“Yahweh é meu pastor. Não faltarei”. Uma proposta de tradução e interpretação para o Salmo 23"
Yahweh is my shepherd. I will not falter A proposal for the translation and interpretation of Psalm 23

Osvaldo Luiz Ribeiro*
*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janerio, PUCRIO. Pós-doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Faculdade Unida de Vitória/ ES. Contato: osvaldo@ faculdadeunida.com.br.
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Resumo
Proposta de tradução e interpretação do Salmo 23. O objetivo do artigo é problematizar as interpretações correntes do Salmo 23. A partir da proposta de uma nova tradução do verso 1b, até onde se pode verificar, inédita, bem como da problematização do sentido de expressões do salmo, propõe-se uma nova interpretação do Salmo 23, com elementos presentes em interpretações correntes, e elementos inovadores. Metodologicamente, tratou-se de investigar o comportamento sintático do verbo (hsr) na Bíblia Hebraica, bem como, no mesmo escopo, buscar analogias para o tema da “mesa” e dos “inimigos”. Traduzido o salmo e incorporados os resultados da investigação mencionada, propôs-se uma nova interpretação ao texto. Concluiu-se que o autor implícito da composição pode ser assumido com um rei que, experimentando uma grave e ameaçadora crise, com risco de morte, recupera a memória de sua unção, para, confiado no nome do deus que o ungiu, protestar sua confiança de que não apenas não seria derrotado, mas de que derrotaria e humilharia seus inimigos. A confiança de que não seria derrotado se expressa na proposta de tradução do v 1b: “não faltarei”.

Palavras chave: Interpretação histórico-social, exegese histórico-social, exegese, Salmo 23, salmos

 

Abstract
The purpose of the article is to problematize the current interpretations of Psalm 23. From the proposal of a new translation of verse 1b, as far as one can verify, unpublished, as well as the problematization of the sense of expressions of the psalm, a new interpretation of Psalm 23 is proposed, with elements present in current interpretations, and innovative elements. Methodologically, we tried to investigate the syntactic behavior of the verb (hsr) in the Hebrew Bible, as well as, in the same scope, to seek analogies for the theme of “table” and “enemies”. Translated the psalm and incorporating the results of the mentioned research, a new interpretation was proposed to the text. It was concluded that the implicit author of the composition can be assumed with a king who, experiencing a serious and threatening crisis, with risk of death, recovers the memory of his anointing, confident in the name of the god who anointed him, to protest his confidence that not only would he not be defeated, but that he would defeat and humiliate his enemies. The confidence that it would not be defeated is expressed in the translation proposal of v 1b: “I will not falter”.

Keywords: Historical-social interpretation; historical-social exegesis; exegesis; Psalm 23; psalms

Introdução

Este é o terceiro de uma série de três artigos sobre o Salmo 23, elaborados desde 2016. O primeiro artigo problematizou a tradução, nas Bíblias correntes, da raiz (hsr) da Bíblia Hebraica, com foco imediato em sua ocorrência no Sl 23,1b, cujo estíquio é mais comumente traduzido como “nada me faltará”. A fenomenologia da sintaxe da raiz, na Bíblia Hebraica, permite concluir que a forma intransitiva do verbo não comporta o sentido de “ter falta de alguma coisa”, mas o sentido de “alguma coisa (vir a) faltar”, também no sentido eufemístico de “morrer”. O artigo foi proposto à conceituada Pistis e Praxis, e aguarda publicação.

O segundo artigo foi além, e problematizou especificamente o significado com que, em Sl 23,5, a conjunção dos termos “mesa” e “inimigos” deve ter, levando, então, em consideração tanto a proposta de tradução do v. 1b como “eu não faltarei” como a já tradicional, mas não unânime consideração da identidade monárquica do autor implícito daquela composição bíblica. O artigo foi proposto à também conceituada Estudos de Religião, e, semelhantemente ao primeiro artigo, aguarda publicação.

Nesse terceiro artigo da série, cumpre reunir o conjunto das observações, reavaliar o sentido das interpretações mais comuns, postular o sentido que as considerações anteriores emprestam ao salmo como um todo e ensaiar uma interpretação do Salmo 23 que opere sob o regime hermenêutico da declaração “Yahweh é meu pastor, não faltarei”.

Tradução do Salmo 23

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Problematizações em torno das interpretações do Sl 23

É tentador ler o Sl 23 como Weiser o descreve, uma narrativa tão serena, tão suave, tão sutil, recolhendo memórias passadas e percepções presentes de um peregrino que, dirigindo-se para o culto em Jerusalém, fazendo-se de ovelha e, assim, aplicando a si mesmo a tradicional imagem do deus-pastor da comunidade, vai rememorando os cuidados constantes que a divindade lhe dispensara durante a vida, mesmo durante aqueles momentos de caminhada em vales muito íngremes e tenebrosos. Essas memórias vão sendo evocadas pela sua ansiedade de chegar ao destino e participar da mesa sacrificial, junto a outras pessoas, paramentadas e ungidas tanto quanto ele mesmo, e, quando enfim chega e finalmente goza o prazer da liturgia na casa do deus, ainda que sob o olhar invejoso de inimigos, toma-se do desejo de ali ficar eternamente, metamorfoseado naquela figura que usufrui da presença ininterrupta no lugar sagrado11.

De fato, é tentador. Todavia, com base na pesquisa que está sendo realizada, e cujos resultados estão parcialmente expostos aqui, a tentação não resiste à crítica. Primeiro, porque essa não é a única leitura possível12, e, mais importante, ela se constrói ao custo de desconsiderar problemas que outros comentaristas, ao menos, tentaram contornar. Por exemplo, a mesa e os inimigos, convertida, a mesa, em mesa sacrificial, e, os inimigos, em invejosos observadores da cena litúrgica. Como Sylva já retrucou, “nenhuma das passagens que (...) (os defensores dessa interpretação) citam pode explicar os inimigos” (SYLVA, 1993, p. 86.), porque, segundo sua opinião, a Bíblia Hebraica desconheceria ocorrências em que aparecem, conjuntamente, a mesa sacrificial e a figura de inimigos, sendo que todos os personagens mencionados em passagens em que a mesa sacrificial é citada são partícipes dela, jamais meros observadores, e, nunca, inimigos dos participantes presentes. Além disso, mas esse é um problema também das leituras concorrentes à de Weiser, ainda se considera tratar-se o v. 1 da declaração de que nada há de faltar ao peregrino, quando, a rigor, trata-se da declaração de que, quem quer que seja, porque esse fato independe da identidade do narrador, o próprio autor implícito não vai faltar, isto é, morrer. Vencida, pois, a tentação, é preciso procurar outras interpretações que funcionem com menos dificuldades de encaixe no texto, conquanto possam não ser tão enternecedoras quanto a de Weiser...

Permaneçamos com a ideia do peregrino. A mesma ideia, que vimos em Weiser, retorna em outros comentadores. Quanto à cena da mesa diante dos inimigos, Schökel e Carniti propõem tratar-se da referência a um peregrino, cansado e sedento, que encontra boa recepção na casa de bondoso anfitrião, que lhe dá de comer, à porta de cuja tenda se amontoam, com inveja, os inimigos do forasteiro (SCHÖKEL e CARTINI, 1996, p. 383-384). Peregrino, vá lá, mas, para outro comentarista, Hauge, não se trata de refeição ofertada por um hóspede a um peregrino, mas de uma refeição sagrada no templo (HAUGE, 1995, p. 125), conquanto o próprio Hauge reconheça que, como mais radicalmente asseverou o já citado Sylva, “Aqui, como em outros textos, é óbvio que o motivo do templo se refere a experiências não suficientemente descritas como salvação de problemas com inimigos”13. Mesa sacrifical, peregrino e inimigos parece não ser um trinômio fácil de articular...

O elenco de hipóteses de leitura não é desprezível. Servindo-nos de Susan Gillingham como roteiro, poderíamos resumir o conjunto das “leituras multivalentes” do Sl 23 em alguns modelos de pressuposição hermenêutica. Segundo a pesquisadora, aquelas leituras mais inclinadas a abordagens “históricas” do Sl 23 se servem ou do motivo do deus como pastor, ou do duplo motivo do deus como pastor e hóspede, ou, ainda, do triplo motivo do deus como pastor, guia e hóspede, o que significa tratar de uma ou outra maneira cada seção do salmo (GILLINGHAM, 2002, p. 46-61). Por outro lado, abordagens mais propriamente literárias estariam mais interessadas em aproximações comparativas e “contextuais”, preocupadas com a relação do Sl 23, como um todo, com uma ou outra série de salmos, ou, mesmo, “com a Bíblia Hebraica como um todo”, a depender dos especialistas envolvidos (GILLINGHAM, 2002, p. 61-77). Um considerável elenco de comentaristas e citado e, ainda que brevemente, resenhados, tais como J. Lundbom e a questão da “autoridade davídica” do salmo (GILLINGHAM, p. 48-51), A. Merril e a tradição monárquica pré-exílica (GILLINGHAM, 2002, p. 51-53), D. Freedman, M. Barre e J. Kselman e a leitura do salmo no contexto do exílio babilônico (GILLINGHAM, p. 53-56), dentre outras. Mesmo leituras pós-modernas entraram na disputa de interpretações (MIDDLETON, 2007, p. 307-325).

Por outro lado, foi proposto ainda que o Salmo 23 pudesse ser lido como o resultado plástico do confronto entre um acusado e seus acusadores, ocasião em que o réu é absolvido e, por isso, não apenas celebra a confiança na divindade, mas a própria vitória alcançada. Essa é a leitura, por exemplo, de Vogt, que considera que a absolvição promulgada pelos juízes é a razão da alegria comemorativa do salmista (VOGT, 1953, p. 208). Para Vogt, mencionada no v. 5, a mesa diz respeito à refeição de ação de graças do resultado do julgamento (VOGT, 1953, p. 206), ao passo que os inimigos correspondem, portanto, à parte contrária, responsável pela acusação (VOGT, 1953, p. 208), que, todavia, também participa do “banquete de ação de graças”. Um dos mais famosos e respeitados comentaristas dos salmos, Kraus, vê com bons olhos o caminho hermenêutico proposto por Vogt, mas considera que é outro comentarista, Beyerlin, quem melhor teria assentado os tijolos (KRAUS, 2009, p. 471).

Segundo Kraus, a interpretação de Beyerlin identifica o salmista com um acusado que participa de uma cerimônia ritual no templo, um julgamento ritualizado, por meio de cujo sacrifício a divindade estabelece a sua inocência (KRAUS, 2009, p. 471), enquanto os inimigos consistem nos acusadores do salmista, que comparecem ao julgamento, a fim de forçosamente obter a condenação do réu (KRAUS, 2009, p. 150). Beyerlin discorda de Vogt quanto ao caráter e ao contexto do significado da mesa: para Vogt, um banquete de ação de graças, posterior ao julgamento, enquanto, para Beyerlin, o sacrifício ritual, realizado durante o próprio julgamento (cf. SYLVA, 1993, p. 86). Conquanto Kraus tenha expressado preferência pela interpretação de Beyerlin, manifestando-se explicitamente a favor da “exatidão” da perspectiva do autor citado quanto à identidade deles, convém recordar a advertência do autor já citado, Sylva: “a referência aos inimigos no v. 5 não é bem explicada pelos proponentes do banquete sacrificial. Nenhuma das passagens que eles citam pode explicar os inimigos” (SYLVA, 1993, p. 86). Ou seja, pode até tratar-se de uma boa explicação, e, eventualmente, pode até estar certa, mas ela não encontra sustentação, se o quesito de avaliação for analogia...

Uma proposta de interpretação do Sl 23

Ainda que se trate de um lugar comum, convém dizer: o sentido de sua declaração inicial está determinante e inexoravelmente ligado ao contexto geral que o Salmo 23 narra, sentido que rege cada palavra, cada estíquio, cada estrofe da composição. Nesse caso, sinto-me espontaneamente inclinado a concordar com Ahroni: não falta coerência e unidade ao Salmo 23, mas “sua unidade está (...) implícita” (AHRONI, 1982, p. 33)14. Por força disso, abrindo a composição, no v. 1b, a declaração “não faltarei”15 deve constituir expressão da atitude do salmista, ou narrador, em face da situação em que, no presente narrativo, ele se encontra. Uma vez que se assevera “eu não faltarei”, deduz-se que se afigura risco de morte no horizonte: ameaçado por inimigos (v. 5a), um dos calcanhares de Aquiles das interpretações correntes do salmo, uma vez que a figura dos inimigos não se coaduna com o motivo das mesas sacrificiais ou das tendas de anfitriões, o salmista caminha pelo vale da sombra (v. 4aa). Nessa situação, sua vida está sob ameaça, e ele corre risco de morrer. Em face da ameaça, mas a despeito dela, sua declaração é de confiança: não sofrerei dano de morte, não morrerei, não faltarei. Yahweh é seu pastor. Yahweh o protegerá. Protegido, não morrerá. Guardado por Yahweh, ele confia, não virá a faltar. Faltar tem, aí, o mesmo sentido que tem no singelo verso de Zelito: “Quando eu vier a faltar / Neste mundo de meu deus / Vivo irão me encontrar / Em cada um dos versos meus” (ZELITO, 2011, p. 12), conquanto, no caso do Sl 23, o salmista não espere vir a estar presente apenas em versos... Para o autor do salmo, não é hora de faltar, e, nesse sentido, o salmo em si se desdobra nas razões levadas em conta para a preservação da vida do salmista, as quais se concentram numa declaração contundente: “Yahweh é meu pastor”.

“Não faltarei”. Porque se trata de uma declaração de confiança, é justo esperar que tal confiança se expresse em termos de expectativa, ou, em outras palavras, de futuro. Se, no presente, há risco de morte, o fato, contudo, do pastoreio de Yahweh estabelece garantias futuras de que a vida da ovelha será preservada. Agora, pode haver ameaça, mas é certo que elas se revelarão inócuas16, e o pastor levará sua ovelha a deitar-se em pastagens de grama (v. 2a), às águas de descansos (v. 2b), restaurando assim sua garganta (v. 3a) e vida. Por causa do nome de Yahweh, o que, conforme adiante se verá, pode já ser uma referência à identidade monárquica da ovelha, o salmista confia que será guiado por sendas de justiça (v. 3b). No fundo, não faria tanta diferença, mas penso que as declarações dos v. 2-3 não se prestam a descrever o normal do dia a dia da ovelha, isto é, as memórias da ovelha, cuidada pelo pastor evocado no v. 1. Naturalmente que esse é o quadro de sentido que subjaz à declaração de confiança, porque se espera que um pastor guie suas ovelhas exatamente nos termos descritos, mas considero que tais versos dialogam com a confiança que se assenta já no v. 1: não importa se esteja instalada a crise, se a desgraça bate à porta, o salmista não faltará. Pelo contrário, será conduzido pelo pastor, Yahweh, às pastagens e às águas, onde sua garganta, agora exangue, recuperará as forças e a vida. Do v. 1 ao v. 3, contra a morte, a vida se impõe: não sucumbirei, mas recuperarei as minhas forças, não faltarei, mas me revigorarei.

No v. 1, portanto, a declaração de absoluta confiança – “eu não faltarei” –, que, nos v. 2-3, se desdobra em compreensíveis excessos de expectativa. A confiança e a expectativa, todavia, buscam seus argumentos. O risco de vida é real, porque o salmista caminha pelo vale da sombra. Mas a confiança é ainda mais real, porque “tu” – o salmista se dirige diretamente ao pastor, Yahweh –, tu “estás comigo” (v. 4ac). Armado com seu bastão e seu cajado (v. 4b), o pastor protegerá sua ovelha de qualquer ameaça, de quaisquer inimigos, e é por isso que o salmista confia que não faltará, e que, além de não faltar, será levado às águas e às pastagens, e terá restaurada a sua garganta, isto é, a sua vida. Tendo regido os v. 2 e 3, o v. 1 ainda rege o v. 4: presente e duplamente armado, o pastor e protetor, que Yahweh é, protegerá sua ovelha, e sua ovelha não faltará... Crise no presente, confiança neste presente crítico, esperança desde agora, desdobrando-se na expectativa de que, para além da crise, o futuro está dado, e é certo: proteção, restauração, cuidado.

Mas não é apenas proteção e cuidado, restauração de sua garganta e preservação de sua vida, o que o salmista espera e deseja ter de Yahweh. O fato de Yahweh estar com ela e de brandir suas armas contra aqueles que ameaçam sua ovelha tem consequências para além dos cuidados que a esperança dá por certos: e ei-las – a derrota humilhante dos inimigos do salmista. À vitória de Yahweh contra os inimigos de sua ovelha, o que significa, evidentemente, na prática, a vitória da própria ovelha contra seus inimigos, segue-se a instalação da mesa da vitória, da qual, protegida do pastor e vitoriosa, se serve a ovelha, porque para ela será adrede preparada, diante dos olhos dos inimigos vencidos, a mesa da comemoração da vitória. Rompe-se o tecido metafórico, porque o salmista sai do campo das imagens e referências pastoris, de pastagens, de águas, de repouso, e adentra o campo das imagens políticas, a mesa do rei, que se segue à derrota de seus inimigos17, mas o sentido permanece exatamente o mesmo e no mesmo plano de referência, ou seja, a confiança do salmista18 em que seu pastor, Yahweh, há de preservar a sua vida e, mais do que isso, inverter a sua sorte. Não apenas sobreviverá às ameaças, mas as sobrepujará; não apenas permanecerá vivo, a despeito das ameaças dos seus inimigos, mas os derrotará. Apesar das circunstâncias, sairá vivo e fortalecido, vivo e vitorioso. Não se trata da esperança de uma sobrevivência em farrapos, como quem saísse com vida, mas derrotado, debilitado, depauperado. Não! A confiança do salmista é que sairá por cima, de cabeça erguida, com uma vitória maiúscula: à mesa preparada por Yahweh, mesa da vitória, diante dos olhos humilhados de seus inimigos, derrotados.

Pois bem. Tudo isso que, em relação à declaração de confiança do v. 1, é futuro, é expectativa, justifica-se, por seu turno, por um acontecimento passado, no qual se baseia a confiança da ovelha em seu pastor e protetor. O salmista evoca a sua unção (v. 5b), em cuja referência eu vejo a sua coroação. Estamos diante de uma ovelha que, ao mesmo tempo, é, ela mesma, pastor, posto que ela é rei. De um lado, rei, e, por isso, pastor de outras ovelhas, isto é, o povo, mas, de outro lado, súdito e ovelha de seu próprio rei e pastor, Yahweh, o salmista recorda-se do dia de sua coroação e fia-se nesse dia fundante para alicerçar a sua confiança: o pastor armado que está com ele é aquele mesmo que o estabeleceu rei, e, como tal, há de honrar sua fidelidade e seu nome (v. 3b), derramando sobre o rei salmista sua bondade e misericórdia, de sorte que, vitorioso, honrado, vivo, habitará a casa de Yahweh pelos longos dias que ainda tem a viver.

Em resumo, o Sl 23 trata da grave circunstância de crise de morte de um rei que, firmado na confiança que deposita em seu deus e pastor, que o ungiu e coroou, e que, por isso, não desonrará o próprio nome, Yahweh, acredita que não morrerá, mas que, antes, derrotará todos os inimigos que o ameaçam, humilhando-os à mesa de sua inexorável vitória.

Problematização da identidade do autor implícito do Sl 23

Ainda que use a expressão “provavelmente”, Croft considera que o “Salmo 23 (…) é muito provavelmente real” (CROFT, 1987, p. 77), porque “há sérios sinais de que a peça é um salmo real” (CROFT, 1987, p. 130). A mesa preparada na presença dos inimigos, a unção com óleo, a invocação da proteção da divindade, a apóstrofe do deus como “pastor” e a presunção de relacionamento especial entre o salmista e o deus invocado levam Croft a considerar tratar-se de uma peça ritual, para leitura de invocação da proteção de Yahweh sobre o rei (CROFT, 1987, p. 130). A despeito daquele “provavelmente”, a força da argumentação de Croft é considerável. Por outro lado, pode-se pronunciar de modo igualmente categórico, e, todavia, dizer-se diametralmente o oposto. Mesmo tendo conhecimento dos argumentos de Croft, citando-o diretamente, Hauge considera que não há evidências de que se trate de uma peça desenvolvida a partir da experiência monárquica (HAUGE, 1995, p. 100 e 243). Apropriadamente, pode-se declarar que não há como fechar peremptoriamente a questão da identidade real do autor implícito da narrativa, mas, como quer Hauge, considerar que não haja evidências parece-me exagero, uma vez que Croft aponta sobejamente elementos que podem ser tratados como tal. Não se pode dar por decidida a identidade real do autor implícito do Salmo 23, mas também não se pode dar por decidida a negação da hipótese, que se encontra em aberto.

A despeito de estar obviamente informado sobre a proposta da identidade real do salmista19, outro renomado pesquisador, Kraus, fecha questão com a já referida proposta de W. Beyerlin, que, reunindo expressões do salmo, propõe que se esteja diante de uma peça em estilo cultual, propícia para cerimônia de absolvição de culpa. Nesses termos, o salmista teria sido acusado injustamente por seus inimigos, em face de cuja circunstância se instala a cerimônia oracular, no contexto da qual a divindade, consultada, declara absolvido o réu, cerimônia que culmina com a mesa sacrificial, em torno da qual se instalam tanto o salmista quanto os seus acusadores (KRAUS, 2009, p. 471). Para Kraus, “se trata evidentemente de um banquete sacrificial” (KRAUS, 2009, p. 471), do que seria evidência a expressão “casa de Yahweh”, no v. 6. Com efeito, impossível passar pela expressão “casa de Yahweh” sem remeter-se ao templo e, por isso, às operações sacrificiais. Todavia, isso não quer dizer, necessariamente, que, por isso, a mesa do v. 5 se refira a um banquete sacrificial. Da mesma forma como não se pode categoricamente determinar a identidade de seu autor implícito, não se pode determinar inquestionavelmente o significado da mesa no v. 5, de sorte que o “evidentemente” de Kraus precisa ser tratado como ideológico: a evidência parece estar nos olhos de Kraus. E, talvez, só neles...

Como discuti anteriormente20, o conjunto das evidências que reúno me indaga quanto à relação entre a mesa e a identidade real do salmista, e os argumentos podem ser recolhidos naquele artigo. Em resumo, todavia, trata-se de, como lá me refiro, recuperar Jz 1,4b-7 e o episódio do senhor de Bezeq, que declara que, comendo de sua mesa, setenta reis com os polegares das mãos e dos pés cortados, ostentavam-lhe a soberania (Cf. RIBEIRO, 2012. p. 451-466). Estamos diante de uma passagem que relaciona mesa, especificamente, a mesa do rei, e inimigos do rei, derrotados, o que me parece constituir um possível paralelo, nesse caso, perfeito, à referência também conjunta entre mesa e inimigos no Salmo 23. Uma mesa posta na presença dos inimigos aponta para a descrição plástica e sintética da vitória do que se põe à mesa – o rei – sobre aqueles que, à vista da mesa do rei, contemplam aquele que os derrotou e humilhou. Nesse sentido, é de fato pertinente uma citação de Kraus, que, segundo ele, e eu concordo, projetaria luz sobre a referência, no Sl 23, à expressão “na presença dos meus inimigos”:

Para compreender bem o que significa (“na presença de meus inimigos”), H. Gunkel cita uma passagem notável das Cartas de Amarna. Um príncipe de uma cidade submetida à suprema autoridade do Egito dirige ao faraó a seguinte súplica: “conceda o faraó presentes a seu servo, enquanto nossos inimigos o contemplam” (KRAUS, 2009, p. 475).

Kraus considera que Gunkel esteja certo em entrever analogia entre a passagem da Carta de Amarna e o Sl 23. Todavia, o ilustre comentarista dos salmos prefere aceitar que a referência se dê justamente no nível de sua própria interpretação, e não quanto à identidade monárquica do salmista. Para Kraus, no Sl 23, não se trata de um rei, mas do fiel que, na presença de Yahweh, sente-se protegido, e o citado trecho ratificaria o sentimento de proteção que o salmista, isto é, o fiel, tem em relação a Yahweh. Não me surpreende, depois que Kraus deixou escapar aquele “evidentemente”. O fato de a passagem citada de Amarna referir-se a um soberano, um faraó, e tratar-se o declarante de “um príncipe de uma cidade submetida à suprema autoridade do Egito” não faz Kraus pestanejar: não será isso uma evidência – um indício! – de que não se está diante de uma mesa sacrificial, mas de um rei, e aquela é a mesa do rei, diante da qual estão os inimigos contemplando a própria derrota e humilhação, enquanto ostenta o rei sua vitória? Aliás, talvez represente inclusive uma referência tácita a um contexto de mesa posta o final do trecho da citada passagem de Amarna, que Kraus não transcreve. De posse da obra que Kraus cita, e localizando a passagem, é possível ler, como tradução alemã do texto, o seguinte: “während unsere Feinde / zaschauen und / Staub essen” (KNUDTZON, 1915, p. 453), que traduziria assim: “enquanto nossos inimigos assistem e comem poeira”. Não transcrita por Kraus, a linha 36 da carta 100 faz referência ao fato de, enquanto o príncipe recebe os presentes, “Geschenk”, segundo a tradução da linha 33, feita por Knudtzon, os “nossos inimigos” – dele e do faraó – “comem poeira”, o que, quem sabe?, apontaria para o contexto comensal subentendido na carta. Sem pretender forçar a mão na direção da interpretação que proponho, a saber, uma mesa, a mesma mesa, em ambos os casos, a mesa do rei, e também um comensal, o rei, no caso do Sl 23, o príncipe, no caso da Carta 100 de Amarna, além de, em ambos os casos, os inimigos contemplando a mesa comensal posta para o rei e para o príncipe, pergunto-me se, somada essa referência àquela de Jz 1,4b-7, já tratada, não se está diante de um argumento suficientemente plausível para sustentar que a mesa não é uma mesa sacrificial, litúrgica, cultual, mas a mesa da vitória, preparada acintosamente pelo soberano, como duplo gesto, de ostentação da vitória sobre os inimigos e de humilhação destes mesmos inimigos derrotados. Somados aos argumentos abundantes de Croft, parece que também a figura dos inimigos a contemplar a mesa posta remeta, igualmente, à figura de um membro da coroa.

Resta, todavia, a expressão que, para Kraus, é outra evidência de contexto litúrgico-sacrificial: a “casa de Yahweh”. Pergunto-me se, como assume Kraus, (“casa de Yahweh”) deve necessariamente ser tomada como uma referência específica ao templo. Naturalmente que esse é o primeiro sentido que vem à mente, e pouco esforço se requer fazer para defender o argumento. Todavia, talvez se possa problematizar a recepção automática desse sentido. Uma vez que se está operando a investigação quanto ao sentido que tem o salmo para um autor implícito eventualmente vinculado à coroa, pergunto-me se a passagem de Amós 7,13 não forneceria uma interessante alternativa hermenêutica. Quando, sacerdote de Betel , o sacerdote Amasias, informa ao rei Jeroboão da atividade profética de Amós, diz-se que ele “mandou informar” ao rei que Amós conspirava contra ele. Parece que Amós se põe diante do templo, e é aí que despeja suas imprecações21. Não estando o rei presente, o sacerdote faz o rei ser informado das circunstâncias. Quando retorna, a declaração de Amasias é potencialmente esclarecedora para um possível sentido da expressão “casa de Yahweh” no Salmo 23. Amasias diz-lhe que Amós não pode continuar a profetizar em Betel, “porque é santuário do rei e casa do reino” (Am 7,13 isto é, “a casa de El” é santuário do rei. “A casa de El” é um templo, naturalmente, é santuário, mas é santuário do rei. É Betel, “casa de El”, mas é casa do reino. Nesse caso, a despeito de tratar-se efetivamente do prédio do templo, geopoliticamente não se trata de outro espaço que não um anexo da corte, espaço de autoridade real e vinculado ao trono, nos moldes da Grande Organização próximo-oriental (Cf. OPPENHEIM, 1964, p. 9596)22. Uma vez que o salmista refere-se a Yahweh como seu pastor e protetor, talvez se possa considerar que a referência à (“casa de Yahweh”) constitua uma espécie de metonímia: o salmista especifica a instância de presentificação de Yahweh, quando efetivamente está indicando para a manutenção de seu reinado. Retoricamente, referindo-se ao templo, constituindo-se esse um anexo do aparelho da coroa, o autor implícito – por força de argumento, aqui tomado como rei – ratifica sua confiança de que será mantido no trono. A despeito das ameaças dos inimigos e do risco de “faltar”, ele, por causa de Yahweh, que o colocou no trono, está confiante de que continuará vivo, e, vivo, permanecerá no trono, para o que metonimicamente se expressa através da fórmula “casa de Yahweh”. Não estou dizendo que a expressão “casa de Yahweh” se refira diretamente ao trono ou ao palácio real, mas que, por tratar-se de uma extensão geopolítica do palácio, e pelo fato de estar-se referindo e dirigindo a Yahweh, acabe por referir-se à “casa de Yahweh”, quando, efetivamente, está pensando em toda a Grande Organização que tem sob seu domínio. Nos mesmos termos em que Amasias pode dizer a Amós que a “casa de Yahweh” é “santuário do rei”, acreditar o salmista na permanência de seu vínculo com a “casa de Yahweh” pode significar que, efetivamente, aspire à manutenção de seu vínculo com o “santuário do rei”, o que, em última análise, implica, por extensão à preservação de sua vida, a preservação de seu reinado. Ele confia que, agora ainda no trono, mas sob risco de o perder, não apenas não o perderá, como permanecerá nele por muito tempo: “não faltarei (...) mas habitarei na casa de Yahweh por longos dias”.

Problematização da referência “pastor/provedor” ou “pastor/protetor”

Corrente, a tradução “o Senhor é meu pastor, nada me faltará” assenta-se sobre a comum interpretação da figura do pastor como aquele que alimenta as ovelhas, pastoreia-as, enquanto elas mordiscam o pasto. É exatamente essa a interpretação de Vogt: “nós podemos traduzir (...) como ‘o Senhor é meu pastor’, ou, em sentido mais literal, ‘o Senhor (...) alimenta-me’” (VOGT, 1953, p. 210-11). Kraus não é específico, mas quer-me parecer que sua posição seja clara, ao menos quando se lê: “o indivíduo, que é membro do ‘rebanho’, sabe muito bem que se acha protegido sob o senhorio benévolo e poderoso do ‘pastor’; não carece de nada ” (KRAUS, 2009, 472). O que eu prefiro traduzir “não faltarei”, para Kraus se afigura como o clássico “nada me faltará”. O que é curioso, porque sua conclusão “não carece de nada” segue-se à descrição da figura do pastor, nos termos da narrativa, correta, conforme o salmo o apresenta: o protetor, sob os cuidados de quem o salmista está abrigado. É compreensível que a imagem do pasto e das águas nos v. 2-3 convença o leitor de que eventualmente se trate dos cuidados cotidianos de alimentação que o pastor dispensa ao rebanho, mas a referência à ovelha protegida sob os cuidados do pastor não advém daí, mas do v. 4, onde não se trata da função provedora do pastor, mas de sua ação protetora. Kraus, todavia, está tão convencido da interpretação clássica – “nada me faltará” – que, ainda que não recorra aos pastos e às águas, mas às armas de proteção pastorais, não atina para o fato de que o perigo não é de não ser alimentado, mas de morrer, de sorte que a confiança não se dirige à alimentação, mas à manutenção da vida: não faltarei! Obviamente, a ovelha deseja continuar a ser encaminhada aos pastos e às águas de descanso, porque isso é a vida da ovelha, mas a questão que está dada não é que o cotidiano de ir aos prados e aos remansos esteja ameaçado. O que se encontra sob ameaça é a própria vida da ovelha, porque caminha pelo vale da sombra e está cercada de inimigos. Alimentar-se e descansar é o que ela espera ter amanhã, depois de vencida esta batalha aqui e agora – e essa batalha aqui e agora é sumamente mais grave, porque é a batalha pela vida. Nesse sentido, não é que o salmista confie em que nada lhe faltará. Ele confia que ele mesmo não faltará – não, ele não morrerá no vale da sombra, sob as ameaças de seus inimigos. O pastor que lhe proporciona confiança, não é o pressuposto pela tradução “nada me faltará”, porque o salmista não está preocupado se, amanhã, vai ter o que comer. O pastor que lhe proporciona a confiança de que ele se vê totalmente tomado é o pastor das armas, do cajado e do bordão, que lhe garantirá a vida, de sorte que, à mesa da vitória, ele não virá a faltar...

Proposta de estrutura do Sl 23.

A essa altura, talvez seja possível sugerir que a estrutura do Sl 23 constitua um quiasmo 2323

24

À luz das observações anteriores, é possível considerar que o centro da composição seja constituído pelo v. 4, onde se declara Yahweh como o pastor (v. 1a) que garante a proteção ao salmista (v. 4ac.b), que, neste momento, encontra-se em perigo de vida (v. 1b e v. 6b), o que se faz representar nesse mesmo centro, pelo “vale da sombra” (v. 4aa), a despeito do que, dada a confiança que ele tem no pastor, não teme desgraça (v.4ab). Para a segurança no vale da sombra, o salmista conta com o cajado e o bastão do deus-pastor, o que significa que se está diante de perigo concreto, “desgraça”, para o qual são imprescindíveis as armas pastorais. Esse gancho conecta o centro do salmo com a moldura interna. O vale da sombra e a desgraça remetem aos inimigos, que lá estão mencionados (v 5a). É por causa deles que o vale é de sombra, e é por causa deles que há risco de desgraça, sendo também por causa deles que as armas do deus-pastor são demandadas. Mas tanta é a confiança da ovelha em seu pastor que, à simples menção do deus-pastor e de suas armas, a vitória é garantida: diante dos inimigos, tão logo mencionados, já derrotados, Yahweh preparará a mesa da vitória, da qual regiamente se servirá o salmista, diante dos olhos humilhados e derrotados dos inimigos. Tamanha segurança pela proteção do deus-pastor tem uma razão específica: o salmista é ungido, e confia solenemente na unção (v 5b). O salmista é rei. É rei ungido pelo deus-pastor: “ungiste com óleo a minha cabeça”. Na unção do rei está penhorada a honra do deus-pastor, seu nome (v. 3b). É por causa do nome dele (v. 3bb [B]), isto é, por causa da unção, isto é, da coroação (v. 5b [B’]), que o salmista está confiante de que será guiado por sendas de justiça (v. 3ba [B]) e será acompanhado pela bondade e pela misericórdia (v. 6ª [B’]). Rei, o salmista tem, a seu favor, não apenas as armas de Yahweh, mas as armas e sua unção-coroação, que garantia maior não há da perpetuidade da proteção do deus da dinastia! Porque o deus-pastor, na coroação de seu rei-ovelha, empenhou seu próprio nome. É desse fato histórico que advém a confiança de que a bondade e a misericórdia do deus do reino permanecerão sobre a vida do reinante, de sorte que ele não será derrotado, mas vencerá, não será destronado, mas viverá e reinará na “casa de Yahweh” por longos dias. Sobreviverá, porque Yahweh é o seu pastor, e ele não faltará.

Conclusão

O percurso narrativo do Sl 23, conforme vimos Ahroni dizer, é coerente. Cada verso comunica com todos os demais, e o conjunto reverbera em cada parte. O salmo inteiro respira unidade: confiança na sobrevivência da personagem. A unidade se revela ainda mais densa quando res aireved oãn רָֽסְחֶא ,1 .v on :aciarbeh exatnis ad oãçil a arepucer es lido como “não terei falta de nada”, mas “não faltarei”, porque cada estíquio da composição a transpira confiança e a certeza de que se há de superar aquele momento ameaçador e difícil, em cujo contexto brota a seiva da esperança do monarca – a palavra do deus-pastor, empenhada na unção do rei-ovelha. Pronto! Recordar daquele dia, daquela promessa, é ter em mente que não há como ser derrotado. O deus-pastor tem as armas, diante das quais desgraça nenhuma, isto é, inimigo nenhum, permanece de pé. Por meio desse fio condutor, entrevê-se a mesa da vitória, a derrota dos inimigos e a permanência do rei no trono.

A recuperação desse percurso narrativo deve-se à recuperação da ocitnâmes oxie mu ecelebatse euq ,רסח ziar ad acitátnis aigolonemonef fundamental, que pode ser recuperado em cada seção e estíquio do Sl 23: a confiança de que não sucumbirá diante dos inimigos, de que “não faltará”, mas prevalecerá sobre os inimigos e perdurará na “casa de Yahweh”, desde onde reina, o ungido de Yahweh.

Referências

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ZELITO. Realidade em versos. Cerqueira Cesar: Biblioteca 24 horas, 2011.

Notas

[1]“Pastagens”, cf. ALONSO-SCHÖKEL, 1997: 424.

[2]Quase cedo à tentação de traduzir como propõe o léxico de Holladay: grama nova e fresca depois da chuva” (HOLLADAY, 2010: 03).

[3]Cf. a mesma ideia e o mesmo verbo, aplicados à divindade, que apascenta o povo, em Ez 34,15.

[4]Não se encontra no verbete explicação para o motivo, mas Alonso-Schökel sugere que, especificamente no Sl 23, a expressão seja traduzida como “senda oportuna” (ALONSO-SCHÖKEL, 1997: 387).

[5]Consta do verbete: “(a relação com o reino ou país da morte favoreceu a leitura = sombra da morte)” (ALONSO-SCHÖKEL, 1997: 561).

[6]Para a figura do bastão e do cajado, cf. Zacarias 11,7: “e eu tomei para mim dois cajados: a um eu chamei Benevolência e a outro eu chamei União. E apascentei o rebanho”

[7]Cf. a expressão “e puseram de comer diante dele” em Gn 24,33. Aqui, talvez se pudesse interpretar diretamente como “para mim”: “prepararás para mim uma mesa”.

[8]Cf. a expressão “e vieram diante da cidade” em Js 8,11.

[9]É a primeira vez no texto que a forma do perfeito é empregada. Até aqui, todos os verbos foram grafados no imperfeito – e sem emprego do vav conversivo.

[10]“Tu ungiste minha cabeça com óleo” (WASSERMAN e SZWERTSZARF, 1995: 30).

[11].Cf. WEISER, 1994, p. 163-166. A consultada tradução para a Língua Portuguesa suscita uma questão. Na versão em inglês, o v. 1b aparece como “I shallnot want”, e a mesma expressão se repete no comentário, exatamente ao final da seção 1: “I shall not want” (WEISER, A. The Psalms. A commentary. Philadelphia: The Westminster Press, 1962,p. 227-229). Já na versão da Paulus, o v. 1b do salmo é traduzido como “nada me falta”, mas a expressão do final da seção 1 aparece como “nada me faltará” (WIESER, 1994, p. 163 e 164). A consulta à versão original, em alemão, decidiria se o problema está na tradução em inglês ou na em língua portuguesa.

[12]Para uma considerável amostragem de abordagens ao Sl 23, cf. o capítulo “In and out of the sheepfold: multivalent readings in Psalm 23”, em GILLINGHAM, Susan. The Image, the Depths and the Surface: Multivalent Approaches to Biblical Study. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2002, p. 45-78.

[13]“Here, as in the other texts, it is obvious that the temple motifs refer to experiences not sufficiently described as salvation from the enemy situation” (HAUGE, 1995, p. 125).

[14]Sugere-se que as questões críticas relativas à unidade do Salmo 23 sejam analisadas a partir do artigo citado.

[15]Como mencionado na Introdução, a elaboração deste artigo deu-se posteriormente à discussão da sintaxe da forma verbal do v. 1. Foi elaborado um artigo que discute especificamente a tradução da raiz, postulando-se que, nos termos de sua sintaxe, recuperável na Bíblia Hebraica, as predicações intransitivas correspondem não ao sentido de ter falta de alguma coisa, mas de faltar, isto é, estar ausente, não constar ou morrer o próprio sujeito. Logo, com base nesse arrazoado técnico e crítico, não se deveria traduzir “eu não terei falta de nada” ou, a sua forma abreviada, “nada me faltará”, mas, antes, “eu não faltarei”, isto é, eu não morrerei.

[16]O leitor há de perceber que traduzi as formas verbais dos v. 2-3 no futuro. Com efeito, no hebraico, os verbos encontram-se conjugados no incompleto ou imperfeito, e prestam-se tanto à tradução como presente, quanto à tradução como futuro, e, o que só pode ser determinado por uma visada no conjunto dos versos do salmo, é apenas o contexto que determinará, aos olhos do tradutor e intérprete, o tempo efetivo da ação descrita nos versos citados. Para este tradutor e intérprete, futuro: eu não faltarei, mas, antes, serei levado às águas restauradoras...

[17]Para não cortar o fio narrativo da seção, adiante será discutida a nevrálgica questão constituída pela relação entre a mesa e os inimigos do salmista.

[18]Em razão de observação por parte de um dos avaliadores do artigo, convém deixar claro que não se está afirmando que o salmista e o autor implícito da composição sejam a mesma pessoa, nem mesmo que o salmista é a personalidade real que se hipostasia na personagem do salmo. Nesse tipo de declaração, está presente apenas o fato de que é sempre o autor real quem escreve, conquanto ele possa exprimir-se por mecanismos retóricos os mais variados, e ainda que se projete na forma de um autor interna composição.

[19]“Se trata de um ‘royal prayer’ (‘orante régio’)?” (KRAUS, 2009, p. 471). Como o próprio Kraus não responderá nem sim nem não, mas apresentará outra proposta, parece que prefere não negar a possibilidade da identidade real do salmista, sem que, todavia, aposte nela.

[20]Refiro-me, como disse, a um artigo submetido à revista Estudos de Religião, da UMESP, encaminhado em setembro de 2016, em processo de avaliação: “Um deus-pastor, um rei, os inimigos e a mesa do rei – um estudo para a tradução e a interpretação do Salmo 23”.

[21]Não se está afirmando que se trate de contexto histórico próximo, nem mesmo que seja o caso de intertextualidade. Está-se apenas citando um caso em que a referência ao templo é, para todos os fins, uma referência ao espaço da monarquia.

[22]Cf. OPPENHEIM, A. L. Ancient Mesopotamia. University of Chicago: Chicago, 1964, p. 95-96.

[23]Outra forma de visualização seria a seguinte: A. Yahweh é meu pastor, não faltarei. B. Em pastagens de grama, me fará deitar. Junto de águas de descansos, me conduzirá. A minha garganta restaurará. C. Guiar-me-á por sendas de justiça, D. por causa do nome dele. X. Mesmo que (eu) caminhe pelo vale da sombra, não temerei desgraça, porque tu estás comigo. O teu bastão e o teu cajado, eles me tranquilizarão. B’. Prepararás diante de mim uma mesa diante dos meus inimigos! D’. Ungiste com óleo a minha cabeça, o meu cálice de plenitude... C’. Certamente, bondade e misericórdia me seguirão todos os dias de minha vida, A’. e habitarei na casa de Yahweh pela extensão dos dias.

[24] Cf. a mesma ideia e o mesmo verbo, aplicados à divindade, que apascenta o povo, em Ez 34,15.