Muralhas religiosas dentro do seminário católico:homoafetividade e religião na obra Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan
Religious walls within a catholic seminar:homoaffectivity and religion in Em nome do desejo, a book by João Silvério Trevisan

Emerson José Sena Silveira* e Joel Cardoso da Silva**
* Professor do Departamento de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutor em Teologia pela PUC-RJ. Email: sudarioc@hotmail.com.
**Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema). Doutor em Letras (Literatura Brasileira e Intersemiótica). Mestre em Letras: Teoria da Literatura. Graduado em Letras Modernas, Pedagogia e Direito. Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) nos cursos de Graduação e Pós (Mestrado e Doutorado em Artes) e Diretor Ajunto do Instituto de Ciências das ArtesUFPA. E-mail:
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Resumo
A homossexualidade, sob ótica conservadora, não seria “natural” e, por isso, passível de condenação, cura ou repressão. Por outro lado, a literatura romanesca moderna sobre o tema abriu um novo espaço além da literatura sagrada do cristianismo, tornando-se uma forma de compreender a religião repressora e a expressão das liberdades das minorias, alcançadas no contexto das lutas sociais travadas na democracia presente no Ocidente. Nesse sentido, a temática homoafetiva na literatura romanesca em português ainda que incomum, possui uma história centenária. O objetivo deste artigo é apresentar o estatuto do desejo homoafetivo em romances do século XX cujo pano-de-fundo seja religioso. Assim, abordamos o romance Em Nome do Desejo, de João Silveira Trevisan, cuja trama se passa em um seminário católico figurando o amor entre dois seminaristas. Através de análise literária e do discurso, identificando o conflito entre o desejo homoafetivo e a teologia conservadora-hegemônica, apresentaremos as tramas do romance, a força da repressão eclesiástica e a imposição/interiorização dos dogmas. Destacamos a importância desse romance, apesar da tragédia, como espaço de enfrentamento das violências religiosas sobre o desejo – e sua internalização – e da abertura para a experiência do desejo-amor que conduz os protagonistas além dos “vales da sombra da morte”.

Palavras chave:Religião. Romance. Literatura homoafetiva.

 

Abstract
Homosexual desire, according to a conservative reading, would be unnatural and therefore subject to condemnation, cure or repression. On the other hand, the modern literature that deals with these affective sensitivities has opened a new space beyond the sacred literature of Christianity, becoming a way of understanding the relationship between repressive religion and the expression of the freedoms of minorities, observed within the context of the social struggles waged in the democratic West. In this sense, the homoaffective theme in Portuguese literature is still uncommon, but it has a centennial history. This paper seeks to question about the status of homoaffective desire on 20th century religious novels through the analysis of Em nome do desejo, by João Silvério Trevisan. Its plot takes place in a Catholic seminary featuring the love between two seminarians. Using methods of literary analysis and discourse analysis, glancing at theology, we present the story of the novel, the force of ecclesiastical repression and the imposition/internalization of dogma. This highlights the importance of this novel as a space of confrontation between religious violence against desire, and the openness to the experience of desire and love that leads the protagonists through the “valley of shadow of death”.

Keywords:Religion, Romance. Homoaffective Literature.

Introdução

A presença do desejo e sentimento homoafetivo é constantemente invisibilizada em muitas análises históricas, literárias e teológicas (TREVISAN, 1986). Essa orientação ou inclinação afetivo-sexual foi registrada por historiadores, antropólogos, sociólogos e críticos literários que apontam para as delicadas relações densas e complexas entre a homoafetividade e as religiões reveladas, em especial, o cristianismo.

Não é nossa intenção oferecer uma discussão e um encadeamento histórico linear dessas relações e da temática homoafetiva na literatura ou tampouco aprofundar discussões teóricas sobre sexo-gênero1, mas chamar atenção para a dimensão simbólica contida em algumas balizas temporais com a finalidade de tecer o pano-de-fundo deste artigo: a apreciação analítica do romance “Em nome do desejo”, de João Silvério Trevisan. Nosso objetivo neste artigo é compreender os personagens homoeróticos e suas relações densas e tensas com as representações da religião católica que brotam das linhas agressivas de seu autor. A verve de Trevisan se volta contra o que apresenta, sob a forma de ficção literária, como sendo as “muralhas católicas” de um seminário, que apertam, reprimem e transformam em patologia temida, mas ansiada, os desejos e os amores homossexuais. De acordo com a visão do romancista, há uma confusa relação entre os protagonistas do romance, que finda de forma trágica e mistura sexo, desejo e amor homoerótico com liturgias hipócritas, sermões camuflados, cinismo moral, censuras e pressões eclesiásticas latentes e manifestas.

Antes de adentrarmos os vestíbulos do romance, apresentamos algumas ideias sobre o quanto o desejo homoerótico é um fato na história religiosa e não-religiosa2. Havia, por exemplo, nos livros históricos do Antigo Testamento, em particular no Deuteronômio, procedimentos de punição aos indivíduos homoeroticamente orientados por meio da morte por apedrejamento (CROMPTON, 1978). A partir de um olhar teoliterário, as leis punitivas que pesam sobre a sodomia – como era então chamada a homoafetividade no contexto da religião judaico-cristã e suas instituições – então constantes nas letras sagradas da Bíblia, são como o olhar severo, violento e dominador de uma divindade absoluta e ciumenta que não hesita em castigar os rebeldes e desviantes com fogo, sal, morte e praga.

Nesse sentido, a partir desse primeiro fio condutor, os exemplos históricos se acumulam, apesar da dificuldade de encontrar registros mais detalhados: o primeiro decreto do Império Romano de 342 d. C., de condenação da “sodomia”, a Inquisição na Espanha e Portugal, que levou à morte indivíduos inclinados aos desejos e afetos homoeróticos; a “caça às bruxas” na Holanda em 1730, que levou à morte por enforcamento e fogo dezenas de homens jovens, entre outros (CROMPTON, 1978).

A história homossexual é “a cicatriz de duas histórias: insistência e escamoteação, brilho e negação, e as formas da escamoteação foram tão variadas como o jogo erótico dos poetas com os caçadores de metáforas” (QUIROGA, 2004, p. 12, tradução livre)4. A literatura ficará indelevelmente marcada por essas duas cicatrizes. Diante disso, a “problemática da identidade sexual ganha sentido e relevância em um contexto histórica e culturalmente delimitado” (HEILBORN, 1996, p. 138). A problemática sexual “se ancora e se impregna do lugar que a sexualidade desfruta/ocupa na cultura ocidental como lócus privilegiado da verdade do sujeito” (HEILBORN, 1996, p. 138). No mundo moderno em formação, a própria literatura sagrada tornou-se objeto de novas leituras que a dessacralizavam, trazendo-a para a arena da arte.

A hetero-norma, ou seja, a heterossexualidade viril naturalizada como padrão único e estrutura do desejo e do afeto, ocupa um grande espaço sócio-histórico-religioso sobre o qual pouco se analisa e, ao mesmo tempo, pelo efeito de poder, lança o desejo homoafetivo no vale obscuro do exótico, do silêncio ou da negação (BUTLER, 2003; TREVISAN, 1998).

A hetero-norma, que adquiriu o caráter de instituição natural, está fortemente associada ao binarismo de gênero – entendido como um sistema e uma classificação social que naturaliza sexo e gênero em duas formas distintas, opostas e desconectadas de masculino e feminino; homem e mulher – e à ideologia patriarcal – uma estrutura ideológica de dominação transcultural (LEITES, 1987; CABRAL, 1999; ARIÉS; BÉJIN, 1987). Há, então, um tripé de construções sociais: o binarismo de gênero, a ideologia patriarcal e a heterossexualidade viril, vistos como naturais, arraigados na natureza humana por muitos grupos conservadores. Entretanto, esses aspectos inextrincavelmente associados, podem ser entendidos como construções discursivas e práticas socioculturais que sofrem as injunções dos contextos históricos e culturais em seus processos de disputa com outras práticas sociais e de tentativa de permanecer como uma ‘natureza’ real e unicamente verdadeira. Giddens (2004), por exemplo, analisa como no mundo capitalista a sexualidade se pluralizou, tornou-se elemento fundamental nas definições do self e da individualidade (o si-mesmo) e ganhou relevância no espaço público por diversos motivos, um deles, as lutas identitárias de minorias “sócio-sexuais-gênero”.

Um dos resultados dessas transformações, que nos interessa frisar neste artigo, é que no mundo ocidental moderno capitalista, de forma quase paradoxal, as artes e as literaturas se revelaram espaços privilegiados para a reflexão homoafetiva e para as teorias desconstrutoras daquilo que foi tomado como verdade, norma única e natural, inquestionável, a sexualidade heterossexual vinculada ao sistema patriarcal-reprodutivo (FOUCAULT, 1999; CABRAL, 1999; ARIÉS; BÉJIN, 1987; LEITES, 1987).

Em especial nos romances, o desejo homoerótico vive e ocupa um espaço fundamental, embora ainda à margem das análises acadêmicas e do mercado editorial.4 Nos romances em que o homoerotismo se faz presente no enredo ou é assumido por personagens protagonistas, constatamos uma espécie de “violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas” e que se exerce “pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento” (BOURDIEU, 2003, p. 7-8).

O fio condutor dessa literatura, pelo menos no Brasil, é antigo, e remonta ao final do século XIX, com o romance O Bom Crioulo (1895) de Adolfo Caminha. Mais adiante falaremos dessa linhagem literária pouco conhecida. Por ora, basta afirmar que nos textos desde o final do século da Belle Époque, e em outros, o pecado e a transgressão, em sua relação com o desejo homoerótico, estão mesclados, alicerçados em uma complexa trama metafórica e alegórica. Nessas tramas narrativas, a escamoteação, as ambiguidades, as sutilezas, os escondimentos, as escaramuças, os disfarces e os ocultamentos no texto literário homoafetivo às vezes provém do próprio texto, mas em geral vem de muitos leitores, que insistem em ludibriá-lo, adocica-lo e domá-lo, obrigando-o a se adaptar aos bons costumes, às boas maneiras, às normas heteroafetivas (TREVISAN, 1986; VENTURELLI, 2001; QUIROGA, 2004).

É nesse contexto que propomos analisar alguns aspectos de um romance homoerótico que articula catolicismo e homossexualidade: Em nome do desejo, escrito por João Silvério Trevisan – autor brasileiro pouco conhecido, diretor e roteirista de cinema, tradutor e jornalista. O título romanesco parodia o título do credo cristão, Em Nome do Pai. E, no corpo do romance, apontaremos a intersecção entre desejo, religião e repressão, que se passa em um seminário da Igreja Católica (o amor entre dois seminaristas), expressa um difícil, ou melhor, impossível, equilíbrio entre o desejo homoerótico e as regras religiosas ditas e não-ditas.

A regulação dos corpos e dos afetos estabelece um código de conduta esquizofrênico que se evidencia em discursos e falas ambíguas, nos duplos sentidos das aproximações, no ocultamento e nas explosões furiosas do desejo (TREVISAN, 1986, 1998; CROMPTON, 1978). Essa codificação está relacionada às estruturas sociais que sustentam a hegemonia masculina heterossexual e aprofunda as violências, inclusive a violência simbólica (BOURDIEU, 2007 a; 2007 b).

A estrutura social de gênero e sexo, com suas contradições e repressões, encontra-se incorporada nos corpos de homens e mulheres e exerce, por meio de propaganda e mídia, por exemplo, a redução do afeto homossexual à condição desvio e patologia (CABRAL, 1999; HEILBORN, 1996). Porém, sendo a literatura uma dimensão ou esfera de valor na qual essas violências são pensadas e ressignificadas, pretendemos fazer aflorar os efeitos perversos de ordens simbólicas que tornam impositivo um determinado padrão de afetos e desejos (ideologia patriarcal e hegemonia masculina heterossexual) que determina divisões e classificações de como se deve sentir, ter prazer, gesticular, amar, transar, vestir, dizer, relacionar-se (binarismo de gênero).

Da literatura e suas interfaces

Assim como a arte, a religião, a ciência e a cultura; a literatura não pode ser apreendida senão por uma gama de conceitos que, mesmo assim, abarcam-na parcialmente. Em seus múltiplos desdobramentos, em prosa ou verso, a literatura de teor biográfico mantém um flerte com o ficcional constituindo-se, portanto, autoficcionalmente, ocupando há muito um lugar privilegiado nos estudos da contemporaneidade. E isto, obviamente, não é recente.

Uma das grandes vantagens da Literatura, como arte como ciência, é a sua abrangente capacidade de dialogar com todas as demais áreas do conhecimento humano. Quer diretamente, quer sub-repticiamente, como representação sociocultural, a Literatura abre portas para um diálogo problematizador, pondo em cheque, denunciando, retratando, confirmando, contrapondo polifonicamente vozes e discursos, questionando os mais diversos aspectos do fazer e da conduta humana. ’A vida torna-se espaço para as mediocridades, que alguns acham bom e outros não suportam’ (TREVISAN, 2001, p. 14)5.

Como bem sabemos, “a literatura assume muitos saberes” (BARTHES, 1997). Diversificada, descompromissada – no sentido de não ser um soldado de nenhuma ortodoxia ou instituição autoritária – com o que quer que seja, múltipla, abrangente, extrapola os limites da nossa realidade imediata. Todos os temas, nela, se fazem presentes: o bem e o mal, o vício e a virtude, o profano e o sagrado, o certo e o errado.

Os pares, dicotomicamente, poderiam se multiplicar ad infinitum. Para exemplificar, afirma-se que “num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson) (sic) passa da natureza à cultura” e conclui-se, “se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário” (BARTHES, 1997, p. 15-19).

Antiga, a história da homoafetividade6 acompanha a trajetória humana. Em algumas culturas, como a grega, o afeto homoerótico foi aceito sob determinadas condições7, com naturalidade, porém, na maioria das vezes, foi acerbamente discriminada. A história nos mostra uma oscilação entre tolerância e aceitação e não-aceitação e intolerância. Em todas as sociedades e culturas, inclusive as indígenas, as relações sexuais, amores e desejos, inclusive homoeróticos, foram regulados, estabelecidos, construídos, legitimados ou deslegitimados socialmente. Muitas vezes, essas relações e amores eram espelhos e reflexos das estruturas sociais. Por exemplo, entre os romanos, em especial na época do Império, a sociedade era escravocrata, hierarquizada fortemente e com predomínio masculino (VEYNE, 1987). Os cidadãos, homens livres, deveriam ter iniciativa, liderança, voz de comando, dominador, enfim, “ativos”. Escravos e mulheres deveriam ser o oposto. Veyne (1987, p. 40), cita o poeta Artemidoro para quem: “as relações sexuais podem ser “com, a, esposa, com uma amante, com um escravo, homem ou mulher. Todavia, ser penetrado por seu escravo não é bom; é uma investida e isso, indica desprezo por parte do escravo”. A homofilia era regulada socialmente, nesse caso, e baseada em forte hierarquia.

Tentando colocar ordem no caos, com o advento do Cristianismo oficial, os dogmas em relação ao tema se tornaram explícitos. Quando o cristianismo surgiu como força e a igreja se afirmou como uma das raras instituições universais, após a desintegração do Império Romano, iniciou-se uma longa e tortuosa relação entre sexo, poder e sociedade, em especial quando se travava dos afetos e amores homossexuais (FOUCAULT, 1999; 2003; 2014). Apesar da afirmação preponderante de uma teologia dogmática, baseada em um naturalismo binário de gênero (mulher e homem criados para casamento e criação da família), sempre houve sombras e discordâncias, proposições às margens dos poderes teológicos instituídos.

Onfray (2008), filósofo francês, recupera um cristianismo hedonista (os prazeres da carne com o evangelho de Jesus) e nos apresenta um panorama da diversidade de seitas cristãs e gnósticas, e de teólogos e sacerdotes inclusive, que pululavam em torno dos primeiros séculos, prolongando-se no tempo e espaço até chegarem a Idade Moderna. Talvez um dos exemplos mais interessantes, para nossa discussão, seja os “Irmãos do Livre Espírito”, um conjunto de pequenos movimentos e seitas, muito díspares: “um certo número de homens e mulheres que ensinavam em relativa clandestinidade durante quatro séculos: do século XIII de São Boaventura ao século XVI de Rabelais e Montaigne”. (ONFRAY, 2008, p. 78). Uma quantidade considerável, vários milhares, com formação diversificada (clérigos, artesãos, letrados e iletrados) e com uma presença espraiada por extensos territórios, “da Itália à Escócia, da Espanha dos Alumbrados aos picardos e adamitas da Boêmia, passando pelos beguinos e beguinas dos Países Baixos, os da Bélgica e outros libertinos da França e da Alemanha” (ONFRAY, 2008, p. 79). No centro de gravidade do diverso e amplo panorama gnóstico e cristão hedonista, uma “teologia” simples:

[...] o ser-deus do homem, uma vez que sua divindade desde a crucificação de Jesus resgatou todos os pecados do mundo, de todas e de todos, e para sempre. A partir desse dia, mais nenhuma ação pecadora é possível ou pensável (ONFRAY, 2008, p. 79).

Um pensamento e uma prática que desafia os cânones teológicos da ortodoxia estabelecida e instituída8. Daí:

[...] O homem se redescobre então divino [...] Não se pensa Deus de maneira separada do real, uma vez que ele é o real em todas as suas modalidades: uma individualidade, suas palavras, seus gestos, seus silêncios, uma pedra, uma árvore, todas as pedras, todas as árvores, nada escapa a Deus, pois tudo é Deus (ONFRAY, 2008, p. 79).

Uma teologia hedonista, se isso pudesse ser dito, pois, “esse panteísmo acaba com a moral, aniquila os valores e torna caducos os vícios e as virtudes” (ONFRAY, 2008, p.79). Aos olhos desses movimentos e seitas:

[...] o plano de Deus é menos linear, como ensina o catolicismo apostólico e romano, do que cíclico. [...]. Uma inversão dos valores é induzida e legitimada por esta lógica singular: enquanto a Igreja ensina a pobreza, a castidade e a obediência para os membros do clero e para seus fiéis, os partidários do Livre Espírito [...] celebram o luxo, o refinamento, os prazeres, a sexualidade absolutamente livre e a recusa em reconhecer qualquer autoridade que seja [...] (ONFRAY, 2008, p. 83).

Sabemos que não foram a gnose cristã e o cristianismo hedonista que se tornaram influentes e abarcaram a cultura e a sociedade ocidentais. Contudo, Foucault (1990; 1999; 2003; 2014) nota que é nas culturas cristãs que a sexualidade se conectou à subjetividade e à verdade e tornou-se uma ontologia, ou melhor, o lugar mais profundo em que o ser humano poderia encontrar sua identidade. As tecnologias e dispositivos9 de produção da verdade de si mesmo através do sexo e do amor produziram uma mistura entre repressão, culpa, censura e desejo.

Não à toa, no romance que apresentaremos, as vertigens do desejo homoerótico estão ligadas inextricavelmente às rotinas religiosas vividas dentro das muralhas de um seminário religioso. Preconceito e desejo irmanam-se nas penumbras dos muros da instituição católica. Por outro lado, os preconceitos em relação aos relacionamentos homoeróticos sempre, de alguma forma, existiram. Mesmo quando individuais eles se formam e proliferam socialmente, e passam a fazer parte principalmente das esferas da vida cotidiana dos cidadãos.

Somos socialmente regidos por leis e normas que nos são impostas e sobre as quais não questionamos. São verdades que aceitamos tacitamente. Por outro lado, a sexualidade e suas diferentes manifestações são aceitas ou rejeitadas a partir dos costumes de uma sociedade. E a literatura é, nesse ínterim, um espaço no qual as sexualidades abrem-se e as barreiras sociais e históricas são interrogadas.

Contrapondo-se a esse espaço livre, há o discurso das instituições religiosas hegemônicas que tendem a basear-se em um direito “natural”, ou melhor, em uma concepção de humano e de desejo fundamentada histórica, religiosa e culturalmente. Neste sentido,

O discurso das instituições religiosas sobre a homossexualidade e, mais especificamente, o da Igreja Católica, tem esse caráter poderoso, que serve a múltiplas razões: [...] criar e manter a fronteira entre o ‘nós’ – determinando o que é normal, portanto aceito e valorizado – e os outros, os que fogem à normalização e devem ser rejeitados; criar condições de controle das sexualidades e dos corpos, e, portanto, de comportamentos e pensamentos; oferecer alternativas sagradas, dentro de um vasto mercado religioso, de redenção dos pecados e salvação (BUSIN, 2008).

A partir do Cristianismo1010, o Ocidente não parou de dizer ‘para saber quem és, conhece o teu sexo’. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’ de sujeito humano (FOUCAULT, 2007, p. 229-300).

Em instigante ensaio, o psicanalista Jurandir Costa (1998, p. 135), analisa as implicações da questão sexual em Foucault: “O monge cristão deixou de olhar para o alto, como o filósofo grego, e passou a olhar para dentro de si, com o objetivo de controlar sem cessar, seus pensamentos, de sondá-los para ver se eram puros, de verificar se não dissimulavam ou ocultavam algo de perigoso”. Na teoria de Foucault, a enorme importância da sexualidade que vivemos hoje derivaria, em alguma medida, da interpretação cristã da libido e de seu papel na formação da subjetividade (COSTA, 1998). Mas, Costa (1998, p. 135) avança a hipótese foucaultiana: o surgimento da nova moral cristã não deve ser visto apenas como a afirmação da fraqueza da vontade e de sua natureza pecaminosa, mas também como um elogio do amor, “no quadro da nova estratégia de salvação espiritual”.

Como efeito dessas novas configurações da subjetividade (controle do pensamento e do exame de si), a literatura moderna tornou-se um espaço de manifestações dos desejos, subjetividades, tragédias e dramas homoeróticos após a separação das esferas de valor e do desencantamento do mundo.

No caso do Brasil, apesar de romances com ou sobre personagens homoeróticos existirem desde o século XIX, a literatura homoafetiva é descontínua, com momentos de concentração e dispersão, embora trazendo questões e ações fundamentais, dentre elas, a recusa da mordaça anti-homoerótica familiar, religiosa ou social (TREVISAN, 1998).

A obra que aborda essas questões de forma ousada e precursora é Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha, um romance tão singular que foi desprezado profundamente pela crítica literária, enxergando nele apenas um forte naturalismo quando, trata-se da paixão de um escravo negro fugido por um adolescente, abordando questões de gênero. É significativo que a temática homossexual se cruze com a racial-étnica: crioulo, o fruto da mestiçagem entre os “brancos” colonizadores católicos e o negro africano trazido a ferros para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar e depois de café. Há, neste quesito, a convergência de duas fortes exclusões, a do desejo homoerótico e a étnica,

Em 1906, Machado de Assis publica Relíquias da Casa Velha, com um conto, Pílades e Orestes, que narra a história de dois senhores que se tratam e vivem amorosamente, mas com uma sutileza específica que suscitou poucas críticas diretas e reações apaixonadas. Logo a seguir, emerge a figura de João do Rio, que em plena Belle Époque brasileira, assumiu sua condição de homossexual, escrevendo alguns contos em que o desejo homoerótico oscila entre a insinuação e o ocultamento, ligado à sua vivência, é explicitado ou insinuado.

Nas décadas entre 1920 e 1930, Mário de Andrade, com Frederico Paciência (1997), apresenta o tema com um jogo de ocultamentos e sutilezas semânticas por medo do preconceito. Somente após os anos 1960, surge com mais força, uma linha narrativa homoerótica. Citamos aqui, Lampião da Esquina, um tabloide mensal, que surge em 1978 e era editado por Aguinaldo Silva como um jornal que dava voz e expressão à “minoria” sexual. Impulsionado por ele, houve a publicação de várias obras menores, de teor confessional e baixa qualidade literária, aproveitando a visibilidade que os homossexuais começaram a ter (VENTURELLI, 2001).

São obras dentro da indústria cultural que visavam a venda fácil e o lucro imediato, dentro de um público agora mais vasto. Aguinaldo Silva, antes de optar pela telenovela, que marcou sua carreira na Rede Globo de Televisão, foi um autor marcante com as narrativas Primeira carta aos andróginos (1975) e Lábios que beijei (1992), entre outros. Todavia, a figura mais emblemática da literatura homoerótica é Caio Fernando Abreu, que expressa o arquétipo do “Peter Pan” gay, o eterno adolescente em crise e em busca de identidade, que marca sua produção literária. Em Morangos mofados (1982), Caio gira em torno de si próprio e do seu discurso desencantado e, no ano seguinte, em Triângulo das águas, temos pelo menos a história de um desencontro amoroso entre Pérsio e Santiago (VENTURELLI, 2001).

Por fim, para finalizarmos a breve apresentação sobre a literatura homoerótica, citamos os personagens com forte acento homoerótico: Bembem, de O menino do Gouveia (publicado originalmente em 1914, na revista Rio Nu), de Capadócio Maluco; Aleixo de O Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha; Juca, de Frederico Paciência (1997), de Mário de Andrade, e Riobaldo, de Grande sertão: veredas (1956), obra referencial de João Guimarães Rosa. Além disso, há contos e novelas como Pílades e Orestes (conto que compõe as narrativas de Relíquias da Casa Velha, 1906), de Machado de Assis e Pela noite (In: Triângulo das Águas, de 1983), de Caio Fernando Abreu.

Um outro nome fundamental é o de João Gilberto Noll cuja produção, mais antenada com o pós-moderno, questiona os limites do romance com uma escrita minimalista e uma personagens deslocando-se pelo vasto mundo, sem Norte e sem Sul. Nesse enredo, o corpo é uma chaga viva e os encontros são fortuitos e dolorosos. Entre sua produção, citamos, Bandoleiros (1985), que possui uma forte pulsão cinematográfica e uma iconografia similar à do estilo western; Rastros de verão (1986), um travelling sobre o absurdo do mundo e Hotel Atlântico (1989), com seu personagem desnorteado e sem destino, são obras que merecem ser lidas e relidas (VENTURELLI, 2001).

Nesse breve giro literário, podemos citar Márcio El-Jaick com seu último romance, Para sua Jukebox (2011), que põe em cena o discurso de um adolescente de 17 anos, cheio de gírias e dizeres tautológicos, e, assim, alcança uma estética fascinante porque nos faz entrar em cheio no universo do jovem garoto que vive um caso tórrido com um dentista casado11.

Podemos dizer, tentando conectar o tema deste artigo ao projeto teoliterário12, que

A Literatura é coleta e invenção intimamente mescladas, [...] não é puro delírio, porque o verdadeiro romancista, que escuta sua imaginação, sabe muito bem que algo se impõe a ele. Ele inventa, mas não inventa uma coisa qualquer. É por isso – e entrevemos agora o elo que pode haver entre literatura e teologia – que o romance não é uma aventura ao acaso para o teólogo [...]. Há na descoberta romanesca, uma analogia com o que o teólogo chama de revelação: uma visitação. O encontro de algo inesperado, súbito, ‘revelado’, fora do real cotidiano e, entretanto, inscrito nele (GESCHÉ, 2005, p. 150).

No entanto, se a literatura é o momento de uma revelação imanente irrompida na interseção entre vida e história, diferente de uma teologia cristã clássica enquanto revelação transcendente, isso não quer dizer que o que é revelado leva a uma redenção, salvação ou remissão. É importante dizer que a teologia tradicional, enquanto lócus do transcendente, negadora da carne e do prazer, em especial o homoerótico, não esgota o campo teológico e é desafiada por novas ideias. Há uma influência dos novos modos de ser e de amar homoeróticos, com suas lutas e movimentos, no próprio campo teológico.

O teólogo André Musskopf (2012) apresentou uma consistente reflexão sobre essas novas teologias: teologia gay, homossexual e queer. “A emergência de uma Teologia Gay, de cunho liberacionista”, nas palavras de Musskopf (2012, p. 189), mostra a amplitude dos processos de transformação social, cultural e teológica que estão em andamento.

Porém, nos quadros da teologia dogmático-oficial, o revelar do desejo e da carne pode ser terrível, trágico, sombrio e intenso, como é o caso do romance que analisamos a seguir.

Do autor, sua trajetória e da crítica à sua obra

João Silvério Trevisan, autor brasileiro ainda pouco conhecido, mas dos mais significativos no panorama da nossa Literatura, é natural de Ribeirão Bonito, uma pacata cidadezinha do interior do Estado de São Paulo, nascido em 1944 (VENTURELLI, 1993).

Atuante, inquieto, irreverente; é, além de escritor, diretor e roteirista de cinema, dramaturgo, tradutor, ativista LGBT e jornalista. Oriundo de uma família pobre, lutou para encontrar o rumo que queria imprimir à sua história. É autor de uma obra extensa; escreveu Seis Balas em um Buraco Só (ensaios, 1998), Ana em Veneza (romance, 1994) Troços e Destroços (contos, 1997), publicados pela Editora Record. Para teatro, escreveu Heliogábalo & Eu. No cinema, Trevisan, em 1969, produziu e dirigiu um filme de curta duração, Contestação (1969) e outro, agora, um longa-metragem intitulado Orgia ou o Homem que Deu Cria. (VENTURELLI, 1993).

Escritor que assumiu publicamente a sua homossexualidade, luta pelos direitos das minorias e foi um dos fundadores do Grupo Somos, criado em 1970, um grupo que, entre outras atividades, procura debater, questionar conceitos e ideias para conscientizar quanto aos direitos dos homoafetivos.

Contudo, temos, no panorama da literatura brasileira, poucas obras que versam sobre a temática homoafetiva. Na Arte, de uma forma geral, os criadores optam por outros temas, passando ao largo da abordagem da homossexualidade. Quando o fazem, talvez até inconscientemente, tratam-na de maneira discriminatória ou superficial, de forma que se evidenciam resquícios preconceituosos nas obras. Isso fica muito evidente, por exemplo, se pensarmos no nosso Cinema, no Teatro – em que pesem algumas produções notáveis quanto à temática; e na TV.

Se consultarmos a trajetória dos nossos grandes escritores, não vamos encontrar a temática homoafetiva abordada seriamente. Em Guimarães Rosa, por exemplo, com o romance Grande Sertão: Veredas, temos a personagem Riobaldo que, ao se apaixonar pelo jagunço Diadorim, entra num processo de autoquestionamento, num interminável monólogo existencial, que, no final, se resolve favoravelmente à personagem, uma vez que Diadorim era mulher.

Talvez como reflexo de sua própria existência, a obra de Caio Fernando Abreu também aborda, corajosamente, em muitos momentos, a temática de forma convincente. João Silvério Trevisan e Caio Fernando Abreu, foram, por algum tempo, contemporâneos. Por outro lado, a emergência de um revelar do desejo que mesmo assumido torna-se um sinal de discórdia, faz emergir uma teologia trágica do afeto: “Mas não haveria demasiada complexidade nos subterrâneos do dia-a-dia? Um instante de vida não seria um emaranhado digno de reverência, justamente por causa da paixão nele sufocada?” (TREVISAN, 2001, p. 18). Os deuses abscônditos do homoerotismo afloram por entrelinhas, nas linhas de uma literatura ousada.

Da filosofia à vida... nos bastidores...

O romance em questão se passa em um tempo reprimido e de repressões, quando os padres usavam batina e escutavam rádio. O ambiente do romance evoca os anos 1940-1950. O ambiente tétrico e sensual do seminário perpassa e engolfa todo o romance. Páginas e páginas de uma estranha mistura entre o dever religioso e o fascínio do desejo. Os amores entre os meninos seminaristas extrapolam o âmbito discente. Também vicejava entre os orientadores espirituais, um medo, o de ter prazer com as confissões dos adolescentes, mas ao mesmo tempo, um ardente desejo de ouvir e tocar a carne – tais relações seriam pecados ou não, fica a ambiguidade –, que atuavam como tutores dos aprendizes de padres. Quem ainda duvidava? Poderíamos perguntar. “O sexo constituía o assunto mais corrente, mais saboroso e mais cochichado daqueles tempos” (TREVISAN, 1982, p. 65).

As proibições faziam com que os seminaristas encontrassem tacitamente maneiras de ludibriar a realidade, de esconder intencionalidades. Quando algum dos meninos formulava o convite “Vamos andar?” obviamente, a pergunta “significava de tudo um pouco: namorar, ficar perto, matar as saudades, amar-se, se olhar, gozar” (TREVISAN, 1982, p. 68). Sempre presente a necessidade de salvar as aparências, o que, no fundo, significava que os garotos sabiam que estavam infringindo alguma norma tácita. Os padres eram adorados e idealizados. Representavam os paradigmas. Ostentavam poder. Eram temidos. Amados. Odiados:

O Senhor moreno (ou, digamos, a representação morena do Senhor) chamava-se Padre Augusto ou Padre Reitor. O Senhor loiro (imagem do lado mais delicado da divindade) cumpria as funções de Diretor Espiritual e chamava-se Mário, mas preferia atender pelo nome de Padre Marinho – “marinho azul”, como gostava de brincar, em alusão à cor dos seus olhos. Dizem que tinha estudado com as carmelitas, daí o seu gosto acentuado pela vida mística (TREVISAN, 1982, p. 87).

O amor entre os meninos era considerado pecaminoso, não obstante, determinadas “paixões (...) começavam evidentemente em Deus; daí o único amor legítimo (porque sagrado) era aquele entre os meninos e seus superiores – reflexo do contato entre a criatura e seu criador” (TREVISAN, 1982, p. 88).

Assim, “Padre Augusto, por exemplo, gostava de eleger os seus prediletos” (TREVISAN, 1982, p. 88). Já “Padre Marinho dedicava-se mais aos Menores, enquanto Padre Augusto preferia os Maiores” (TREVISAN, 1982, p. 96). Padre Augusto, a pretexto de ensinar normas de higiene,

esmerou-se em ensinar os meninos a baixar o prepúcio de seus genitais e lavá-los com sabonete, sem receio de perderem a virilidade. Fazia tudo isso com extrema objetividade, mas seus gestos profissionais não conseguiam ocultar intenções subjacentes que os alunos mais sensíveis captavam. De modo que não era incomum os exames terminarem em malcontidas ereções dos pequenos membros alvoroçados pelo contato rápido e experiente do querido Reitor (TREVISAN, 1982, p. 97).

O toque físico oscilava entre o prazer e a higiene. 13 Mas, não era apenas o corpo em um cultivo supostamente correto, o que preocupavam os senhores padres, mas a alma, que deveria ser cultivada com afinco. Por isso a formação cristã se aliava a algumas outras práticas artístico-filosóficas, cujo propósito facultava o desenvolvimento da sensibilidade dos pequenos. Desse modo, algumas associações inusitadas e originais, por força das circunstâncias, aconteciam: “o desejo é antes de tudo musical” (TREVISAN, 1982, p. 105).

Na rede em que se entrecruzavam medos, desejos, culpa e prazer, a música, a mais etérea das artes, se presta a marcar situações significativas em nossas vidas. Porém outras divagações advinham paralelamente. Elucubrações, conjunturas inevitáveis: “Que disposição gostaria de ter, ao morrer? - Desejaria amar mais do que nunca, antes de cair nos braços do seu Amado Eterno” (TREVISAN, 1982, p. 136). O amor carnal se confundindo com as aspirações espirituais.

Da obra e seus meandros

“Vejo-me entrando no escuro, como quem penetra em um santuário, ansioso por certa luz. Quando acendo a lâmpada sobre a mesinha, levo um susto.” Estas são as palavras iniciais do livro. (TREVISAN, 1982, p. 10).

Na realidade, todos nós transitamos pela vida afora “como quem penetra em santuários” (TREVISAN, 2001, p. 14). Se cada ser humano se vê, a si mesmo e aos demais; se percebe e se situa no mundo através dos olhos da sua sexualidade, como preconizava Freud, a forma de ser e estar no mundo dos homossexuais é, necessariamente – para que se viabilize convincentemente – uma forma particular, transgressora, ousada, principalmente se levarmos em consideração a realidade que nos circunda, no caso, uma realidade altamente conservadora, marcada por dogmas que se constituem como verdades absolutas. Por se posicionar contra a corrente é, por excelência, uma forma de ser na qual o indivíduo, desde o início, se questiona e se realiza sob o signo da tristeza, da marginalidade, do excepcional. Das primeiras percepções de si mesmo à aceitação há uma longa distância, porque esse processo denso, tão necessário quanto inevitável, perpassa pelo social, pela herança das cobranças socioculturais, pelo inevitável confronto com a tradição, com o peso que a noção da própria diferença impõe. É sempre inquietantemente desconfortável saber-se e sentir-se diferente.

Romance de temática homoerótica, de teor autobiográfico, Em nome do desejo é um dos mais contundentes textos em que se evidencia o desabrochar do universo complexo, sofrido e (in)explicável da sexualidade homoerótica em confluência com expressões religiosas. Como ex-seminarista, o autor conhece de perto o universo de que trata nesta obra.

O ambiente austero de um seminário, marcado por uma disciplina ostensivamente rígida, é o local em que, ao mesmo tempo, se revezam o desejo de santificação e o de transgressão – imposto pelas paixões sexuais nascentes. Nesse palco travam-se lutas entre o corpo e o espírito, entre o proibido e o permissível, entre o material e o espiritual. Nesse sentido:

A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso. (FOUCAULT, 2007, p. 229-230).

Em nome do desejo, em sua sexta sessão intitulada “Do mistério da santíssima paixão”, inicia a narrativa do amor entre Tiquinho, o menino de 13 anos que é nosso protagonista e o seu amor impossível por Abel – a quem denominava o seu “Jardineiro Espanhol”, garoto da mesma faixa etária de Tiquinho, apenas com um ano a mais. Na visão do narrador, Abel se assemelhava a “um Jesus Cristo de olhos ligeiramente amendoados, cabelos muito negros, corpo ereto, feições bondosas e um vigoroso brilho no olhar” (TREVISAN, 1982, p. 141). Abel passa a ser para Tiquinho o “seu ímã e bússola. E [a partir de então] a vida de Tiquinho adquiriu um brilho extraordinário a partir daquela revelação” (TREVISAN, 1982, p. 143).

Porque ingênuas, porque veementes, porque fruto de desejos desconhecidos e incontroláveis, as paixões adolescentes são descobertas avassaladoras. A entrega a elas se dá de forma total: “o convívio diário com Abel e o usufruto de sua amizade traziam-lhe, ao contrário, uma felicidade quase maior do que podia suportar” (TREVISAN, 1982, p. 143). Todo amor é um mito de contrastes. O amor-paixão é, via de regra, uma tentativa, quase sempre frustrada, de tentarmos conciliar opostos. Bem sabemos que “(...) não existe amor que não seja obsessão” (TREVISAN, 1982, p. 151). Quem ama só vê o que deseja ver. O amor – transfigurado na paixão - faz leituras próprias. Tiquinho pressupunha, cegamente, que era amado por Abel. De início, Tiquinho encontra consonância dos seus desejos no companheiro eleito: “Quanto tempo passaram assim ninguém nunca soube. Mesmo porque a eternidade, ambos pressupunham, como é natural, a ausência de tempo” (TREVISAN, 1982, p. 166).

As relações entre Tiquinho e Abel se concretizaram comportando os equívocos que acompanham as relações dessa modalidade. Relações carregadas de regras tácitas, inquestionáveis, em que os papeis se configuravam, tradicional e preconceituosamente, conforme os modelos socioculturais. Era “a mesma entre o macho (Abel) e a fêmea (Tiquinho), coisa que o torturava e enchia de ressentimentos” (TREVISAN, 1982, p. 194). E, como sempre, o macho, hierarquicamente, dominando a fêmea, o que nos remete para a ideologia patriarcal, o binarismo de gênero e a hegemonia da heterossexualidade viril-bélica. Isso causava, como não poderia deixar de ser, um desconforto. “Assim, por exemplo: ‘chupa’, ordenava Abel. ‘Não’, balbuciava um Tiquinho inseguro. ‘Se você gosta de mim, então chupa’ – insistia Abel” (TREVISAN, 1982, p. 194).

O fato de estarem sempre juntos, motivou, como habitualmente ocorre nestas situações, aliás, em qualquer comunidade, boatos incriminadores. “A amizade particular entre Tiquinho e Abel já fazia parte do repertório de fofocas prediletas da comunidade. Corriam boatos sobre suas fugas noturnas. (...) quando passeavam, mesmo separados, era comum provocarem cochichos e piadinhas – constantes demais para não incomodar” (TREVISAN, 1982, p. 196). A paixão não vê senão aquilo que objetiva ver.

Os perigos, à volta de ambos, aumentavam. E, como não poderia deixar de ser, “a situação chegou a um ponto crítico, justamente no final da Quaresma”. Como autoridade que busca preservar não só a ordem, mas, principalmente, as aparências, “o reitor chamou ambos separadamente” (TREVISAN, 1982, p. 197).

Somos seres falhos, carentes, necessitados do aval do outro. Essa necessidade pode converter-se numa dura provação. A instância material é ponte para que cheguemos ao espiritual. O corpo é o templo da alma. Assim, Tiquinho sofria das agruras dos desejos carnais. “O encantamento pela nudez mesclava-se à proximidade quase física do sofrimento de Jesus” (TREVISAN, 1982, p. 211).

Normalmente tomado como uma paixão irrefreável, o amor, na maioria das vezes, se caracteriza por um quê indefinível, incerto, inexplicável. Esse não-saber, não raro, se apresenta como um possível enigma que jamais se deixa decifrar inteiramente. Impossível saber porque quero tanto e a tal ponto disso dependo, porque ele me ama ou é ele que amo. As paixões nos tornam imprudentes, ousados. Por amor, somos capazes das coisas mais inusitadas. Por ele, vivemos e, por vezes, morremos. O amor pode converter-se em paixão. E quando isso acontece, normalmente, de forma irreversível, ele torna-se egoísta, tirano e, não raro, isto mata a espiritualidade caracterizadora do amor.

Voltemos, pois, à nossa história: Mandado para casa, por ter adoecido, Tiquinho não suporta permanecer distante de Abel e, por conta própria, retorna ao Seminário. Encontra o seu amado na sala de jogos. O encontro, tão ansiosamente desejado, toma rumos diferentes do esperado. Ao se deparar com Abel, “Tiquinho permaneceu estático alguns segundos, recusando-se a admitir. Só voltou a si quando o silêncio invadiu a bolaria. Todos tinham se retirado, inclusive Abel – que não lhe dirigira um único olhar de amor” (TREVISAN, 1982, p. 214).

Sentir-se rejeitado é doloroso, e, para o garoto, sobretudo nas circunstâncias em que se deu, era inadmissível. Amor e ódio, reza o dito popular, são faces de uma mesma moeda. Magoado, todo o amor que sentia, de imediato, se transformou no seu oposto. “Dali por diante, Tiquinho entregou-se totalmente à tarefa da vingança” (TREVISAN, 1982, p. 215). Tudo se deu em uma baderna promovida pelos alunos, que, aproveitando a falta de luz nas dependências do Seminário, se despiram e promoveram a maior algazarra. Isso aconteceu, coincidentemente, durante uma das ausências do Reitor. De posse de uma lanterna, Tiquinho, tendo divisado Abel, persegue-o inclementemente. Iluminando-o insistentemente, colocá-lo em evidência, e consegue, diante dos olhos dos superiores, fazê-lo culpado, sendo apontado como um dos promotores da confusão ocorrida. Em decorrência disso, Abel é expulso do Seminário.

Tiquinho conseguiu, finalmente, vingar-se de Abel. O feitiço, no entanto, volta-se contra o feiticeiro: “Sem Abel, tornava-se um ser miseravelmente desamparado” (TREVISAN, 1982, p. 222). Chegou, no seu desespero a planejar “a morte de Abel e seu suicídio simultâneo” (TREVISAN, 1982, p. 223). Como consequência, Tiquinho adoece gravemente e é, também, mandado para casa. “Na maca, enquanto atravessava o corredor central em direção à ambulância, Tiquinho teve a vaga impressão de ouvir sons de sino. Pareciam distantes sinos do Ângelus, mas Tiquinho nunca soube ao certo. Foi essa a derradeira lembrança daqueles tempos” (TREVISAN, 1982, p. 226). Um tom trágico coroa o fim do romance.

Concluindo

O romance mostra paradoxos, chagas, ocultamentos, indecisões e intensidades da e na carne e na alma. Nesse sentido, o desejo homossexual abordado no romance de Trevisan (1982; 2001) torna-se um incômodo, um estorvo, mas ao mesmo tempo um refúgio da carne diante da severidade da expressão religiosa que não admite nem a ternura nem o sexo entre homens. Nas entrelinhas da narrativa, o desejo homoafetivo percorre situações nas quais deixa de ser a metáfora do belo e do amor (perspectiva platônica) para ser a metonímia do desejo e do amor não-natural, encarnando um dos desdobramentos do pecado original. Trevisan, conduz a delicada e lúgubre trama da tragédia à morte, ressoando uma ambiguidade, a do desejo e do amor que se tornam túmulos. O salário do pecado é a morte, diz a teologia paulina, mas questionamo-nos o que seria o pecado nas entrelinhas do romance. Nesse caso, “pecar” é fazer viver o amor e o afeto homossexuais como uma metáfora do belo, mas decaída, ou melhor, transformada em tragédia.

Nesse sentido, escrever a história é mais do que realizar uma exposição de achados. É o efeito de uma transformação pela qual passamos enquanto sujeitos que nos assumimos e assumimos os riscos pressentidos na escrita. É dialogar, não exatamente com os outros, mas com nosso próprio pensamento. Por esse motivo, escrever é tão deliciosamente perturbador (NUNES, 1990, p, 42). É preciso dizer, ainda, que “se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto gênero” (BUTLER, 2003, p. 25). Por esse aspecto, a literatura homoafetiva é a epítome do construto do sexo e do gênero porque sempre aponta para o embate entre a norma moral hegemônica e a possibilidade do amor como superação da ordem hetero-patriarcal-viril estabelecida. A literatura funciona, nesse sentido, para além de uma mera denúncia, como um espaço de encontros e desencontros que desnaturaliza construções sociais, como a ideologia patriarcal e o binarismo de gênero.

Por outro lado, a vida dos homossexuais continua, a despeito dos avanços já alcançados, sendo uma trajetória difícil e a literatura homoafetiva o demonstra. Há, ainda que de forma sutil e escamoteada, barreiras e obstáculos a serem transpostos todos os dias. Nas práticas religiosas advindas do Cristianismo, e, como tratado neste artigo, do Catolicismo, perduram dogmas que – à espera de uma revisão, de uma reavaliação – ainda incluem os chamados pecados da carne e, entre eles, as práticas homoafetivas. Estas, por sua vez, estão entre as mais discriminadas, mais contundentemente apontadas e punidas, tornando os seres párias em suas tarefas mais simples e cotidianas.

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Notas

[1]Não aprofundaremos a discussão teórica ligada a Foucault e a outros autores, pois isso conduziria o texto a outra direção. Se assim o fizéssemos, nos desviaríamos do objetivo, a saber, apreciar o romance de João Silvério Trevisan (1982; 2001) que entrecruza a temática da homoafetividade e a temática da religião. Por isso, os autores são referenciados e alinhavados ao argumento do artigo: o desejo e o amor homossexual tornaram-se, no caudal que formou o Mundo Moderno, metonímia do desvio e do pecado. Por fim, não custa lembrarmos que Foucault, em uma de suas entrevistas, disse que suas ideias e escritos poderiam ser usados como uma caixa de ferramentas conceituais.

[2]É vasta a literatura e os exemplos históricos sobre as complexas relações entre sexualidade, cultura e sociedade. Por exemplo, a questão da pederastia entre os gregos, a questão do pensamento vitoriano, a ambiguidade entre culpa e desejo etc. (VEYNE, 1987). Mas, por conta do espaço deste artigo, não nos é possível aprofundar exemplos e discussões teóricas dessa temática, pois, se assim o fizermos, fugiríamos do objeto, que é tomar o romance Em nome do Desejo’, como exemplo de literatura homoerótica relacionada às expressões religiosas, no caso o catolicismo.

[3]“[...] la cicatriz de dos historias: insistencia y escamoteo, brillo y negación, y las formas del escamoteo han sido tan variadas como el juego erótico de los poetas con los cazadores de metáforas. Más aún, el escamoteo no proviene del texto sino de sus lectores, que han insistido en taimarlo para obligar a que su rebelión se acople a las buenas costumbres” (QUIROGA, 2004, p. 12).

[4]Sabemos que há um rol de personagens e livros na literatura universal que falam da temática homoerótica, porém, para delimitarmos a abrangência de nosso estudo, nos restringimos à literatura brasileira contemporânea e, dentro desta, ao escritor João Trevisan e, ainda mais especificamente, ao seu livro Em nome do Desejo.

[5]As citações do romance que apresentarem apenas o número de página pertencem ao livro Em nome do desejo, de João Silvério TREVISAN, 2001, em sua terceira edição pela Editora Record. Este romance, que alcançou inegável sucesso, foi lançado pela primeira vez em 1983, pela editora. Por vezes, extrairemos também citações da primeira edição, referida na linha anterior.

[6]Károly Maria Kertbeny, “em correspondência trocada com Ülrichs, usa pela primeira vez, em maio de 1868, as expressões homossexual e heterossexual. No ano seguinte, esta designação aparece pela primeira vez a público, num folheto anónimo, proclamando liberdade para as sanções legais para os homens homossexuais na Prússia” (MOITA, 2001, p. 77).

[7]É clássica a figura da pederastia que nos é apresentada por Platão. Na cultura grega, o amor entre um homem mais velho e um homem mais novo, antes de entrar na vida adulta, devia ser vivido sob condições bem específicas. Em geral, a figura desse amor carnal foi vista pela filosofia platônica como um degrau das escadas que levam a contemplação do sumo bem (FOUCAULT, 1999).

[8]Sabemos que o processo de construção da ortodoxia cristã é longo, tumultuado, oscilando entre alianças com poderes políticos e econômicos das elites e camadas dirigentes e reações populares com leituras libertadoras, como a teologia da libertação. Mas, nos limites deste artigo, não poderemos aprofundar uma perspectiva

[9]Essa questão no Cristianismo é ampla e remete, por exemplo, a recuperação e redefinição das tecnologias do eu nascidas na cultura grega (a análise de si ao fim do dia): a confissão será um dos pontos fulcrais segundo Foucault (1990; 2014).

[10]Para não sermos injustos com o Cristianismo, é preciso citar, por exemplo, as grandes heresias que atravessaram a história e procuravam fugir ou romper com as ortodoxias, inclusive do ponto de vista do afeto e do desejo. Contemporaneamente, é preciso citar as igrejas inclusivas cristãs e os grupos e padres católicos que acolhem a população LGBT sem restrição. Algumas lideranças sacerdotais, como o padre jesuíta norte-americano James Martin adotam uma postura mais aberta, sem condenação moral. O sacerdote jesuíta lançou um livro chamado Building a Bridge (Construindo pontes, em tradução livre). O livro propõe um diálogo entre os católicos LGBTs e a Igreja. Em breve, o padre e o livro foram objeto de intensa crítica por parte dos setores reacionários do catolicismo norte-americano.

[11]VENTURELLI, Paulo. Onde está a literatura homoerótica brasileira? S. d Disponível em: . Acesso em: 17 Ago. 2017

[12]A pesquisa em teopoética consolida-se no Brasil, segundo Cantarela (2014). Porém, a lista de obras e autores ainda é restrita: “Seguindo a ordem estabelecida pela preferência dos pesquisadores, os autores/obras de literatura mais presentes na Teopoética são: a Bíblia, Guimarães Rosa, Adélia Prado, Clarice Lispector, Machado de Assis e José Saramago. [...].” (CANTARELA, 2014, 1247). De acordo com Cantarela (2014, p. 1248): “Em relação às obras mais lidas, destaca-se o Grande Sertão de Guimarães Rosa [...]. O tema de maior interesse dos pesquisadores, em sua leitura de Grande Sertão, é a questão do confronto entre o bem e o mal. Em relação à Bíblia [...], os temas são variados: o êxodo, Sansão e Dalila, Jó, as narrativas dos evangelhos.”. A temática e autores que trabalham os fenômenos homoafetivos estão completamente ausentes. Por isso, este artigo justifica-se como uma contribuição.

[13]A esse respeito, na história da formação cultural brasileira, Gilberto Freyre (1984) aborda a profunda cultura patriarcal sexual misturada com raízes religiosas católicas que, por sua vez, estavam embebidas na mistura entre culpa, castigo e prazer. Observemos alguns trechos: “Com o aparecimento de maior número de colégios, um assunto que começou a preocupar os higienistas da época foi o da higiene escolar; particularmente a higiene dos internatos” (FREYRE, 1984, p. 418). E a seguir: “Outro trabalho sobre os colégios [...] versa de preferência o problema da moralidade e da higiene sexual nos internatos’. (FREYRE, 1984, p. 418). E, para completar essas questões: “Nos antigos colégios, se houve por um lado, em alguns casos, lassidão – fazendo-se vista grossa a excessos, turbulências e perversidades dos meninos – por outro lado abusou-se criminosamente da fraqueza infantil.” (FREYRE, 1984, p. 419). Segundo Freyre (1984, p. 419): “Houve verdadeira volúpia em humilhar a criança”.