Profano-Cotidiano-Sagrado: A Poesia de Adélia Prado em Diálogo com Mircea Eliade
Profane-Daily Live-Sacred: The Poetry of Adélia Prado in Dialogue with Mircea Eliade

Rodrigo Portella*
Ana Lúcia de Araújo Portes **
* Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Brasil. Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: rodrigo@portella.com.br
**Graduada em Psicologia - Formação do Psicólogo e Licenciatura pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2004). Especialista em Ciência da Religião (UFJF-2015) graduanda em Ciência da Religião (licenciatura) UFJF e Mestra em Ciência da Religião - UFJF (Abril - 2018)
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Resumo
O artigo tem por intuito apresentar o cotidiano esboçado na obra literária da poeta mineira Adélia Prado, e como este se torna um lugar, um espaço em que o sagrado se manifesta. A força motriz do artigo é a observação de como a poesia adeliana é capaz de transmitir a sensibilidade de quem é capaz não só de encontrar a sua própria vontade de vida, mas também perceber a vontade de vida nas coisas, nas pessoas e nos acontecimentos cotidianos. O objeto de estudo é a obra Poesia Reunida de Adélia Prado, publicada em 2015 em comemoração aos 80 anos da autora. O foco é a seleção de algumas poesias que revelam de forma mais direta o cotidiano, e o embasamento teórico para sua compreensão é buscado no historiador das religiões Mircea Eliade. Na poética adeliana o sagrado perpassa todas as dimensões da existência humana. Desta forma os acontecimentos cotidianos, os mais simples e corriqueiros, são encantados pelo toque da poesia referenciada pelo sagrado. Cabe-nos, então, perguntar em que medida o entrelaçamento entre sagrado e profano tem semelhanças e divergências relativamente às teorias de Mircea Eliade. Enfim, o presente artigo quer ser modesta introdução ao tema, sem, é claro, esgotá-lo.

Palavras chave:Adélia Prado, Sagrado, Cotidiano, Mircea Eliade.

 

Abstract
The article intends to present the quotidian sketched in the literary work of the mining poet Adélia Prado, and how it becomes a place, a space in which the sacred is manifested. The driving force of the article is the observation of how poetry is capable of transmitting the sensitivity of those who are capable not only of finding their own will to live, but also of perceiving the will to live in things, in people and in daily events. The object of study is the work Poesia Reunida de Adélia Prado, published in 2015 in commemoration of the author’s 80 years. The focus is the selection of some poems that reveal the daily life more directly, and the theoretical basis for its understanding is sought in the historian of the religions Mircea Eliade. In the poetics of adeliana the sacred pervades all the dimensions of human existence. In this way everyday happenings, the simplest and most ordinary, are enchanted by the touch of poetry referenced by the sacred. It may be asked, then, to what extent the intertwining between sacred and profane has similarities and divergences from the theories of Mircea Eliade. Finally, the present article wants to be a modest introduction to the theme, without, of course, exhausting it.

Keywords:Adélia Prado, Sacred, Daily life, Mircea Eliade.

Introdução

O presente artigo tem por intuito apontar pontos semelhantes e também distintos entre a noção de sagrado, profano e cotidiano, a partir dos estudos realizados por Mircea Eliade, em relação à escrita poética adeliana, por meio de uma análise comparativa.

Esta análise será feita a partir de definições trazidas por Eliade, comparando as mesmas com as temáticas abordadas na poética adeliana que foram priorizadas nesta pesquisa: sagrado e Cotidiano.

Ao longo de seus estudos Eliade concluiu que o conjunto de práticas e crenças religiosas direcionadas ao sagrado se contrapõe ao profano. Este buscou apontar, entretanto, por meio de exemplificações, como vestígios do homem religioso podem ser encontrados nas situações mais banais do cotidiano. No nosso contexto podemos encontrar esses vestígios em exemplos como: bater na madeira para isolar a má sorte ou tapar a boca ao dizer algo ruim, dar três pulinhos quando se quer achar algo perdido, não passar embaixo de escada, fugir de gato preto em sexta feira 13, dentre tantas outras superstições que envolvem as crenças religiosas e populares. Desta forma o sagrado poderia ser percebido em situações pontuais do dia-a-dia do sujeito.

Na escrita adeliana, o sagrado seria o que dá luz e sentido ao profano. O extraordinário se manifesta no ordinário da vida, nas mais variadas situações. É o olhar diante do mundo e dos acontecimentos corriqueiros que permitem que o indivíduo vivencie o que há de mais belo e sublime, enfim:

O cotidiano é o grande tesouro! Admirar-se daquilo que é natural é que é o bacana. A alma, criadora, criativa, sensível, um belo dia se admira de algum ser como a água. A vida é extraordinária. Admirar-se do que é natural, só quem está cheio do Espírito Santo. É outro olhar. O mundo é magnífico! Todos nós queremos no nosso “currículo da vida” um ato heroico, às vezes o ato mais heroico da nossa vida é o mais anônimo, é o mais silencioso, que só Deus sabe. Isso que é a maravilha! O cotidiano pra mim tem esse aspecto de maravilha, de tesouro (apud COSTA JR., 2012, p. 04).

A construção poética adeliana buscará unir, religar, o humano com o divino através da manifestação do sagrado no cotidiano, para que este “real” hierofanizado, se encarne nas situações corriqueiras e “aparentemente” profanas. Esta forma de escrita revela a iluminação e inspiração poética, que fala a todos indistintamente, traz a ruptura entre o que parece vulgar e sem valor, pois, tudo que nos cerca é passível de ser poetizado (ARAÚJO, 2011, p.26). Corroborando com esta tese, Suttana expõe:

Se a poesia se permite superpor o sagrado ao profano ou fazer com que o próprio sagrado se manifeste como profano poderemos entrever, que a poesia de Adélia Prado se desenvolve, desde seu início, não tanto como manifestação de uma coisa ou de outra – seja do sagrado ou do trivial –, mas do superior mistério que as enlaça e justapõe. Isto é, ela “traz à luz” o mistério em si, em sua forma mais pura, que o poeta experimenta a cada passo com inquietude e espanto (SUTTANA, 2015, s/p).

Adélia e Eliade: a um tempo distantes e próximos

Para Eliade (2001, p. 20) “consiste a manifestação do sagrado em oposição ao profano, mesmo que os objetos do mundo profano possam ser tomados como manifestação do sagrado, passando assim a uma existência real, poderosa, rica e significativa”. Sobre este aspecto o autor nos esclarece que qualquer ato entendido como puramente fisiológico, a exemplo da sexualidade, para um ser religioso pode tornar-se um ‘sacramento’, quer dizer uma comunhão com o sagrado.

A elaboração eliadiana elucidada acima se aproxima da postura adeliana, visto que todos os aspectos, coisas e seres que rodeiam o ser humano são passíveis de hierofanização, a serem vistos como atos e/ou momentos sagrados? Adélia vê a dimensão sagrada do mundo em seu cotidiano, local onde tudo que ela sente esbarra em Deus. Uma presença que pode ser encontrada em todos os cantos e lugares de sua existência, demonstrando assim o aspecto religioso que permeia a sua obra.

Talvez corroborando esta forma de pensamento sobre a experiência religiosa, Eliade pontua que o indivíduo religioso está exposto a uma série vasta de experiências, denominadas de “cósmicas”. “Essa experiência é sempre religiosa, pois o universo seria concebido como algo sagrado” (ELIADE, 2001, p. 29).

Em Adélia poesia e experiência religiosa são indistinguíveis e inseparáveis. Sua poesia não é religiosa pelo tema, mas pela sua natureza, pela forma como é descrita e pela forma como o sagrado se revela e é costurado nos meandros de seus versos. Em entrevista, Adélia ainda diz: “Para mim, experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só” (Cadernos de Literatura Brasileira, 2000, p. 23).

Adélia, quando indagada em entrevista sobre a poesia ser uma forma de a poeta se ligar ao divino, responde:

A religiosidade está presente desde meu primeiro livro. O sofrimento e a alegria continuam os mesmos, mas é uma poesia feita de uma experiência mais próxima da realidade. Apesar disso tudo, o livro está cheio de esperança. A poesia é serva da esperança, ela pousa na alegria e na dor, é um fenômeno divino e transcendental (PRADO Apud CUNHA, Metro, 2014).

Adélia expõe, ao longo de seus poemas, questões próprias do cristianismo através de um olhar feminino do cotidiano, possibilitando uma nova forma de abordagem e de compreensão do mesmo, pois que

A poesia é o instrumento que possibilita a compreensão da experiência religiosa do eu-poeta com Deus no espaço atemporal cognoscível e sensível, para além das amarras racionais do pensamento humano. A experiência com o catolicismo é antes de tudo o fio que conduz aos momentos inesperáveis em que o universo ficcional de Adélia Prado percebe a presença de Deus (apud COSTA JR, 2012, p. 193).

Desta forma, a poesia é a forma primaz utilizada para revelar o sagrado em meio ao profano do cotidiano, conforme veremos no próximo tópico.

A religiosidade está presente na obra de Adélia desde seu primeiro livro intitulado Bagagem. Para Adélia “a poesia é serva da esperança”, ela repousa na alegria e na dor, é da ordem sobrenatural, é divina. Em entrevista Adélia diz:

Eu acho que Deus é também uma projeção humana. É um desejo infinito que nós temos de adoração, e de algo que nos suspende com o sentido absoluto. Nós somos finitos e relativos, e queremos sempre uma coisa absoluta: que esse café maravilhoso não acabe, que a minha paixão não acabe, que essa casa bonita permaneça. A gente tem sede de infinito e de permanência. Então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto (apud CUNHA, 2014, s/p).

Para Adélia a obra verdadeira é sempre renovada e vem de uma inspiração transcendente. A arte é para ser sentida e tocada com a inteligência do coração e não com a inteligência lógica. O que importa não é a fala, mas como algo está sendo falado. A arte não escolhe enredo, ela é democrática, fala de absolutamente tudo porque “qualquer coisa é a casa da poesia” (apud ALMEIDA, 2012, s/p).

Já para Eliade, o sagrado e o profano coexistem e devem ser entendidos em contraposição, não havendo nada sagrado considerado em seu estado “puro”; desta forma pode-se compreender que nada é de todo profano? O sagrado, quando interpretado pelo homo religious, é algo de fora deste mundo, à parte da realidade objetiva e subjetiva, sendo possível se manifestar apenas através do lugar ou objeto profano que traz à tona aquilo que é imediato, humano, natural e mundano. Da mesma forma o universo profano é atravessado ao tomar em si aquilo que é próprio do sagrado em seu ser, meio, espaço e lugar (ELIADE, 2001, p. 27). Ao diálogo entre sagrado e profano que atravessa a existência Eliade nomeia de hierofania:

Um objecto ou uma acção adquirem um valor e, deste modo, tornam-se reais, porque de qualquer forma participam de uma realidade que os transcende. Entre muitas outras pedras, uma torna-se sagrada - e, por consequência fica imediatamente impregnada de ser, porque constitui uma hierofania, ou porque possui um maná, ou porque a sua forma reflecte um certo simbolismo, ou ainda porque comemora um acto mítico, etc. O objecto surge como um receptáculo de uma força exterior que o diferencia do seu meio e lhe confere significado e valor (ELIADE, 1969, p. 18).

A manifestação do sagrado na rememoração

Em Adélia a vivência torna-se relato de experiência traduzida em poesia, à medida que nesta sua intimidade é partilhada com o leitor, que poderá relacionar ou não aquilo que lê com o próprio autor.

A vivência religiosa da autora é um elemento que se faz presente em suas recordações e versos. Segundo Adélia: “a religiosidade serve para mantê-la forte, cumprindo sua sina de escrever aquilo que vê, vive e sente” (apud CAPELLARI, 2013, p. 68).

A religiosidade funciona como elo entre cotidiano e poesia. Há, no eu lírico, uma sensível percepção dos pormenores e de tudo que aos demais se apresentam de forma fugaz. O cotidiano é calmamente explorado, recebendo por isso um registro muitas vezes surpreendente. Em Tulha, o eu lírico afirma:

Vale a pena esperar, contra toda a esperança, o cumprimento da Promessa que Deus fez a nossos pais no deserto. Até lá, o sol-com-chuva, o arco-íris, o esforço de amor, o maná em pequeninas rodelas, tornam a vida boa (PRADO, 2015, p. 119).

No poema Adélia faz referência à passagem bíblica de Êxodo 16, presente no Antigo Testamento. Em Tulha, o eu lírico poderia citar qualquer tipo de alimento, porém o “maná” foi o alimento enviado por Deus e que serviu de sustento ao povo que seguiu pelo deserto, juntamente com Moisés, rumo à terra prometida. Assim reforça-se, na escolha do termo, a religiosidade presente na obra adeliana, assim como a recorrência, em seus versos, daquilo que remete ao sagrado. O termo “tulha” refere-se ao lugar onde são guardados os cereais (muito comum em cidades interioranas, principalmente nas zonas rurais, muitas vezes chamada de “tuia”) que proverão e sustentarão aqueles que estão na jornada da vida, tal como o fez o maná no deserto. A poeta lança ao leitor um convite para que armazene em seu interior, tal como faz a tulha, o alimento espiritual que o auxiliará nas batalhas e desafios cotidianos.

Em contrapartida, para Eliade (1993, p. 18) tudo aquilo que recebeu o toque do homem e que foi revestido de sentimento pode tornar-se uma “hierofania”, ou seja, os gestos, as danças, as brincadeiras das crianças, tudo isso têm uma origem religiosa, pois, foram em algum período histórico tido como rituais ou objetos cultuais. O mesmo ocorreria com os gestos cotidianos (o levantar-se depois da noite dormida, o caminhar, o correr) as diferentes atividades (caça, pesca, agricultura), os atos fisiológicos (alimentação, vida sexual); desta forma cada gesto da vida humana poderia transformar-se em hierofania. Ou seja, aquilo que a memória fixou como primordial e revelador da vida do indivíduo, através da lembrança, torna-se sagrado e sacralizador de um tempo, ou espaço1, conforme pode ser corroborado no poema a seguir:

A Pintora
Hoje de tarde pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas e comecei a chorar, até me lembrar de que podia falar sem mediação com o próprio Deus daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza. Me agarrei aos seu pés: Vós sabeis, só Vós. O bagaço da laranja, suas sementes Me olhavam da casca em concha. Na mão seca. Não queria palavras pra rezar, Bastava-me ser um quadro. Bem na frente de Deus. Para Ele olhar (PRADO, 2015, p. 420).

A ideia exposta por Eliade (2001, p. 82) de que a passagem de um tempo profano para um tempo sagrado realiza-se através dos ritos, na atualização de um tempo mítico, não se mantém sempre no universo adeliano. O tempo sagrado em Adélia, na maior parte das vezes, se faz presente independente de mediações rituais. O contato entre Deus e o eu-lírico é feito por meio do abandonar-se diante de Deus, numa relação de entrega e de acolhimento como pode ser observado no verso conclusivo do poema: “Bastava-me ser um quadro. Bem na frente de Deus. Para Ele olhar”.2

Na escrita adeliana, à medida em que o tempo profano transforma-se em sagrado, instaura-se nele plenitude e infinitude, ou seja, “na medida em que o ser adeliano é perfeito e falho, é que os modos do que está entre um e outro vão constituir-se na simplicidade e na individualidade de que se revestem os lugares que os emolduram” (FONTENELLE 2001, p. 49).

Eliade (1991) esboça que o homem moderno sente saudades do contato com o divino e que, embora a vivência espiritual seja diferenciada em relação ao homem religioso e ao homem primitivo, ele utiliza de sua imaginação para restabelecer o elo com este “paraíso perdido”, conforme pode ser percebido abaixo:

As nostalgias são, às vezes, repletas de significações que envolvem a própria situação do homem, desta maneira, elas se impõem tanto ao filósofo como ao teólogo(...). A vida do homem moderno está cheia de mitos semi-esquecidos, de hierofanias decadentes, de símbolos abandonados. A dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo da sua vida espiritual, porém não rompeu com as matrizes da sua imaginação (ELIADE, 1991, p. 14).

Conclui-se então que a aproximação para com o sagrado, em Eliade, dá-se por meio de uma reatualização e/ou mediação ritual/simbólica, para reviver e religar-se ao que é transcendente; já em Adélia este contato com o numênico pode ser realizado independente de rito, símbolo, lugar ou situação, mas pode ser realizado através de lembranças e acontecimentos cotidianos:

Mediante a tantos problemas sociais e as justificativas que poderiam resultar no chamado trânsito religioso, a poética adeliana se apresenta como uma unidade da vasta produção a respeito do olhar que enxerga a presença do Sumo Bem, no simples cotidiano repleto de objetos que evocam lembranças e despertam o completar de uma consciência da presença de Deus (COSTA JR, 2012, p. 196).

O sagrado que se revela na natureza

Um dos elementos que se faz presente de forma recorrente na poesia adeliana é sua descrição da natureza, seu olhar contemplativo sobre a criação e as criaturas, lugar propício para a manifestação do sagrado.

Na obra poética adeliana, a natureza da experiência poética e a natureza religiosa andam lado a lado. É nesse terreno fértil que Adélia semeia suas palavras e nos convida a aguçar os sentidos, saborear cada verso, sentir cada cheiro, ouvir cada som, tocar cada cena. Segundo Mircea Eliade, “todo homem religioso é sedento do ser” (ELIADE, 2001, p. 60). Esta sede do ser é expressa no poema a seguir:

Genesíaco
Um homem na campina olhava o céu. As estrelas pareciam aumentadas de tamanho brilho. Estrela, ó estrela, estrelas, ele suplicou como se injuriasse Os que alimentavam o fogo aproximaram-se admirados: nós também queremos, repete para nós. Ó noite de mil olhos, reluzente. Os vocativos são o princípio de toda poesia. Ó homem, ó filho meu, convoca-me a voz do amor, até que eu responda ó Deus, ó Pai. (PRADO, 2015, p. 223).

O título do poema sugere um retorno ao momento da criação, ao Gênesis, ao estado paradisíaco. Neste estado genesíaco, o homem exalta a obra divina, que é revestida de beleza nos versos poéticos. O criador de tudo, dos astros e também do poeta, é nomeado como a “voz do amor”. O homem identifica no Criador um Pai e reconhece a si como filho. Diz que o vocativo e as exclamações são os fundamentos da poesia, pois sua função é gerar no leitor o espanto, as descobertas e deslumbres da criação, servindo de mediadora entre o divino e o humano, posto que “a poesia é o ponto de interseção entre o poder divino e a liberdade humana, o poeta é o guardião da palavra que nos preserva do caos original” (PAZ, 1984, p. 62).

Ao trazer à tona a discussão de que a poesia é uma construção, e que esta ocorre no contexto cultural em que cada indivíduo se encontra, é possível elucidar que a produção da obra poética de Adélia ocorre em seu cotidiano, onde Deus se mostra e lhe causa espanto nos lugares e objetos que a rodeiam3. Para a poetisa, o linguajar poético requer um desnudamento. Dessa forma “o despir-se e o desarmar-se para colher a poesia é similar ao ato de esvaziar-se de conteúdo e deixar que a lírica atue. Não é somente para interpretar o que se diz, mas também sentir aquilo que expressam os poemas, porque é pela poesia que sobressalta o entendimento da beleza presente nas palavras” (COSTA JR, 2012, p.188).

Vejamos, a seguir, o poema

A menina e a fruta
Um dia, apanhando goiabas com a menina, Ela abaixou o galho e disse pro ar - inconsciente de que me ensinava - ‘goiaba é uma fruta abençoada’ Seu movimento e rosto iluminados agitaram no ar poesia e Espírito: o Reino é dentro de nós, Deus nos habita. Não há como escapar à fome de alegria! (PRADO, 2015, p. 189).

A escrita poética de Adélia Prado traz em si um sentido particular, que reside em sua experiência religiosa cristã, fonte de contemplação, oportunidade de encontro com o divino. Observa-se que “sua poesia seria o locus sem interdições, um instrumento que se auto-expressa e também revela a consciência da presença de Deus” (COSTA JR, 2012, p. 189).

Deus se deixa encontrar nos gestos e situações mais simples do dia-a-dia, como no pousar da borboleta, no nascer do sol, nas montanhas, campinas, objetos domésticos, tudo é passível de poesia e da revelação do sagrado. Tudo é permeado por Deus e aponta a face divina, conforme pode ser notado nos versos de Artefato Nipônico: “A borboleta pousada Ou é Deus Ou é nada”29 (PRADO, 2015, p. 290).

Para Adélia só o ser humano é capaz de comover-se com as belezas naturais: com o sol, as flores, árvores, com as miudezas cotidianas. Pontua que a poesia serve muitas vezes para ampliar o olhar contemplativo para com a criação, tem o poder de despertar o espanto e o encantamento. Enfim:

A beleza é uma experiência, ela não é um discurso. Se você, por exemplo, passa todo dia por um lugar e vê determinada obra, determinada casa ou determinada coisa, e um belo dia você se espanta com aquilo, pode dar graças, você está tendo uma experiência de natureza poética e ao mesmo tempo religiosa (apud ALMEIDA, 2012, s/p).

Na construção poética adeliana um dos sustentáculos e articuladores essenciais, como já se viu, é a vida cotidiana. É do cotidiano que a poetisa retira o fundamento essencial para tecer seus textos e eleva os seus versos a uma dimensão universal. Para Adélia “o cotidiano é o fato por excelência que todo ser humano tem em comum com todos os outros, e é no interior da realidade do dia-a-dia que a vida de todos transcorre, de tal modo que a consciência do estar-no-mundo se identifica, em grande parte, com as próprias fronteiras da cotidianidade” (MOREIRA, 2010, p. 82).

Tendo por seu marco diferenciador, na escrita, o cotidiano, e sendo nele que a experiência com o sagrado se revela, comenta Abreu (2016, p. 09): “o melhor da poesia de Adélia Prado está nos momentos em que a simplicidade soa natural, própria de alguém íntima da vida como um todo, incluindo aí os seus mistérios”

O templo como – também - espaço de encontro com o sagrado

A experiência com o sagrado em Adélia, como já exposto, não se restringe a um templo, ou lugar específico, porém o templo é tido como um lugar favorável e favorecedor deste encontro entre o humano e o divino, conforme pode ser notado no poema abaixo:

A criatura
Domingo escuro, sensação de desterro, a vida difícil. Sofre-se muito e cada vez mais, Também porque as vigílias são mais longas. Ainda que durmas, deves-te levantar e cuidar da vida, sujeitar-te a pouca destreza de um corpo que não aprende as sutilezas da alma e a todo instante perturba-te o repouso. Precisas comer, limpar-te, mostrar-te apresentável a quem chama na porta, salvar-te com compostura do teu destino metabólico, dormir na própria cruz sem sobressaltos, como um bebê brincando com suas fezes. Ó meu Deus, dizer o que disse e não ter dúvidas de que escrevi um poema é saber na carne: verdadeiramente dar-Vos graças é meu dever e salvação (PRADO, 2015, p. 459).

A relação estabelecida entre espaço profano e lugar sagrado traz em si um paradoxo, visto que ao mesmo tempo em que aponta a diferença entre um espaço e outro, a dissolve, ocorrendo uma permeabilidade e integração entre ambos. O poema acima delineia este aspecto à medida que expõe o que é da ordem do humano e o que é próprio do zelo com o sagrado, de forma que o que é característico da condição humana não se aparta do ser, mesmo quando este se encontra em vigílias sagradas. A autora aborda, no poema “A Criatura”, as obrigações cotidianas e as limitações do corpo: “deves-te levantar e cuidar da vida, sujeitar-se a pouca destreza o de um corpo que não aprende as sutilezas da alma e a todo instante perturba repouso”. Adélia apresenta ainda as necessidades metabólicas do corpo humano e as necessidades de cuidado com este, pois é “preciso dormir na sua cruz, tal como um bebê brincando com as próprias fezes,” ou seja, fazer da sua cruz o seu leito, de forma inocente, abandonada, tal como um bebê, sem malícias e interdições racionais. O poema revela ainda que a constatação de sua humanidade a leva a dar graças de uma forma vivencial, sentida na carne, e que isso é para ela, dever e fonte de salvação.

Sítio
Igreja é o melhor lugar. Lá o gado de Deus pára pra beber água; Ela um no outro os chifres E espevita seus cheiros Que eu reconheço e gosto, A modo de um cachorro. É minha raça, estou Em casa como no meu quarto. Igreja é a casamata de nós. Tudo lá fica seguro e doce; Tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita. Lá as coisas dilacerantes sentam-se Ao lado deste humaníssimo fato Que é fazer flores de papel E nos admirarmos como tudo é crível. Está cheia de sinais, palavra, cofre e chave, nave e teto aspergidos contra vento e loucura Lá me guardo, lá espreito a lâmpada que me espreita, adoro o que me subjuga a nuca como a um boi Lá sou corajoso e canto com meu lábio rachado glória no mais alto dos céus a Deus que de fato é espírito e não tem corpo, mas tem o olho no meio de um triângulo donde vê todas as coisas, até os pensamentos futuros. Lugar sagrado, eletricidade Que eu passeio sem medo Se eu pisar o amor de Deus me mata (PRADO, 2015, p. 58).

No poema Sítio Adélia associa a Igreja com o lugar em o indivíduo pode saciar sua sede de Deus. A Igreja é exposta como o lugar onde a comunidade se reúne, “esbarra seus chifres” poda suas diferenças, sente o “cheiro um dos outros”, expressando as relações de proximidade, de afeto e trocas estabelecidas neste espaço. Compara o estar na Igreja com a intimidade do quarto, o acolhimento, o sentimento de estar em casa. Um lugar repleto de sinais e símbolos sagrados, que despertam temor e amor, segurança e liberdade, que abastece o “gado de Deus” de coragem e onde Deus com seu olhar em um triângulo, (símbolo muito usado em pinturas das naves de igrejas católicas antigas, que aponta para a figura da trindade que tudo vê) perscruta os pensamentos, portanto um lugar Sagrado, em que a divindade se manifesta.

Na medida em que o tempo profano transforma-se em sagrado, incorpora naquele a sua grandiosidade. A forma como o ser adeliano é situado é o fator que possibilita a compreensão objetiva de sua cosmogonia, conforme esboça Fontenelle (2001, p. 49):

Sem os lugares, ficar-se-ia imerso na dimensão abstrata do seu crono topo, marcado pela dissimetria do eterno, da duração e da infinitude. Mas é exatamente a dissimetria, fruto da inclusão do profano no sagrado, que possibilita a forma dessa objetividade; ou seja: é, na medida em que o ser adeliano é perfeito e falho, que os modos do que está entre um e outro vão constituir-se na simplicidade e na individualidade de que se de que se revestem os lugares que os emolduram.

Segundo Eliade (1991, p.72) a capacidade de se manifestar em planos múltiplos é uma característica do simbolismo do Centro em geral. Para o autor todo ser humano tende, mesmo inconscientemente, para o Centro, que lhe dará a realidade integral, a “sacralidade”. Esse desejo profundamente enraizado no homem de encontrar-se no próprio coração do real, no Centro do Mundo, onde se dá a comunicação com o Céu, explica o uso imoderado dos “Centros do mundo”.

Tal como uma igreja constitui uma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se realiza no seu interior marca uma rotura na duração temporal profana: já não é o Tempo histórico atual que é presente – o tempo que é vivido, por exemplo, nas ruas vizinhas – mas o Tempo em que se desenrolou a existência histórica de Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e ressurreição (ELIADE, 2001, p. 66).

O sagrado que se manifesta no profano/cotidiano

Para Eliade, no discurso do homem religioso, “o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferente dos outros” (Eliade, 1991, p.25). Dessa forma, o espaço sagrado destaca-se do espaço profano, sendo considerado o centro do espaço; o eixo do mundo é o espaço real por excelência, enquanto o profano, apenas o seu resíduo. Eliade, no mesmo estudo, reconhece o espaço sagrado como o ponto fixo, que tal como uma bússola, orientaria o homem religioso. O espaço profano por sua vez, não possibilita uma centralidade, visto que sua principal qualidade é a homogeneidade, sendo seus lugares relativizados.

O sagrado, no entendimento de Eliade, consiste em qualquer força sobrenatural que rompa o mundo comum; assim, mesmo uma força tida como maléfica ou demoníaca seria também uma manifestação do sagrado, ou seja, para o homem que assume para si uma vida sagrada, toda a estrutura do universo tem de ganhar um sentido. O profano por sua vez, é tido pelo autor romeno como a ausência completa desta força, deste sentido último. Poderíamos assim considerar o profano como o marco zero de uma potência, algo simplesmente neutro (MOURÃO, 2013, p.24).

O profano, na perspectiva eliadiana, seria o “não ser absoluto”, que se opõe ao “ser absoluto”: o sagrado. Desta forma, o sagrado revelaria a realidade sem máscaras, apresentando cada coisa no seu lugar, pondo ordem no caos, e confortando o ser humano. Já a poesia de Adélia Prado apresenta tudo como sagrado, pois cada coisa é tida como especial, ao mesmo tempo em que tudo participa de uma mesma essência (MOLITERNO, 2002, p.16).

Sendo a ênfase do discurso adeliano predominantemente religiosa, poder-se-ia esperar a clássica divisão dos lugares em sagrados e profanos? Porém, em Adélia, esta ruptura parece não existir, visto que sagrado e profano se misturam. Mas, por outro lado, justamente por se misturarem é pressuposto que sejam coisas distintas; eis a dialética, pois, entre sagrado e profano em sua obra.

Em Eliade (2001) a ideia de sagrado está em dialética com a ideia de profano: o sagrado se faz presente no mundo, mas se opõe a ele. Um objeto é apenas um objeto, porém a partir do momento que ele é revestido de um caráter hierofânico, ele torna-se sagrado. Sob esta ótica o sagrado não depende apenas de uma experiência sensitiva, mas de um elemento concreto (objeto hierofânico) que representa o símbolo, o sinal da manifestação do sagrado:

A dialética do sagrado e do profano implica, em todo processo de manifestação do sagrado, uma ruptura de nível ontológico, no sentido de que o objeto hierofânico se segrega de todo o resto do Mundo que o rodeia e de si mesmo, este objeto, sem deixar de ser o que é, torna-se revelador do sagrado que nele se manifesta. (apud MENDONÇA, 2015, p. 223).

Na dialética do sagrado e do profano na obra eliadiana é perceptível a dificuldade de se distinguir aquilo que poderia ser designado como sagrado. Aquilo que tornaria algo como especial não se identifica com o significado natural do objeto mundano. O sagrado estaria relacionado, na visão de Eliade, a uma experiência específica e superior a toda a realidade profana, que, entretanto, se revela através de objetos do mundo sensível, tais como: uma pedra, uma fonte, o sol, o trovão e assim por diante (MOURÃO, 2013, p.27).

O espaço adeliano subverte a divisão feita por Eliade, ao estabelecer a fratura dos lugares e do tempo, sem que isso implique heterogeneidade, pois o sujeito pode ultrapassar suas barreiras, compondo os elos necessários às suas aproximações. A síntese entre a heterogeneidade e a homogeneidade dos espaços funda-os como eternos; portanto, todos os lugares são afetados pela centralidade e podem transformar-se em um axis mundi. As barreiras entre o espaço sagrado e o espaço profano são diluídas, ou seja, este, também, é sagrado; por isso, tudo o que a voz lírica sente “esbarra em Deus” (PRADO, 1991, p.186).

A fusão do espaço sagrado com o profano pode ser percebida no poema abaixo, em que o cheiro do sumo da laranja seria um meio pelo qual a autora se lembraria dos dias outrora vividos e que este a remeteria ao domingo e a todos os acontecimentos que o mesmo traria consigo, conforme verificamos no poema a seguir:

Para comer depois
Na minha cidade, nos domingos de tarde, as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas. Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta, a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas: ‘Eh bobagem!’ Daqui a muito progresso tecno-ilógico, quando for impossível detectar o domingo pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas, em meu país de memória e sentimento, basta fechar os olhos: é domingo, é domingo, é domingo (PRADO, 2015, p. 38).

A poesia de Adélia revela vestígios do mistério, do indizível, do transcendente. Entretanto, o cotidiano é o seu tema preferido:

Minha insistência no cotidiano é porque a gente só tem a ele: é muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós só temos o cotidiano, que é absolutamente ordinário (ele não é extraordinário). E eu tenho absoluta convicção de que é através do cotidiano que se revelam a metafísica e a beleza; já está na Criação, na nossa vida (Cadernos de Literatura Brasileira, 2000, p. 23)4.

Enfim, pode-se dizer que

A transcendência operada pela poesia de Adélia não pode ser considerada “vazia”, pois através da matéria se tem acesso ao desconhecido e ao misterioso, assim, a conexão divina se realiza por meio do real. A ascensão transcendente é proporcionada pela descida ao chão, na qual a única maneira de elevar-se espiritualmente é o contato com a substância sólida da vida, a precariedade humana (CARDEAL, 2015, p.381).

Este mistério é revelado de forma simples e profunda no poema abaixo, em forma de uma narrativa provocativa, que embora seja finalizada com uma exclamação soa como pergunta:

Bucólica Nostálgica
Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo aparece dourada. Dentro dela agachados na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo, rápidos como se fossem ao Êxodo, comem feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis, muitas vezes abóbora. Depois, café na canequinha e pito. O que um homem precisa pra falar, entre enxada e sono: Louvado seja Deus! (PRADO, 2015, p. 37).

Adélia usa de certa ironia no linguajar de muitos de seus versos. No poema abaixo ela retrata um diálogo aberto e franco com Deus sobre a diferença entre tempo histórico e eternidade:

As Demoras de Deus
Quero coisas pro corpo, o que se suja sozinho e diligente produz sua própria escória. Por astúcia Vos lembro, ó Criador, apesar de eterno e eu histórica, tendes também um corpo. Portanto, feitos um para o outro, Vosso ouvido e minha língua. Ouvi-me pois, antes que, de tanto pedir-Vos, do céu da boca me desabem os dentes (PRADO, 2015, p. 415).

Partindo da análise do poema acima, é possível perceber que o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Assim

Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal – o que poderíamos chamar tempo adquirido – que, em todo o caso, não é o tempo histórico (ELIADE, 1991, p. 29).

Poetizar sobre o cotidiano é, pois, versar sobre a rotina, sobre o prosaico, o “pequeno”, o fado diário. Ações simples adquirem “outros” significados.

Deus não rejeita a obra de suas mãos
É inútil o batismo para o corpo o esforço da doutrina para ungir-nos, não coma, não beba, mantenha os quadris imóveis. Porque estes não são pecados do corpo. À alma, sim, a esta batizai, crismai, Escrevei para ela a Imitação de Cristo. O corpo não tem desvãos, só inocência e beleza, tanta que Deus nos imita e quer casar com a sua Igreja e declara que os peitos de sua amada são como os filhotes gêmeos da gazela. É inútil o batismo para o corpo. O que tem suas leis as cumprirá. Os olhos verão a Deus (PRADO, 2015, p. 239).

A obra poética de Adélia Prado é tecida na sua relação com o divino apresentando-nos uma literatura epifânica, elevando a poesia ao patamar de instrumental da revelação divina, conferindo-lhe um caráter universal. Desta forma a poesia adeliana sai da particularidade do eu-lírico à universalidade do ser humano. “A singularidade de arte de Adélia, provém sem dúvida da fonte inspiradora: o poeta diante de si mesmo e da poesia, adotando uma postura transcendental e subjetiva através da espiritualidade ao observar o meio que o rodeia” (DOURADO, 2004, p 48).

Adélia Prado concebe a criação literária também como mistério, sendo que este em sua obra é quase um sinônimo de fé, incompreensível à razão. Deus só pode ser tocado pelo sentimento, pelas emoções, sendo a poesia uma fonte importante da revelação divina.

O divino que se faz presente na casa-homem

A casa ocupa um lugar privilegiado na escrita adeliana, sendo possivelmente o elemento espacial que abrange mais exemplificações. Ela aparece de formas diversificadas conforme pode ser notado nos poemas “Impressionista” e “Domus”:

Impressionista
Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo (PRADO, 2015, p. 34).

Em Adélia pode-se perceber que a casa é mais do que um espaço físico, ela é a representação do sentimento dos que nela habitam, e uma revelação do que ocorre no interior de cada um que nela mora.

Domus
Com seus olhos estáticos na cumeeira a casa olha o homem A intervalos lhe estremecem os ouvidos de paredes sensíveis, discernentes: agora é amor, agora é injúria, punhos contra a parede, pânico. Comove Deus a casa que o homem faz para morar, Deus que também tem olhos na cumeeira do mundo. Pede piedade a casa por seu dono e suas fantasias de felicidade. Sofre o que parece impassível. É viva a casa e fala (PRADO, 2015, p. 327).

Na escrita adeliana, o espaço da casa se torna singular não apenas por acolher ou se fixar nas lembranças, mas, pela forma como Adélia tece o seu aspecto ordinário, por meio das tarefas rotineiras, configurando centros de simplicidade e representando a estrutura dos acontecimentos que ali ocorrem (FONTENELLE, 2001, p.50).

Para Eliade (2001, p.54) tal como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológico. Desta forma a instalação em qualquer parte, seja na construção de uma aldeia ou apenas de uma casa, envolve toda a existência do homem. “Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional (...) a habitação é sempre santificada, pois constitui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina (...)” (ELIADE, 2001, p. 50). Ainda o historiador romeno:

A habitação não é um objeto, uma máquina para habitar; é o Universo que o homem construiu para si imitando a Criação. Toda construção e inauguração de uma nova morada tem a equivalência de uma renovação, um recomeço. Todo começo repete o começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia. Mesmo nas sociedades modernas, tão fortemente dessacralizadas, as festas e os regozijos que acompanham a instalação numa nova morada guardam ainda a reminiscência da exuberância festiva que marcava, outrora, o incipt vit nova (ELIADE, 2001, p. 54).

Pode-se concluir que o caos do mundo contemporâneo, conforme explica Eliade (2001, p.19), ocorre pela falta do espaço sagrado no ser humano. O mundo sagrado é harmônico e marcado pela presença do transcendente, já o mundo profano não tem delimitações de espaço e nem de comportamento e se estabelece desta forma o caos. Enquanto o sagrado organiza o mundo através do estabelecimento de regras, mantendo sua unidade, o mundo profano é fragmentado, desarmônico e desta forma o homem sente-se perdido e confuso.

Adélia apresenta por meio de sua poesia um refúgio deste caos ao vislumbrar no profano e cotidiano uma possibilidade de diálogo com o sagrado, sem forçosamente a necessidade de símbolos ou ritos, resgatando a harmonia e o elo entre céu-terra, ser humano-Deus. Sua poesia pode ser descrita como uma síntese do espiritual e do material, do sagrado e do profano.

Conclusão

A poesia de Adélia Prado é tecida no ordinário do cotidiano, revelando uma compreensão singular a respeito da arte, do belo e do sagrado. A poesia presentifica aquilo que aponta. Como para a doutrina judaico-cristã, com a qual a poetisa se afina, só Deus tem o poder de romper as barreiras do tempo e do espaço, a poesia para ela é vista como ponto de mediação e de manifestação do sagrado, um meio pelo qual o divino se deixa revelar, explora cenários e paisagens simples, dotadas de extrema beleza e relevância às quais nossos olhares apressados muitas vezes não percebem.

A obra adeliana é vasta e rica em conteúdos e pontos que podem ser abordados por diferentes pontos de vista. O objetivo ao qual o presente artigo debruçou-se foi o de apontar como um cotidiano simples, rústico e comum, é capaz de despertar e ofertar elementos significativos de análise sobre a vida humana e sua relação com o sagrado. E algumas análises comparativas entre a poesia adeliana e as teorias de Mircea Eliade possibilitou-nos entrever que a obra adeliana se encontra e desencontra com a relação entre sagrado e profano do autor romeno. Ou, poderíamos dizer que, o que para Eliade se configura em uma oposição um tanto mais rígida entre sagrado e profano, com diferenciações mais delineadas que se encontram, entretanto, nas hierofanias, em que o sagrado se comunica e transforma o profano, para Adélia é relação mais flexível, ou natural, pois que a hierofania não é um momento específico e só acessível cultualmente, mas um contínuo na vida cotidiana, senda que esta, naturalmente, é a linguagem que manifesta o sagrado, seu símbolo maior.

Bibliografia

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Notas

[1]A respeito deste tema, “sacramento”, e de uma de suas interpretações no catolicismo, bastante coincidentes, a nosso ver, com a concepção de sagrado e cotidiano adeliana, ver o primoroso livrinho de Leonardo Boff, intitulado Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos: mínima sacramentalia, Petrópolis: Vozes, 1977.

[2]Embora que, aqui, o quadro possa também ser interpretado como uma mediação, embora não ritual stricto sensu. Em outro momento, neste caso, seria oportuno também a análuise comparativa entre a poesia adeliana e algumas teorias de Martin Heidegger, que considera a arte como aquela que possibilita o aparecimento da verdade, que nos abre à verdade e a nós, que traduz- -nos e à verdade do mundo que se nos abre, graciosamente (particularmente ver sua abordagem sobre o tema em A origem da obra de arte, presente em seu livro Caminhos da floresta. No plano da teologia, Romano Guardini e Hans Urs Von Balthasar (e Paul Tillich?) talvez também ajudem a compreender a função reveladora/hierofânica da arte no cristianismo e, quiçá, na religião de forma geral.

[3]E não teria toda poesia, filosofia e teologia origem neste “espanto”, neste deslumbramento diante do mundo que se toca e que, paradoxalmente, transcende-nos em seus mistérios, absurdos e fascinações (ou, como diria Otto em O sagrado, mundo em suas faces tremenda e fascinante)?

[4]Ora bem, dizer que só temos o cotidiano é dizer que o divino só pode ser acessado nele, e que nada pode-se dizer sobre além do cotidiano, sobre algo fora de nossa experiência. Não estaria aqui, de alguma forma, um pressuposto kantiano?