Apropriação dos Símbolos na dinâmica da Devoção Popular do Sertanejo Nordestino
Appropriation of Symbols in northeastern ‘sertanejo’ popular devotion’s dynamics

Wagner Lima Amaral*
* Doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP, Professor e Pesquisador da Faculdade Batista do Cariri, e-mail: amaralwl@uol.com.br
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Resumo
A apropriação dos símbolos na identidade devota é o tema deste artigo que objetiva considerar, através da análise bibliográfica, a dinâmica da devoção popular do sertanejo nordestino a Padre Cícero, criando seu espaço de transcendência e imanência em meio ao lugar em que vive. A preservação desse espaço por meio da devoção, não somente estabelece novas dinâmicas para o sofrido sertanejo como influencia determinantemente em sua própria identidade, acrescentando ou acentuando características como uma visão poética da realidade, uma apropriação dos símbolos, uma resistência à desesperança, uma compreensão mística da vida. Tais características influenciam na formação de sua identidade, tornando-o autor e ator de sua própria realidade, inventor de uma dinâmica bela e esperança para a vida; na qual ressignifica antigos conhecimentos, tornando-os aplicáveis em seu novo contexto, criando uma resistente esperança na qual toda a realidade é entendida, interpretada e vivida em forte tonalidade mística cristã, trazendo significado para esta vida e a por vir, numa perspectiva escatológica triunfal. Assim, é o devoto que determina a preservação da vida ao sertanejo por meio de seu espaço.

Palavras chave:Religiosidade popular; Devoção sertaneja; Identidade; Padre Cícero; Cordéis.

 

Abstract
The appropriation of symbols in the devout identity is the theme of this article that aims to consider, through bibliographical analysis, the dynamics of the popular devotion of the northeastern sertanejo to Padre Cícero, creating his space of transcendence and immanence in the middle of the place where he lives. The preservation of this space through devotion not only establishes new dynamics for the suffering sertanejo but also influences decisively on his own identity, adding or accentuating characteristics such as a poetic vision of reality, an appropriation of symbols, a resistance to despair, a mystical understanding of life. Such characteristics influence the formation of his identity, making him the author and actor of his own reality, inventor of a beautiful dynamic and hope for life; In which it reaffirms ancient knowledge, making them applicable in its new context, creating a resilient hope in which all reality is understood, interpreted and lived in strong Christian mystical tonality, bringing meaning to this life and to come, in a triumphal eschatological perspective. Thus, it is the devotee who determines the preservation of life to the sertanejo through his space.

Keywords:Popular religiosity; Bluegrass Devotion; Identity; Padre Cicero; Twine.

Introdução


Tem dois cruzeiros na frente
alicerces tão profundos
Padre Cícero disse ao povo:
aqui é o meio do mundo
onde hão de ser julgadas
todas as almas num segundo
Antonio Domingos dos Santos
(Nascimento, vida e morte do Pe. Cícero Romão Batista)

Tratando acerca da religião como sistema cultural, Clifford Geertz estabelece um paradigma:

Os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem (2008, p. 67).

Seguindo seu raciocínio, na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se razoável por representar o ideal de uma vida adaptada à visão descrita, estabelecendo convicção emocional ao passar uma imagem de uma realidade bem ajustada e verdadeira.

Para ele os significados da religião só podem ser armazenados através dos símbolos, pois possuem o poder de resumir toda a realidade conhecida acerca do mundo, incluindo os aspectos morais. Assim,

os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real” (2008, pp. 93-94).

Assim, um conjunto de símbolos sagrados, organizados, é o que forma um sistema religioso. Para os que estão ligados a eles, este sistema religioso parece mediar um conhecimento genuíno, o conhecimento das condições essenciais para conduzi-los ao viver ideal.

A construção do espaço por meio da ressignificação da fé

Na construção de seu próprio espaço por meio de sua experiência religiosa, contando com sua arte inventiva, o devoto se apropria de símbolos conhecidos e aplicáveis à sua cosmovisão, atribuindo-lhes novos significados e aplicações ao cotidiano, sem, contudo, romper definitivamente com sua primaria e tradicional religiosidade cristã – católica apostólica romana. É o proceder do sertanejo devoto que mesmo construindo um particular espaço religioso não rompe definitivamente com a Igreja à qual pertence desde nascença ou conversão. Ao contrário, elabora novas atribuições e significados aos símbolos apreendidos, correspondentes à sua nova perspectiva.1

Esta dinâmica é experimentada através das ferramentas e dimensões disponíveis – romarias, ritos cultuais e expressões artísticas. Nada essencialmente diferente daquilo que tem sido desenvolvido ao longo da história cristã (cosmovisão da devoção). Nenhuma criação, mas sim invenção.

Essa estrutura e processo são facilitados por aquilo que Steiner chama de “forçar à frente”, considerando-se os valores visuais e táteis e a significação nos mecanismos artísticos quanto ao sentido religioso. Para ele, é mais que unânime a percepção segundo a qual qualquer produção humana e qualquer conceito ou ato estético articulado se estabelecem no interior de limites temporais claramente marcados por componentes históricos, sociais e psicológicos. É evidente que muito da arte depende de fatores contingentes como a disponibilidade de certos materiais, o acesso a códigos convencionais de identificação, e até de um público potencial envolvido num contexto temporal específico. Por outro lado, a elaboração filosófica e a obra de arte ou fazem parte ou aspiram à atemporalidade. São criações que se definem por estatutos alheios ao da cronologia comum (2003, pp. 80-81).

Nessa aspiração pela atemporalidade, Steiner constata um paradoxo da temporalidade no cristianismo. Um Messias específico, desenvolvido historicamente, com promessas escatológicas finitas, determinando a inserção da alma humana em uma eternidade genuína. Nesse caso, pergunta o autor: “Por que se empenhar para produzir arte e todo tipo de artefatos quando o mundo está se aproximando do fim?” (2003, p. 83).

Segundo Steiner é a partir da encarnação de Cristo que a percepção ocidental da carne e da metamorfose espiritual da matéria se transforma (2003, p. 84). Uma revolução profunda não só nos valores visuais e táteis, mas também na significação e nos mecanismos de nomeação na linguagem presentes nas representações artísticas. Não mais o “eu”, mas o “eu” como parte do “nós” por meio “dele”. É a possibilidade de transcendência por meio de sua imanência, presente na linguagem e nos símbolos (2003, pp. 84-85).

Como cita Steiner, para Tomás de Aquino é na transubstanciação que se lida com o supremo mistério da presença divina e de sua concreção numa forma exterior (a da eucaristia), assim o homem pode e deve imprimir um significado ao sensorial. A genialidade do artista por meio de formas imaginadas e miméticas, o processo de imprimir significação à matéria bruta e o poder das artes e da literatura para produzirem símbolos transformam a ficção numa figuração da verdade (2003, p. 85).

Do início da Idade Média ao Iluminismo é precisamente esse “forçar à frente” que torna a arte, a arquitetura, a música e a literatura ocidentais fundamentalmente religiosas em sua natureza e seu conteúdo. É esse “forçar à frente” que torna a poesia secular tão ávida de revelações e que torna as artes ocidentais um campo essencialmente metafórico e simbólico. O que aponta para o fato de que as relações entre o objeto e a representação e entre a realidade e a ficção na poesia ocidental, a partir do cristianismo tornou-se basicamente icônica. O poema, a estátua, a nave das catedrais e o retrato descrevem e possibilitam a manifestação de uma presença real. O que foi imaginado revela-se como um ícone, uma ficção verdadeira (2003, pp. 86-87).

É essa compreensão e prática que tem servido de instrumentalização para tornar possível a devoção a Padre Cícero, vários anos após sua morte. A transcendência da qual ele foi revestido torna sua presença física desnecessária. Agora ele pode estar próximo de seus devotos e atender suas súplicas onde quer que estejam. Esse é o motivo pelo qual as pessoas depositam cartas em seu túmulo com os mais diversos tipos de solicitações e creem que na hora do perigo podem invoca-lo.


Agora mesmo no Crato
Padrinho Cícero apareceu
falou na era passada
em tudo que sucedeu
também desta grande guerra
que está na face da terra
muitas coizas esclareceu.
Foi visto por um romeiro
habitante do lugar
ele estava na igreja
quando começou orar
no meio da oração
sentiu uma comoção
ficou sem poder falar.
Neste momento avistou
um padre muito velhinho
o padre foi disse a ele
não temas, sou teu padrinho
tú és um de meu agrado
que fizeste o meu mandado
me ouça agora um pouquinho.
Tudo isto eu te aviso
porque do céu venho mandado
nem que satanás não queira
meu sermão será pregado
no mar, na terra e no céu
de baixo de um fino véu
eu eí de ser respeitado.
Findando estas palavras
se ouviu uma canção
tocando no firmamento
com grande veneração
era uma nuvem dourada
dizendo a hora é chegada
Padrinho Cícero Romão.
Nesta hora entrou na nuvem
e disse com ar de riso
meu romeiro eu vou embora
para o santo paraiso
que a hora está chegada
não posso dizer mais nada
até o dia do juízo.2

No entanto, o devoto não se contenta com uma transcendência intangível e invisível. Ela precisa ser tocada e contemplada – esta é a função exercida pelas imagens. Elas aproximam o transcendente de seus devotos e são veneradas com base na convicção de que o representam ou que este se faz presente através delas. Ao mesmo tempo, é uma forma de particulariza-lo; tornando-o seu – um poder que pode ser levado para casa. Quando o transcendente é iconizado a sobrenaturalização chega a um patamar diferente3.

Existe ainda outra faceta desse processo. Padre Cícero não apenas é colocado ao lado dos demais santos, é também idealizado como um tipo de Cristo – chamado de cristificação4.

Dessa forma, adapta os símbolos existentes e aceitos ao espaço estabelecido em formato particularizado.

Concentro pedindo a deus
uma forte inspiração
para este livro que pede
do bom leitor atenção
o sonho de um Romeiro
com o padre Cícero Romão.
Em 25 de Julho
destinou-se um Romeiro
fazer sua romaria
na matriz do Joazeiro
do padre Cícero Romão
o nosso bom conselheiro.5

Resultante desta segunda redenção ocorrida em Juazeiro tem-se inúmeras aproximações, tornando a fé cristã mais apropriada ao contexto sertanejo. Essa cristificação se expressa na atribuição de um nascimento sobrenatural ao Padre Cícero. Um relatório preparado em 1903, descrevendo um delírio religioso em Juazeiro, menciona que muitos lhe negam qualidades humanas, dizendo que ele não nasceu e, se tem mãe, é isto apenas uma comparação (CAVA, 1977, p. 118). Em O Nascimento do Padre Cícero, Abraão Batista apresenta a versão popular do que teria ocorrido. Narra que Dona Quinou teve uma filha. Numa noite aparece um anjo trazendo uma criança nos braços. Então,


Sem dizer uma palavra
o anjo se aproximou
da rede que agasalhava
a filha de dona Quinou
e dona Quinou olhava
O que ela não esperou.
O Anjo chegou na rede
e com sua sagrada mão
trocou a filha menina
por Padre Cícero Romão
depois, com ela no braço
ele se levantou do chão.6

Outro poeta, Antonio Domingos dos Santos, confirma a versão da troca, apesar de relatar em outro formato:

A 24 de março
nasceu nosso salvador
Padrinho Cícero Romão
luz divina do amor
do Brasil ao estrangeiro
seja nosso protetor
Este menino em que falo
é um anjo parecido
com o menino São João
pelo anjo prometido
e da rainha do céu
o nosso anjo querido
Porque quando ele nasceu
viram ali uma visão
nisto entra uma mulher
com um rosário na mão
também trazia um menino
ficando ali no salão
Ali na frente do leito
a linda mulher ficou
nisto acordou sua amiga
dizendo: dona Quinou
vamos trocar os meninos?
a mesma mulher falou.
Respondeu ela eu não troco
lhe digo qual a razão
este é meu filho Único
será meu único varão...
nisto ela adormeceu
sentiu a luz da visão.
Passaram poucos minutos
D. Joaquina acordou
viu a criança no leito
nisto o menino chorou
aquele choro tão alto
que a criada acordou.
Perguntou a criada a ela:
dona, quem entrou aqui?
os meninos estão trocados
a uma mulher eu vi
para trocar os meninos
ela saiu por ali.
Disse: dai-me o meu filho
dona Joaquina falou
a criada pegou o menino
e para ela levou
ao receber a criança
dona Joaquina cegou.
Mas com muita paciência
ela no leito ficou
no prazo de meia hora
quando o marido chegou
a troca das duas crianças
dona Joaquina contou.
Ali ficou o menino
e batizaram em missão
na santa água da Pia
no batismo de S. João
com o nome de Cícero
o sôbre-nome Romão.7

O poeta José Bernardo da Silva destaca em seu cordel, acerca do nascimento de Padre Cícero, sua grandiosidade indicada na encarnação e no esplendor celestial como reação ao mesmo:


Em mil oitocentos e 44
na véspera da Anunciação
da virgem Nosa Senhora
e de Deus a encarnação
dia que o verbo encarnou
nasceu o nosso pastor,
o Pe. Cicero Romão.
Encheu o céo de gloria
os anjos do céo desceu
louvando de Deus a bondade
pelo amor que exerceu
Deus no sacramento existe
ficou o inferno triste,
quando meu padrinho nasceu.
Nova luz do evangelho
que no céu se acendeu
formou o mundo de nôvo
um novo resplandeceu
os anjos do céo cantaram
ficou o mundo claro,
quando meu padrinho nasceu.
Seu nascimento no Crato
Estado do Ceará
mas os homens não sabiam
o inocente avaliar
Deus e a Virgem Maria
de seu futuro já via,
mandou ao mundo salvar.8

O paralelo é óbvio. Como Jesus, Padre Cícero também teve um nascimento incomum – com a vantagem de não ter de fato nascido, considerando o relato da troca. Há assim uma materialização da dinâmica entre transcendência x imanência, destacando em Padre Cícero certa sobrenaturalidade, sendo-lhe alargada a expansão ou mesmo admitindo-lhe uma origem divina.

A manutenção do espaço como ambiente de consumação da fé

Essa cristificação pode ser observada também em alguns dos milagres que se supõe que ele tenha realizado. Conta-se que certa vez Padre Cícero foi chamado com urgência para ministrar em Caririaçu a confissão de um homem prestes a morrer. Quando chegou a seu destino, este já havia falecido e sua esposa o recebe dizendo-lhe que se ele estivesse lá seu marido não teria morrido sem confissão. O padre respondeu: “quem crê em nosso Senhor Jesus Cristo sem nenhuma sombra de dúvida, ainda estando morto, viverá”. Fazendo todos se retirarem, se põe de joelhos e ora. Descobre a face do morto e ordena: “Pedro, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, levanta-te!” O morto então ressuscita para o assombro de todos e Padre Cícero passa a advertir os presentes para não contar o acontecido a ninguém para que não pensassem que ele era Deus (SILVA, 1996, pp. 64-66). Observa-se neste episódio, com pequenas adaptações, uma curiosa combinação dos relatos da ressurreição da filha de Jairo, no evangelho de Marcos (Marcos 5.35-43) e de Lázaro, no evangelho de João (João 11.1-46).

A mente devota também cria todo um ambiente crístico. Na década de l890, Padre Cícero inicia a construção de uma catedral na Serra do Catolé. Ralph Della Cava afirma:

O povo transformou Joaseiro em Terra Santa. A Serra do Catolé foi rebatizada como Serra do Horto e era identificada com o Jardim das Oliveiras onde Cícero, assim como tinha sido com Cristo, suportava o seu martírio. Paralelamente, o caminho íngreme talhado na pedra, ligando a aldeia ao Horto, tornou-se conhecido como Caminho do Calvário [...] até o riacho de inverno, Salgadinho, que corre do Horto para os alagados a oeste de Joaseiro, foi apelidado de Rio Jordão (1977, p. 119).

Há ainda um Santo Sepulcro na colina do Horto e uma lista de doze beatos 9 – paródia dos doze apóstolos de Cristo. Além disso, a liderança religiosa que perseguiu o sacerdote era facilmente identificada com os escribas e fariseus diante dos quais, Padre Cícero assumia a postura de Servo Sofredor.

Outra expressão dessa tendência fora a expectativa popular de uma ressurreição. Quando Padre Cícero morreu na manhã de 20 de julho de 1934 o tumulto foi geral. Para que todos pudessem contemplá-lo resolveram expor o cadáver na janela de sua casa. Conta-se que:

A certa altura, o braço do cadáver balançou, desprendendo-se da atadura, e um grito se ouviu Padre Cícero está vivo; ele ressuscitou dos mortos. Os padres da cidade marcharam com rapidez para desfazer o engano dos crentes; temendo o pânico, garantiram aos que pranteavam o morto que o Patriarca não estava vivo (CAVA, 1977, p. 257).

Quando ele teve que ser finalmente sepultado surgiu um novo tumulto. O paralelo entre Cristo e Padre Cícero é então mais uma vez invocado, conforme narra Manoel Rodrigues Tenório (Apud: MACHADO, 1982, p. 194):

O povo no alvoroço
quis fazer revolução
porém os homens na calma
fizeram acomodação
se referindo ao passado
pois Jesus foi sepultado
depois da morte, paixão

Tais exemplos revelam a face da devoção, demonstrando o imaginário religioso de um povo. Além disso, evidenciam a grande influência que o Padre Cícero exerceu a nível popular, a ponto de ser proclamado, explícita ou implicitamente, um tipo de Cristo.

Quando, conforme se supõe, o divino irrompeu mais uma vez no mundo, não apenas teve início uma nova era de salvação (soteriologia), esse novo irromper anunciava a consumação da história (escatologia). Para muitos, o sangue de Cristo sendo derramado seria um sinal da proximidade do fim do mundo, tema bastante enfatizado na pregação das beatas. Esta teria sido a mensagem que a Mãe de Deus teria, numa aparição, dado a Maria de Araújo:

Todos esses fatos aqui ocorridos são as graças reservadas para os últimos tempos; o Meu divino Filho quer castigar os homens, acabando com o mundo e por mais que eu ore em favor do mundo Ele me respondeu que não pode mais (desistir), que já se vê obrigado a castigar o mundo” (CAVA, 1977, p. 68).

Juazeiro então se torna cidade apocalíptica, sede de uma nova redenção e de um segundo advento de Cristo, uma Nova Jerusalém. Essa temática escatológica também fazia parte do discurso do Padre Cícero, como apresenta Antônio Caetano em seus versos:

Ele sabe de Simão
as palavras profetizadas
nos conta do fim do mundo
das profecias faladas
conversa no surgimento
da Escritura Sagrada.10

De fato, fora as declarações de natureza profética o que mais se inculcou na memória do povo. Das menções acerca de algo que o Padre Cícero tenha dito ou ensinado a mais comum faz referência a alguma de suas profecias; muitas, refletindo o sermão profético de Jesus em Mateus 24. Com base em várias dessas profecias, divulgadas principalmente pela literatura de cordel, surge então uma escatologia popular que combina escatologia bíblica e devoção ao Padre Cícero. Um elemento importante dessa escatologia é a crença numa segunda vinda do Padre Cícero, algo que ele próprio anunciara, segundo os versos de Apolônio Alves dos Santos expressam:

Leitores Padrinho Cícero
quando pregava dizia
– que faria uma viagem,
mas um dia voltaria
quem fosse vivo esperasse
mas quando ele voltasse
ninguém mais o conhecia. 11
Meu [Padrinho] em 34
entregou o Juazeiro
nas mãos de Frei Damião
que mandou Deus Verdadeiro
até quando ele voltar
que Jesus Cristo ordenar
pra salvar todo romeiro.12

Este retorno, então, faz parte de um plano divino, quando Padre Cícero cumprirá o propósito divino de salvar o seu povo romeiro.

Há ainda um profundo pessimismo em relação à consumação da história. O mundo irá de mal a pior: a maldade, a imoralidade, a violência e a pobreza aumentarão ainda mais. A humanidade se tornará cética, haverá fome e guerra como nunca houve. Tudo isso sinalizará ao devoto que o fim do mundo se aproxima.

[Pe. Cícero] Quando pregava dizia, no seu sagrado sermão que quando o mundo tivesse, perto da consumação se via estes sinais, filhos brigar com os pais, e nação contra nação.13

Então virá o fim. Deus castigará a humanidade. As descrições do fim do mundo, como a de Abraão Batista, se assemelham às da literatura do Apocalipse de João:

A guerra consumidora vai abarcar muita gente quando ela começar não haverá quem sustente muitas cidades sem dono e tudo no abandono e o mundo gira pra frente. As mulheres terminarão o flagelo da humanidade os homens se acabarão se escapar é novidade quando elas virem um caem nele como anum matando a dura saudade. Haverá uma grande praga alastrará o mundo inteiro gafanhotos comendo as carnes das mulheres do cativeiro que se entrega à moda no círculo da grande roda a testemunha é Juazeiro.14

Há, porém, uma luz no fim do túnel – A consumação também fará surgir um novo mundo, um reino de felicidade cósmica.

No fim do mundo falou: um novo mundo virá o mundo do Espírito Santo que o grande Espírito fará todos os males se irão do seio de Abraão Buda, Jesus e Isacá. Os tempos serão mudados o novo mundo há de vir não haverá desavença só glória, amor e porvir a terra, os homens e os ares os mundos, as eras e os mares estão sempre a sorrir!15

São óbvios os paralelos com a escatologia bíblica. Muito do que se atribui ao Padre Cícero tem sua origem nas profecias do Primeiro e do Segundo Testamentos. De qualquer maneira, essa escatologia exerce um papel importante: perpetuar a devoção, enquanto único modo de escapar da catástrofe do fim do mundo.

Conclusão

A experiência religiosa centrada nessa devoção caracteriza-se como paródia do cristianismo. Há um irromper salvador, um Cristo e uma escatologia que procuram ressignificar o paradigma encontrado no Segundo Testamento, por meio da cristificação do Padre Cícero, no qual é idealizado no tipo literário do Cristo.

É preciso entender que esta idealização para o devoto não o transforma em Deus a fim de substituir o próprio Cristo na teologia cristã, pano de fundo de sua fé. Ele não nega que Deus esteja acima do Padre Cícero, mas assume que falando com seu Padim é como se falasse com Deus, pois ele é sua segunda pessoa. Assim, no imaginário do devoto surge um espaço de maior proximidade, facilitando o diálogo e simplificando a tensão entre a transcendência e a imanência na construção e na vivência de seu espaço único, porém, com amplitude coletiva por ser compartilhado por outros nas mesmas visões; crenças e adaptações.

Esta paródia resulta da combinação de tradição cristã (via catolicismo) e religião popular – uma espécie de cristianismo paralelo por meio da apropriação de seus símbolos, aplicando-os ao contexto de sua nova elaboração por meio de sua experiência religiosa.

Referências Bibliográficas

A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento (Tradução de João Ferreira de Almeida), 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CAVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

MACHADO, Paulo de Tarso Gondim. O Padre Cícero e a literatura de cordel. Juazeiro do Norte: Gráfica Editorial Cearense, 1982.

SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte, um estudo do catolicismo o sertão da Bahia. São Paulo: Editora Ática, 1982.

SILVA, José Bernardo. Milagres e previsões de padre Cícero. Juazeiro do Norte: HB Editora e Gráfica, 1996.

STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2003.

VINE, W. E.; UNGER, Merril F.; WHITE Jr, William. Dicionário Vine – o significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2002.

Cordéis

A verdadeira profecia do Padre Cícero Romão, cordel, de Enoque José Maria (s.d.).

As profecias do padre Cícero, cordel, de Abraão Batista (s.d.).

Conselhos e Trabalhos do Padre Cícero Romão Batista, cordel, de Antônio Caetano (s.d.).

Nascimento, vida e morte do Pe. Cícero Romão Batista, de Antonio D. dos Santos (s.d.).

O nascimento do Padre Cícero, cordel, de Abraão Batista, 1990.

O nascimento do Reverendo Pe. Cícero Romão Batista, cordel, de José da Silva (s.d.).

O romeiro que viu Pe. Cicero na igreja do Crato, cordel, de Josué Gomes da Silva (s.d.).

O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão, cordel, de Dila Soares (s.d.).

Sinais do fim do mundo que o padre Cícero, cordel, de Apolônio Alves Santos (s.d.).

Sonho de frei Damião com padre Cícero Romão profetizando o fim da era, cordel, de Apolônio Alves Santos (s.d.).

Notas

[1].Para melhor compreensão desta herança que alimenta a vida religiosa do sertanejo ver o livro de Cândido da Costa e Silva: Roteiro da vida e da morte, um estudo do catolicismo no sertão da Bahia (1982). Tratando desta herança o autor afirma que o serviço religioso, de tempos em tempos, para desobrigar, esteve restrito à administração dos sacramentos que por um lado massificou o crente sem respeitar-lhe o acolhimento consciente e livre, e por outro inculcava uma visão de excepcionalidade, de algo prescindível, ainda mesmo nas urgências da morte. Isto propiciou uma relativa descontinuidade, dicotomizando o culto. A catequese para fé, entendida como memorização das verdades a crer e dos preceitos a cumprir veiculou-se num código indecifrável de conceitos abstratos, sem levar em conta o lugar existencial do destinatário. Assim, as relações de caráter religioso não estavam subordinadas aos limites paroquiais e sim às possibilidades concretas de deslocamento do povo. O sentido de pertença a uma comunidade ideal, espacialmente determinada, não tinha vigência para com o povo que recorria ao presbítero mais próximo, como a um despachante do sagrado (p. 15). Tornou-se impossível um culto sintonizado com a cultura nacional e uma catequese como proposta de reflexão evangélica nascida das condições existenciais do povo. Vem daí a alegada incapacidade em assimilar a doutrina que se lançava sobre a gente do nosso sertão. Dessa forma a lógica dos doutos é ilogismo para os pobres. Suas explicações não tem correspondência na síntese popular, não cabem em sua visão de mundo, são estranhas à sua realidade. Por isso a dificuldade de perseverar na sistematização das coisas ensinadas. Dessa forma, entregue a si mesmo o crente sertanejo encontrou margem para desenvolver um processo seletivo e reinterpretativo das expressões da fé, em particular do culto, sendo um momento privilegiado dessa metamorfose (p. 23). Rara leitura, muito ouvido e excelente memória, o que explica o lugar do livro religioso no sertão.

[2]O romeiro que viu Pe. Cicero na igreja do Crato, cordel (2ª, 3ª, 4ª, 19ª, 28ª e 29ª estrofes), de Josué Gomes da Silva (s.d.).

[3]A imaginação remete às imagens criadas no abstrato em busca de uma corporificação no real. Ela alimenta a esperança criando mundos e entidades possíveis, presumíveis, plausíveis e prováveis, fazendo com que se aproxime ao máximo do concreto. Por isso, talvez, como afirma Eliade: “A mais pálida das existências está repleta de símbolos o homem mais realista vive de imagens”(ELIADE, 2002, p. 12). Segundo Bachelard, a imagem perde sua gratuidade ao ser reverenciada, fazendo acordar em quem a contempla elos míticos. Tanto o real como a imagem do real existem e estão vivos naquele que o reverencia, promovido à dignidade do ser que admira. (2000, p. 73). Na imagem não se busca, a priori, elucidações, esclarecimentos ou explicações do contemplado. Almeja-se um entrelaçamento daquilo que está vivo, daquilo que é real e concreto com aquilo que é espiritualizado, pensado, imaginado, subjetivado. A linguagem iconográfica é codificada pelo refinamento de quem tenta decifrá-la. Tal refinamento é conseguido pelo contínuo esmero das sensibilidades, exercitado nas tramas, nos enredamentos das vivências de certa sacralidade. Este refinamento é necessário e salutar, pois “a vista vê muitas coisas de uma só vez” (BACHELARD, 1993, p. 219), impondo-se a imprescindível seleção. Contemplar um ícone, sem este preparo, é contemplar sem compreender, por isso é uma contemplação estéril de sentido e visão. Devese compreender o que se vê ou, do contrário, não há o que se ver. Estar diante do ícone de devoção parece para alguns fieis estar diante de sua história, devido as lembranças que os remetem a outros tempos, quando a mesma contemplação era feita, em espaço apropriado, e por outros que à sua semelhança, partilharam da mesma devoção.

[4]Christos em grego é “ungido”, de epichriô, “ungir, “untar”. Termo aplicado aos sacerdotes que eram ungidos com óleo; assim como aos profetas, chamados de “ungidos de Deus” (VINE, UNGER, WHITE Jr, 2002, p. 522). Por cristificação, entende-se o ato ou efeito de o homem Jesus de Nazaré (pessoa humana) ser permeado pelo Cristo. Para isso ocorrer Jesus teve que ser efetivamente homem. Entretanto, é preciso ponderar que apesar de ter nascido, crescido, trabalhado, sofrido, como ser humano, não viveu como todo indivíduo. Não era o tipo de homem como os outros homens. Essa análise deve ser feita para não se cair nos extremos de ou elevar Jesus ao ponto de perder a sua humanidade ou diminuir Jesus ao ponto de confundi-lo com um mero ser humano qualquer. Aplicando o conceito a Padre Cícero, ele, como homem, é permeado pela divindade (Cristo), tornando-se assim ungido para, então, estabelecer nova forma de interação com seus devotos, acompanhando e respondendo-os ilimitadamente.

[5]O sonho de um romeiro com o Padre Cícero Romão, cordel (1ª e 2ª estrofes), de Dila Soares (s.d.).

[6]O nascimento do Padre Cícero, cordel (3ª e 4ª estrofes), de Abraão Batista, 1990.

[7]Nascimento, vida e morte do Pe. Cícero Romão Batista, cordel (1ª, 7ª a 13ª, 15ª e 16ª estrofes), de Antonio Domingos dos Santos (s.d.).

[8]O nascimento do Reverendo Pe. Cícero Romão Batista, cordel (5ª a 8ª estrofes), de José da Silva (s.d.).

[9]José Florentino de Souza (pregador), Manoel João (catequista), José Lourenço (dirigente, agricultor), Vicente (combatente de guerra), Sabino (carteiro do Pe. Cícero), Francelino (doutrinador cristão), Beato da Cruz ( titular dos penitentes), Manoel Sérgio (ensino religioso), Elias (conselheiro familiar), Beato da Luz (encarregado da luz e da ciência), José Caitano (ensino de orações) e Roque Miranda (escultor). Extraído de um painel encontrado no museu do Padre Cícero em Juazeiro.

[10]Conselhos e Trabalhos do Padre Cícero Romão Batista,cordel (15ª estrofe), de Antônio Caetano (s.d.).

[11]Sonho de frei Damião com padre Cícero Romão profetizando o fim da era, cordel (8ª estrofe), de Apolônio Alves Santos (s.d.).

[12]A verdadeira profecia do Padre Cícero Romão, cordel (2ª estrofe), de Enoque José Maria (s.d.).

[13]Sinais do fim do mundo que o padre Cícero, cordel (4ª estrofe), de Apolônio Alves Santos (s.d.).

[14]As profecias do padre Cícero, cordel (11ª a 13ª estrofes), de Abraão Batista (s.d.).

[15]As profecias do padre Cícero, cordel (17ª a 18ª estrofes), de Abraão Batista (s.d.)