é ficcional, virtual tende a ser tomando como uma não-revelação. Toda e qualquer proposição alienante, seja social ou religiosa, se torna num mecanismo de obscurecimento da mente humana para que não discirna a presença de Deus na realidade. Qualquer teologia que se proponha a uma postura isolacionista ou mesmo distanciada da realidade se assume como distante também de Deus, pois é nela que humano e divino se encontram. Por outro lado, qualquer escrito sobre a realidade tocará na orla do manto divino. O realismo literário se torna então “Palavra de Deus” por ter um caráter mediador entre o divino e o leitor.

No entanto destaca-se que a não-revelação não exime o caráter religioso. Até mesmo porque a virtualidade está eivada de comunidades e são nos agrupamentos sociais que a religião floresce e por meio dos quais são estabelecidas as diferentes tradições.

Outro fator que corrobora com essa noção é que tanto a realidade quanto a revelação são maiores que seus registros, perfazendo um conteúdo polissêmico não explorado e que mostra a limitação da literatura diante da magnitude dessas duas grandezas. Tal fato pode ser visto na citação bíblica que abre essa exposição. Há uma conotação “prismática” na literatura ao abordar temas que são invariavelmente maiores que ela. A presença de certa limitação descritiva ou mesmo de fenômenos e realidades indescritíveis, sugere-nos essa interseção entre realidade e revelação. Sua interação (realidade e revelação) é dada por aquilo que não pode ser abrangido na sua totalidade, que faz brotar no ser humano a reverência diante de algo maior que sua existência.

A Representação de Deus como "Figura"

A limitação literária remete então para seu caráter eminentemente representativo. E nesse sentido ela se iguala à religiosidade que mantém um caráter simbólico, representativo e igualmente limitado em seus rituais. Contudo uma pergunta subjaz à representação religiosa e literária: Deus é retratável? Seria ele representável?

Não obstante a iconoclastia protestante especialmente presente nos movimentos puritanos e separatistas oriundos da Reforma, há um meio que sempre foi aceito como instrumento do delineamento do divino: a literatura. Pela escrita bíblica, seja pelos movimentos de antropomorfismo ou mesmo antropopatismo, e mais ainda pelo apontamento dos atributos presentes em Deus, sejam eles naturais ou morais, o divino ganhou um retrato, uma representação. Se no paganismo se procura ver a divindade, no cristianismo a busca é pela palavra. O caminho é o da revelação indireta, uma vez que as palavras dão forma às coisas além de conceder asas à imaginação. A figuração de Deus na literatura e no texto bíblico se torna na forma de representação de Deus,a qual pode ser vista numa perspectiva de complementaridade.

Ao colocar Deus como figura Auerbach aponta para o caráter literário do texto. Auerbach no início de sua obra “Figura” aponta para a evolução da compreensão desse termo. Primeiramente ele diz que na primeira constituição do modelo figural houve o schema como modelo perceptivo e typos como sua impressão (AUERBACH, 1997, p.15). Posteriormente figura passou a significar retrato, estátua, quando adentra ao jogo do modelo/cópia (AUERBACH, 1997, p.17), ganhando a conotação de visão, fantasma em Lucrécio. Já em Cícero em tudo há figura, aparência sendo que as concepções imateriais de Deus são sem figura, percepção e sem imagem, pois não desenvolve esse conceito (AUERBACH, 1997, p.18). Mais tarde figura passou a denotar a ordenação do discurso, especialmente no âmbito da poesia e da retórica (AUERBACH, 1997, p.24).

A partir dessa noção de ordenamento discursivo é que se pode compreender Deus como figura, como elemento para compreensão da realidade. Há uma elevação dos acontecimentos que passam a ser encarados com uma dupla pertença: à realidade quotidiana e ao contexto histórico-universal, sendo compreensíveis como supra temporais (AUERBACH, 2011, p.136), admitindo assim uma moldura bíblica e histórico-universal. O caos terreno quando contemplado e vivido passa a ser entendido como algo menor do que poderia ser sem uma realidade que abranja Deus.

Deus como figura declara sua acessibilidade mimética. Um Deus como figura aponta para a mimesis cristã, uma vez que ele passa para a categoria de modelo. É consenso entre os teólogos que a Glória de Deus, sua presença absoluta possui um esplendor que a natureza humana não pode conter. Auerbach assinala que a encarnação de Cristo se deu sob o signo da humildade para que o esplendor de sua Glória não atrapalhasse o acolhimento de sua mensagem, uma vez que os homens não teriam suportado a figura de um Jesus glorioso (AUERBACH, 2012, p.58).

Ao optar pela humilhação e se tornar uma figura narrativa presente no sagrado texto cristão, Jesus se torna passível de imitação, de mimesis, da qual a grande referência medieval foi São Francisco de Assis. Há uma remissão ao conceito de Martinho Lutero da “máscara3 de Deus”, que pode ser aplicada à Igreja, sem a qual as pessoas não poderiam encontrá-lo, vê-lo, diante do seu fulgor. Cristo é o maior exemplo da divina figuração no texto bíblico, ao compor a narrativa evangélica como Jesus, seu protagonista. Deus como figura traz consigo a possibilidade de amá-lo como homem e adorá-lo como Deus (AUERBACH, 1972, p.58).

Deus como figura traz o convite à interpretação. É o Deus literariamente intramundano, achado na realidade, um Deus que se aproxima da conotação não religiosa de Dietrich Bonhoefer ou do pensamento de John Robinson. Só que essa mundanidade divina se manifesta pelo viés literário, pela construção narrativa, pela representação textual. Não é um desmascaramento do mundo, mas do texto que se impinge ao intérprete. Um Deus do qual não é preciso se defender pela via da leitura antropomórfica a qual é consequente de uma interpretação literal do ser figurado que o Javista chamou de Iahweh (BLOOM, 2012, p.17). Há uma inteligibilidade e uma plenitude de sentido presentes já na Bíblia hebraica e que representam um convite à atividade hermenêutica (BLOOM, 2012, p.183).

Fruto da representação, a figuralidade de Deus se torna reflexo da consciência do intérprete. Para Auerbach essa representação do divino vai depender da noção que se tem sobre ele, a ponto de defender que a “noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e representar” (AUERBACH, 2011, p.6)4. A figuração de Deus é um reflexo da consciência humana, conquanto Deus não se constitua numa simples emanação do sujeito, nem tampouco numa resposta afetiva ante os acontecimentos. E antes que se pense numa via naturalista de Deus como projeção da psique humana, é preciso entender que essa idéia preserva a noção de Deus. Tal preservação se dá pelo fato de que a “existência” de Deus não é condicionada pela compreensão humana, ainda que possa por ela ser configurada. A sua compreensão é que se torna reflexo da consciência.

É salutar que esse conceito apareça na análise de Auerbach sobre o único manuscrito encontrado na peça natalina do final do século XII “O mistério de Adão” (AUERBACH, 2011, p.127). Se no mito edênico o homem fora formado por Deus, agora na representação teatral onde Deus aparece como figura, Deus é formado pelo homem, a partir dessa pré-compreensão que ele tem sobre o divino. E nessa construção reflexiva se faz presente tanto a tradição quanto o tipo de fé que cada um possui.

O Deus de que é possível falar é o que se coloca como figura. Cabe aqui destacar que figura não é sinônimo para objeto. A teologia negativa que apregoava a impossibilidade de falar sobre Deus, de intuí-lo a não ser a partir do conteúdo revelado por ele mesmo, não é frontalmente atingida por essa concepção. O fulgor, a “imarcescibilidade” divina permanece, porém agora mediado pelo critério literário. E como figura literária se torna possível falar e até mesmo pensar sobre ele a partir do homem, e do já referido reflexo da consciência. Ricoeur complementa essa idéia ao defender a tese de que só é possível nominar o inominável (Deus) porque outros, através de textos, o fizeram antes de nós (RICOEUR, 1996, p.182).

Há também uma implicação a mais a ser destacada aqui. Deus como figura pode apontar primeiramente para seu personagem incluso no “relato” da queda do homem o qual era encenado pelo teatro medieval cabendo ao clérigo sua figuração (AUERBACH, 2011, p.136) ou ainda apresentar a atemporalidade divina, sua supra temporalidade, já que nele tudo simplesmente é. Agostinho exprimiu essa verdade afirmando que Deus “não tem o poder de previsão, não sabe com antecipação, mas simplesmente sabe” (AGOSTINHO apud AUERBACH, 2011, p.137). Essa divina simultaneidade temporal (passado, presente e futuro tomados com um único e indivisível instante) se torna de difícil apreensão e representação, o que convida a figuralidade a um cuidado maior na hora de representá-la.

Por fim Deus como figura viabilizou a representação do Humanismo pela literatura. E isso se deu especialmente com Dante, pois na medida em que ele conseguiu ter domínio sobre a realidade terrena, sobre a multiplicidade sensível a ordem se perdia. Por isso, em Dante, a figura do ser humano é colocada na frente da figura de Deus (AUERBACH, 2011, p.175), tornando a figura independente da moldura (tal qual vista no capítulo primeiro) e apontando para o que viria a ser o Humanismo.

Conclusão

Ao se falar na relação entre religião e literatura, portanto, reconhece-se a proximidade especialmente dada pela presença do que é sensível ao ser humano, bem como a produção cultural que açambarca ambas as coisas. É por isso que circunstâncias de vida bem adversas fazem brotar sentimentos e pensamentos afeitos à religião e que acabam traspassando o texto, seja ele religioso ou não. Esse traspassamento pode vir por um registro descritivo, como conseqüência de uma abordagem autômata, entre outros. Uma vez que a religião perpassa a literatura, ainda que reconheça o caráter específico da linguagem religiosa, a ausência de um purismo metodológico se torna clara. Do mesmo modo, o intercâmbio de processos de análise crítica do texto se torna recomendável.

É evidente que muito dessa relação está para ser percebida, aprofundada e construída. No entanto, o que se objetivou aqui foi somente apresentar como ela se deu em seu desenvolvimento histórico, a partir das mútuas contribuições e interações que religião e literatura impingem. E para tanto a contribuição de Auerbach foi selecionada.

A realidade se torna então mais que um espaço, um palco, mas a própria revelação. Revelação e realidade se encontram amalgamadas o que apresenta uma outra fonte riquíssima para a interação entre religião e literatura. Inclusive porque ambas representam algo maior que estão diante e adiante delas.Sendo assim, é desejável ler um texto literário observando as erupções (aqui e ali) de aspectos religiosos. De igual modo é possível ler um texto religioso, mesmo aquele qualificado como canônico, sob a percepção literária. Essa interação até mesmo na recepção do texto é igualmente significativa e reflete a ausência de “purismos metodológicos” os quais podem inexistir no processo de recepção do texto.

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Notas

[1]O autor do livro de Hebreus no Novo Testamento identificará essa figura como “sombra”, isto é: a Lei, e com ela todo o Velho Testamento, conseguem apontar para uma divindade de costas (Hebreus 10:1). A face divina não pode ser compartimentada em códigos e preceitos.

[2]O que pode ser visto na contribuição de SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.110-146.

[3]Paul Ricoeur menciona outro tipo de máscara ao pensar sobre a nomeação de Deus. Para ele: “no limite o discurso da sabedoria reencontra um Deus escondido sob a máscara do curso anônimo e inumano das coisas” (RICOEUR, Paul. Leituras 3: Nas Fronteiras da Filosofia. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 1996. p.194).

[4]Para João César Rocha, a noção judaica de Deus é a causa e sintoma do modo particular de compreender e de representar de Auerbach (ROCHA, In: UERJ, 1994, p.154).