Da experiência estética à experiência religiosa: a beleza simbólica das imagens marianas como mediação da experiência religiosa
And the movie generated the reader: a study about The Chronicles Of Nárnia In Brazil

Paulo Sérgio Lopes Gonçalves* e Michele dos Santos Dias**
* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, PUG, Itália e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Évora, em Portugal. É docente pesquisador do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião e líder do grupo de pesquisa “Ética, Epistemologia e Religião”, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Endereço eletrônico: p_aselogo@hotmail.com.
** Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, PUCCampinas. Especialista em Artes Visuais, Intermeios e Educação pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Graduada em Filosofia pela Faculdade Dehoniana, Taubaté-SP.
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Resumo
O presente artigo visa analisar a beleza das imagens marianas como possibilidade de mediação da experiência do sagrado em sua força de expressão simbólica. Para isso, o texto irá considerar a beleza das imagens a partir de duas perspectivas: a experiência estética imediata, apontando o aspecto narrativo do símbolo, e a experiência estética mediata, apresentado o símbolo como possível lugar de encontro com o Mistério na contemplação da beleza da imagem. Para alcançar este objetivo, será tomado como base o pensamento do teólogo Bruno Forte, a fim de apresentar a beleza das imagens marianas, como símbolo que sinaliza e evoca a Beleza do Mistério, se apresentando como possível lugar de uma autêntica experiência religiosa.

Palavras chave:Imagens marianas. Beleza. Símbolo. Experiência religiosa.

 

Abstract
The present article aims to analyze the beauty of the Marian images as a possibility of mediation of the experience of the sacred in its force of symbolic expression. For this, the text will consider the beauty of the images from two perspectives: the immediate aesthetic experience, pointing the narrative aspect of the symbol, and the mediate aesthetic experience, presented the symbol as a possible place of encounter with the Mystery in the contemplation of beauty of image. To achieve this goal, the theologian Bruno Forte’s thought will be taken as a basis for presenting the beauty of the Marian images as a symbol that signals and evokes the Beauty of the Mystery, presenting itself as a possible place for an authentic religious experience.

Keywords:Marian images. Beauty.Symbol.Religious experience.

Introdução

Maria é figura presente na experiência de fé cristã e em torno de sua eleição e participação na história da salvação se construiu um imaginário religioso expresso em diversas devoções marianas ao longo da historia, em contextos e configurações culturais diferenciadas, que contribuíram para uma vasta expressão religiosa. A devoção construída em torno de Maria se inspirou a começar em cenas da história da salvação na narração bíblica, até experiências místicas de aparições como Aparecida, Fátima, Nossa Senhora da Piedade, celebradas neste ano mariano pelo jubileu de 300 anos da aparição da imagem de Aparecida no Brasil, os 100 anos da aparição de Fátima, em Portugal e os 250 anos de peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade do Caeté-MG. Este imaginário simbólico construído por meio destas inspirações se manifesta em diferentes expressões e práticas de fé, onde uma das principais mediações da experiência religiosa mariana é a imagem.

A imagem religiosa é essencialmente simbólica e opera em uma dupla função na expressão de seus elementos, “a imagem (...) atua no duplo registro (‘dupla realidade’) de uma presença e de uma ausência” (AUMONT apudLOPES, 2003, p.1). Portanto, as imagens apresentam-se como expressão simbólica que atua na transmissão de uma mensagem, enquanto presença expressa nos elementos de sua representação, e uma ausência que se reconhece no significado que sua forma evoca. Neste sentido se torna possível lugar de manifestação do Mistério Infinito que ela figura na forma finita da imagem.

É na experiência estética de contemplação da beleza da imagem que está conjugada a experiência religiosa da beleza que se deixa alcançar pela Beleza do Mistério que irradia no fragmento e alcança a alma humana. Assim como Maria foi terreno onde o Eterno pousou suas asas no fragmento do tempo, manifestando a Beleza na beleza humana e histórica, no encontro da configuração simbólica da beleza de Maria nas imagens e o encontro de sua figura com o Mistério Infinito, a contemplação das imagens marianas se torna um espaço de encontro com a Beleza, na beleza da imagem que figura a beleza de Maria e é lugar de manifestação da Beleza do Eterno.

Este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão acerca da beleza das imagens marianas como possibilidade de mediação da experiência religiosa na expressão e contemplação de seus elementos simbólicos. Justifica-se este objetivo dada a importância deste elemento na experiência religiosa expressa em devoções marianas, onde a imagem é relevante elemento de mediação desta experiência na representação e contemplação de sua beleza. Para isso, o trabalho terá como base o pensamento do teólogo Bruno Forte que apresenta a beleza como porta de acesso à Beleza, considerando a obra de arte um possível lugar da experiência religiosa na expressão de sua beleza e a figura de Maria como ícone da Beleza do Mistério na leitura da mariologia simbólico-narrativa proposta pelo autor, considerando-a símbolo que concentrou a densidade teológica da história da salvação (FORTE, 1991). Para atingir este propósito o artigo refletirá a beleza das imagens em dois aspectos: a experiência estética imediata, considerando o símbolo como transmissor de uma mensagem na expressão da totalidade de seus elementos, e a experiência estética mediata, considerando o símbolo como mediação da experiência religiosa, no que tange a representação simbólica como possível local de manifestação ou encontro com a Beleza na beleza das imagens marianas.

A beleza como mediação da experiência religiosa em Bruno Forte.

Arte e religião possuem aproximações e semelhanças visíveis quanto a sua forma de expressão mediada pelo símbolo. Na arte e na religião o conjunto de símbolos expressos em obras, imagens, totens, transmite mensagens impressas pelo artista que compõe a obra, autor que figura uma imagem, ou compõe um totem ou elemento religioso. Considerando a dupla função do símbolo apontada por Jacques Aumont1, estas expressões simbólicas narram uma mensagem em sua forma e na unidade de seus elementos, em seu aspecto de presença dada em sua forma, e ainda é possível espaço de manifestação de um mistério no seu aspecto de ausência, dada no significado ou sentido que ela evoca em sua representação (LOPES, 2003,p.1).

Bruno Forte2apresenta esta ideia ao apontar a beleza como caminho que conduz à experiência da Beleza do Mistério, considerando a obra de arte em suas diferentes linguagens um possível lugar de uma autêntica experiência religiosa, na verdade que ela narra na unidade e beleza de seus símbolos e a Beleza que ela pode evocar na beleza da obra. Maria é apresentada como ícone do Mistério (FORTE, 1991, p.148), destacando sua figura como símbolo, de uma beleza finita na história que condensou nas entranhas de sua humanidade a Beleza, sem exaurir a Infinitude e revelando sua face humana sem esgotar o seu Mistério.

Ao apresentar Maria como ícone, Bruno Forte ressalta o símbolo como um importante elemento de transmissão de uma mensagem, pois comunica e evoca um sentido ou significado sem esgotá-lo, assim “no símbolo percebe-se mais significado do que o que pode ser articulado e compreendido, suscitam-se novos impulsos de pensamento e de vida, o homem sente-se alcançado por uma alteridade que o provoca” (FORTE, 1991, p.15), e ao evocar “junta o que é infinitamente distante” (FORTE, 1991, p.15). A partir desta afirmação o teólogo apresenta Maria como símbolo que integrou em seu fragmento a densidade teológica da história da salvação, revelando o Mistério sem esvaziá-lo, mas se tornando uma beleza finita no fragmento do tempo que aponta para uma Beleza infinita.

Bruno Forte apresenta assim a figura de Maria e toda mariologia como resumo denso da experiência de fé cristã na história da salvação, onde em Maria se encontra de alguma forma “o Todo no fragmento: sua autonomia relativa não é absolutização indevida ou separação arbitrária, mas espaço para se delinearem os traços de um ícone no qual se reflita a totalidade” (FORTE, 1991, p.34-35) e no estudo que se constituiu sobre sua figura “um compêndio argumentativo, narrativo e simbólico, rico de força evocativa(...)” (FORTE, 1991, p.35). Assim Maria é apontada como ícone, e todo estudo ou representação de sua figura possui esta força simbólica narrativa e evocativa.

É devido à sua força simbólica que Maria é apresentada como ícone do Mistério, consistindo em um caminho de fecundidade existencial que aproxima do coração do Mistério Infinito (FORTE, 191, p.36). Ela é porta da beleza, pois “espelha de modo singular “a Beleza que salvará o mundo”” (FORTE, 1991, p.36,). Em Maria a função narrativa e evocativa do símbolo se integram “exprimindo em seu conjunto o dinamismo que atravessa o mistério da virgem Mãe(...), a mulher concreta de Nazaré, o ícone de todo o mistério cristão.”(FORTE,1991, p.37). Assim, por ser símbolo concreto, é caminho que conduz ao Mistério, e ícone da Beleza que se revela na beleza humana, pela densa e profunda Verdade que revelou e evocou em sua história. Maria possui em sua densidade teológica a mesma característica do ícone, pois nela ocorre o duplo movimento de descida de Deus e subida do homem, ela é fragmento finito de mediação entre o Eterno e o tempo, assim é “esse jogo de concretude visível e de profundidade invisível que faz falar de Maria como de ícone” (FORTE, 1991, p.147).

Bruno Forte apresenta que a beleza da obra de arte, em sua função narrativa que revela uma Verdade, e evocativa, que é possível lugar de manifestação ou encontro com o Mistério, é porta de acesso à Beleza. Assim na experiência religiosa mediada pelas imagens marianas que figuram a beleza icônica de Maria em um símbolo, encontramos um possível espaço de manifestação ou encontro com o Mistério.

No centro da experiência mediada pelo símbolo encontramos o objeto (objetos religiosos: imagens, mitos, ritos, textos sagrados, gestos; e objetos artísticos: música, forma, dança, pintura, escultura) que condensa significados, sugere ou transmite um sentido (ELIADE,1979, p.18). Em ambas as dimensões a experiência ocorre na contemplação deste objeto na experiência religiosa, e na apreciação de uma obra de arte na experiência estética. Bruno Forte apresenta que é na beleza do fragmento da obra que irradia a Beleza do Mistério, assim como esta Beleza fulgurou em Maria, ela fulgura no fragmento finito e toda a antinomia que ele possui, revelando uma beleza ulterior e infinita, assim, na contemplação de uma imagem ou obra de arte ocorre a experiência estética religiosa.

A beleza da obra de arte pode transmitir uma mensagem e hospedar o Mistério. Neste sentido a experiência estética através das imagens religiosas e a arte se encontram, uma vez que o símbolo é elemento substancial para expressão de uma ideia ou significado. Assim como elementos de uma expressão religiosa nascem a partir de um imaginário, uma obra produzida pelo artista é criada a partir de um imaginário, constituído e expresso em imagens e símbolos que em sua dimensão de beleza é porta para o Mistério, se constituindo ambas como possível local de uma experiência religiosa.

A beleza das imagens marianas na experiência estética imediata.

A palavra Imagem não possui uma simples definição, visto que ao longo da história, em diferentes contextos e áreas do conhecimento recebeu diversos e divergentes significados, na filosofia, arte, religião. Porém mesmo diante de semelhanças e divergências na significação da palavra pode-se compreender que imagem “designa algo que, embora não remetendo sempre para o visível, toma de empréstimo alguns traços ao visual e, em todo caso, depende da produção de um sujeito: imaginária ou concreta, a imagem passa por alguém, que a produz ou a reconhece” (JOLY, 2007, p.13).

Na filosofia antiga, duas grandes definições se apresentaram no pensamento de Platão, que definia imagem como reflexo, imitação, cópia do mundo perfeito das ideias, podendo desviar a alma humana da Verdade, e no pensamento de Aristóteles que definia a imagem como representação mimética do real. Para Platão, imagem natural, que é reflexo ou sombra do mundo das ideias, é “a única imagem graciosa” (JOLY, 2007, p.19), pois pode converter-se em instrumento da filosofia, sendo toda criação(cópia imperfeita) que pode enganar a alma humana e desviá-la do caminho da Verdade. Enquanto para Aristóteles a imagem “é eficaz pelo próprio prazer que nos proporciona” (JOLY, 2007, p.19) podendo, instruir e direcionar ao conhecimento. Ambas divergem quanto ao que é a imagem e sua função, e convergem no aspecto que considera a imagem um recorte, que não representa a totalidade do real ou a plenitude da perfeição.

A noção de imagem constituída pela tradição judaico-cristã apresenta algumas aproximações com a filosofia ocidental. Entre a teoria de Platão que defende imagem como reflexo, ou cópia do mundo perfeito das Ideias, e a definição bíblica que apresenta o homem como imagem e semelhança de Deus; o conceito de imagem se aproxima na definição de imagem como semelhança. Em ambas a imagem se apresenta como semelhança de uma perfeição absoluta, portanto se aproxima, é reflexo desta perfeição e não a totalidade dela. Nesta definição a própria humanidade é imagem, constituída como “seres que se assemelham ao Belo, ao Bem, e ao Sagrado.” (JOLY, 2007, p.16).

No inicio, havia a imagem. Para onde quer que nos viremos, existe a imagem. Por todo lado através do mundo, o homem deixou vestígios das suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos feitos na rocha e que vão desde os tempos mais remotos do paleolítico até a época moderna (JOLY, 2007, p.18).

A humanidade desde seus inícios deixou vestígios de seu existir e de seu imaginário representando fatos e traços do real, o cotidiano, as relações, criação, imaginário simbólico, religioso, imagens lúdicas, através de desenhos, pintura, escultura, como forma de comunicação de mensagem e fatos, e expressão de seu ser. A imagem foi e é tema de reflexões e conceituações, esteve “presente na origem da escrita, das religiões e da arte” (JOLY, 2007, p.19). Desta forma, a presença da imagem nas religiões de tradição judaico-cristã possuem uma importância central, “Não apenas porque as representações religiosas se encontram amplamente presentes em toda a historia da arte ocidental mas, de um modo mais profundo, porque a noção de imagem, assim como o seu estatuto, constituem um problema chave da questão religiosa” (JOLY, 2007, p. 18). Assim, afirma Martine Joly:

Instrumento de comunicação, divindade, a imagem assemelha-se ou confunde-se com aquilo que ela representa. Visualmente imitadora, pode tanto enganar quanto educar. Reflexo, ela pode conduzir ao conhecimento. A vida no Além, o Sagrado, a Morte, o Saber, a Verdade, a Arte, tais são os campos para os quais o simples termo imagem nos remete, se tivermos nem que seja só um pouco de memória. (JOLY,2007, p.19)

Um dos principais elementos que compõem uma imagem religiosa é o símbolo, capaz de transmitir ou sugerir um sentido. Ele aponta para a ânsia que o ser humano possui em prolongar uma manifestação, experiência ou intuição do sagrado, assim como a eternização de uma ideia, intuição ou experiência artística no mundo e na história. O complexo simbólico que compõe a unidade de uma obra ou imagem não narra uma significação fechada, uma vez que o símbolo possui uma dupla função: comunicar um sentido e evocar um significado. O símbolo é elemento que dialoga com a pessoa que contempla uma obra ou uma imagem, que comunica e “dá a pensar” (RICOEUR, 1978, p. 243), sugere um significado e possibilita a construção de sentido pelo observador, uma vez que “a sentença sugere, pois, ao mesmo tempo, que tudo já está dito em enigma e que, contudo, é preciso sempre tudo começar e recomeçar na dimensão do pensar” (RICOEUR, 1978, p.243).

A experiência estética dada pelo símbolo ocorre numa dupla função, onde a primeira delas é a forma imediata, na captação objetiva de uma mensagem expressa na unidade de seus elementos,“todavia estas imagens aproximam os homens mais eficazmente e mais realmente do que uma linguagem analítica. (ELIADE,1979, p.18)”.O símbolo possui uma densidade de sentido com significado que não se encerra nele mesmo, mas é condensação de um sentido que subjaz o complexo simbólico expresso na obra de arte, e transmite uma mensagem na expressão de beleza representada numa forma que remete ao significante que representa na sua função de presença, assim “a experiência estética é a mais imediata de todas as experiências” (EVDOKIMOV, 1990, p. 397).

Ao dialogar com a imagem o devoto ou observador recebe a mensagem expressa em seus símbolos e interpreta a partir de seu universo de significados, num duplo movimento: “A devoção vai, pois, compondo a representação, alterando a imagem, aproximando-a do presente e do que faz sentido, carregando-a de símbolos fáceis de reconhecer” (LOPES, 2003, p.13). Deste modo, molda-se assim a mensagem recebida à sua compreensão de mundo, e isto ocorre através da experiência imediata oferecida pela função narrativa do símbolo, sendo esta relação o fundamento que conduz a devoção à uma representação mariana expressa nas imagens.

A imaginação que recebe a mensagem do símbolo e a interpreta, se apresenta como uma faculdade que possibilita a ampliação dos horizontes do tempo e do espaço, propiciando o conhecimento profundo da realidade na construção de imagens e símbolos. Assim a imaginação se apresenta como a capacidade de contemplar o mundo em plenitude, pois “o poder e a missão das imagens consistem em mostrar o que permanece refratário ao conceito. Assim se explica a desgraça e a ruína do homem que não tem imaginação: ele está isolado da realidade profunda da vida e da sua própria alma.” (ELIADE, 1979, p. 20-21).

Assim a experiência estética imediata das imagens marianas acontece no aspecto narrativo dos símbolos que a compõem. Na contemplação, o devoto ou observador pode captar a mensagem narrada na cena ou significado expresso na unidade simbólica de sua forma, onde entre o símbolo narrado e o imaginário simbólico do observador se constrói uma coerência que permite a sua compreensão deste dado imediato.

A beleza das imagens na experiência estética mediata.

O símbolo expresso nas imagens cristãs em seus diferentes estilos artísticos, não se restringe a uma função pedagógica, mas comporta essa dupla função de comunicação e diálogo. Ao apresentar elementos que narram a unidade de uma cena ou figura religiosa, assim como nas obras de arte as imagens possuem perspectiva narrativa e evocativa em sua expressão simbólica, se configurando como aquele que comunica e evoca uma Presença inexprimível.

Esta dupla função do símbolo e sua densidade que agrega significados na unidade de seus elementos, também se encontra presente na obra de arte e nas imagens religiosas3, entrelaçados a uma narrativa expressa em sua cena, se apresentando como um importante elemento de mediação da experiência religiosa, enquanto aquele que evoca sem exaurir e revela sem esgotar, se tornando lugar de encontro com o Mistério (FORTE, 2006).

O símbolo expresso nas imagens cristãs em seus diferentes estilos artísticos, não se restringe a uma função pedagógica, mas acompanha uma porção de mistério, e é lugar de manifestação ou encontro com a Beleza do Mistério. Albert Durand afirma que: “Não podemos figurar a infigurável transcendência, a imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta através de um sentido abstrato. O símbolo é, portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto; ele é a epifania de um mistério.” (1988, p. 15).

A captação das mensagens e significados expressos nos símbolos na experiência estética mediata ocorre tanto na experiência religiosa quanto na arte (ELIADE, 2010, p. 355). Na religião, as experiências mediadas pelos símbolos ocorrem em forma de cratofanias, hierofanias, ou teofanias “obtidas por meio de uma participação ou de uma integração num sistema mágico-religioso que é sempre um sistema simbólico, quer dizer, um simbolismo” (ELIADE, 2010, p.355). Esse simbolismo atribui um sentido e um valor ao objeto e se torna lugar de manifestação do sagrado, ultrapassando seu aspecto narrativo.

O símbolo na arte, assim como na religião, revela um sentido ou significado no conjunto de seus elementos, assim “é impossível ‘contar’ a poesia, ‘decompor’ uma sinfonia ou ‘arrancar’ uma pintura” (EVDOKIMOV, 1990, p. 403), mas apreender seu sentido no conjunto de seus elementos simbólicos pela apreciação da obra de arte. Desta forma, através da linguagem simbólica uma imagem religiosa comunica e expressa significados, pois enquanto expressão simbólica “usando os elementos deste mundo, a arte revela-nos uma profundidade que é logicamente inexprimível.” (EVDOKIMOV, 1990, p.403). Na obra de arte, ou numa imagem religiosa o símbolo pode sugerir, indicar, evocar um sentido, que não se encerra no objeto significante (DURAND, 1988, p.20).

O símbolo expresso numa imagem, ou numa obra de arte possui uma importância que ultrapassa sua capacidade de prolongar a comunicação de um sentido para além dos limites do espaço e do tempo, por vezes ele próprio “revela uma realidade” (ELIADE, 2010, p. 364), um sentido, como nenhuma outra forma de linguagem revela, assim “o símbolo, o mito, a imagem, pertencem à substância da vida espiritual, se pode camufla-los, mutilá-los, degradá-los, mas que nunca se poderá extirpá-los” (ELIADE, 1979, p.12). Constituindo um elemento sempre presente nas mais diferentes configurações sociais e períodos históricos, o símbolo é elemento central em especial na arte e religião que expressam um imaginário artístico ou religioso, de uma comunidade, sociedade, figurado na linguagem simbólica.

O simbolismo possui uma função unificadora, se apresenta nas imagens religiosas como um conjunto de elementos que significam e apontam uma unidade de sentido na harmonia de suas partes, compondo uma totalidade de sentido. Na religião o símbolo perdura a comunicação de uma hierofania ao transformar objetos profanos em algo diferente do que ele figura, ou ainda apontar um aspecto transcendente à imanência do fragmento e assim “ao tornarem-se símbolos, quer dizer, sinais de uma realidade transcendente, esses objetos anulam os seus limites concretos, deixam de ser fragmentos isolados para se integrar num sistema.” (ELIADE, 2010, p.369), revelando na unidade dos fragmentos um significado mais abrangente e totalizante e se constituindo num possível espaço de manifestação do Mistério que simboliza.

A beleza das imagens marianas como mediação da experiência religiosa.

A devoção à Maria foi difundida pelo mundo com a expansão do cristianismo. Entre as maneiras pelas quais se propagou esta veneração podemos observar a devoção às imagens religiosas, cantos com temas marianos e a oração da ave-maria como principais meios de difusão desta devoção. Assim, com a popularização desta devoção “Maria é o nome feminino pronunciado com maior frequência em todo mundo ocidental. Certamente ela foi a personalidade feminina mais representada na história, não apenas nas artes plásticas mas também na música.” (PELIKAN, 2000, p.16).

A figura de Maria foi inspiração para a criação de muitas obras de arte, como representações de imagens de devoção marianas, em pinturas e esculturas. Nestas representações, a figura de Maria sempre é figurada por conjuntos simbólicos expressivos. Estas ilustrações são compostas por elementos que representam sentimentos, qualidades, e características que apresentam a figura de Maria na história e nos lugares onde cada devoção se origina. Desta forma podemos observar representações de atitude de compaixão, doçura, força, acolhimento, libertação, como no exemplo da representação de Nossa Senhora de Guadalupe “a representação de Maria, de acordo com essa imagem mexicana, “contém(...) os temas básicos da libertação””. (PELIKAN, 2000, p.17).

Maria é descrita por Jaroslav Pelikan como a face que mais se assemelha a Cristo, pois foi aquela em que primeiro ocorreu o que acontecerá com todos os cristãos. Nela, a semelhança a Deus à qual todos foram criados, segundo a teologia cristã, ocorreu de forma integral na trajetória histórica com sua participação no mistério da salvação. Ele aponta que a condição de ser humana de Maria de Nazaré a torna uma figura acessível e próxima, por isso é considerada mediadora. O autor aponta Maria como modelo humano onde a integralidade da experiência da salvação que acontecerá com todos nela ocorreu, assim é espelho e arquétipo. A partir desta reflexão Jaroslav Pelikan menciona o poema de Dante Alighieri ,A divina comédia, mostrando que Maria é o arquétipo de todos os que foram salvos. Pois, “pela virtude de se encontrar mais perto do plano humano, ela é mais acessível para aqueles que tem razão de temer-ou que não podem compreender o inefável mistério de Deus ou a severa autoridade de Cristo.”” (PELIKAN, 2000, p.190).

Jaroslav Pelikan destaca que o lugar de Maria como mediadora se justifica devido ao fato de ter sido em tudo humana. Desta forma a mediação da experiência religiosa pela figura de Maria ocorre devido a sua condição que a aproxima da humanidade e se torna exemplo de fé, esperança e caridade. Estas virtudes que impulsionam o ser humano a viver integralmente conforme a plenitude do projeto para o qual foi criado, na trajetória histórica de Maria foram vividas inteiramente a partir de sua decisão de participar do mistério da salvação. Segundo o autor, este título de Mediadora surgiu primeiramente no Oriente, e somente no século VII chegou no ocidente, encontrando grande consideração e difusão do título a partir do século XII no Ocidente latino. O título de Maria Mediadora buscava fazer uma síntese dos conceitos teológicos sobre sua participação na história da salvação.

Seus títulos foram um meio de sintetizar o que passara a ser considerado sua dupla função: ela fora “o caminho pelo qual o Salvador pudera chegar” até a humanidade pela encarnação; na redenção, sua figura representava a mulher “por meio de quem nós elevamos a Ele, que desceu através dela(...), e por quem nós podemos ter acesso ao Filho(..) para que por meio de sua pessoa, Ele, que por ela nos foi dado, pudesse nos levar a Ele”. O termo Mediadora se referia a esses dois aspectos da condição de Maria como mediadora. (PELIKAN, 2000, p. 178)

A condição de mediadora de Maria, segundo Pelikan, foi especialmente representada a partir da Idade Média e um grande número de obras com esta temática pode ser encontrado na poesia, na prosa e nas artes visuais. Neste período a definição de Maria como mediadora de forma sistemática pela teologia foi um considerável subsídio que dialogou com o crescimento de expressões devocionais subjetivas gerando “uma conexão criativa com o crescimento de sua mais importante expressão subjetiva, da forma literária da Mater Dolorosa” (PELIKAN, 2000, p.172). Esta representação figura a dor e a alegria de Maria, que diante da morte do Filho sofre a dor da perda e se compadece, mas simultaneamente se alegra em função do cumprimento da profecia, do mistério da Salvação que doa a vida Eterna na Beleza que transcende a morte. Ele afirma que a partir deste período, encontram-se representações que figuram “Maria como Mater Dolorosa (Mãe Sofredora) e na doutrina correlata que a considerava Mediadora” (PELIKAN, 2000, p.171).

Bruno Forte destaca esta condição arquetípica de Maria, ao apresenta-la como ícone do Mistério. A condição de mediadora, para Bruno Forte ocorre devido ao encontro entre o Eterno e a finitude humana que se deu em Maria. Ele enfatiza que ela foi território de manifestação da Beleza do Eterno, e lugar onde o mistério da Encarnação se consumou nas entranhas do tempo. Por isso Maria é ícone do Mistério e irradia a luz do Eterno que nela habitou. Assim sendo, Maria é mediadora da experiência religiosa devido à sua condição humana traspassada pela Beleza divina, de onde irradia a luz da Beleza que salva “na qual os raios da beleza humana se encontram com os sobre-humanos, mas acessíveis, da beleza sobrenatural” (FORTE, 1991, p.17). Este encontro do Eterno no tempo, presente na humanidade de Maria, a tornou a criatura humana mais próxima da densidade do Mistério revelado.

A mediação da experiência religiosa pela beleza das imagens marianas ocorre em duas dimensões. A primeira devido à representação da figura de Maria, que para Bruno Forte é em si um ícone da Beleza divina, e irradiada em sua beleza humana ela “deverá remeter continuamente à excedência da vida” (FORTE, 1991, p.16) e ao Mistério que a envolveu. A segunda ocorre pela dimensão simbólica das imagens, que para ele se tornam lugar de manifestação do sagrado, por evocar o Mistério que simboliza e representar um ícone da beleza divina. Por isso, “o símbolo e o mito- exprimem o significado transcendente de Maria” (FORTE, 1991, p.16). Ao apresentar Maria como mediadora, ele a apresenta como porta da Beleza, pois não aponta para si, mas sinaliza a beleza do mistério que nela habitou, desta forma ele afirma: “A via da beleza, unida à via da verdade, impele assim a se reconhecer em Maria o valor de um ícone, figura que remete densamente à Transcendência entrada na imanência do mundo, precisamente pela ‘porta da salvação, que foi a Virgem Mãe” (FORTE, 1991, p.18).

As imagens marianas se tornam um possível elemento de mediação da experiência religiosa, pela sua dimensão simbólica e pela dimensão da beleza da composição da representação em sua materialidade, como fragmento. Desta maneira, a reflexão sobre a beleza divina revelada no fragmento do tempo se aplica }às imagens marianas, onde nelas se “ oferece de algum modo, o “Todo no fragmento”: a sua autonomia relativa não é absolutização indevida ou separação arbitrária, mas espaço para se delinearem os traços de um ícone no qual se reflita a totalidade” (FORTE, 1991, p.34-35).

Considerações finais

As imagens marianas representam um importante elemento de mediação da experiência religiosa. Em suas diferentes representações, a beleza das imagens diz mais que o conceito e a mariologia simbólica comunica de forma profunda a densidade teológica que condensa a figura de Maria. Assim, Bruno Forte afirma o símbolo como: “um modo pelo qual a fadiga do conceito dá glória ao Eterno” (1991, p.11). Desta forma a experiência estética da beleza simbólica expressa nas imagens se constitui em autêntica experiência religiosa no que ela narra e evoca.

Em sua dupla função, as imagens marianas proporcionam uma experiência religiosa, possibilitando ao devoto ou observador assimilar mensagens que constituem um imaginário religioso simbólico estabelecido em torno das devoções marianas através do diálogo com a imagem, e integrar a mensagem narrada no símbolo a seu imaginário. Desta forma, entre a beleza da imagem e o observador se estabelece “um campo de trocas de sentido entre sujeitos devotos e o campo imagético devocional” (LOPES, 2003, p.8). E na beleza simbólica da imagem ainda se encontra um possível espaço de manifestação do Mistério, através da contemplação aberta à escuta do Outro que se revela na beleza do fragmento da imagem.

Ao propor um caminho de reflexão sobre a beleza, Bruno Forte aponta a experiência estética como possível caminho de encontro com o Mistério. O autor mostra que a experiência da beleza na contemplação de uma obra de arte acontece na escuta dócil do devir do advento da Beleza. Portanto, uma obra de arte é fragmento que se torna possível espaço de manifestação e acolhida do Mistério, e a imagem se configura um espaço de encontro coma Beleza que ela evoca nos elementos simbólicos expressos em sua forma.Na contemplação do fragmento das imagens marianas,que figuram de forma simbólica a densidade teológica de Maria e sua beleza icônica, fulgura uma luz que irrompe e transcende a finitude do tempo, revelando uma Beleza que penetra as profundezas da alma humana e deixa marcas em seu fragmento, que se configuram em marcas de beleza.

Desta maneira, a contemplação das imagens marianas pode conduzir a uma experiência estética religiosa autêntica e profunda. Pois, assim como a Beleza traspassou a finitude de Maria e habitou nas entranhas do tempo, a beleza das imagens marianas marcadas pela presença da Beleza se torna mediação de uma experiência religiosa, pois é símbolo que diz, sinal que evoca, e porta que conduz ao Mistério.

Referências:

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FORTE, Bruno. A porta da beleza: por uma estética teológica. Aparecida: Ideias&Letras, 2006.

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PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos. Seu papel na história e na cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

Notas

[1]O autor destaca uma dupla função no símbolo: uma presença e uma ausência na forma que expressa e evoca um sentido ou o significante a qual ele figura. Cf. LOPES, 2003, p.1.

[2]Bruno Forte, teólogo e filósofo contemporâneo, possui formação e doutorado nas duas áreas do conhecimento, em 1974 conclui doutorado em teologia, e em 1977 o doutorado em filosofia. Publica reflexões acerca de diferentes temáticas, com ênfase em teologia, filosofia, ética, arte e cultura. Possui uma ampla e consistente produção acadêmica através do diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. É arcebispo de Chieti-Vasto na Itália, membro do Conselho Pontifício para a Cultura.

[3]É importante destacar que nem sempre obra de arte e imagem religiosa coincidem num mesmo objeto, podem ser criadas e existir com perspectivas distintas, mas ainda possuir a dupla função do símbolo. Ou podem coincidir quando uma imagem religiosa é uma obra de arte, e posteriormente pode gerar muitas reproduções da mesma obra, em imagens, impulsionadas por uma devida devoção, como ocorre com muitas das representações marianas.