Migrações e deuses de ontem e de hoje: perspectivas a partir de Deuses americanos de Neil Gaiman
Migrations and Gods of Yesterday and today: Perspectives from the American Gods of Neil Gaiman

Carlos Caldas
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2000), pós-doutor em Teologia (PNPD-CAPES) pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Email: crcaldas2009@ hotmail.com
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Resumo
O presente artigo apresenta os temas da migração humana e da grande variedade de crenças e tradições religiosas a partir do livro Deuses americanos, do escritor inglês Neil Gaiman (n. 1960). Migrações e deuses de ontem e de hoje são o tema da mencionada obra. A metodologia empregada foi bibliográfica, através de uma exploração da mencionada obra, a partir da perspectiva das migrações humanas. O objetivo do artigo é mostrar como estes dois temas, tão antigos quanto a própria humanidade, foram apresentados pela via da literatura na citada obra de Gaiman.

Palavras chave:Geografia da religião – Literatura e religião – Fantasia – Mito – Migrações

 

Abstract
This article presents the themes of human migration and the great variety of beliefs and religious traditions in British author Neil Gaiman’s American Gods. Gaiman (b. 1960) has as his chief themes in the aforementioned novel those two realities, that are human migration and a number of religious traditions all over the world. The methodology used to achieve the goal of showing how Gaiman deals with those two realities in his work was bibliographical, through an exploration of his book from the perspective of human migration. The aim of this article is to show both themes, so ancient as humankind itself, were presented through literature in the already mentioned novel of Neil Gaiman.

Keywords:Geography of Religion – Literature and Religion – Fantasy – Mith – Migration

Religião/religões-migração/mobilidade humana – desde a aurora dos tempos, quando o homo sapiens começou suas andanças pelo planeta, estas duas realidades acontecem simultaneamente. A sede humana pelo divino, pelo transcendente, e o fato do humano, por motivos diversos, ter que se deslocar são fatos que andam (literalmente!) de mãos dadas. Há indícios e evidências arqueológicas de preocupação religiosa de pelo menos 30.000 anos antes de Cristo (ARMSTRONG, 2011, p. 21-22). A mesma historiadora das religiões britânica Karen Armstrong descreve o roteiro seguido pelo que provavelmente foi uma das primeiras junções de religião e migração humana na história:
Sabemos que o xamanismo surgiu na África e na Europa paleolítica e chegou à Sibéria, de onde se difundiu para a América e a Austrália, onde o xamã ainda é o líder religioso dos povos indígenas caçadores. Apesar da inevitável influência de civilizações vizinhas, muitas estruturas originais dessas sociedades, que se mantêm num estágio semelhante ao do Paleolítico, permaneceram intactas até o final do século XIX. Hoje, há uma notável continuidade nas descrições do vôo extático do xamã, desde a Sibéria até a Terra do Fogo, passando pelas Américas (ARMSTRONG, 2011, p. 23).

Introdução

Se a descrição proposta por Armstrong estiver correta1, o tema da ligação entre religião e migração assumirá uma importância que até o momento em grande parte não lhe tem sido devidamente concedida pela maioria dos estudiosos e cientistas de religião. “Em grande parte” – não completa nem totalmente – porque há estudos na chamada geografia da religião. O geógrafo brasileiro Clevisson Junior Pereira explica da seguinte maneira as relações entre geografia e religião:

Religião e Geografia podem ser compreendidos (sic) como saberes humanos distintos, mas com muitas relações. São duas formas de (re)ação no espaço: a religião normatiza alguns procedimentos dos homens em relação ao espaço; e, por sua vez, o conhecimento geográfico proporciona capacidades estratégicas de atuação no espaço. Os espaços de ação de ambas são os sociais, culturais, políticos, econômicos, etc. Vemos, assim, que essas duas formas de conhecimento atuam nas várias dimensões que circundam a vida comum do ser humano (PEREIRA, 2013, p. 12)

De fato, a geografia da religião2, em conjunto com a sociologia da religião, tem sido usada por pesquisadores que têm se dedicado a estudar, por exemplo, as relações dinâmicas complexas entre religião e diásporas e a transnacionalização de movimentos religiosos3, como por exemplo, o neopentecostalismo brasileiro da Igreja Universal do Reino de Deus4. Estudos nesta linha focalizam os trânsitos religiosos não na perspectiva da migração individual de uma pessoa em seu ambiente vivencial de uma tradição religiosa para outra (como um católico que se torna evangélico no México ou no Brasil), mas de um grupo humano que muda de ambiente vivencial, levando consigo suas tradições religiosas. Quando tal acontece, ao chegar ao novo destino, aquela tradição religiosa permanecerá mais ou menos intacta, dependendo de quanto contato terá com os grupos já existentes naquela região.

A literatura pode ser uma fonte para a pesquisa das relações entre mobilidade humana e religião. De fato, várias obras literárias tratam deste tema, como por exemplo, José e seus irmãos, de Thomas Mann, e, na literatura brasileira, Canaã, de Graça Aranha. É exatamente este o objetivo do presente artigo, que visa examinar como o tema é tratado em uma obra recente, a saber, Deuses americanos, de Neil Gaiman. Por oportuno, é importante dizer que não há no presente artigo pretensão de esgotar as matérias, seja a da interpretação da obra de Gaiman, seja a da questão que envolve o relacionamento entre religião e migrações humanas ou ainda sobre a relação teórica entre teologia/religião e literatura/arte. O que se pretende é mostrar como Gaiman articula uma relação entre migração humana e religião, a partir do tema do mito, pela via da literatura. Este será o fio condutor do presente artigo. Em outras palavras: o artigo não pretende falar sobre religião e migração humana a partir de pesquisa historiográfica ou a partir de interpretação de estatísticas. A intenção do texto é apresentar o tema tendo como norte da bússola uma apresentação crítica do texto de Gaiman.

 Neil Gaiman e sua obra de ficção55

Neil Gaiman (n. 1960) é um aclamado ficcionista britânico, radicado desde 1992 nos Estados Unidos. Ele declara ter sido influenciado muito cedo pela obra de autores como C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, G. K. Chesterton e Edgar Alan Poe. Foi trabalhando como jornalista que Gaiman descobriu sua vocação de escritor, tendo publicado uma biografia de seu conterrâneo Douglas Adams, o autor da conhecida série Guia do mochileiro das galáxias, que faz paródia do gênero ficção científica (FC). Gaiman popularizou-se como autor de histórias em quadrinhos (HQs), tendo escrito a série Orquídea Negra, publicada por Vertigo, um selo ela DC Comics especializado em quadrinhos de tom mais sombrio, que por isso mesmo não são muito “comerciais”, e Sandman – esta, sem dúvida, sua obra mais famosa, que tornou-se grande sucesso mundial. Sandman recebeu vários prêmios, como o Will Eisner Comic Industry Awards e Harvey Awards. Autor prolífico, Gaiman tem escrito para públicos de diferentes faixas etárias. Dentre seus romances mais conhecidos estão Coraline, Morte, Os lobos dentro das paredes, O oceano no fim do caminho, Faça boa arte, Os filhos de Anansi, Lugar nenhum, Stardust, O dia de Chu, Como falar com garotas em festas, Dias da meia-noite e, mais recentemente, Mitologia nórdica. Deuses americanos, que se constitui no objeto de estudo propriamente do presente artigo, recebeu os importantes prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes prêmios literários para obras de fantasia e ficção científica nos Estados Unidos. Em 2017 a obra foi adaptada para a televisão, em forma de série, disponível para assinantes do canal de streaming Amazon Video. Por oportuno, esclareça-se que o presente artigo não vai tratar desta adaptação televisiva, mas do texto literário que a inspirou.

 Deuses americanos – síntese do enredo

Deuses americanos conta a estória de um homem chamado Shadow, que acaba de sair da prisão, e é contratado para ser motorista e guarda-costas de um homem misterioso chamado Wednesday. Relutante a princípio, Shadow não vê alternativa a não ser aceitar a proposta, pois recebe a notícia que Laura, sua esposa, e Robbie, seu melhor amigo, morreram juntos em um acidente automobilístico. Shadow e Wednesday partem em uma longa jornada pelos Estados Unidos. Esta road trip dominará praticamente toda a narrativa do livro. Eventualmente Shadow descobrirá que seu patrão é na verdade o deus escandinavo Odin6. No caminho, eles se encontram com seres sobrenaturais mitológicos, como Mad Sweeney, um duende irlandês (que, ao contrário da crença popular, é um homem extraordinariamente alto), e divindades de várias culturas, como o Sr. Íbis (o deus egípcio Tot), o Sr. Nancy (Ananse, uma divindade que aparece na tradição oral do folclore de vários grupos de povos do oeste africano), Easter (a deusa celta Ëostre), Mama Ji (Kali, a deusa indiana e hindu da destruição), um índio (“americano nativo”) chamado Whisky Jack (Wisakedjak, uma entidade da mitologia dos povos algonquinos), Czernobog (o deus eslavo da escuridão, irmão gêmeo de Bielebog, o deus da luz), as três irmãs Zorya (deusas da mitologia eslava, a Estrela da Manhã, Zorya Utrennyaya, a Estrela da Noite, Zorya Vechernyaya, e a Estrela da Meia-Noite, Zorya Polunochnaya)7. Wednesday/ Odin quer reuni-los para que eles lutem contra os novos deuses. Em sua jornada, Wednesday e Shadow são perseguidos por homens que parecem ser agentes do governo: Sr. World, Sr. Wood, Sr. Stone, Sr. Road, Sr. Town (respectivamente, Sr. Mundo, Sr. Madeira, Sr. Pedra, Sr. Estrada, Sr. Cidade)8. Enquanto Wood e Stone são grosseiros e violentos, Road e Town se mostram “urbanos” e “civilizados”. Shadow conseguiu pegar a moeda da sorte de Mad Sweeney, e a jogou sobre o túmulo de Laura, sua esposa. Mais tarde Shadow descobrirá que, com isso, ele fez com que ela voltasse à vida. Laura o ajudará, matando vários dos agentes que o perseguiam. Os novos deuses conseguem capturar Wednesday, e o matam. Preso por uma promessa que fizera ao seu patrão, Shadow repete um ritual que, conforme a mitologia nórdica, fora feito por Odin, que se deixou amarrar por nove dias a Yggdrasil, a árvore do mundo, que sustenta em seus galhos os nove mundos da cosmologia escandinava. Neste tempo, Shadow morre, visita o mundo dos mortos, onde é guiado por Tot, julgado por Anúbis, encontra Horus e Easter (“Páscoa”), que o traz de volta à vida.

À medida que a trama prossegue, Shadow se dará conta que toda aquela suposta guerra entre deuses antigos novos fora uma grande burla de Wednesday e Loki, o deus escandinavo da trapaça e do engano. A batalha entre deuses, que produziria uma inevitável matança, seria a maneira de restaurar os poderes de Odin e de Loki. Odin se fortaleceria pelos sacrifícios dos caídos em combate, e Loki, do caos da batalha. Este é o grande plot twist (“reviravolta no enredo”), que inclui ainda o fato de Shadow descobrir que ele próprio era filho de Odin. Quando Shadow explica esta situação aos deuses antigos, desmascarando o plano de Odin e de Loki, estes ficam decepcionados. Um dos deuses novos diz:

- Mas o senhor World falou...
- O senhor World não existe. Nunca existiu. Era só mais um de vocês tentando se alimentar do caos que ele mesmo criou (GAIMAN, 2016, p. 509).

A narrativa ainda mostrará, em seu Posfácio, de maneira um tanto desconexa com os relatos das viagens pelos Estados Unidos e da guerra entre os antigos e os novos deuses, uma viagem de Shadow a Islândia, onde encontrará uma encarnação de Odin, em forma de um ancião, que é mais próxima dos antigos relatos mitológicos nórdicos que o Wednesday que conhecera nos Estados Unidos. Enquanto conversam, o ancião diz a Shadow:

Sou o senhor dos aesires9. Sou o deus da forca.
- Você é Odin – concluiu Shadow.
O homem assentiu, pensativo, como se avaliasse o nome.
- Me chamam de muitas coisas, mas, sim, sou Odin, filo de Bor (GAIMAN, 2106, p. 551).

Deuses e migrações em Deuses americanos

Como se verá no próximo tópico deste artigo, a narrativa de Gaiman é entremeada de interlúdios, ou excertos, que na verdade constituem-se em digressões, no sentido que não contribuem em nada para a compreensão dos eventos em torno do arco ShadowWednesday.

Nestes interlúdios há descrições, algumas muito longas, de indivíduos, ou grupos inteiros, que migraram para a América do Norte (o atual território dos Estados Unidos) e neste processo, algumas vezes longo e lento, seus antigos deuses ficaram esquecidos. De todos, o interlúdio mais significativo é o intitulado Vinda à América, e seu subtítulo é 14.000 a. C. (GAIMAN, 2016, p. 394-399). A importância deste interlúdio está em sua antiguidade. Gaiman toma como pressuposto básico a conhecida teoria que os primeiros habitantes das Américas teriam vindo da Sibéria, região centro-norte da Eurásia, passando pelo Estreito de Bering (que separa a extremo leste da atual Rússia do Alasca) em longas migrações, que teriam ocorrido há milhares de anos. A suposição é que o Estreito de Bering, atualmente um braço do mar que separa a Ásia da América do Norte, era uma passagem terrestre há dezenas de milhares de anos. No relato de Gaiman,

Estava frio e escuro quando a visão a alcançou, pois no norte distante a luz era uma penumbra cinzenta nomeio do dia que vinha, e ia, e vinha outra vez: um interlúdio entre escuridões. Não era uma tribo grande, pela medida da época; nômades das planícies do norte. Tinham um deus, que era uma caveira de mamute e um couro de mamute transformado em manto grosseiro. Nunyunnini era como o chamavam. Quando não estavam viajando, ele repousava em uma estrutura de madeira da altura de um homem. Ela era a mulher sagrada da tribo, protetora dos segredos, e seu nome era Atsulua, a raposa. Atsula caminhava à frente dos dois homens que carregavam o deus da tribo em grandes estacas, oculto por peles de urso, para que não fosse visto por olhos profanos – não nos momentos em que ele não fosse sagrado. Vagavam pela tundra com suas tendas. A melhor das tendas era feita de couro de caribu, e a tenda era sagrada, e havia quatro pessoas lá dentro: Atsula, a sacerdotisa, Gugwei, o ancião da tribo, Yanu, o líder guerreiro, e Kalanu, a exploradora. Ela os convocou um dia depois de receber a visão (GAIMAN, 2016, p. 394).

Na sequência, a narrativa descreverá, diga-se de passagem, de maneira que parece ser muito plausível e factível, a entrada daqueles imigrantes vindos dos confins do norte da Ásia para seu novo lar, no extremo norte da América, de onde nos milênios seguintes teriam se espalhado cada vez mais, para o sul e para o leste:

Atsula morreu na base do penhasco, quando o sol de primavera brilhava alto no céu. Não viver para ver o Novo Mundo, e a tribo entrou naquelas terras sem sua mulher sagrada. Eles escalaram o penhasco e seguiram para o sul e depois para o oeste, até encontrarem um vale com água doce, e rios carregados de peixes prateados e cervos que jamais haviam conhecido o homem e que, de tão mansos, era preciso cuspir e pedir desculpas a seu espírito antes de matá-los [...]

E a época de gelo veio, e a época de gelo se foi, e o povo se espalhou pela terra e formou novas tribos e adotou novos totens: corvos e raposas, e preguiças-gigantes e gatos e búfalos enormes, cada animal um tabu que marcava a identidade da tribo, cada animal um deus. Os mamutes das novas terras eram maiores, mais lentos, mais ingênuos que os mamutes das planícies siberianas, e os cogumelos pungh, com seus sete pontos, aparentemente não existiam nas novas terras, e Nunyunnini nunca mais falou com a tribo. E, nos dias dos netos dos netos de Dalani e Kalanu, um grupo de guerreiros, que faziam parte de uma tribo grande e próspera, voltou de uma expedição para capturar escravos ao norte do lar deles, que ficava ao sul, e encontrou o vale do Primeiro Povo: eles mataram a maioria dos homens e capturaram as mulheres e muitas crianças. Uma das crianças, na esperança de ser poupada, levou-as a uma caverna na montanha, onde encontraram uma caveira de mamute, os restos esfarrapados de um manto de pele de mamute, um copo de madeira e a cabeça preservada de Atsula, o oráculo. Alguns guerreiros da nova tribo queriam levar os objetos sagrados, roubar os deuses do Primeiro Povo e se apropriar do seu poder, mas outros recomendaram o contrário, dizendo que isso atrairia apenas infortúnios e a crueldade de seu próprio deus (pois aquelas pessoas vinham de uma tribo do corvo, e os corvos são deuses ciumentos). Então jogaram os objetos nas profundezas de um vale e levaram consigo os sobreviventes do Primeiro Povo, que os acompanharam pela longa viagem até o sul. E as tribos do corvo, e as tribos da raposa, ficaram mais e mais poderosas, e logo Nunyunnini foi completamente esquecido (GAIMAN, 2016, p. 398-399).

Apenas este texto acima será reproduzido, pois o mesmo é suficiente para dar ideia do que o restante do livro apresenta. Estes desvios na narrativa como que seguem um padrão, variando apenas em tamanho. O objetivo de Gaiman é o mesmo: mostrar como povos chegaram à América do Norte, e seus antigos deuses foram esquecidos.

 Deuses americanos – considerações críticas

A premissa básica do livro é que os deuses só existem se são lembrados. Deuses esquecidos não podem existir. De fato, “nenhum deus consegue sobreviver se não é atualizado pela atividade prática do ritual” (ARMSTRONG, 2012, p. 33)10. Os Estados Unidos são apresentados como uma terra de migrações, que recebe os imigrantes com seus deuses. Só que, com o passar do tempo, os antigos deuses foram esquecidos, e no lugar deles, surgiram os novos deuses. Estes, curiosamente, são pouco mencionados na narrativa: a tecnologia11, o capitalismo, a mídia. São os deuses de plástico, como o cartão de crédito, e de celulose, como a mídia. Os entorpecentes também são apresentados como sendo os novos deuses. Pelo menos, é o que Shadow desconfia: “Um dos deuses novos – Shadow desconfiava de que fosse uma droga, pelo jeito como sorria, e cintilava e tremia” (GAIMAN, 2016, p. 509).Estes deuses são descritos brevemente, quando contrastados com os antigos: “Os velhos deuses são ignorados. Os novos são adotados tão rápido quanto são descartados e substituídos pela próxima novidade. Ou vocês foram esquecidos, ou têm medo de ficar obsoletos, ou talvez só estejam cansados de existir ao sabor do capricho humano” (GAIMAN, 2016, p. 508).

Os personagens no livro são pouco elaborados. Com exceção de Shadow e Wednesday, nenhum deles é bem desenvolvido. São mais arquétipos que personagens propriamente. O fato de nenhum deles ser bem desenvolvido é surpreendente, se for levado em conta o fato que Deuses americanos é uma obra de 558 páginas!

Comentou-se acima sobre como entidades de diferentes mitologias aparecem na trama. Curiosamente, não aparece nenhuma divindade da mitologia greco-romana, conhecida por de mais no Ocidente. Também não aparecem em nenhum momento entidades de povos mesoamericanos ou da América do Sul. Mas a ausência mais notável é a de qualquer referência à tradição judaico-cristã. A bem da verdade, a “edição preferida do autor”12 apresenta um breve encontro de Shadow com Jesus, no qual há um diálogo breve entre os dois, mas que não acrescenta muito à trama. É curioso que Gaiman tenha deliberadamente excluído de sua narrativa as duas tradições que plasmaram toda a cultura do mundo ocidental, isto é, a greco-romana e a judaico-cristã. Talvez com isso Gaiman queira contar uma história com um passado alternativo do Ocidente, no qual antigas culturas “pagãs”, como a nórdica e a celta, teriam tido importância maior que a que efetivamente tiveram e têm. Neste passado alternativo, Gaiman virtualmente exclui toda a importância do helenismo de um lado e da tradição judaico-cristã de outro, as duas grandezas que decisiva, definitiva e efetivamente deram forma ao imaginário religioso, cultural e simbólico do Ocidente.

Não se poderá negar a notável pesquisa feita por Gaiman de mitologias de diferentes culturas e grupos de povos, europeus, africanos e asiáticos, estudando por isso mesmo diferentes panteões. Isto poderá estimular a curiosidade de muitos leitores, que a partir da leitura de Deuses americanos provavelmente terão seu interesse desperto para descobrir mais sobre estas mitologias.

O já mencionado mote principal da narrativa, isto é, a tese que os deuses só existem se forem lembrados, talvez ofereça uma segunda camada de leitura, mais profunda que a da superfície, que apresenta uma luta de deuses. A leitura da obra apenas na perspectiva da primeira camada, tal como o Índio de Caetano, dirá o óbvio: Deuses americanos é uma fantasia na qual entidades mitológicas e sobrenaturais existem, e coexistem cmo seres humanos, sem que estes se apercebam da verdadeira identidade daqueles. Todavia, há a possibilidade de interpretar o texto a partir de uma segunda leitura. Nesta leitura, que “descasca” uma segunda camada do texto, um tanto mais profunda que a da superfície, é provável que Gaiman esteja criticando a efemeridade da sociedade, a cultura do descartável, na qual, conforme denunciado por Zygmunt Bauman, tudo é líquido. Se esta hipótese de leitura estiver correta, Deuses americanos não fala sobre deuses antigos em guerra contra deuses novos, mas sobre nós humanos. Desta maneira, o romance não trata da transcendência, mas da imanência, de como as pessoas vivem em uma sociedade na qual, como disse Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, “tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado”. Nesta sociedade, deuses são descartados e são substituídos por outros, e provavelmente este processo se repetirá no futuro. Gaiman não cita a Bíblia, mas o texto de Deuses americanos concordaria com o famoso refrão do Qohelet, o Eclesiastes (1.2): “Vaidade de vaidades, diz o Pregador, vaidade de vaidades, tudo é vaidade”13.

Nesta mesma linha, é preciso observar que há evidências textuais que sugerem ou indicam o fato que não há na narrativa uma preocupação verdadeiramente metafísica. Ao longo do texto são encontradas indicações que apontam para uma não preocupação com religião enquanto busca do transcendente. A narrativa sugere algo onírico, algo que, ao mesmo tempo, é e não é real. Alguns exemplos: em dado momento, o Sr. Town encurrala Shadow, apontando-lhe uma arma, pois ele acredita que o motorista de Wednesday matou alguns de seus colegas (Town não sabe que na verdade quem eliminou seus colegas fora Laura, que, tal como já mencionado, retornara do mundo dos mortos). Acontece um diálogo entre o agente dos novos deuses dialogo e Shadow:

- Você vai atirar em mim? – perguntou Shadow.
- Nossa... quem me dera – respondeu o Sr. Town. – Isso aqui é só para defesa pessoal. Rezando, é? Quer dizer que eles fizeram você acreditar que são mesmo deuses? Não são.
- Eu não estava rezando. Só pensando.
- Na minha opinião, eles são mutantes. Experimentos da evolução. Um pouco de habilidade hipnótica, um pouco de feitiçaria e pronto: conseguem convencer as pessoas de qualquer coisa. Banalidades. Só isso. Eles morrem como qualquer pessoa, no fim das contas (GAIMAN, 2016, p. 420).

Em outro momento, Shadow conversa com uma mulher que é a encarnação da deusa egípcia Bastet. Em dúvida se sua interlocutora é mesmo uma deusa, Shadow pergunta:

- Você está mesmo aqui? – perguntou.
A mulher inclinou a cabeça para o lado e o examinou com uma expressão séria, sem dizer absolutamente nada.
- O que você é? O que vocês são?
Bastet bocejou, exibindo uma perfeita língua rosa-escura14.
- Pense em nós como uma espécie de símbolo. Somos o sonho que a humanidade cria para dar sentido às sombras na parede da caverna (GAIMAN, 2016, p. 454).

Em outro momento, quando os deuses antigos se posicionam para a batalha contra os novos deuses, nas proximidades da Montanha Lookout15, e o narrador onisciente descreve uma cena com tons oníricos, quando diz:

Nada disso tinha como estar realmente acontecendo. Se precisar de alguma ajuda, você pode imaginar que se trata de uma simples metáfora. Afinal, religiões são, por definição, metáforas: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um ironista16, um pai, uma cidade, uma casa de muitos cômodos, um relojoeiro que deixou o melhor cronômetro no deserto, alguém que o ama – talvez até, apesar de tudo provar o contrário, um ser celestial cujo único interesse é garantir que seu time de futebol, seu exército, sua empresa ou seu casamento viceje, prospere e triunfe apesar de todos os reveses. As religiões são lugares onde se posicionar para olhar e agir, pontos a partir dos quais vemos o mundo. Dessa forma, nada disso está acontecendo. Esse tipo de coisa jamais poderia ocorrer nestes temos, nesta era. Nenhuma palavra aqui é uma verdade literal, embora tudo tenha acontecido (GAIMAN, 2016, p. 481).

A narrativa apresenta o que Shadow viu e ouviu nesta viagem fantástica, e suas impressões ao longo de todas as experiências que ele tem neste trajeto. O narrador onisciente mescla a narração dos fatos com que interpretações do que aconteceu, ou teria acontecido com Shadow:

Nem o Nada dura para sempre. Podia ter passado dez minutos, ou dez mil anos lá, naquele Lugar Que Não Era. Não fazia diferença. O tempo não era mais um conceito necessário. Não se lembrava mais de seu verdadeiro nome. Sentia-se vazio e purificado, naquele lugar que não era um lugar. Não tinha forma. Não tinha matéria. Não era nada (GAIMAN, 2016, p. 483).

Conforme o narrador onisciente, que revela o pensamento de Shadow, ao mesmo tempo em que insere seus próprios comentários,

As pessoas acreditam, pensou. É isso que as pessoas fazem: acreditam. E depois não assumem a responsabilidade por suas crenças. Conjuram coisas e não confiam nas próprias conjurações. As pessoas povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons, histórias. As pessoas imaginam e acreditam: e é essa crença, essa crença sólida, que faz tudo acontecer (GAIMAN, 2016, p. 506-507).

Certamente também a obra fala da importância dos mitos e sua construção na constituição do ser humano enquanto indivíduo, e nas sociedades humanas. Gaiman não apresenta o mito na perspectiva que o faz Eliade, que trata do “mito cosmogônico como modelo exemplar para toda espécie de criação e construção”(ELIADE, 1992, p. 41). Conforme Eliade o mito é importante em uma sociedade, desempenhando nela papel de destaque, porque revela “o surgimento do Cosmo” (ELIADE, 1992, p. 41) e “como uma realidade veio à existência” (ELIADE, 1992, p. 42). Os mitos, cosmogônicos e de origem, são tentativas de explicação e de resposta para a pergunta que todos os povos sempre tiveram (e têm) quanto ao que aconteceu in illo tempore, “naquele tempo”, isto é, o tempo dos princípios (ELIADE, 1992, p. 44).

Tal como afirmado no parágrafo anterior, mesmo en passant, não é neste sentido explicado por Eliade que Gaiman retrata os mitos em Deuses americanos. A abordagem de Gaiman é no sentido de mostrar como não há povos sem mitos. Todos os povos constroem seus mitos, porque estes de alguma maneira lhes dão ordem ao mundo interior e, por isso mesmo, são importantes para seu equilíbrio psicológico e emocional.

Ao utilizar o tema das crenças mitológicas dos povos que migraram para a América do Norte como o leitmotiv de Deuses americanos, Gaiman usa de licença poética, recriando os mitos antigos. Exemplo: à medida que a viagem pelos Estados Unidos acontece, Shadow vai se dando conta que Wednesday é mentiroso e trapaceiro. Em dado momento, acontece o seguinte diálogo:

- Você nunca se cansa de mentir? – perguntou Shadow. Falou com delicadeza, genuinamente curioso.
- Nem um pouco. Mas nesse caso estou dizendo a verdade mesmo. Estamos fazendo a maior aposta de todas (GAIMAN, 2016, p. 272).

Esta recriação é curiosa, porque nos mitos nórdicos quem é o deus da trapaça e do engano é Loki, não Odin. Mais tarde, no final da narrativa, será revelada a razão de porque Wednesday/Odin trapaceou e enganou a todos o tempo todo. Usando (e abusando) de licença poética, Gaiman reconta os mitos para servir aos seus propósitos literários.

Em suma: Deuses americanos não é leitura despretensiosa nem fácil. De fato, o texto é enganosamente simples. Por detrás de uma aparente obviedade há sugestões críticas que podem ser utilizadas por estudiosos e cientistas da religião em diálogo com o texto literário. A primeira leitura do texto, isto é, a leitura do nível da superfície, também tem seu proveito, visto que Gaiman, tal como já afirmado, realizou extensa pesquisa sobre mitologias de diversos povos, o que pode ser útil para estudiosos de religiões comparadas, especialmente em cursos de Ciências da Religião em nível de graduação.

Na obra em questão, Gaiman parece fazer uma “extradição” dos mitos, notadamente, os mitos nórdicos, visto que o fio condutor de toda a narrativa é a mitologia escandinava. Nesta “extradição” os mitos são retirados de suas culturas originárias e são recontados para contextos culturais outros que não os originários. Desta maneira, os leitores também são “extraditados”, visto que não pertencem ao ambiente cultural e simbólico da origem do mito. Desta maneira, o processo de recepção do mito obrigatoriamente passará pela subjetividade dos leitores, visto que eles, como afirmado, são de contextos culturais que não os da origem do mito e seus receptores originais, pela via da tradição oral.

O presente artigo não pretende esgotar as possibilidades interpretativas do texto de Deuses americanos. Usando a conhecida metáfora da cebola, é muito possível que haja outras camadas a ser descobertas neste texto. Quem se dispuser a mergulhar no texto haverá de descobrir possibilidades fecundas de diálogo entre os estudos de religião e a literatura.

Referências

ARMSTRONG, Karen. Em defesa de Deus. O que a religião realmente significa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992

 FRESTON, Paul. A Igreja Universal do Reino de Deus na Europa. Lusotopie, 1(2), 1999, p. 383-403

 GAIMAN, Neil. American Gods. New York: Harper Torch, 2001

GAIMAN, Neil. Deuses americanos. Edição preferida do autor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016

 GAIMAN, Neil. Neil Gaiman. Site oficial do autor. Disponível em: ˂www.neilgaiman.com> Acesso em: 07 set 2017

GIL FILHO, Sylvio Fausto. Geografia da Religião. In PASSOS, João Décio. USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulus. São Paulo: Paulinas, 2013

 ORO, Ari Pedro, STEIL, Carlos Alberto, RICKLI, João. Transnacionalização religiosa. Fluxos e redes. Porto Alegre: Terceiro Nome, 2012

 PEREIRA, Clevisson Junior. Geografia da religião: um olhar panorâmico. RAEGA. Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná. 27 (2013), p. 10-37. Disponível em: ˂file:///C:/ Users/Home/Downloads/30414-111663-1-PB.pdf>Acesso: 07 set 2017  

 ROCHA, Cristina & VÁSQUEZ, Manuel (Orgs.). The Diaspora of Brazilian Religions. Leiden: Brill, 2013

Notas

[1]O uso da conjunção condicional “se” é inevitável, visto não haver efetivamente nenhum registro escrito, nem tampouco qualquer evidência arqueológica concreta de migrações que seguiram a rota descrito por Armstrong. Talvez estudos de paleogenética (que combina pesquisas de paleontologia e genética) possam comprovar elementos de DNA comuns em indivíduos de sociedades tão distantes uma da outra como os fueguinos (dos quais atualmente há apenas poucas centenas remanescentes) e siberianos, o que demonstraria o acerto da proposição da historiadora inglesa.

[2]Para um panorama histórico e crítico dos estudos de geografia da religião, no Brasil e no mundo, consultar GIL FILHO (2013, p. 275-286).

[3]Inter alia, ORO, STEIL, RICKLI (2012). ROCHA, VÁSQUEZ (2013). 4

[4]Inter alia, FRESTON (1999, p. 383-402).

[5]As informações biobliográficas sobre Gaiman são retiradas de seu site oficial: www. neilgaiman.com

[6]Há aí uma brincadeira com as palavras feita por Gaiman, porque Wednesday em inglês arcaico significa literalmente “dia de Odin” (Woden’s Day, “dia de Woden”, mais tarde, Odin).

[7]Outras entidades sobrenaturais aparecem na trama, como o Barão de Samedi, da mitologia do Haiti, o deus egípcio Horus e o hindu Ganesha, e ainda outras, que são mencionadas uma única vez.

[8]A tradução da “edição preferida do autor”, publicada no Brasil pela Editora Intrínseca, utilizada para a confecção do texto desta apresentação, optou pela não tradução destes, e de outros nomes de personagens da trama. Esta opção, por um lado é acertada, porque traduções literais ficariam grotescamente sem sentido. Mas por outro lado, há o risco de leitores que não têm acesso à língua inglesa que não consigam captar as nuances envolvidas nos jogos de palavras utilizados por Gaiman em sua obra.

[9]Os aesires na mitologia nórdica formam uma espécie de casta de deuses. Os mais conhecidos, como Odin, Thor, Balder e Frigga são aesires. Há outro grupo de deuses, os vanir. O fato desta encarnação de Odin assumir sua identidade a Shadow mostra a diferença entre ele e Wednesday, que em nenhum momento se identifica como o rei dos deuses.

[10]Na parte final da narrativa, o índio Whiskey Jack diz a Shadow: “Veja só, os deuses morrem quando são esquecidos. As pessoas também”. (GAIMAN, 2016, p. 487).

[11]De maneira deliberadamente estereotipada, Gaiman apresenta o deus da tecnologia como sendo um adolescente gordo com espinhas, ou seja, um garoto que fica a maior parte do tempo diante de uma tela de computador. Curiosamente, o deus da tecnologia não tem um nome próprio. Na edição original é chamado apenas de Tech Boy – “garoto técnico”, ou algumas vezes de Fat Boy – “garoto gordo”.

[12] A edição original de Deuses americanos é de 2001. Em 2003 foi publicada uma “edição preferida do autor”, com 12.000 palavras a mais. No Brasil a edição original foi publicada em 2002 pela Editora Conrad, e a “edição preferida do autor” (utilizada neste trabalho), em 2016, pela Intrínseca.

[13]Eclesiastes 1.2, Almeida Revista e Atualizada no Brasil. No hebraico encontra-se a palavra hebel (o mesmo nome Abel na narrativa do Gênesis), que significa literalmente “sopro” ou “vapor”, traduzida por “vaidade”, em português e nas demais línguas europeias. A ideia é de algo breve, fugaz, passageiro, tal como Abel, que teve vida curta...

[14]Na mitologia egípcia Bastet é apresentada como uma mulher com cabeça de gato (ou de gata). A mulher com quem Shadow se encontrou tem toda a aparência humana, menos a língua, que é felina.

[15]A Montanha Lookout (“sentinela”) localiza-se na Georgia, nas proximidades da divisa com o Alabama.

[16] A palavra ironista é reconhecida pela norma culta da língua portuguesa. No original aparece a palavra ironist (GAIMAN, 2001, p. 508) que seria melhor traduzida por “comediante” ou “humorista”.