Ética e estética no universo Gentileza. Profecia na cena urbana do Rio de Janeiro
Ethics and aesthetics in the universe kind. Prophecy in the urban scene of Rio de Janeiro
Alessandro Rodrigues Rocha*
* Graduado em Teologia pelo CES/JF e em Filosofia pela Universidade Católica de Petrópolis, Especialista em Educação pela PUCMinas e em Ciências da Religião pela Universidade Gama Filho, Mestre em Teologia STBSB e em Artes pela Unigranrio, Doutor em Teologia pela PUC-Rio, Pós-doutor em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa e em Letras pela PUC-Rio. Contato: alessandro. rodrocha@gmail.com.
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Resumo
O artigo “Ética e estética no universo Gentileza. Profecia na cena urbana do Rio de Janeiro” analisa o universo gentileza, ou seja, o locus de atuação do personagem José Datrino, conhecido como Profeta Gentileza, bem como sua performance estética e leterária1 na cena urbana do Rio de Janeiro. Ao longo do artigo dialogaremos com esse personagem da cultura de forma intertextual, relacionando a figura do profeta Gentileza com profetas da tradição bíblica. O objetivo principal será mostrar que na figura do profeta, ética e estética se relacionam constituindo uma est-ética. Portanto, o teológico (em perspectiva popular) e o literário (em sua expressão marginal), se imbricam na afirmação de uma discursividade teoliterária. Para tanto percorreremos o seguinte caminho: em primeiro lugar a proposição de uma estética crítica como superação da descontinuidade Ética Estética; em segundo lugar a indicação da estética crítica como chave hermenêutica para a existência profética, o que será feito a partir de uma leitura intertextual da existência profética.
Palavras chave:Profeta Gentileza, Estética, Interdisciplinaridade.
Abstract
The article “Ethics and aesthetics in the universe kind. Prophecy in the urban scene of Rio de Janeiro” analyzes the universe kind, i.e., the locus of activity of José Datrino, known as Gentileza, as well as your performance aesthetics and literary form in the urban scene of Rio de Janeiro. Throughout the article enter into with this character of intertextual form, relating to the figure of the Prophet kindness with prophets of biblical tradition. The main goal will be to show that the figure of the Prophet, ethics and aesthetics are constituting a est-ethics. Therefore, the theological (in perspective) and the literary (in your marginal expression) if cross in asserting a discursivity teoliterária. To this end we will go through the following path: firstly the proposition of critical aesthetics as overcoming the discontinuity Aesthetic Ethics; Secondly the indication of critical aesthetics as the key to prophetic interpretation, what will be done from an intertextual reading of prophetic existence.
Keywords:Gentileza, Aesthetics, Interdisciplinarity.
Introdução
Cada elemento de uma obra nos é dado na resposta que o autor lhe dá, a qual engloba tanto o objeto quanto a resposta que a personagem lhe dá (uma resposta à resposta); neste sentido, o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam; na vida, porém, essas respostas são de natureza dispersa, são precisamente respostas a manifestações particulares e não ao todo do homem, a ele inteiro; e mesmo onde apresentamos definições acabadas de todo o homem – bondoso, mau, bom, egoísta, etc. - , essas definições traduzem a posição prático vital que assumimos em relação a ele, não o definem quanto fazem um certo prognóstico do que se deve e não se deve esperar dele, ou, por último, trata-se apenas de impressões fortuitas do todo ou de uma generalização empírica precária; na vida não nos interessa o todo do homem mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra (...) Já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseiam numa resposta única ao todo da personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra. É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único e também semântico (BAKHTIN, 2003, p.34).
Mikhil Bakhtin, introduzindo o capítulo O autor e a personagem, observa que há uma topografia própria para a vida e outra para a arte. À vida se destina o fragmentário: os atos alheios que nos interessam porque são também os nossos; à obra de arte, porém, dirige-se a ocupação com o todo, mesmo que a partir do particular, na perspectiva de integração estética da personagem.
Este acento topográfico marca certa descontinuidade entre ação-reflexão e a contemplação, e, por decorrência, entre ética e estética. Esta descontinuidade, porém, e o que é mais grave, não se dá em segmentos distintos e distanciados da vida, mas no próprio indivíduo que percebe seu ser cindido entre o que é e o que cria.
Em face de tal distinção entre ação e contemplação e, sua decorrente distinção entre estética e ética, emerge na história da cultura um personagem que desafia tais esquemas dualistas. Tal personagem é o profeta. Próprio das tradições religiosas, mas não exclusivo delas, o profeta integra em sua performance o ser e a representação.
Ao longo desse artigo trabalharemos com esse personagem da cultura de forma intertextual, relacionando a figura do profeta Gentileza1 com profetas da tradição bíblica. O objetivo principal será mostrar que na figura do profeta ética e estética se relacionam constituindo uma est-ética. Para tanto percorreremos o seguinte caminho: em primeiro lugar a proposição de uma estética crítica como superação da descontinuidade Ética Estética; em segundo lugar a indicação da estética crítica como chave hermenêutica para a existência profética, o que será feito a partir de uma leitura intertextual da existência profética.
1 – A Estética Crítica como superação da descontinuidade Ética Estética.
Essa descontinuidade entre estética e ética, contemplação e ação, criado e vivido – que para alguns deve ser criticada e superada – presente nas diversas formas de discurso artístico, em alguns momentos, toca em seus limites últimos. Surge uma nova forma de ser no mundo, um outro jeito de lidar com a realidade (que agora é tanto aquela determinada quanto a que se imaginava imaginária). Nasce um outro tipo de discurso que rompe com o esteticamente aceitável e com o topograficamente seguro. Uns diriam que nesse momento (que não é aquele instante, mas uma eternidade que encarna um tempo concreto) nasce um louco, outros (mais sábios quem sabe), testemunhariam o vir-a-ser de um profeta.
Essa ação discursiva que emana da integralidade do ser do louco/profeta, marca certa fusão da vida e da obra de arte, que se encontram em tal coerência que uma e outra são tanto éticas quanto estéticas. A este momento limiar de superação linguístico-existencial chamamos Estética Crítica. A distância entre a vida do “autor” e de seu “personagem” é resumida ao espaço de um devir onde é a mesma a topografia do vivido e do criado. O criado é a exteriorização do vivido (ou do desejo de), e o vivido é a própria ontologia do criado.
Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa e daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa (BAKHTIN, 2003, p.21).
Aqui se encontra o peso da existência profética: sua fala não é lançada ao futuro, ela não se dirige ao não-tempo que se poderia apreender pela descomprometida contemplação. Antes, ela fala do, e, sobretudo, para o agora, no sentido de chamá-lo a conversão, a fim de que se constitua num devir planificado.
O termo “profeta” – tomado do grego para designar uma condição estranha à cultura grega – nos enganaria se nos convidasse a fazer do nabi aquele que diz o futuro. A profecia não é apenas uma fala futura. É uma dimensão da fala que a compromete em relações com o tempo muito mais importantes do que a simples descoberta de certos acontecimentos vindouros. Prever e anunciar algum futuro é pouca coisa, se esse futuro se insere no curso ordinário da duração e se exprime na regularidade da linguagem. Mas a fala profética anuncia um futuro impossível, que não poderíamos viver e que deve transtornar todos os dados seguros da existência. Quando a palavra se torna profética, não é o futuro que é dado, é o presente que é retirado, e toda a possibilidade de uma presença firme, estável e durável (BLANCHOT, 2005, p.114).
Compreendemos que é exatamente a Estética Crítica que possibilita ao profeta tomar aquilo que estava destinado à relação estética, portanto contemplativa, e, vazando-a pela dimensão ética, apresentá-la como o devir kairológico que constitui o mundo-pleno. O estético e o ético, na perspectiva da Estética Crítica, formam o binômio ontológico da existência profética. Mais do que isto, estético e ético fundem-se para gerar a est-ética.
Segundo a Estética Crítica a existência profética é est-ética, assumindo nela mesma o “mundo impossível”, o não-mundo, e fazendo deste, numa dinâmica integradora, a única possibilidade de vivência do mundo-pleno: “o profeta de Deus é um louco, o homem inspirado é um maluco” (BLANCHOT, 2005, p.125).
2 – Estética Crítica como chave hermenêutica para a existência profética: lendo intertextualmente a existência profética.
A Estética crítica, que estamos propondo, é uma ferramenta para a crítica teoliterária, uma perspectiva de abordagem à literatura capaz lidar com determinados espaços (ou as vezes gêneros) literários limítrofes, onde o fulgor revela sua densidade teológica, que consciente ou não, irrompe no discurso, marcando-o em sua totalidade.
Esta ferramenta constitui-se também numa hermenêutica teoliterária. Há, portanto, um lugar de leitura específico a ser afirmado, um ponto de vista sobre a discursividade literária (em suas experiências de fulgor) que marca a superação do binômio estética–ética, pela expressividade sintético-integradora est-ética.
A Estética Crítica, como hermenêutica da experiência teoliterária, tem um olhar específico sobre a vivência profética e toda a discursividade que dela advém. Tendo dito que o profeta (o Gentileza, mas antes dele vários outros companheiros seus) assume a dramaticidade de seu espaço de missão, integrando-a em sua existência, para a partir dela criticar esse espaço, propondo um outro como o próprio da vida plena, é preciso ainda afirmar, que a interpretação desta existência deve superar a leitura simbólica.
A experiência do profeta com a realidade não é simbólica, isso já seria afirmar uma percepção dicotômica acerca do real. Antes, o profeta e sua profecia devem ser lidos com a força densa da concretude de sua visão e, de suas atitudes.
A leitura simbólica é provavelmente o pior modo de ler um texto literário. Cada vez que somos incomodados por uma leitura mais forte, dizemos: é um símbolo. Esse muro que é a Bíblia se tornou, assim, uma suave transparência em que se colorem de melancolia as pequenas fadigas da alma (...) Entretanto, se as palavras proféticas chagassem até nós, o que elas nos fariam sentir é que não contém nem alegoria nem símbolo, mas que, pela força concreta do vocábulo, elas desnudam as coisas, nudez que é como a de um imenso rosto que não vemos e que, como um rosto, é luz, o absoluto da luz, assustadora e encantadora, familiar e inapreensível, imediatamente presente e infinitamente estrangeira, sempre por vir, sempre por descobrir e mesmo por provocar, embora tão legível quanto pode ser a nudez do rosto humano: nesse sentido somente, figura. A profecia é uma mímica viva (BLANCHOT, 2005, p.122).
É exatamente essa literalidade, que marca o profeta em seu ser-no-mundo, que precisa estar presente na atitude hermenêutica de quem se coloca diante de seus textos, ditos, artefatos, silêncios...É isso que queremos fazer, em dinâmica intertextual, a partir da est-ética do profeta Gentileza, e de um profeta da tradição bíblica. Começaremos por este último: Oséias. Nossa intenção, com esse exercício, não é outra senão perceber brevemente a superação do distanciamento entre o estético e o ético, do autor (entorno) e de sua personagem (missão).
O quadro no qual Oséias desenvolveu sua existência profética era o seguinte: o povo estava se desviando de sua relação com Javé e sua lei e, adorando outros deuses. Esse afastamento significava todo um processo de corrupção no seio daquela sociedade. Airton José da Silva percebe três categorias negativas relacionadas com o entorno da profecia de Oséias:
• A falta de conhecimento de Deus, que se manifesta como ausência de fidelidade e solidariedade;
• As desordens sociais, causadas pela falta de conhecimento: perjúrio, mentira, assassínio, roubo, adultério, homicídio;
• A morte, com a degradação do universo. As feras, pássaros e os peixes desaparecem. O homem fenece (SILVA, 1998, p. 76).
Essa situação é descrita pelo profeta Oséias nos seguintes termos:
O vinho e o licor tiram a razão. O meu povo consulta um pedaço de madeira, e seu bastão lhe dá uma resposta, porque um espírito de prostituição os extravia e eles se prostituem, afastando-se do seu Deus. Vivem oferecendo sacrifícios nos altos dos montes, queimando incenso sobre as colinas ou debaixo de um carvalho, de um salgueiro ou de um terebinto, cuja sombra lhes agrade. Por isso, as filhas de vocês se prostituem e as suas noras cometem adultério. Eu não vou castigar suas filhas por se prostituírem, nem suas noras por cometerem adultério, pois vocês mesmos andam com prostitutas e sacrificam com as prostitutas sagradas. Um povo sem entendimento caminha para a perdição. Se você se faz de prostituta, ó Israel, que não caia Judá no mesmo pecado! Deixem de fazer romarias a Guilgal (...) Efraim se aliou aos ídolos, e se fez acompanhar de beberrões; entregaram-se a prostituição, preferiram a desonra à dignidade (Os 4, 11-18).
Esse é, portanto, o entorno no qual o profeta estava vivendo sua missão. É o não-mundo que Oséias deveria assumir, não só em sua mensagem, mas na vida, como experiência sua, para somente a partir daí poder formular seu discurso profético. Não há uma realidade a ser contemplada para a qual se poderia dirigir um juízo ético. A realidade deveria ser assumida em sua própria estética, pois só desta forma a fala de Oséias representaria uma fala profética.
Esse não-mundo de Oséias é identificado pelo texto que citamos acima, pela prostituição. Prostituição é a categoria de vida que tanto o povo quanto o Estado estavam vivendo: “...vocês mesmos andam com prostitutas...”, ...você se fez de prostituta ó Israel...”. Esta é a realidade que deveria ser tocada pela fala profética. Esse era o não-mundo que deveria ser tornado mundo-pleno. Como fazê-lo?
Começo das palavras de Javé por intermédio de Oséias. Javé disse a Oséias: “Vá! Tome uma prostituta e os filhos da prostituição, porque o país se prostituiu, afastando-se de Javé”.
E Oséias foi e tomou Gomer, filha de Deblaim. Ela ficou grávida e lhe deu um filho (Os 1, 2-3).
O não-mundo de Oséias não está somente em seu entorno, sua própria condição passa a se identificar com sua exterioridade. Nem seria mais adequado falar de exterioridade e interioridade, não há mais entorno e vivência privada. Toda a realidade se constitui num não-mundo, que o é em função da condenação de Deus.
Ouçam a palavra de Javé, filhos de Israel! Javé abre um processo contra os moradores do país, pois não há mais fidelidade, nem amor, nem conhecimento de Deus no país. Há juramento falso e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência; e sangue derramado se ajunta a sangue derramado. Por isso, a terra geme e seus moradores desfalecem; as feras, as aves do céu e até peixes do mar estão desaparecendo (Os 4, 1-3).
O profeta não contempla esse não-mundo, antes ele o faz seu (ou dele é feito em virtude de sua existência profética), não simplesmente para condená-lo, mas para exortando-o lhe mostrar o mundo-pleno, que mesmo parecendo impossível, ganha lugar na história a partir da vida mesma do profeta. Aos que perguntarem se seria mesmo possível viver tal coisa, o profeta pode testemunhar de sua possibilidade mostrando-a concretamente em sua própria vida.
Diante de todo o povo de Israel Oséias vive os sabores e dissabores daquela relação-evento, mostrando os caminhos para a superação de toda desordem causada pela prostituição (em todas as suas formas de presença), a partir de seu convívio com Gomer. O não-mundo foi cedendo espaço ao mundo-pleno, mesmo que vivenciado nuclearmente no horizonte existencial de Oséias.
Foi na superação da dicotomia estética/ética, que pode ser instaurada outro tipo de realidade possível. A partir da existência profética de Oséias, Javé pode anunciar a Israel (sua própria noiva prostituta) aquilo que já havia visto na vida de seu profeta.
Agora, sou eu que vou seduzi-la, vou levá-la ao deserto e conquistar seu coração. (...) Nesse dia, farei deles uma aliança com as feras, com as aves do céu e com os répteis da terra. Eliminarei da terra o arco, a espada e a guerra; e, então, vou fazê-los dormir em segurança. Eu me casarei com você para sempre, me casarei com você na justiça e no direito, no amor e na ternura. Eu me casarei com você na fidelidade e você conhecerá Javé (Os 2, 16-22).
A existência profética é o espaço de antecipação da fala profética. O mundo-pleno acontece antes mesmo de ser anunciado. Seu anuncio é de tal forma impactante, porque há uma realidade que o antecede. A existência do profeta é um devir Kairológico que dá autenticidade à sua fala.
A existência do profeta Gentileza é um devir que dá autenticidade à sua fala. O cenário de sua existência profética foi a cidade do Rio de Janeiro, com todos os desencontros (e alguns encontros) que fazem de uma metrópole um espaço fértil para o cultivo dos não-lugares, das não pessoas, das não identidades. Nessa cidade os encontros, os toques, se dão mais por atropelos do que por afagos. A presença de tão numerosa multidão não se converte em companhia, por vezes faz aprofundar o vazio da solidão.
O bom humor do carioca vai cedendo espaço a certo ar de desconfiança, que teme a violência desmedida. O gesto afável é confundido com a abordagem fortuita. A beleza presente em todo lugar (todo = lugares acessíveis a certa classe social) encontra-se em abraço promiscuo com os não-lugares onde vive boa parte da população dessa cidade maravilhosa. Pena que a maravilha da cidade está cada vez mais vinculada como reluzir do vil metal.
Nesta ambiência “o profeta Gentileza semeou bondade nos corações de quem o conheceu” (OLIVEIRA, 2007, p. 12). Desde sua presença na terra ressequida do circo queimado, pode-se notar a superação da dicotomia estética/ética, própria da existência profética. Em sua própria interpretação sobre o incêndio, já é possível perceber sua visão integradora da realidade: “(...) A derrota de um circo queimado em Niterói é um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo arredondado” (GUELMAN, 2000, p.45).
Ao assumir aquele não-lugar com seu mesmo, ele o transformou em um paraíso, “o paraíso Gentileza” (GUELMAN, 2000, p.28). Não palavreou sobre o incêndio, não assuntou sobre sua causas, não apregoou nenhuma palavra religiosa, em suma não precipitou nenhum juízo ético distanciado, como quem contempla de fora uma situação. Foi para aquele não-mundo destruído e o recriou solidariamente construindo um poço, um jardim, uma horta, elementos de vida presentes nas tradições religiosas. O não-mundo tornou-se protologicamente um mundo pleno.
As palavras de João a respeito de Jesus podem ser parafraseadas para o profeta gentileza: Ele assumiu a “nossa” condição e armou sua tenda (caminhão) entre nós. Depois de mostrar um mundo-pleno possível construído sobre a partir do não-mundo, Gentileza “tomou uma barca e foi para o outro lado do Rio”. Lá chegando pôs-se a anunciar a boa nova do Reino: gentileza gera gentileza. Esse não é qualquer anuncio, não constitui qualquer palavra daquelas que são ditas sem maior importância nas esquinas ou nos botecos. Gentileza é palavra-conteúdo, mundo-pleno, contra o não mundo.
Aos poucos foi assumindo em sua existência profética, da mesma forma que Oséias foi recebendo sua amada prostituta, os traços da urbanidade. Assumiu-os e ressignificando-os. Só quem vê como é tratado um morador de rua (embora o profeta não o fosse de fato) no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar, pode imaginar o que o José da trindade viveu nos primeiros momentos de sua trajetória profética.
Certamente acolheu em si mesmo a agressividade urbana que se radicaliza naqueles que menos podem reagir, e, condenou-a como a ruína da sociedade atual. Porém, sua condenação não toma a estratégia do agressor, antes, a subverte; estampado em sua túnica estava o veredicto: “ Gentileza é o remédio de todos os males, amorrr e liberdade”, “Não usem problemas, não usem pobreza, usem amorrr Gentileza” (GUELMAN, 2000, p.62).
Ele próprio, na totalidade est-ética de sua existência profética, era o devir que conferia peso e densidade à sua fala. Comentando outra síntese discursiva presente em sua túnica, Leonardo Guelman afirma:
Em Gentileza É Recordação só podemos recordar algo que não mais está presente ou plenamente visível no mundo. É este o seu reclame. O profeta visa a devolver ao mundo um princípio de totalidade calcado na cordialidade e na convivialidade enquanto uma expressão afetiva das relações entre os homens, à luz de uma primordialidade divina. Embora a gentileza se concretize numa pessoa, ela não se constitui num objeto de adoração (GUELMAN, 2000, p.63).
Sua pré-sença reclama a superação do não-mundo. Seu léxico inicial: Gentileza e agradecido, em relação antitética com o léxico superficial da vida urbana: por favor e obrigado, provoca uma ação afetiva concreta, a pré-sença do mundo-pleno. Na verdade, a pré-sença do Gentileza já é a pré-sença do mundo-pleno por ele anunciado. Mundo pleno que o profeta iniciou mudando a linguagem (do muito obrigado ao agradecido) e, a partir daí mudando todo um conjunto de relações através ações éticas.
A integralidade est-ética assumida na existência do Profeta está presente em todos os seus gestos, atos, objetos e escritos. Nenhum elemento é supérfluo, nenhuma palavra é prolixa, nenhum objeto é descartável. Com lucidez advinda de sua íntima relação com o univvverso, que ele entende como trinitário, Gentileza revela o significado de parte dos elementos que compõe seu mundo plenificado.
As flores é porque eu sou o jardim ambulante. Vocês são flor do meu jardim... tem que se entregar ao dono do jardim. Tem que passar o visto no jardim. Depois de eu passar o visto no jardim, vocês vão ser os jardineiros(...) Agora o catavento é para refrescar a mente da humanidade. Para que todo o mundo ande coma mente fresca e positiva(...) E a bandeira, a nossa bandeira brasileira, é a mais linda do universo (...) E o profeta é patriota até no pé (GUELMAN, 2000, p.63).
A esta última referência: “o profeta é patriota até no pé”, poderia se acrescentar o que se disse o outro profeta: “como são belos os pés do mensageiro que anuncia a paz” (Is 52,7). Os pés do profeta, seus sapatos, revelavam a origem e o destino de suas pegadas. Neles estava grafado o mesmo que em sua certidão de nascimento: as letras F P E, Pai, Filho e Espírito Santo. Quem sabe esse seja o elemento teológico de mais densidade na existência profética do Gentileza.
É, porém, a sua grafia (seu estilo, mas principalmente o local escolhido para sua escrita) que mais radicalmente revela a integração est-ética de sua existência profética. Sobre o estilo e a codificação de sua escrita, o trabalho de Leonardo Guelman é insuperável (GUELMAN, 2000, p.7294). O que gostaríamos de frisar aqui é o lugar que essa escritura, sobretudo as “tábuas sagradas” do viaduto do Caju, estão grafadas.
Do ponto de vista de nossa proposição acerca da Estética Crítica, as 55 “tábuas sagradas” que formam o cânon profético-urbano do Gentileza, tomam o não-lugar para fazer dele um lugar sagrado.
Aquelas pilastras marcam duas cenas que cada pessoa é capaz de reconhecer: a primeira faz parte da construção da urbanidade; aquelas pilastras sustentam a vida apressada pouco dada aos contatos pessoais. Cada uma delas pode contar as histórias de tantos não-homens que deixaram parte de suas vidas partidas para a construção de uma cidade que só fez rejeitá-los atirando-os às favelas. Cada pilastra sustenta o toldo de concreto que não permite que o sol toque o não-solo impermeabilizado por grossas camadas de asfalto por histórias desumanizadoras. Elas são guardiões de uma cultura de superficialidades, de desencontros, de relações rasas como as poças de urina que regam suas bases.
A segunda cena é incomodamente paradoxal. Aquelas pilastras que simbolizam com tanta concretude as superficialidades e desencontros da vida urbana servem também de único teto para muitas não-pessoas que se escondem do frio, da chuva e do abandono a que são sujeitas. Não-pessoas fazem desses não-lugares um não-mundo que lhes relega a uma não-existência. Possivelmente a única relação afetiva constante que mantêm, se dá com os muitos cachorros que teimam, contra toda a lógica, em permanecer-lhes fiéis.
Esse espaço não-espaço, marcado por tantas contradições, é assumido e integrado na existência profética do Gentileza, para então ser denunciado. Quem passando por ali, vir a um só tempo as Palavras Sagradas do Profeta e as superficialidades das relações que atiram as pessoas às margens da vida, não pode deixar de ser tocadas. E este toque semeia o mundo-pleno, fazendo-o então existir concretamente (melhor seria substantivamente).
O não-lugar se auto-denuncia. O não-mundo exige forçadamente sua superação. O mundo-pleno se impõe pela força da integração est-ética. Nisto consiste o peso e a densidade da existência profética. Ela rasga o presente com uma pré-sença que não deixa iludir quanto à possibilidade de um real para além do que imposto. O real é também tudo aquilo que é interditado e nomeado como imaginário.
Essa pré-sença é tão forte que não se pode deixar de vê-la, de ser tocado por ela. Ela é tão radical que a vida trata de protegê-la, desta forma, protege a si mesma. Os mecanismos de proteção são vários: Oséias foi acolhido na fé e na experiência de um povo que com ele se identificou, e nele ressignificou sua própria existência.
Gentileza foi agarrado por certa sensibilidade que indica que suas palavras tem sido inspiradoras para iluminar o caos em que estamos vivendo na cidade. Suas palavras têm inspirado homens e mulheres, fermentado a cultura que as reconhecem, provocado um censo crítico sobre a existência em espaços urbanos. Em suma, céus e terras passarão, mas as palavras (substantivas) que tomam carne numa existência integrada, nunca passarão.
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Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. 2003.
BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FEUGLIISTER, Nortker. Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulinas. 1989.
GUELMAN, Leonardo. Brasil: tempo de Gentileza. Rio de Janeiro: Eduff. 2000.
SILVA, Airton José. A Voz Necessária. São Paulo: Paulus. 1998.
BOFF, Leonardo. Espírito de Gentileza. Publicado em: www.cienciaefe.org.br
BOFF, Leonardo. Gentileza. Jornal do Brasil. Publicado em 07/05/2004.
OLIVEIRA, Maria José. Gentileza nas palavras de um profeta urbano. publicado em http://reposcom.portcom.intercom.org.br/handle/1904/18282
Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 14 ed. São Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes. 2002.
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas. 1991.
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Notas
[1]José Datrino, mais conhecido como Profeta Gentileza nasceu em Cafelândia, 11 de abril de 1917. Foi uma personalidade urbana carioca, reconhecido por suas ações e pregações centradas no lema “Gentileza gera Gentileza”. Teve uma infância de muito trabalho. Para ajudar a família, puxava carroça vendendo lenha nas proximidades. Por volta dos treze anos de idade, passou a ter premonições sobre sua missão na terra, na qual acreditava que um dia, depois de constituir família, filhos e bens, deixaria tudo em prol de sua missão. Mudando-se para o Rio de Janeiro, constitui família e tornou-se um pequeno empresário do ramo de transporte. Em 29 de Maio de 1996, o José profeta da gentileza morreu em Mirandópolis. No Rio de Janeiro, vivendo na periferia e constituído como pequeno empresário, tem sua vida transformada e passa a se apresentar como profeta Gentileza. Sua ação e seu pensamento notabilizaram-se nas ruas do Rio e nas colunas do viaduto do Cajú.