A literatura de expressão católica no século XX: a experiência de Morris West
The literature of catholic expression in the twentieth century: Morris West’s experience

Ivanaldo Santos*
* Doutor em Estudos da Linguagem pela UFRN. Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN. Contato: .
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Resumo
O objetivo do estudo é apresentar e discutir a trama geral da obra de Morris West. Ele produziu uma literatura de expressão católica. Ao longo da discussão, é demonstrado que Morris West possui uma visão do mundo onde a Igreja exerce um papel central na organização da sociedade. Por fim, afirma-se que em Morris West a literatura e a religião, uma religião de matriz cristã, se juntam para refletirem a condição do homem moderno, os problemas socioculturais do século XX e, ao mesmo tempo, apontam para um caminho de esperança.

Palavras chave:Morris West. Literatura; Expressão Católica.

 

Abstract
The main aim of this study is to present and discuss the general plot of Morris West’s work. He produced a literature of Catholic expression. Throughout the discussion, it is demonstrated that Morris West has a worldview where the Church plays a central role in the organization of society. Finally, it is stated that in Morris West’s literature and religion, a Christian-based religion, come together to mirror the condition of modern man, the sociocultural problems of the twentieth century, and at the same time point to a path of hope.

Keywords:Morris West. Literature; Catholic Expression.

Introdução

Morris Langlo West (1916-1999), mais conhecido como Morris West, foi um renomado escritor, de origem australiana e que viveu na Europa e nos EUA. Ele contribuiu para o processo de renovação da literatura ocidental durante o século XX. É um autor muito lido e debatido nos países de expressiva população católica, como é o caso da Itália, da França, do México e do Brasil. Especificamente no Brasil, ele foi “traduzido, por exemplo, por um dos baluartes da modernidade literária nacional, ou seja, o poeta Manuel Bandeira” (NOGUEIRA, 2012, p. 151).

A produção literária de Morris West se estende das décadas de 1940 a 1990, tendo como epicentro, ou seja, o momento histórico da produção dos livros mais expressivos da sua obra, as décadas de 1960 e 1970. Em grande medida, “Morris West é visto como um autor moderno e até mesmo revolucionário. Um autor que, como poucos, conseguia unir os temas ligados a fé e a doutrina da Igreja com os problemas, dilemas e angústias do homem moderno” (CUNHA, 2016, p. 10).

Entre os livros mais relevantes de Morris West, citam-se: O advogado do diabo (WEST, 1966), As sandálias do pescador (WEST, 1987b), A Torre de Babel (WEST, 1984), A eminência (WEST, 1999), O navegante (WEST, 1998) e A filha do silêncio (WEST, 1964).

Apenas para se ter uma visão geral da vitalidade da obra de Morris West, sobre A filha do silencio, um romance neotrágico e de conteúdo psicológico, afirma-se:

Morris West escreveu um primoroso livro sobre o silêncio do trauma, ao transformar em romance um crime cometido na Toscana. O prefeito da cidade é morto por uma jovem de vinte e quatro anos, em pleno dia, de posse de suas faculdades mentais. A bela obra se chamou A filha do silêncio. A defesa, impotente diante das evidências, buscou para desqualificar a acusação motivações psicológicas para o assassinato. (FERREIRA, 2009, p. 25).

De um lado, a Filha do silencio é um romance que atualiza, para as estruturas literárias do século XX, a tragédia antiga. Um espaço para os dramas humanos serem explorados e fonte de análise ética. Do outro lado, é um romance psicológico, onde o silencio é uma forma de refúgio e, ao mesmo tempo, uma expressão da dor existencial e da injustiça social.

No entanto, existem dois temas que, como matrizes geradoras, atravessam a obra de Morris West. São eles:

1) - Os grandes problemas da política internacional, como, por exemplo, os regimes totalitários (nazifascismo e socialismo), a guerra fria (1945-2001), e a descolonização da África e da Ásia realizada entre as décadas de 1950 a 1970.

2) - Os problemas e desafios da Igreja no mundo contemporâneo, como, por exemplo, o secularismo, os desafios morais, como enfrentar a fome e os problemas sociais, a aplicação das reformas pastorais propostas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965)

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Em linhas gerais, Morris West é um escritor que pode ser classificado como de expressão católica. Não é intensão de esse estudo apresentar, de forma exaustiva, os temas e problemas presentes na obra de Morris West. O objetivo é apresentar e discutir a trama, o quadro geral da obra de Morris West e, com isso, configurar a produção de uma literatura de expressão católica.

Para alcançar o objetivo o estudo foi dividido em duas partes, sendo elas: 1) Literatura de expressão católica; 2) Literatura de expressão católica: a experiência de Morris West. O método que orienta o estudo é o método do levantamento bibliográfico1. Por fim, a título de conclusão, afirma-se que em Morris West a literatura e a religião, uma religião de matriz cristã, se juntam para refletirem a condição do homem moderno, os problemas socioculturais do século XX e, ao mesmo tempo, apontarem para um caminho de esperança.

Literatura de expressão católica

Observa-se que a literatura, enquanto produção humana e artística, não tem uma vinculação oficial com uma religião ou uma corrente teológica. A princípio, a literatura é uma produção artística livre e espontânea, um campo para experimentação de novos movimentos da linguagem, da análise e da denúncia dos problemas e dramas humanos, de sonhos futurísticos e de descrever paraísos naturais. No entanto, apesar de toda essa liberdade, a literatura também é simultaneamente inspirada e, ao mesmo tempo, a inspiração para um forte conteúdo religioso, místico e teológico.2

A presença e a influência de temas religiosos e teológicos não estão presentes apenas em escritores teístas (cristãos, judeus, etc), mas também na “obra de autores manifestamente ateus ou agnósticos” (BARCELLOS, 2000, p. 10).

Nesse sentido, não se fala em literatura teológica, mas sim em uma literatura de inspiração teológica. É preciso observar que existe, por exemplo, uma literatura de expressão teológica budista, uma literatura de expressão teológica judaica e uma literatura de expressão teológica católica.

No campo da literatura de expressão teológica católica existe uma série de escritores, que vão buscar o recurso da “literatura por parte da teologia” (BARCELLOS, 2000, p. 11), e críticos literários que, por meio de um “paradigma interdisciplinar” (BARCELLOS, 2000, p. 9), desenvolvem uma análise desse modelo de literatura.

Entre os escritores mais relevantes do século XX que, ao longo de suas respectivas obras literárias, tinham níveis diferentes de inspiração católica – e, por isso, consideravam “tudo isto como parte integrante do Reino de Deus” (MENDES, 2001, p. 73) e tinham a percepção que a “Arte, para ser realmente Arte, tem que ser moral, tem que ser católica” (MARTINS, 1979, p. 322) – é possível citar, por exemplo, Gilbert Keith Chesterton, Charles Péguy, Jacques Maritain, Paul Claudel, Henry Graham Greene, Gabriel Marcel e Georges Bernanos, conhecido como Maeztu.

É preciso frisar que desde a antiguidade cristã, entre os séculos I e IV d. C., que escritores e pensadores, de várias escolas diferentes, utilizaram princípios cristãos para ajudarem a compor as suas respectivas obras intelectuais.

No entanto, apesar de haver dentro da história momentos onde existe uma penetração dentro da literatura de ideias e valores religiosos e teológicos e vice-versa, foi no século XX que o diálogo entre a literatura e a religião, especialmente o cristianismo, ganhou mais força e visibilidade.

Em parte, isso acontece porque, de um lado, a religião estava, nas primeiras décadas do século XX, se posicionando diante do secularismo, da indiferença religiosa e do Estado moderno que, em muitos aspectos, substituía as funções sociais da Igreja. Do outro lado, trata-se de um momento histórico bastante conturbado, marcado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pela crise econômica causada pela quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, e pela ascensão das ideologias totalitárias. Esses e outros fatores conduziram a realização da destrutiva e sanguinária Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Além desses fatores, citam-se: a angústia e a incerteza presentes no cotidiano, à crise existencial vivida pelo sujeito moderno e os novos movimentos artísticos que estavam em busca de diálogo e de um reposicionamento da arte dentro da modernidade. Dentro desse contexto, o diálogo entre a teologia, especialmente a teologia cristã, e a literatura torna-se algo fecundo e até mesmo necessário.

Sobre a relação entre a literatura e a teologia no início do século XX, afirma-se:

No início do século XX, o mundo era tomado por um sentimento de angústia gerado pelo pós-guerra (Primeira Guerra Mundial), era preciso reconstruir não apenas o material, mas, sobretudo, o espiritual. Nesta época, a maioria dos países se defrontou com um período de crises, cuja consequência foi o radicalismo e a violência. A literatura não podia ficar alheia a estes acontecimentos. [...]. Faltava à crítica literária uma doutrina social e consciente inspirada nos ensinamentos da Igreja. (PORTO, 2009, p. 29).

É dentro do contexto do diálogo, nem sempre harmonioso, entre a literatura e a teologia cristã que um dos mais importantes escritores de inspiração católica irá produzir e divulgar a sua inovadora obra ao longo do século XX. Esse escritor é Morris West.

Literatura de expressão católica: a experiência de Morris West

Morris West viveu e produziu sua obra literária no século XX. Ele nasceu em 1916, seu primeiro romance, Moon in my pocket (A lua no meu bolso), foi lançado em 1945, morreu em 1999 e seu último livro, The last confession (A última confissão), uma obra póstuma, foi lançado em 2000. O tema que envolve e atravessa a obra de Morris West é a “missão da Igreja no mundo contemporâneo” (WEST, 1987b, p. 50).

Ele lança em 1959 o seu primeiro grande sucesso internacional. Trata-se do livro: O advogado do diabo. Nessa obra literária Morris West tem como fonte de análise o processo de canonização dentro da Igreja Católica. Nesse processo existe uma figura que é chamada de Advogado do Diabo. Trata-se de um padre, cuja função, dentro do processo de canonização, é encontrar erros, falhas e qualquer prova concreta que possa colocar em dúvida ou anular o processo de canonização.

No Advogado do diabo, Morris West toma como plano de discussão um processo de canonização no sul da Itália. Sendo que, neste processo, o padre que exerce a função de Advogado do Diabo descobre problemas que podem impedir está canonização, mas analisando o bem que ela trará para a comunidade, ele pensa em não apontar estes problemas a Santa Sé. Sabendo que está prestes a morrer de uma doença grave, o padre – o teólogo que exerce a função de Advogado do Diabo – enfrenta sérios conflitos pessoais para tomar a sua decisão. Neste livro, Morris West realiza uma apresentação e, ao mesmo tempo, uma análise das duas dimensões que historicamente compõem a Igreja. Dimensões que são simbolizadas pela parábola bíblica do joio e do trigo (cf. Mateus 13, 24-30). De um lado, existe a Igreja próxima do mundo profano, a instituição diplomática com uma forte dimensão político-econômica e ideológica. Do outro lado, existe a Igreja próxima da divindade, o místico “corpo de Cristo” (I Coríntios 10, 16), uma instituição que inspira confiança, que promove a arte, a cultura e os valores éticos.

Um livro de Morris West que chama a atenção pelo seu caráter profético – entenda-se profético apenas no sentido de uma antecipação literária de um fato que, por razões diversas, se tornaria realidade dentro do cenário histórico – é A eminência (ESTRANHA COINCIDÊNCIA, 2013, p. 1), publicado em 1998, um ano antes de sua morte, que ocorreu em 1999. Neste livro, narra-se a eleição de um papa argentino. O caráter profético está no fato de no conclave que escolheu o sucessor do Papa Bento XVI, no dia 13 de março de 2013, ou seja, quinze anos após o lançamento do livro de Morris West, foi eleito como pontífice o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, cardeal-arcebispo de Buenos Aires, que adotou o nome de Papa Francisco.

De acordo com o roteiro de A eminência, no final da década de 1990, às vésperas do terceiro milênio, a morte do papa e a abertura do processo sucessório no Vaticano, conduzem a Igreja a refletir sobre seu passado e a redefinir seus rumos. Em meio a essa situação de crise e mudança social, destaca-se a figura do cardeal argentino Luca Rossini. Um cardeal que foi torturado por agentes a serviço da ditadura civil-militar da Argentina (1976-1983). No entanto, pesava sobre ele uma injustiça – uma acusação de ter abandonado companheiros padres nas mãos dos agentes a serviço da ditadura. Na Argentina, o grupo de defesa dos direitos humanos, conhecido como as Mães da Praça de Maio, quer levar ao tribunal outro cardeal da Igreja. Pelas provas apresentadas, ao contrário de Luca Rossini, esse cardeal realmente estava ligado ao desaparecimento e morte de cidadãos durante o governo ditatorial. O cardeal Luca Rossini trabalha no caso e se envolve tanto nas investigações sobre violações aos direitos humanos, durante o período da ditadura civil-militar, que precisa abandonar o país. Por causa disso, ele se instala no Vaticano e se converte num dos mais próximos colaboradores do papa que, logo em seguida, vem a falecer. Durante o conclave, para escolher o novo papa, os cardeais decidem que é hora de a Igreja ter um papa do terceiro mundo e, com isso, romper a hegemonia dos cardeais europeus dentro do papado. Após essa decisão, o cardeal argentino Luca Rossini é eleito pontífice. Observa-se que a eleição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, em 2013, como pontífice é um caso em que a realidade imita a ficção literária.

Morris West afirma que sua obra é uma reflexão sobre os “problemas religiosos, a perda da fé, o homem moderno, o mundo que nos cerca, a esperança, a guerra, a fome e a injustiça” (WEST, 1987a, p. 330). Ele aponta o teólogo jesuíta Pierre Teilhard de Chardin e o pensador Miguel de Unamuno como sendo as duas maiores fontes de inspiração teórica para a produção da sua obra literária (WEST, 1987a, p. 329).

A reflexão sobre os problemas sociais e religiosos do mundo moderno e a inspiração teórica, ou seja, Teilhard de Chardin e Miguel de Unamuno, podem ser encontradas no livro central da obra de Morris West. Trata-se d’As sandálias do pescador.

As Sandálias do pescador é um livro ambientado na década de 1940. O enredo inicia-se com a “morte do papa” (WEST, 1987b, p. 9). Com isso, abre-se o debate dentro da cúria romana sobre o perfil do próximo papado. Fica definido que haverá uma “sucessão não italiana” (WEST, 1987b, p. 17). O novo papa deverá ser um “homem mais novo, [...], alguém que tenha compaixão das massas humanas, que as veja como Cristo as viu” (WEST, 1987b, p. 13), um religioso com um “coração aberto para o mundo” (WEST, 1987b, p. 15). No mundo contemporâneo, a Igreja precisa de um novo Pedro: “simples, humano e que foi crucificado” (WEST, 1987b, p. 33). Isto acontece porque a “humanidade precisa de ajuda” (WEST, 1987b, p. 87). No entanto, alerta Morris West, a “Igreja não pode está presa as ideologias, à esquerda, nem a direita” (WEST, 1987b, p. 129). No lugar das ideologias, a Igreja deve ser o caminho para a “dor se transformar em caridade” (WEST, 1987b, p. 100). É dentro desse contexto que é eleito como papa o desconhecido cardeal da Ucrânia, Kiril Lakota. Um cardeal que “passou 17 anos preso pelo regime marxista” (WEST, 1987b, p. 11) pelo fato de ser cristão e de não aderir a filosofia oficial do regime marxista, ou seja, o materialismo histórico. O papa Kiril Lakota tem a missão de buscar uma solução para a corrida armamentista e a guerra fria (WEST, 1987b, p. 26), uma guerra entre o bloco capitalista liderado pelos EUA, e o bloco socialista-marxista liderado pela Rússia. A guerra fria foi um conflito que, na segunda metade do século XX, provocava “terrores de uma noite sem fim” (WEST, 1987b, p. 1330).

Teilhard de Chardin foi padre jesuíta e um dos mais importantes pesquisadores no campo da geopaleontólogia do século XX. Ele estava familiarizado com as evidências geológicas e fósseis da evolução do planeta e da espécie humana. Ele defende a tese que existe uma consciência superior que criou o universo. Os reflexos indiretos dessa consciência podem ser captados por meio de pesquisas sobre o desenvolvimento do universo, do caos primordial até o despertar da consciência humana sobre a Terra. Para ele, os acontecimentos extraordinários que envolvem a figura de Jesus Cristo só podem ser plenamente compreendidos se colocados dentro do desenvolvimento do universo. Por isso, ele defende a teoria do Cristo cósmico, ou seja, um Cristo que não se limita apenas ao planeta Terra.

A proposta de Teilhard de Chardin é realizar um diálogo entre a ciência e a teologia. Em sua visão, não se trata de encontrar qual dos dois saberes é superior ao outro, mas desmontar que, de um lado, a ciência é uma real possibilidade para a teologia encontrar os fundamentos mais profundos da existência de Deus e da criação divina do universo. Do outro lado, a teologia é uma janela para a ciência, num processo de saudável diálogo, encontrar os seus fundamentos éticos e metafísicos.

Nas Sandálias do pescador, Teilhard de Chardin é representado pelo jesuíta Jean Télémond, um homem de “obediência formal” (WEST, 1987b, p. 103) as regras da Companha de Jesus e da Igreja. Ele defende a tese que existe uma “vasta harmonia da Criação, a convergência final de espírito e matéria, que marcaria o complemento perene de um Impulso criativo eterno” (WEST, 1987b, p. 126), cujo coroamento dessa convergência é o “Cristo cósmico” (WEST, 1987b, p. 223). Esse processo revela a necessidade da “busca de um conhecimento mais profundo de Deus, através do universo que ele criou” (WEST, 1987b, p. 184) e, por isso, a Igreja “não pode se isolar da criação” (WEST, 1987b, p. 215).

Morris West também foi influenciado pelo livro: Do sentimento trágico da vida, de Miguel de Unamuno. Nesse livro, Unamuno se afasta da filosofia existencialista representada, por exemplo, por Martin Heidegger, Jean-Paul Santre e Albert Camus. Para Unamuno o existencialismo é uma corrente filosófica que analisa a existência humana numa perspectiva abstrata. Para ele, é necessário se refletir sobre a dor materializada no indivíduo, um indivíduo que é um sujeito real e concreto, presente no cotidiano, algo que pode ser identificado, analisado e ajudado. Um sujeito que é, ao mesmo tempo, a soma e o rompimento entre a fé e a razão.

Seguindo a perspectiva de Unamuno, Morris West afirma, nas Sandálias do pescador, que as “palavras vindas do coração, e não de um livro, tem o poder de curar” (WEST, 1987b, p. 108) e que o ser humano, uma pequena espécie dentro do universo, precisa de um “alívio temporário da solidão” (WEST, 1987b, p. 109). Esse alívio é encontrado na poesia, na arte e na religião.

Para se compreender a obra de Morris West é necessário ter uma visão geral do livro: O navegante, publicado em 1976. Esse é o livro mais secular, ou seja, menos religioso, com o menor número de referências aos problemas teológicos e a cultura cristã, que Morris West publicou. Em grande medida, é um livro que fala da própria literatura, dos desafios do ato de escrever, dos (des)caminhos da literatura no século XX. Em síntese, o “Navegante, de Morris West, é uma metáfora do homem que se lança para o futuro, que tem coragem de enfrentar o futuro” (ASSIS, 2010, p. 9).

O Navegante narra as aventuras do pesquisador, que mora no arquipélago do Havaí, nos EUA, Gunnar Thorkild para tentar encontrar a mítica ilha de Hy-Brasil (WEST, 1998, p. 16). Nesse livro, Gunnar Thorkild é uma espécie de atualização, para o século XX, do mítico personagem grego Odisseu e de sua épica viagem de Tróia – após a conquista de Tróia pelos gregos, narrada na Ilíada – para a Grécia. Segundo algumas lendas medievais, a oeste do continente europeu, depois da Inglaterra, haveria uma lendária ilha chamada Hy-Brasil. Uma ilha fantasma que apareceria de tempos em tempos para alguns viajantes. Conta à lenda que a ilha está repleta de tesouros e que vivem mulheres lindas e exóticas em suas terras. Hy-Brasil é uma das lendas que falam do paraíso bíblico perdido e de como pode ser reencontrado. Alguns estudiosos apontam a possibilidade dessa lenda ter influenciado no nome dado, pelos colonizadores, a grande colônia portuguesa nos trópicos entre os séculos XVI e XIX, ou seja, o Brasil.

O fato é que, no Navegante, Morris West, de um lado, coloca a Igreja – representada pelo personagem do padre jesuíta Michael Aloysius Flanagan, que estava preocupado em “encontrar caminhos humildes para a salvação das almas” (WEST, 1998, p. 21), como sendo o “centro do mundo” (WEST, 1998, p. 23). A Igreja, a velha senhora com mais dois mil anos de idade, seria a responsável por orientar, do ponto de vista ético e humanístico, os governantes, os políticos, os pensadores, os artistas e os demais grupos que, de forma direta ou indireta, estão inseridos no projeto de aperfeiçoamento do ser humano e da sociedade. Do outro lado, Morris West recomenda a “educação cristã” (WEST, 1998, p. 14) como remédio para o fato da “família está destruída” (WEST, 1998, p. 32) e para romper a “barreira de classe e de raça” (WEST, 1998, p. 50).

É interessante notar que o livro mais secular e menos religioso de Morris West é uma obra onde a Igreja é apresentada como o centro do mundo e a educação cristã como remédio para os problemas sociais. Pelo conteúdo desse livro, uma obra fundamental para se compreender o pensamento de Morris West, percebe-se que, mesmo em sua fase mais secular, ele é profundamente envolvido por valores cristãos e pela visão do mundo onde a Igreja exerce um papel central na organização da sociedade e no processo de apaziguamento das tensões sociais. Pelo conteúdo desse livro, uma obra fundamental para se compreender o pensamento de Morris West, percebe-se que, mesmo em sua fase mais secular, ele é profundamente envolvido por valores cristãos e pela visão do mundo onde a Igreja exerce um papel central na organização da sociedade e no processo de apaziguamento das tensões sociais.

No entanto, não se deve imaginar que Morris West desenvolve apenas uma literatura de elogios a Igreja e a cristandade. Com isso, caindo numa espécie de alienação ou romantismo religioso. Ele também tem uma visão muito crítica e realista dos erros e problemas que atravessam a história da Igreja. Um bom exemplo dessa visão encontra-se na peça de teatro: O herege. Uma peça que foi traduzida no Brasil pelo intelectual e político brasileiro – muito atuante entre as décadas de 1940 a 1970 – Carlos Lacerda3.

O Herege é uma peça teatral que fez muito sucesso na Europa e nos EUA na década de 1960. Ela conta a história de Giordano Bruno, que viveu e sofreu no século XVI, foi um teólogo, filósofo, cientista, escritor e frade da Ordem dos Pregadores (OP), fundada por São Domingos, mais conhecida como Dominicanos. Trata-se de um italiano que foi processado pela Inquisição, pelo crime de heresia e, por conseguinte, condenado à morte. Sua morte foi brutal. Ele foi condenando a ser queimado vivo numa fogueira.

Nesta peça teatral Morris West apresenta o lado cruel, incompreensível e antiético da Contrarreforma e do Concílio de Trento. Para ele, no século XVI, enquanto o mundo mergulhava num novo momento de experimentação da arte e do humanismo – uma experiência representada pelo Renascimento – a Igreja, oriunda do Concílio de Trento, estava com medo das mudanças socioculturais, receava inovações teológicas e via com maus olhos um intelectual como Giordano Bruno que, apesar de ser um frade fiel a Igreja, estava envolvido no projeto da nascente da ciência moderna.

Nesse contexto, segundo Morris West, a Igreja do século XVI estava mais preocupada em criar, orientar e pastorear o “homem insólito” (WEST, 1982a, p. 8), ou seja, o homem comum, sem grandes ambições na vida, e, muitas vezes, acomodado, que não questiona o poder vigente e dominante. Por isso, para Morris West a figura de Giordano Bruno oscila entre o herege e o herói. Trata-se do herege do período da transição que marca o fim da Idade Média e o início da Renascença, mas poderá ser o herói dos indivíduos que não se conformam com as normas fechadas e autoritárias, com a falta de liberdade de criação, com a monotonia do cotidiano. Um herói que extrapola o século XVI e, por diversos caminhos, chegou ao século XX.

No Herege, Morris West (WEST, 1982a, p. 7) vê a figura de Giordano Bruno, que oscila entre o herege e o herói, chegar até ao século XX. Esse século esteve marcado por multidões de indivíduos que podem ser enquadrados como homens insólitos, ou seja, submissos e obedientes às novas estruturas de repressão social e negação da liberdade. Estruturas que, ao contrário do século XVI, não estão mais vinculadas a Igreja, mas são oriundas da modernidade, da ciência, da política, da arte e do poder do Estado. Por isso, trata-se de uma atualização da Inquisição. Para Morris West, no século XX a Inquisição é atualizada por meio da burocracia do Estado, da rigidez doutrinal dos sindicatos e dos partidos políticos, no desejo, muitas vezes, cego de lucro financeiro das empresas capitalistas e na forma como a arte e a literatura estão se distanciando da vida cotidiana. Nesse contexto, emergem novos Giordanos Brunos que são hereges para o poder oficial (Estado, sindicatos, partidos políticos, empresas capitalistas, etc), mas que podem ser heróis pelo fato de trazerem um sopro de liberdade ao indivíduo comum e, muitas vezes, isolado dentro do plano social.

Conclusão

Morris West contribuiu para renovar a literatura ocidental no século XX. Com uma prosa leve, explorando mitos e lendas do Ocidente, principalmente da Europa, ele conseguiu produzir uma obra que abriu novos caminhos no fazer e na experimentação literária.

No entanto, sua grande contribuição foi ter conseguido incorporar, dentro da construção literária, duas importantes questões que envolvem o mundo contemporâneo. A primeira questão são os diversos problemas socioculturais vividos ao longo do século XX. Entre esses problemas citam-se: as duas guerras mundiais, as crises econômicas, os regimes totalitários (nazifascismo e socialismo), a guerra fria, a corrida armamentista, as ditaduras militares na América Latina, a fome e a pobreza, principalmente no terceiro mundo, a crise da família, a discriminação racial e a crise das ideologias políticas. A segunda questão é o fato de ele debater, de forma ficcional, os problemas teológicos, o papel da Igreja na sociedade contemporânea e como a própria Igreja, ao passar por um processo de renovação interna, poderá contribuir para evitar novas guerras mundiais, evitar a destruição atômica do planeta, ajudar no combate a fome, a pobreza e a corrupção, ajudar a evitar o surgimento de novos regimes totalitários e de novas ditaduras cruéis ao redor do mundo. Como a Igreja poderá ajudar no combate a discriminação racial, a encontrar o lugar para a família no mundo moderno e contribuir para retirar o sujeito moderno do estado de alienação, de paralisia, de conformismo e de vazio existencial.

Em grande medida, Morris West realiza na literatura a revolução temática, conceitual e moral, de inspiração católica, que Alfred Hitchcoock realizou no cinema. Assim como Morris West, Hitchcoock também era católico. Sua obra está carregada, como no filme Um corpo que cai, de 1958, da noção de devoção ao próximo, da ideia que os problemas psíquicos têm, em última instância, suas origens na vida moral e religiosa. Por isso, a religião não é uma simples experiência praticada por grupos sociais exóticos. Ela é uma possibilidade, uma porta para se compreender e, ao mesmo tempo, resolver os grandes dramas sociopsicológicos que atormentam o ser humano.

Por fim, afirma-se que em Morris West a literatura e a religião, uma religião de matriz cristã, se juntam para refletirem a condição do homem moderno, os problemas socioculturais do século XX e, ao mesmo tempo, apontarem para um caminho de esperança. O ser humano que emerge da obra literária de Morris West não é um sujeito pessimista, que fica paralisado diante do horror das guerras, das crises econômicas, das ditaduras militares, da fome e da discriminação social. Pelo contrário, é um sujeito que olha para frente, para o futuro. Um sujeito que tem consciência dos problemas socioculturais, mas que vislumbra um futuro melhor, uma sociedade com mais equidade e maior equilíbrio entre as estruturas de poder que, ao longo dos séculos, demonstraram serem desiguais.

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Notas

[1]Sobre o método do levantamento bibliográfico, afirma-se: “Levantamento bibliográfico, ou prospecção da informação para fins técnico-científicos, é um assunto apaixonante e relacionado à história da humanidade. [...]. Pode-se afirmar, então, que realizar um levantamento bibliográfico é se potencializar intelectualmente com o conhecimento coletivo, para se ir além. É munir-se com condições cognitivas melhores, a fim de: evitar a duplicação de pesquisas, ou quando for de interesse, reaproveitar e replicar pesquisas em diferentes escalas e contextos; observar possíveis falhas nos estudos realizados; conhecer os recursos necessários para a construção de um estudo com características específicas; desenvolver estudos que cubram lacunas na literatura trazendo real contribuição para a área de conhecimento; propor temas, problemas, hipóteses e metodologias inovadores de pesquisa; otimizar recursos disponíveis em prol da sociedade, do campo científico, das instituições e dos governos que subsidiam a ciência” (GALVÃO, 2010, p. 367). Além disso, o levantamento bibliográfico “deve estar fortemente relacionado à especificação do tema da pesquisa científica a ser realizada” (GALVÃO, 2010, p. 368) e, por isso, “encontrar informação precisa e relevante relacionada a um tema de pesquisa, em quantidade razoável a fim de que possa ser lida e analisada durante parte do tempo de realização de uma pesquisa” (GALVÃO, 2010, p. 369).

[2]Sobre a literatura ser um espaço para o debate religioso, místico e teológico, recomenda-se consultar: Rousseau (1976) e Zilles (1984).

[3]Sobre as ideias, livros, artigos, discursos e demais produções intelectuais de Carlos Lacerda, recomenda-se consultar: Lacerda (1990, 1982. 2001). Para uma análise crítica da produção intelectual e da obra política de Carlos Lacerda, consultar: Dulles (2000), Perez (2007), Delgado (2006).