Nicolas Berdiaev, o teatro russo e o simbolismo
Nicolas Berdiaev, the Russian theather and the symbolism

Ramon Maia *
* Doutorando em Teologia (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia). Email: maiaramon@gmail.com.
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Resumo
O teatro contemporâneo deve sua gênese ao Teatro de Arte de Moscou (TAM) e aos esforços de Constantin Stanislávski e Vsevolod Meierhold. A partir de suas contribuições, grandes transformações puderam ser observadas na escritura dramática e na montagem cênica que viriam transformar toda a cena teatral ocidental. Efetivamente, há um culto simbolista pela síntese de todas as artes. Os artistas buscam ultrapassar a contingência do mundo. O teatro na Rússia foi a última arte a aderir ao simbolismo. No entanto, tornou-se no mais vigoroso e representativo veículo de comunicação das aspirações simbolistas. As correntes simbolistas da época paulatinamente caminhavam em direção ao misticismo. Segundo Nicolas Berdiaev, os poetas simbolistas viviam a expectativa da visão de novas auroras. Trata-se de uma revolução a caminho e não de aguardar uma nova cultura simbólica coletiva. Esta expectativa é mais uma das formas que a eterna expectação pela era do Espírito Santo assume.

Palavras chave:Berdiaev; simbolismo; teatro; teurgia.

 

Abstract
Contemporary theater owes its genesis to the Moscow Art Theater (MAT) and to the efforts of Konstantin Stanislavski and Vsevolod Meyerhold. From his contributions, great transformations could be observed in the dramatic writing and the scenic montage that would come to transform the entire western theatrical scene. In fact, there is a Symbolist cult for the synthesis of all the arts. Artists seek to overcome the contingency of the world. Theater in Russia was the last art to adhere to symbolism. However, it has become the most vigorous and representative vehicle of communication of Symbolist aspirations. The symbolist currents of that time were gradually moving toward mysticism. According to Nicolas Berdyaev, the symbolist poets lived the expectation of the vision of new auroras. It’s a revolution on the way and not waiting for a new collective symbolic culture. This expectation is yet another form of eternal expectation of the age of the Holy Spirit.

Keywords:Berdyaev, symbolism; theater; theurgy.

Introdução

Podemos dizer que o teatro contemporâneo deve sua gênese ao Teatro de Arte de Moscou (TAM) e aos esforços de Constantin Stanislávski. A partir de suas contribuições, grandes transformações puderam ser observadas na escritura dramática e na montagem cênica que viriam transformar toda a cena teatral ocidental. Devemos ressaltar que a dramaturgia de Anton Tchekhov, trabalhada por Stanislávski, fora o embrião para a pletora de inovações iniciadas no final do século XIX. Com efeito, as novas propostas cênicas do TAM e a nova dramaturgia buscada por Stanislávski somente se tornaram possíveis graças a uma tendência estético-literária existente na sociedade russar: a escola simbolista de poesia e dramaturgia. Por sua vez, um número significativo de criadores e artistas russos foram marcados pela poesia de Rimbaud, Verlaine, Mallarmé e pelo drama de Maeterlinck, Ibsen e Strindberg. O TAM se debruçou sobre a dramaturgia simbolista, pois havia na sociedade russa do início do século XX um “crescente interesse pela vida espiritual e emocional, por aspirações e problemas universais”. (CAVALIERE, 2009, p. 224)

Havia uma dificuldade para a encenação em criar obras baseadas em conceitos abstratos e universais. No ano de 1905, as inquietações de Stanislávski o levaram a idealizar um teatro de pesquisa ou um teatro laboratório, “cujo objetivo era inovação da arte dramática com novas formas e novos procedimentos.” (CAVALIERE, p. 229) A nova sensibilidade artística exigia novas expressões, o que viria a ser obtido com a poesia simbolista. Assim, fora fundado o Teatro-Estúdio, experimental, sob a direção do ex-aluno de Stanislávski, o então ator Vsevolod Meierhold. O trabalho de Meierhold, alçado à direção artística, consistia na condução das pesquisas, orientando-as rumo “à música e aos aspectos místicos do drama simbolista.” (CAVALIERE, 2009, p. 231) Meierhold merece ser lembrado por suas atuações com os textos de Tchekhov. Seu primeiro trabalho marcante será enquanto ator do TAM, na interpretação da peça A gaivota. No TAM, ele permanecera entre 1898 e 1902. Mais tarde, trabalhara em sua própria companhia como encenador, montando Tchekhov após sua primeira ruptura com Stanislávski. É então que retorna para o TAM, dirigindo o Teatro-Estúdio como encenador. A ruptura definitiva com Stanislávski se dá no outono de 1905, quando decide não mais exercer as funções de ator.

Uma página está definitivamente virada para ele. Não somente operou sua mutação de ator para encenador, mas, além disso, ficou possuído pela ideia de uma revolução teatral a realizar. Ele desbravou um caminho inteiramente novo e não pode mais voltar atrás: agora é o possuidor de certos segredos que ele não pode deixar se perderem. Sente-se investido de uma missão grandiosa: fazer do teatro o servo de um novo culto, do qual somente ele conhecerá a liturgia. (ABENSOUR, p. 123, 2011)

Meierhold parte de Moscou para São Petersburgo onde era aguardado pelo grupo de simbolistas locais como um salvador. (ABENSOUR, p. 126, 2011) Com efeito, ele levava na bagagem uma concepção artística de montagem de peça que era simpática ao horizonte do simbolismo. Meierhold elaborou tal concepção a partir da dramaturgia de Maeterlinck. “A forma do espetáculo simbolista” deveria ter como fonte o ritual. Tratase de tentar abolir as fronteiras do visível em busca do pressentimento do eterno. O drama, assim, ganharia a forma de um teatro místico, religioso. (CAVALIERE, 2009, p. 232)

Assim, a vida humana fluirá de novo com todas as suas paixões logo que o espectador sair do teatro, e as paixões então não se mostrarão fúteis: a vida fluirá com suas alegrias, tristezas e obrigações, mas tudo isso adquirirá sentido, então teremos obtido a capacidade ou de sair da escuridão ou de superá-la sem amargura. A arte de Maeterlinck é saudável e viva. Ele conclama as pessoas à sábia contemplação da inexorabilidade do Destino, e seu teatro ganha a significação de um templo. Não é por acaso que Pastore elogia seu misticismo como o último refúgio dos fugitivos religiosos, aqueles que não desejam se dobrar ao poder temporal das igrejas, mas que também não desejam negar a fé livre no outro mundo. A resolução de questões religiosas pode acontecer em tal teatro. E então não importa o quão sombriamente pinte-se o quadro, uma vez tratando de um Mistério, ele esconde em si um infatigável apelo à vida. (MEIERHOLD, 2012, p. 75)

Os trabalhos de Meierhold se juntaram à poesia de Alexandre Blok, à literatura de Andrei Beli, à música de Alexandre Scriabin, ao pensamento estético de Viacheslav Ivanov, bem como, ao pensamento religioso de Nicolas Berdiaev. O que os unia era a busca por uma arte total, cuja qualidade seria não somente a capacidade de expressão, mas, também, a sua natureza metafísica e ontológica. Entretanto, a busca pela ruptura dos padrões artísticos não parece ser, como afirma Georges Nivat, uma exclusividade do simbolismo.

Ultrapassar as fronteiras entre as artes não é próprio ao simbolismo russo, ele herdou esta ambição do romantismo alemão, e mesmo assim, pode-se dizer que, a ambição de escapar do “finito” da arte é tão antiga quanto a própria arte. O non finito é próprio a todas as grandes artes in statu nascendi, ele é, em certos momentos, o acme que o artista procura, mesmo se seu cliente procura o finito: então o esboço estará para o artista assim como a obra finita para o cliente do artista. (NIVAT, p. 569, 2004)

Efetivamente, há um culto simbolista pela síntese de todas as artes. Os artistas buscam ultrapassar a contingência do mundo, expressa na visualidade e na individualidade. Para tanto, a música seria o meio mais sublime de expressão, pois “estaria mais próxima do ritmo primordial e do ato mágico (‘teúrgico’), de simbolizar”. (CAVALIERE, 2009, p. 234) O pensamento de Nietzsche, Schopenhauer e Richard Wagner marcam bastante fortemente o simbolismo russo. O teatro na Rússia foi a última arte a aderir ao simbolismo. No entanto, tornou-se no mais vigoroso e representativo veículo de comunicação das aspirações simbolistas. Arlete Cavaliere enumera cinco pontos fundamentais partilhados por este novo programa artístico e filosófico da cena russa do início do século XX.

1. a mesma luta contra o positivismo;
2. a busca de um novo renascimento diante da estagnação dos anos 1880-1890;
3. os pressentimentos escatológicos;
4. a busca de novos valores dentro do inacessível, do invisível, do desconhecido e de outros mundos em oposição à morna banalidade da realidade;
5. o desejo de criar uma arte sintética que englobe todos os ramos da criação: religião, filosofia, literatura, música, arquitetura, pintura e escultura. (CAVALIERE, 2009, p. 235)

Podemos dizer que os simbolistas russos foram, efetivamente, buscadores do Absoluto. Para eles, o teatro, a propósito, não era um mero entretenimento, senão estava ligado aos destinos da Rússia. O drama representado no palco estava ligado à religião. A postulação de uma encenação ritualística evocava uma “unanimidade religiosa” tal como na Antiguidade Clássica. (CAVALIERE, p. 236, 2009) Berdiaev nomearia esta geração de artistas de “Idade de Prata” em referência ao que seria Idade de Ouro da arte russa no século XIX. “A Idade de Prata”, segundo Berdiaev, estaria localizada no contexto no renascimento cultural russo do início do século XX. Filósofos, entre os quais Berdiaev, poetas, críticos, atores e diretores, entre os quais Meierhold, costumavam se reunir, em encontros denominados “Quartas-feiras”, no apartamento petersburguês de Ivanov conhecido como “A torre”. Nas reuniões, não só se discutia filosofia, teatro e religião, como também, esquetes e algumas cenas eram montados, como bem o fizeram Meierhold e Ivanov. Berdiaev nos oferece um depoimento sobre esta época.

As “Quartas-feiras” de V. Ivanov caracterizaram marcadamente o renascimento russo. O aparamento que ocupava no 7° andar, em frente ao Jardim Tauride, era chamado “A Torre”; lá se reuniam a todas as quartas-feiras, os mais importantes poetas, filósofos, sábios, pintores, atores, por vezes, também, políticos. Aconteciam conversas as mais refinadas sobre temas literários, filosóficos místicos, ocultos, religiosos e sociais, mas também, algumas delas contraditórias. Durante três anos, presidi, invariavelmente, estas reuniões. V. Ivanov não admitia que eu pudesse faltar uma quarta-feira e não presidir o “simpósio”. (BERDIAEV, p. 197, 1992)

Na quarta-feira do dia 3 de janeiro de 1906, ocorrera a reunião que visava à fundação do teatro As tochas. A reunião contava com as especiais participações de Meierhold e Máximo Górki. Este novo teatro buscava a ruptura com o naturalismo por meio de uma revolução. As ideias oscilavam entre a concepção de que o teatro deveria causar “uma nova percepção do real” até a ideia que ele deveria “conduzir a uma lutra fratricida, em vista da tomada do poder, para regenerar a sociedade corroída”. (ABENSOUR, p. 129, 2011) Para Meierhold, seria necessário que este projeto inovador, concebido, também, por Ivanov, possuísse um caráter imperativo, mais exatamente, ele deveria ser dado a conhecer para todas as pessoas. Além disso, seria preciso dotar As tochas dos contornos da sacralidade e da revolta. (ABENSOUR, p. 129, 2011)

Arlete Cavaliere afirma que Viacheslav Ivanov apostava na possibilidade e na necessidade da “substituição da religião e da Igreja pela arte do teatro”. (CAVALIERE, 2009, p. 236) Esta atitude substituidora seria uma contrapartida à perda da fé pela humanidade. O projeto teatral de Ivanov acentuava a dimensão ritualística, evocando a “tragédia clássica” e os “mistérios medievais”. (CAVALIERE, 2009, p. 236) Ele esperava com esta nova representação cênica inspirar a criação de uma nova e autêntica “sobornost”. “Sobornost” é uma expressão de difícil tradução para o português. Seu sentido mais aproximado seria o de “conciliariedade” ou “interpessoalidade”. No interior da “sobornost”, haveria uma plena comunhão entre as pessoas com o consequente respeito a liberdade de cada uma delas. Berdiaev elaborou um juízo bastante crítico acerca da época que pertencera.

Para V. Ivanov, o cristianismo quase se identificava com o dionisismo. Ao mesmo tempo, a cultura orgânica, contrária à cultura cética e civilizadora se desenvolvia. Os artistas criadores recusavam a liberdade individualista desligada da vida universal. Era uma época de grande liberdade criadora, mas a atividade criadora parecia mais buscada que a própria liberdade. Uma elite cultivada isolada, reduzida aos seus próprios recursos, separada da vida popular, encontrava aqui sua compensação. A sede ardente de uma cultura geral, orgânica, coletiva e comunitária nascia num atmosfera de estufa. Entretanto, nenhum dos promotores deste movimento consentia com uma limitação de sua livre criação em nome de um coletivo real. (BERDIAEV, p. 193, 1992)

Diferentemente do Ocidente, o coletivismo é constitutivo do destino trágico da Rússia. Se o individualismo é fruto do humanismo europeu, já, entre os russos, as ideias coletivistas floresceram no populismo, de esquerda e direita, nas tendências sociais e religiosas e no cristianismo ortodoxo. Em todas estas correntes, a ideia de “sobornost” está presente. Dostoiévski a coloca ao lado dos “problemas dos conflitos entre a pessoa e a harmonia universal”. (BERDIAEV, p. 194, 1992) Para Berdiaev, o comunismo russo é uma contrafação da “sobornost”, pois aniquila a “liberdade criativa” e cria “a cultura da comunidade social, subordinando, exteriormente, toda vida social ao coletivo mecânico e organizado”. (BERDIAEV, p. 194, 1992) Viacheslav Ivanov, por sua vez, propugnava uma revolução cultural a níveis mundiais por meio do teatro. A representação cênica era dotada, segundo ele, do poder de realização da “sobornost”. Trata-se da celebração de um novo culto. A Igreja perdera a capacidade de efetivação da comunhão entre os homens. Somente o teatro poderia fazê-lo.

Não será difícil entender que, para este “novo teatro”, a caixa cênica deve desaparecer para dar lugar à “re-união” entre espectadores e atores. A arena aberta no estilo cênico dos antigos gregos poderá promover essa espécie de liturgia majestosa, combinando os mistérios antigos com a adoração divina. Coros, dançarinos e música congregariam todos os participantes numa comunidade espiritual e numa purificação irracional e elementar. (CAVALIERE, p. 237, 2009)

Ivanov apostava em uma “ação dionisíaca” que exerceria um importante papel nas concepções de Meierhold sobre o que, anos mais tarde, seria conhecido como Teatro de Convenção. Segundo Berdiaev, o dionisismo literário na Rússia deve, de modo necessário, ser identificado com o nome de Ivanov que pretendeu “criar uma imitação do ‘mistério dionisíaco”. Na verdade, sua expectativa era a de “suscitar a exaltação extática e operar uma abertura na rotina banal por meio de uma dança coral”. (BERDIAEV, p. 199, 1992) O problema, segundo Berdiaev, é o contraste entre a elite cultivada e o desenvolvimento da Revolução de 1905 e de 1917. Mais exatamente, embora houvesse “uma ligação subjacente entre o elemento dionisíaco da revolução e aquele da literatura”, o “anarquismo místico”, do qual Ivanov era adepto, em nada se assemelhava ao movimento social da época. (BERDIAEV, p. 198, 199, 1992) O anarquismo místico era um corrente em voga nos meios literários e artísticos. Por meio dele, se afirmava um “evangelho da ‘não-aceitação do mundo’”, buscando-se refúgio no estético. (BERDIAEV, p. 195, 1992) Enquanto especialista na religião de Dioniso, Ivanov dizia, segundo Berdiaev, que:

o dionisismo era para Nietzsche um fenômeno estético, enquanto que para ele, Ivanov, um fenômeno religioso. Ora, o próprio Ivanov não saberia ser definido como uma natureza dionisíaca. Para usar da terminologia romântica, ele era menos uma “natureza” que uma “cultura”. Sua vida refletia as culturas do passado. Ele não era nada mais nada menos que um ser revolucionário. A dualidade que constatamos entre os militantes do renascimento cultural antecipa a dualidade manifesta da revolução comunista em que é difícil de distinguir a luz das trevas e o bem do mal. (BERDIAEV, p. 199, 1992)

Não podemos dizer, diante deste quadro, que o simbolismo russo se reduz a um estetismo. Ao contrário, devemos ressaltar que as pesquisas estéticas no seu bojo conduziam, cada vez mais, a um misticismo, ainda que distante do movimento social da época. Se Ivanov era, de fato, um revolucionário, ele o era no campo da teoria do simbolismo. Entretanto, as correntes simbolistas da época paulatinamente caminhavam em direção ao misticismo. Berdiaev pontua que o símbolo é o laço “entre dois mundos, o signo do outro mundo neste mundo”. (BERDIAEV, p. 237, 1969) O homem, na verdade, se encontra lançado na natureza e no mundo das contingências. Ele é um ser “desprovido de sentido e profundidade” se concebido somente como ser natural. (BERDIAEV, p. 68, 1984) Tomando-o assim, como fragmento ou acidente do universo, “não se pode descobrir o Logos”. Somente a compreensão de que o homem é a imagem ou o símbolo do ser divino poderá nos fornecer sua “significação precisa” e seu “sentido absoluto”. Os processos naturais parecem bastante contestáveis para a demonstração do sentido da existência. Sua descoberta se deve, de modo exclusivo, a uma “consciência simbólica” que vive uma experiência espiritual. (BERDIAEV, p. 68, 1984)

A concepção e a contemplação simbólicas do mundo são as únicas profundas, as únicas que fazem ressentir e prever o abismo misterioso do ser. Toda nossa vida natural daqui de baixo só tem sentido quando é simbolicamente santificada; mas tanto se pode estar consciente desta santificação da vida, como se pode estar sem consciência sobre ela. (BERDIAEV, p. 68, 1984)

O simbolismo deverá ser do tipo realista para que seja autêntico. Dessa maneira, ele conectará dois mundos sinalizando “a existência do mundo espiritual e do mundo da realidade divina”. (BERDIAEV, 69, 1984) Símbolos não são meros índices da “vida afetiva do homem”, mas “signos indispensáveis da vida original”. Devemos nos perguntar, assim, se a realidade material, a “carne do mundo”, não fica, dessa maneria, relegada a um segundo plano, mais exatamente, desprovida de qualquer sentido. Na verdade, ela não é uma “ilusão subjetiva”, mas, sim, “uma incarnação simbólica das realidades espirituais”. (BERDIAEV, p. 70, 1984) Se assim o for, a experiência espiritual deve repousar sobre o simbolismo realista, o que a torna não mais subjetiva do que objetiva. “A consciência simbólica absorve o sujeito e o objeto em uma profundidade infinitamente maior.” (BERDIAEV, p. 70, 1984) As realidades ditas objetivas não possuem, portanto, o estatuto de realidade primária, pois são simbólicas. Da mesma, forma, as realidades afetivas, as do sujeito, também são secundárias, uma vez que, estão sob a forma de signos. (BERDIAEV, p. 70, 1984)

A abertura da carne do mundo pode ser demonstrada com a incarnação de Deus, com a vinda do Seu Filho. Trata-se, propriamente, de uma “infiltração do infinito no finito”, ou mais exatamente, de uma “penetração do mundo espiritual no mundo natural”. (BERDIAEV, p. 73, 1984) A graça vence o pesadume do mundo ligando-o a outro. A vinda de Cristo, segundo Berdiaev, não visa fechar a carne ou santificá-la “de maneira absoluta”, senão objetiva “iluminá-la e transfigurá-la”. (BERDIAEV, p. 74, 1984) De tal maneira que, podemos dizer, o nascimento de Cristo, sua Vida, sua Morte e sua Ressurreição são um “símbolo único, central, absoluto do evento do mundo espiritual, da vida espiritual interior.” (BERDIAEV, p. 74, 1984) Nós, enquanto seres lançados na contingência do mundo, somos libertados por este símbolo, afinal, a realidade material em que vivemos é um “reflexo”, uma “imagem” do espírito.

Tudo o que nomeamos natureza não é uma realidade em si mesma, mas uma realidade simbólica, um reflexo dos caminhos luminosos do mundo espiritual. O endurecimento da carne do mundo é tão somente o signo das quedas que acontecem no mundo espiritual. Mas a iluminação da carne, manifesta pela vida terrestre do Filho de Deus, é o índice de uma ascensão realizada no mundo espiritual. (BERDIAEV, p. 74, 1984)

Berdiaev não postula que a carne seja uma ilusão ou um engano. Sua especificidade reside no fato de ser um “reflexo simbólico das realidades do mundo espiritual”. (BERDIAEV, p. 74, 1984) A carne pode transferir energias para o mundo espiritual. A propósito, há, efetivamente, uma aliança, uma “transfusão” de energias entre os dois mundos contidas no signo simbólico. Assim, o símbolo nos mostra algo do mundo e do homem. Ele também revela algo de Deus, na medida em que, “nos assinala a passagem da energia divina na vida deste mundo natural”. Ao mesmo tempo, o símbolo vela, “protege sempre o mistério infinito”, afirmando a desmedida entre a vida do mundo a vida do espírito. Por outro lado, por meio do símbolo, a realidade do mundo se torna permeável à penetração de Deus e do Espírito. Com efeito, a concepção simbólica:

não considera o mundo natural como não divino, mas vê, ao contrário, nele signos do mundo divino, reflexos dos eventos, das quedas e das ascensões da vida espiritual. A ordem natural não é eterna e imutável, ela só exprime um momento simbolizador da vida do espírito. Por consequência, forças podem nascer da profundeza do espírito que transfigurarão e libertarão da potência que o escraviza. (BERDIAEV, p. 75, 1984)

O simbolismo, enquanto corrente artística e literária, é formado por membros capacitados a perceber “a realidade espiritual escondida atrás desta realidade visível”. (BERDIAEV, p. 237, 1969) Com efeito, a arte não cria um ser novo, senão seu signo, mais propriamente, seu símbolo. “A realidade última só pode se exprimir na arte de uma maneira simbólica”. (BERDIAEV, p. 306, 1955). Há, na verdade, uma impossibilidade de tocar o essencial por meio da arte. O simbolismo, desse modo, mostra, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. Trata-se da “tragédia eterna de toda criação humana que concebe o universal, mas não o captura”. (BERDIAEV, p. 306, 1955) Não há possibilidade de o símbolo acessar a realidade essencial, nem empírica, nem misticamente. Símbolos monetários, por exemplo, não tocam a potência efetiva do homem sobre a natureza, potência, com efeito, que “não seria econômica”, mas “teúrgica”. (BERDIAEV, p. 307, 1955)

Existe, portanto, um simbolismo em toda criação humana: o simbolismo é a criação não acabada, que não alcançou sua meta última, incompletamente realizada. A arte deve ser simbólica e a arte mais elevada será mais carregada de símbolos. Mas o simbolismo não pode ser a solução da criação artística. Para além do simbolismo, há o realismo místico; para além da arte, há a teurgia. O simbolismo é um caminho e não, a meta final, - um ponto em direção à criação do novo ser, não este ser. No entanto, ele é eterno porque toda forma de arte autêntica é um caminho em direção a uma essência nova, um ponto em direção a um outro mundo. (BERDIAEV, p. 307, 1955)

Enquanto tendência artística de um período histórico, o simbolismo aponta para o novo na criação humana. Os simbolistas renunciam a este mundo, de modo que, se tornam “precursores de uma vida nova na criação, uma vida trágica e sacrificada”. (BERDIAEV, p. 308, 1955) Vindo à tona em um período de crise cultural, o simbolismo rejeita aquilo que conhecemos como “vias médias”, elegendo sempre o “extremo”, o “último”. Vida e obra se confundem, o que faz com que poetas, dramaturgos, músicos e teóricos se devotem integralmente à criação artística. Considerando o profetismo dos simbolistas, ao anunciar uma nova época de criação humana e o destino sacrificial de suas vidas, podemos dizer que o simbolismo porta em si mesmo “a tragédia imanente a toda criação cristã”. (BERDIAEV, p. 308, 1955)

O sentido mais próprio da comunhão na “sobornost” e da “ação dionisíaca” está conectado profundamente ao programa estético-filosófico do simbolismo cuja pedra angular é o desejo profundo e ardente de contemplar “a beleza do cosmos transfigurado”. (BERDIAEV, p. 237, 1969) Com efeito, este período do renascimento cultural do início do século XX é uma das épocas mais importantes da história da Rússia. Tratava-se não só de uma era “exaltação criativa” da literatura, filosofia, da teologia, das artes, mas também de um período de grandes pressentimentos.

A alma se abria aos sopros místicos, positivos e negativos. Nunca existiu entre nós tantas tentações e tanta confusão. A alma russa foi invadida pelo pressentimento das catástrofes iminentes. Os poetas não contemplavam somente as auroras futuras, mas também pela horrível ameaça pesando sobre a Rússia e sobre o mundo inteiro (Blok, Beli). Os filósofos religiosos eram penetrados por uma atmosfera apocalíptica. As profecias do fim iminente do mundo não significavam, sem dúvida, a aproximação do fim do mundo, mais, sobretudo, aquele da antiga Rússia imperial. (BERDIAEV, p. 208, 209, 1992)

O renascimento cultural, em que o simbolismo está localizado, se desenvolve no contexto da Revolução de 1905, da Grande Guerra e da Revolução de 1917, portanto, em um ambiente de instabilidade. “Não somente a Rússia, mas, também, o mundo inteiro se liquefazia.” (BERDIAEV, p, 209, 1992) O fato é que os russos são um povo dotado de peculiaridades históricas. Além de possuir um sentimento apocalíptico da vida, eles carregam consigo uma expectativa pelas catástrofes que sempre estiveram ligadas “a uma grande esperança”. (BERDIAEV, p. 209, 1992) A despeito de seu isolamento no interior das classes cultivadas, os poetas simbolistas estavam orientados em direção ao futuro, esperavam a vinda de “eventos sobrenaturais”, o que significa dizer que, “a literatura e poesia neste início do século tiveram um caráter profético”. (BERDIAEV, p. 238, 1969)

Os simbolistas, graças a sua extrema sensibilidade, sentiam que seu país corria para a catástrofe, que a velha Rússia estava condenada e que surgiria uma nova Rússia ainda desconhecida. Como Dostoiévski, eles sentiam preparar uma revolução interior. No século XIX e no século XX, se assiste, no seio da classe cultivada, a uma rápida mudança de gerações e mentalidades; a eterna querela de filhos e pais é própria à Rússia. (BERDIAEV, p. 238, 1992)

Os poetas simbolistas viviam a expectativa da visão de novas auroras. Trata-se, mais exatamente, de uma revolução a caminho e não, apenas, de aguardar, tão somente, “uma nova cultura simbólica coletiva”. Esta expectativa por auroras, acredita Berdiaev, é somente mais uma das formas que a “eterna expectação pela era do Espírito Santo” assume. (BERDIAEV, p. 238, 1969) Cristo não aparece, exatamente, na poesia simbolista russa, pois não é o Logos, mas é o Cosmos o objeto da visão do poeta. O Cosmos, com efeito, é transfigurado pela Sofia, a sabedoria divina. Entretanto, Ele anula a pessoa, a despeito das individualidades permanecerem marcantes. (BERDIAEV, p. 140, 141, 1969)

O fato é que o povo russo é um povo messiânico. Berdiaev indica a existência de um quiliasmo fundamentalmente russo. O povo russo “procura o reino de Deus, e ele espera, após a grande provação e os sofrimentos do grande julgamento de Deus, o triunfo da justiça divina”. (BERDIAEV, p. 209, 1992) Há um, contudo, um cisma no interior da história russa. Este cisma progride a partir do século XIX e lança o renascimento do século XX no abismo. Trata-se da grande separação entre classes cultivadas e as esferas populares. Neste sentido, podemos dizer que a Revolução de 1917 foi “progressista do ponto de vista social” e reacionária do ponto vista cultural”, uma vez que, os criadores do renascimento cultural foram perseguidos, após 1917, pelos bolcheviques. Se a ideologia da Revolução, com efeito, era “retrógrada”, a própria Revolução foi o “castigo” para a “indiferença social” dos “promotores da cultural espiritual”. (BERDIAEV, p. 210, 1992)

Finalmente, devemos dizer que, para Berdiaev, o simbolismo permanece, ainda, limitado aos quadros da cultura, fundamentalmente, pelo fato de o produto de sua criação serem signos, obras artísticas do tadas de valor. O estatuto da arte simbólica não é negado, ele é afirmado enquanto caminho em direção à teurgia porque toda arte nova conduz a ela. (BERDIAEV, p. 316, 317, 1955) Da mesma forma, o projeto de Richard Wagner da Gesamtkunstwerk não corresponde ao que Berdiaev concebe como arte teúrgica, uma vez que, mesmo a concepção de uma obra de arte de total não escapa de sua realização enquanto peça. A teurgia, por sua vez, ultrapassa a cultura. A arte teúrgica é um tipo de arte que cria “um mundo diferente, uma outra vida e a beleza enquanto existente”. (BERDIAEV, p. 316, 1955) A literatura, por exemplo, deixa de ser palavra para se tornar carne. A arte teúrgica, por sua vez, não é simbólica, não possui um valor cultural, pois visa a produção de um novo ser. Para Berdiaev, tal arte “foi anunciada por toda a grande literatura da Rússia”. (BERDIAEV, p. 320, 1955)

O problema da arte enquanto teurgia é, por excelência, o problema russo, e corresponde à tragédia russa da criação. No artista teúrgico se realiza a potência do homem sobre a natureza exercida através da beleza. Pois a beleza é a grande força e é ela que salvará o mundo. (BERDIAEV, p. 320, 1955)

A teurgia, característica da literatura russa, não é, exatamente, uma figura do esoterismo ou da magia. Não estando no domínio da cultura, ela é definida, fundamentalmente, como a “ação do homem conjuntamente àquela de Deus”. (BERDIAEV, p. 317, 1955) Trata-se de uma colaboração teoantrópica. Talvez, o vocábulo mais exato para representar tal relação seria “sinergia”, pois se trata do concurso conjunto das energias humanas e divinas. Enfim, a teurgia, enquanto, continuação da obra divina, terá início no Oitavo Dia da Criação.

BIBLIOGRAFIA

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