A produção acadêmica em Teopoética no Brasil: pesquisadores e modelos de leitura
Academic production on theopoetics in Brazil: researchers and reading models

Antonio Geraldo Cantarela*
* Doutor em Letras. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Contato: agcantarela@ yahoo.com.br.
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Resumo
O campo de conhecimento cunhado de Teopoética, relativo às interfaces entre literatura e o âmbito geral das ciências que estudam a religião e o sagrado, produziu nas últimas quatro décadas, no Brasil, grande número de eventos e publicações.Este relato de pesquisa apresenta uma “radiografia” da produção bibliográfica no campo da Teopoética, com foco em dois aspectos: i) quem são os pesquisadores em Teopoética no Brasil (formação acadêmica, publicações na área, principais pesquisadores); e ii) que “modelos” de leitura das relações entre literatura e sagrado subjazem à sua produção (escritores e poetas mais lidos, aportes teóricos, tendências ao viés teológico, tendências à crítica literária). O trabalho de pesquisa se desenvolveu a partir de uma lista de 129 pesquisadores, 72% deles doutores, vindos em geral da Teologia e/ ou das Letras, com produção bibliográfica de 1175 títulos (artigos, livros, capítulos, anais de congressos) e mais de 100 dissertações e teses na área.

Palavras chave:Teopoética. Teologia. Literatura. Produção bibliográfica. Modelos de leitura.

 

Abstract
The field of knowledge named Theopoetics, associated with the interfaces between literature and the general scope of the sciences that study religion and the sacred, has produced a large number of events and publications in the last three or four decades in Brazil. This report presents radiography of bibliographic output within Theopoetics, focusing on two aspects: i) who are the researchers on Theopoetics in Brazil (academic background, publications in the area, main investigators), and ii) which models of reading concerning relations between literature and sacred underlie their production (world’s most widely-read writers and poets, theoretical contributions, tendencies towards political bias, tendencies towards literacy criticism). This research was developed from a list of over 129 researchers (72% of whom were doctors, usually of Theology and / or Literature) whose bibliographic production was close to 1175 titles (articles, books, book chapters, annals of congress) and nearly 110 dissertations and theses in the area.

Keywords:Theopoetics. Theology. Literature. Bibliographic output. Models of reading.

Introdução

O diálogo entre a literatura e a teologia, ou mais amplamente, entre a literatura e o âmbito mais geral dos estudos sobre religião e espiritualidades, constituiu um novo campo de conhecimento cunhado de Teopoética, marcado por variados modos de “leitura religiosa” do texto literário. O interesse pela literatura em suas interfaces com as variadas facetas das religiões e das espiritualidades organizou, nos últimos trinta anos, dentro e fora do Brasil, numerosos eventos acadêmicos e produziu grande número de publicações bibliográficas.

A pesquisa, cujos resultados parciais se apresentam neste relato, propôs-se a mapear a produção bibliográfica de caráter acadêmico no campo da Teopoética, no Brasil, e identificar categorias interpretativas (modelos de leitura) que subjazem a essas leituras.

O trabalho de pesquisa se fez obedecendo aos seguintes passos: (i) Levantamento e leitura de textos teóricos (10 no total) acerca das relações entre religião e literatura; e, a partir deles, estabelecimento de critérios para identificação do tema; (ii) Levantamento da produção bibliográfica brasileira relacionada à Teopoética e leitura de amostra representativa da produção (72 produções, dentre livros, capítulos, artigos e publicações em anais de eventos); (iii) Proposta, de caráter didático, de modelos de leitura subjacentes à produção bibliográfica.

Este texto apresenta dados relativos ao projeto de pesquisa Interfaces entre religião e literatura: a produção acadêmica em Teopoética no Brasil e modelos de leitura, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto participou do edital representado pela Chamada Universal – MCTI/CNPq Nº 14/2014, recebeu aprovação (Processo 442.705/2014-0) e foi executado durante os anos de 2015 a 2017. Este relato revê dados coletados em pesquisa anterior, que cobria os anos 1998 a 2012.1 E amplia a pesquisa anterior com dados que cobrem até o primeiro semestre de 2017.

Este relato de pesquisa apresenta, pois, um “mapa” sobre a pesquisa em Teopoética no Brasil, com foco em dois aspectos principais: i) quem são os pesquisadores, qual sua titulação, em que áreas fizeram sua formação acadêmica e qual o volume de sua produção bibliográfica: e ii) que modelos de leitura das relações entre literatura e sagrado subjazem à sua produção (escritores e poetas mais lidos, aportes teóricos, tendências ao viés teológico, tendências à crítica literária).

Pesquisadores em Teopoética

Esta seção se constitui de alguns gráficos com dados relativos a uma lista de 129 pesquisadores em Teopoética no Brasil. Os dados e os respectivos gráficos se fazem acompanhar por comentários, ora apenas traduzindo a informação geral que o gráfico ilustra, ora destacando algum aspecto ou detalhe considerado de importância ou que, no processo da pesquisa, trouxe interrogações e estranhamento.

A lista de pesquisadores foi construída sobre um critério fundamental: que o pesquisador tivesse pelo menos 01 (uma) publicação na área.

Identificação dos pesquisadores

a) Titulação dos pesquisadores em Teopoética

Em relação à titulação máxima dos pesquisadores, foram considerados os títulos efetivamente já obtidos. Sob o critério quantitativo da titulação, o campo de estudos da Teopoética apresenta-se com alto nível de preparação acadêmica. Dos 129 pesquisadores registrados pela pesquisa, cerca de 3/4 (três quartos) têm a titulação máxima de doutor. Cerca de 1/4 (um quarto) tem o grau máximo de mestre. E apenas seis pesquisadores situam-se no grau de bacharel/licenciado.

O acesso à pós-graduação stricto sensu, da parte dos pesquisadores em Teopoética, é relativamente recente (Gráfico 1, abaixo). Mais de 2/3 (dois terços) dos pesquisadores que têm apenas o mestrado tiveram seu título obtido depois de 2010. No caso dos que já tem o título de doutor, apenas menos de 1/5 (um quinto) dos títulos foi obtido antes do ano 2000. Mais de 70 títulos de doutor vieram depois do ano 2000, sendo que quase 1/3 desses (total de 29 títulos) foi obtido depois de 2010. Pode-se observar, pelas linhas do gráfico 2, o crescimento vertiginoso da busca pela pós-graduação stricto sensu por parte dos pesquisadores em Teopoética. Esta linha de crescimento acompanha uma tendência geral de acesso aos mestrados e doutorados nos últimos anos, no Brasil. A queda desenhada pelo gráfico, para os anos 2016 e 2017, explica-se, em parte, pela falta de dados relativos ao ano de 2017 (muitas produções ainda não lançadas na plataforma Lattes).

Gráfico 1: Linha de tempo da titulação máxima dos pesquisadores

b) Áreas de formação acadêmica

O gráfico 2, abaixo, refere-se às áreas de conhecimento de onde provêm os pesquisadores em Teopoética. Observe-se que os dados desse gráfico não são percentuais, mas indicam a concentração total de pesquisadores em cada área. Isto porque certo número de pesquisadores (certa de 1/4 do total) passou por mais de uma graduação, em geral pelos cursos de Filosofia e Teologia, fato relativamente comum na formação seminarística tanto no contexto católico como no evangélico. Em alguns casos, o pesquisador passa primeiro pela Teologia e depois por Letras. Da graduação ao doutorado, a maior concentração de pesquisadores se dá na área de Letras.

Gráfico 2: Áreas de conhecimento em que se concentram os pesquisadores, da graduação ao doutorado

Em relação à formação no nível da graduação, observa-se que não aparece a área de Ciências da Religião, Isto se explica pela quase total ausência de cursos dessa área no nível da graduação, quando da graduação da maioria dos pesquisadores. Na graduação, há um número relativamente grande de pesquisadores (mais de 1/4 deles) que fizeram sua formação em outras áreas, algumas vezes como segunda graduação além da Teologia. Distribuem-se entre áreas diversas como Comunicação Social, Ciências Sociais, Psicologia, Serviço Social, História, Pedagogia e Educação Artística, sem que nenhuma dessas áreas se destaque numericamente.

No nível do mestrado, a área de maior concentração de pesquisadores continua a ser a de Letras. Observa-se que os mestres em Letras (37 pesquisadores) ultrapassam em cerca de 30% o número de mestres em Ciências da Religião (23). Observe-se, no entanto, que a soma dos pesquisadores que fizeram mestrado em Ciências da Religião com os que fizeram Teologia ultrapassa o montante de Letras.

Também no nível do doutorado, a área de Letras apresenta-se como aquela que concentra maior número de pesquisadores. Até o ano de 2012, a área de Letras ultrapassava em cerca de 30% as áreas de Ciências da Religião e Teologia juntas. Atualmente, o número de pesquisadores em Teopoética que fizeram seu doutorado em Letras apresenta-se praticamente o mesmo que o de Ciências da Religião e Teologia juntas. De qualquer modo, o número de doutores em Letras é proporcionalmente maior que o de outras áreas (quase 40% do total de pesquisadores).

Alguns cotejos entre a área de Teologia e a de Ciências da Religião mostram que, até o ano de 2012, as teses em Teologia somavam o dobro das teses em Ciências da Religião. De lá para cá, observa-se um relativo equilíbrio numérico entre as duas áreas.

Vale completar esta seção com um destaque: o “trânsito” entre as áreas. O “trânsito” entre a área de Letras, de um lado, e as de Ciências da Religião e Teologia juntas, de outro, mostra-se relativamente pouco frequente. Dos 129 pesquisadores listados pela pesquisa, quase 60% passou pela área de Teologia ou de Ciências da Religião, em algum momento de sua formação (graduação, mestrado ou doutorado). Da mesma forma, do total dos pesquisadores, a metade passou pela área de Letras, em algum momento de sua formação acadêmica. Apenas 16% do total de pesquisadores transitou pelas duas áreas. Curiosamente, cerca de 10% dos pesquisadores não cursou Letras nem alguma das duas áreas ligadas ao campo religioso.

Produção bibliográfica dos pesquisadores em Teopoética

Os dados sobre a produção bibliográfica dos pesquisadores em Teopoética impressionam por seu volume. Em pouco mais de 15 anos (descontando-se o período anterior a 2000, quando a produção mostra-se parca), os 129 pesquisadores listados ofereceram nada menos que 1175 publicações, dentre livros, capítulos de livros, artigos e textos completos publicados em anais de eventos.

Além desse volume de publicações, 82 de nossos pesquisadores escreveram 62 dissertações de mestrado e 49 teses de doutorado versando sobre temáticas que configuram o campo da Teopoética, conforme os critérios considerados no processo da pesquisa. Desses 82 pesquisadores, 29 dedicaram-se ao assunto no mestrado e no doutorado. Isso amplia o cômputo para o total de 1286 produções bibliográficas. (Os gráficos 3 a 6, abaixo, destacam aspectos da produção bibliográfica dos pesquisadores em Teopoética. Com exceção do gráfico 3, todos os demais gráficos excluem do cômputo as teses e dissertações, limitando-se às 1175 publicações mencionadas anteriormente).

Gráfico 3: Número de publicações conforme o tipo de produção bibliográfica

Dentre os diversos tipos de produção bibliográfica, os artigos aparecem em maior quantidade (523 do total de 1175), seguidos dos capítulos de livros (306), das publicações em anais de congresso (203) e, finalmente, dos livros individuais ou coletivos (143).

Certamente, não se pode considerar cada uma dessas publicações bibliográficas como um produto singular e original. Com certa frequência (que não foi medida pela pesquisa), o pesquisador apresenta sua pesquisa de pós-graduação, ainda em andamento, no formato de comunicação, em algum congresso, fazendo originar daí uma publicação em anais de congresso. Seguem-se a escrita e a defesa da dissertação ou tese, da qual podem nascer posteriormente alguns artigos ou capítulos de livros. Há situações em que um livro resulta da coleta de artigos já publicados. Ocorrem também situações em que se publica o mesmo texto (ou o texto com pequenas variações) como artigo de periódico e como capítulo de livro. Há também muitos casos em que o pesquisador lança na plataforma lattes uma produção na rubrica “Artigos completos publicados em periódicos”, quando de fato seu texto configura uma pequena coluna de jornal, cujo registro ficaria mais bem alocado em “Educação e popularização de C&T”. Na impossibilidade de mensurar tal dinâmica, e seguindo o sistema de registro da plataforma Lattes, a pesquisa optou por contabilizar cada produção bibliográfica, independentemente de duas ou três publicações de um mesmo autor versarem sobre um mesmo assunto, sob um mesmo foco. Entretanto, para corrigir excessos (encontramos autores que registraram 40 “artigos” num mesmo ano!), excluímos do cômputo total das publicações cerca de 23% (268 produções), chegando ao número de 1175 produções.

Considerando-se a distribuição da produção bibliográfica pelo número de autores (gráfico 4, abaixo), pode-se dizer que a produção mostra-se restrita. Cerca de 44% dos pesquisadores (57 do total) não foi além de 1 ou 2 produções bibliográficas. Pouco mais de 1/3 dos pesquisadores (47 do total) limitou-se a no máximo 5 produções. Cerca de 85% dos pesquisadores (109 do total) assinam não mais que 43% do total de publicações.

Gráfico 4: Distribuição da produção bibliográfica por autores

No outro extremo, um número reduzido de pesquisadores (25 do total) responsabilizou-se por nada menos que 669 produções bibliográficas. Mais: os 18 pesquisadores (ou 14% do total) que assinam, cada um, vinte ou mais produções, produziram a soma de 556 produções bibliográficas (47,32% do total). Infelizmente, desses 18 pesquisadores, treze registram acentuada queda na produção acadêmica a partir do ano de 2013.

Afirmamos anteriormente que a produção bibliográfica dos pesquisadores em Teopoética impressiona por seu volume. Mais: acompanhando a tendência geral da educação superior no Brasil, o interesse pela pesquisa nessa área e sua correlata produção acadêmica revelam-se fenômenos relativamente recentes. A produção bibliográfica dos últimos quatro anos (2013 a 2017) quase repete em volume (43%) a produção de uma década inteira (de 2003 a 2012). A linha que registra o crescimento da produção bibliográfica mostra-se, assim, em franca ascensão. O gráfico 5, abaixo, desenha a linha geral de crescimento da produção bibliográfica entre 1998 e 2016.

Gráfico 5: Volume de publicações entre 1998 e 2016

Por alguma razão que a pesquisa não conseguiu detectar, nos anos de 2009 e 2010 registra-se queda na produção bibliográfica. Curiosamente, a diminuição das publicações se dá em todos os tipos de publicação (artigos, anais de congresso, capítulos de livros e livros). Levantou-se a hipótese de que não teriam sido organizados congressos e colóquios naqueles dois anos. Mas a hipótese não se confirmou. A queda da produção não se deveu a falta de eventos na área. Em contrapartida, os anos 2009 e 2010 mantiveram a dinâmica de aumento das teses e dissertações, cuja relativa diminuição ocorrerá nos anos de 2011 e 2012. O volume de publicações volta a crescer de forma acentuada a partir de 2012.

O gráfico 6 apresenta a mesma linha do volume de publicações, representada pelo gráfico anterior, distribuindo-as agora por tipo.

Gráfico 6: Distribuição das publicações por tipo de 1998 a 2016

Observa-se, em relação aos últimos anos, uma queda nas publicações de anais de eventos, em oposição ao acentuado crescimento do número de artigos. Arrolamos a hipótese de que tal contraste se deve ao maior valor que se atribui ao artigo, enquanto que a participação em eventos com publicação em anais ainda não recebe pontuação nos sistemas de avaliação dos programas de pós-graduação.

1.3 Principais pesquisadores em Teopoética

Conforme foi salientado acima, ao apresentar a correlação entre o número de pesquisadores e o volume de publicações, um número relativamente pequeno de pesquisadores (cerca de 1/7 deles) foi responsável por quase a metade da produção bibliográfica na área de Teopoética. Sob o critério quantitativo da produção bibliográfica, procuramos identificar quem seriam os principais pesquisadores na área.

Em vista de não permitir muitas ressalvas em relação ao critério adotado, estabelecemos o critério a partir de um nível relativamente elevado: produção bibliográfica igual ou acima de 15 publicações na área. Isso nos levou a uma lista de 25 pesquisadores, responsáveis por 669 produções bibliográficas na área. Em outras medidas: cerca de 20% dos pesquisadores encarregaram-se de 57% da produção bibliográfica em Teopoética.

Sem desmerecer a importância ou a qualidade do trabalho de outros pesquisadores, sob os critérios acima descritos, constituem a lista dos principais pesquisadores em Teopoética (em ordem alfabética organizada pelo sobrenome): José Carlos Barcelos, Mauro Rocha Batista, Maria Clara Luchetti Bingemer, Carlos Ribeiro Caldas Filho, Carlos Eduardo Brandão Calvani, Antonio Geraldo Cantarela, Douglas Rodrigues da Conceição, Geraldo Luiz De Mori, Salma Ferraz, João Cesário Leonel Ferreira, Silvana de Gaspari, Eduardo Gross, Waldecy Tenório de Lima, Antonio Carlos de Melo Magalhães, Antonio Manzatto, Antonio Augusto Nery, Alex Villas Boas, Cleide Maria de Oliveira, Cristina Bielinski Ramalho, Alessandro Rodrigues Rocha, Luciano Costa Santos, Anaxsuell Fernando da Silva, Eli Brandão da Silva, Suzi Frankl Sperber e Pedro Lima Vasconcelos.

Uma caracterização geral dos que compõem a lista dos 25 principais pesquisadores em Teopoética pode ser traduzida por estes números: São 19 homens e 6 mulheres. Todos são doutores. Dentre os vinte e cinco, 17 têm dissertação ou tese na área. Desses dezessete, 8 têm dissertação e tese em Teopoética. Doze passaram pela área de Letras em algum momento de sua formação. Dezesseis passaram por Teologia ou Ciências da Religião em algum momento de sua formação.

O interesse dos principais pesquisadores em Teopoética por determinados autores e obras mostra-se bastante diversificado, como se verá adiante. Ainda que sua produção seja diversa em relação a autores e temas, quase todos esses pesquisadores compartilham um traço em comum: o interesse em discutir e buscar sustentação teórica para o trabalho de estabelecer interfaces entre religião e literatura.

Apresentado o mapeamento dos pesquisadores e de sua produção acadêmica, passamos agora aos modelos de leitura que subjazem à produção acadêmica na área da Teopoética.

Modelos de leitura

Um dos principais objetivos desta pesquisa, expresso no projeto, formulou-se em termos de identificar categorias interpretativas ou modelos de leitura que subjazem à produção bibliográfica em Teopoética no Brasil. Se o levantamento da produção, por si, representou tarefa relativamente complexa, a busca por modelos de leitura revelou uma teia ainda mais intrincada de possibilidades, frente às quais obrigamo-nos a algumas escolhas certamente limitadas frente ao objetivo proposto.

Descrevemos, nesta seção, os caminhos feitos pela pesquisa em vista de identificar modelos de leitura subjacentes à produção bibliográfica em Teopoética. Ou, quiçá, indicar algum critério para a construção de um sistema classificatório capaz de apontar as tendências da produção acadêmica em Teopoética.

Discussões teóricas e metodológicas existentes

Propusemo-nos, inicialmente, a nos orientar pelas discussões teóricas e de caráter metodológico presentes em várias publicações objeto de nossa pesquisa. Em vista de caracterizar o campo da Teopoética e, na prática, identificar os textos que poderiam ser nele alocados, escolhemos para leitura inicial 10 produções bibliográficas de autores já consagrados na discussão do tema, a saber: Barcellos, 2008; Bingemer, 2015; Brandão, 2006; Conceição, 2010; Ferraz; Magalhães; Conceição, 2008; Gross, 2012; Magalhães, 2009; Manzatto, 1994; Sperber, 2011; Villas Boas, 2013. (As referências completas encontram-se na lista final).

As discussões teóricas e metodológicas trazidas por essas obras revelam, já de começo, a riqueza de modos de construir interfaces entre religião/teologia e literatura. E indicam igualmente grande diversidade de princípios e fundamentos para o fazer teopoético. Dentre as diversas propostas, podem ser destacados dois caminhos mais representativos das discussões: i) aquele que estabelece, a um só tempo, correlação e contraste entre o fazer teológico e o fazer literário; ii) e o que segue um percurso histórico com as sucessivas tendências das relações entre teologia e literatura.

O modelo da correlação/contraste entre o fazer teológico e o fazer literário foca, em geral, as conexões possíveis entre o literário e o teológico. Parte do pressuposto de que há uma imprecisão de limites entre o discurso literário, objeto da fruição estética e da crítica literária, e o discurso religioso, objeto da fruição religiosa e da teologia. O texto literário não se oferece como objeto de leitura apenas à crítica literária, assim como o texto de caráter religioso não se reduz a mero objeto de estudo da teologia. Assim, por exemplo, antes de ser interpretado como palavra de Deus, o texto bíblico se entende como mito, saga, lenda, canto. E, nesse sentido, pode interessar ao leitor de literatura. Da mesma forma, a literatura, ao “redescrever” o mundo com seu poder heurístico, se oferece como fértil terreno para a teologia.

O modelo do percurso histórico das tendências apresenta algumas etapas pelas quais vêm se dando, ao longo da história ocidental, os encontros e desencontros entre religião/teologia e literatura. As obras consultadas referem-se a quatro, cinco ou até seis etapas, dependendo do modo como as etapas são caracterizadas. A primeira etapa (ou uma das primeiras) representa um momento da história em que a dicção poética, em sua forma oral ou escrita, praticamente pertence ao âmbito da religião e do sagrado. Em seguida, numa dinâmica em que os dois campos já se apresentam de forma distinta, a literatura representará o lugar das perguntas, para as quais a teologia oferecerá respostas. Depois virá a etapa da divisão radical entre literatura e teologia: o rigor doutrinário não permitirá qualquer forma de diálogo com a liberdade da arte; da renascença ao século XIX, na Europa, os embates se caracterizarão, em geral, por uma crítica à religião e ao seu papel em relação à cultura. No século XX, ainda que o distanciamento e a desconfiança recíproca entre os dois campos continuem a se manifestar, a relação conflitiva vai cedendo espaço a uma correlação que tendeu para o dialogismo. Em invejável esforço para dialogar com a criação cultural, Rudolf Bultmann, Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar, Paul Tillich e outros teólogos compreendem a literatura sob perspectiva teológica, destacam obras literárias como “literatura cristã”, atribuem a obras literárias o caráter de “revelação”. Mais recentemente, essa tendência de correlação radical entre teologia e literatura dá espaço a um modelo de diálogo criativo em que as obras literárias, na sua autonomia, adquirem relevância para a reflexão sobre o fato religioso. Há finalmente, hoje, uma tendência que anuncia o esgotamento e a impossibilidade do diálogo. Um panorama conciso desse percurso pode ser encontrado na introdução escrita por Paulo Astor Soethe para o livro Aragem do Sagrado (DE MORI; SANTOS; CALDAS, 2011, p. 11-23).

Nas etapas subsequentes da pesquisa, lemos mais 72 (setenta e duas) produções bibliográficas (dentre livros de autores individuais, capítulos de livros, artigos e textos de anais de eventos). Vale observar que a maior parte do material pesquisado refere-se a capítulos de livros e artigos, o que faz com que o volume de produções lidas, ao fim e ao cabo, não seja assim tão grande como pode parecer à primeira vista. Observam-se ainda, em relação ao material lido, da parte de um mesmo autor, certas repetições de temas e de abordagens metodológicas.

Em relação ao nosso objetivo geral de identificar modelos hermenêuticos subjacentes à produção em Teopoética, a leitura daquele volume de publicações trouxe a lume vários aspectos e questões. A primeira constatação geral diz respeito à grande diversidade de modos de ler obras literárias na interface com o campo religioso. Outra questão relaciona-se com o fato de muitos textos não apresentarem expressamente um substrato teórico para a leitura que realiza, o que dificulta a identificação de categorias interpretativas subjacentes à produção. Essas questões, por si, sugerem a impossibilidade de construir qualquer taxonomia da produção em Teopoética no Brasil, a não ser em moldes “híbridos”.

Apresentamos, nos próximos itens, algumas contribuições oriundas da leitura do material: i) Informações sobre autores e obras mais lidos; ii) A proposta de uma classificação “híbrida” da produção em Teopoética (que chamamos modelos de leitura), onde uma mesma publicação pode estar presente em diferentes classes.

Obras literárias e autores mais lidos

A ampla gama de autores de literatura encontrada na produção bibliográfica em Teopoética revela grande diversidade de interesses e, certamente, de possibilidades de construção de interfaces entre religião e literatura. A lista traz mais de trinta literatos. Seguindo a ordem estabelecida pela preferência dos pesquisadores, os autores/obras de literatura mais presentes na Teopoética são: a Bíblia, Guimarães Rosa, Adélia Prado, Clarice Lispector, Machado de Assis e José Saramago, lidos por seis ou mais pesquisadores. Em seguida, presentes nas publicações de pelo menos três pesquisadores, encontramos: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, Jorge Luiz Borges e Friedrich Nietzsche.

Aparecem nas publicações de pelo menos dois pesquisadores: Cecília Meireles, Dostoiévski, Graciliano Ramos, Hilda Hilst, Mário de Andrade, Mia Couto e Dante. Aparecem pelo menos uma vez nas publicações em Teopoética: Agostinho de Hipona, Ariano Suassuna, Alceu de Amoroso Lima, Cruz e Souza, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, Gabriel Garcia Marques, Jorge Amado, Julien Green, Juan Rulfo, João Cabral de Melo Neto, Lars von Trier, Luís Fernando Veríssimo, Murilo Mendes, Manoel de Barros, Mário Quintana.

Em relação às obras mais lidas, destaca-se o Grande Sertão de Guimarães Rosa (aparece nas publicações de pelo menos 18 pesquisadores). O tema de maior interesse dos pesquisadores, em sua leitura de Grande Sertão, é a questão do confronto entre o bem e o mal. Em relação à Bíblia, cujo interesse iguala-se numericamente a Guimarães Rosa, os temas são variados: o êxodo, Sansão e Dalila, Cohélet, Jó, as narrativas dos evangelhos.

Em relação aos temas tratados em Teopoética, sua variedade impede qualquer tentativa de quantificação sob algum critério taxonômico. Destaca-se, no entanto, o tema Satã e seus correlatos Lúcifer, Diabo, Demônio, Inferno, que aparecem nas publicações de pelo menos 18 pesquisadores.

Proposta de modelos de leitura

Apresentamos agora nossa proposta de modelos de leitura subjacentes à produção em Teopoética no Brasil. Nossa proposta de classificação levou em consideração alguns pressupostos teóricos e metodológicos, relacionados a uma concepção mais ou menos ampla de teologia, bem como a debates sobre religião e espiritualidade, e à especificidade do mister literário, à sua relação com a realidade histórica e às possibilidades de diálogo entre religião e literatura. A discussão desses pressupostos aparece, em maior ou menor dose, em publicações sobre Teopoética, particularmente aquelas de caráter mais teórico.

Reiteramos que não há como classificar uma determinada publicação em Teopoética em apenas um desses tipos. Os modelos mostram-se imbricados. No máximo poderíamos falar da “tendência” de uma publicação situar-se neste ou naquele modelo. Observa-se ainda, em relação ao conjunto do material pesquisado, que poucos textos se ocupam das questões teórico-metodológicas envolvidas nas interlocuções entre literatura e teologia. Essa omissão dificulta ainda mais a identificação do foco de leitura adotado.

Quando aparecem nas publicações, as justificativas teóricas para as interlocuções entre literatura e teologia são buscadas, em geral, em duas fontes distintas: na tradição fundadora da Teopoética e em teorias críticas de literatura. Destacamos, no primeiro caso, as referências àqueles que poderíamos eleger como “pais fundadores” da Teopoética. Citam-se, dentre outros nomes: Pie Duployé, Marie-Dominique Chenu, Jean Pierre Jossua, Ernst Josef Krzywon, Karl-Josef Kuschel, Paul Tillich, Rudolf Bultmann, Romano Guardini, Hans Urs von Balthasar, Paul Ricoeur.

A segunda fonte de fundamentação teórica da Teopoética filia-se às mesmas teorias críticas de literatura. Assim, encontramos com alguma frequência, nas produções bibliográficas da área, referência a autores e a traços teóricos do formalismo russo, do new criticism americano, do estruturalismo francês, da tradição hermenêutica alemã, particularmente da estética da recepção.

Indicamos, em seus traços essenciais, sete possíveis “tipos” ou “modelos de leitura” da produção em Teopoética: a) Subordinação da literatura pela teologia; b) Destaque de temas religiosos por conexões superficiais; c) Texto bíblico considerado em sua forma literária; d) Estudo da recepção de textos ou temas bíblicos pela literatura; e) Literatura compreendia como “lugar teológico”; f) Literatura como forma poética de pensar o Theós; g) Consideração da forma literária como sacralidade. Seguem-se os modelos de leitura.

a) Subordinação do texto literário pela teologia

Este modelo de leitura subordina o texto literário aos interesses da teologia. Pressupõe uma oposição entre o texto literário, compreendido como palavra humana, e a palavra divina, representada pelas escrituras sagradas. (Cf. KUSCHEL, 1999). Pressupõe o conteúdo da fé como corpus plenamente acabado. Pensa, de modo reducionista, a literatura como a instância que propõe certas perguntas para as quais o discurso teológico da revelação oferece respostas. Ainda que foque questões de grande profundidade – como o sentido da existência, a dor, a morte, a esperança em outra vida etc –, presentes no texto literário, esse modelo de leitura não reconhece o campo da literatura na sua autonomia. O modelo caracteriza-se ainda por pensar a literatura como provedora de exemplos didáticos em vista de ilustrar determinado discurso teológico. (Cf. CANTARELA, 2010, p. 129).

Exemplos dessa subordinação podem ainda ser encontrados em algumas produções acadêmicas do âmbito da Teopoética. Mas não representam senão resíduos de um modelo de leitura certamente em fase de superação. Observa-se, finalmente, que o reducionismo representado por esse tipo de leitura apresenta-se com gradação variada em diferentes textos. Em raros casos, a instrumentalização mostra-se extrema, com tendência ao fundamentalismo. Mas, em geral, o modelo tende a ler o texto literário com certa dose de simplismo acadêmico.

b) Destaque de temas religiosos da literatura por conexões superficiais

Este modelo representa um nível relativamente menos reducionista que o modelo anterior. Mas carrega ainda uma tendência à instrumentalização do texto literário pela teologia. Tende, em geral, a uma leitura comparada do texto literário com textos das tradições religiosas, estabelecendo paralelismos no âmbito do que aflora à superfície dos textos. Diferentemente do modelo anterior, que tem como ponto de partida o discurso teológico da revelação, este modelo pode ter como ponto de partida o texto literário.

Neste modelo, as correlações entre o texto literário e o texto teológico (mais especificamente da Bíblia judaico-cristã) podem ser explicadas, no plano mais geral, pela recorrência de certos temas na literatura de todos os tempos e de todos os povos, assuntos da experiência humana universal: amor e ódio, aliança e traição, dúvida e esperança, dominação e resistência. Mais particularmente, seguindo a tese de Northrop Frye, em sua obra Código dos Códigos, a Bíblia pode ser compreendida como código de interpretação da cultura ocidental. Assim, mesmo ao destacar do texto literário temas religiosos muito específicos (como pecado, salvação, messianismo, aparições, curas, fim do mundo etc), eles poderão ser cotejados com passagens das escrituras sagradas.

Este modelo compreende a literatura como “lugar teológico”, no sentido de que ela serve como mediação para a leitura teológica da realidade humana. O grande limite deste modelo reside no fato de sacar do texto literário apenas aqueles elementos que interessam à construção do discurso teológico, sem considerar o texto literário em seu todo, ou sem correlacioná-lo com o conjunto da obra de determinado escritor.

Consideração do texto bíblico em sua forma literária

Este modelo considera o texto bíblico enquanto obra literária. Certamente, o caráter de sagrado de que a Bíblia se reveste a distingue de outras literaturas em geral. O mesmo se pode dizer, em geral, das escrituras sagradas de outras tradições religiosas que não o judaísmo e o cristianismo.

O cânone bíblico resultou de lento e complexo processo de formação e recepção. E foi a título de Lei e Profecia, isto é, no contexto de experiências religiosas, que os textos bíblicos foram coletados, transmitidos e recebidos, tanto na sinagoga judaica como na igreja cristã dos primeiros tempos. Entretanto, antes de serem compreendidas como livro sagrado e serem associadas à categoria “palavra de Deus”, as narrativas bíblicas foram contadas e recontadas, e depois lidas e relidas como sagas, contos, lendas, etiologias, cantos, casos com valor de jurisprudência... enfim, literatura.

Para muitos cristãos, a recepção crítico-literária dos textos canônicos coloca em cheque a verdade da Bíblia. Conforme analisa Tosaus Abadía (2000, p. 20-21), “para algumas pessoas, o estudo literário da Bíblia é uma tentativa de solapar a historicidade das passagens bíblicas”, pondo em dúvida a verdade das Escrituras. “Também pode ocorrer que alguém ache que admitir que certas partes da Bíblia foram escritas como ficção enfraquece ou questiona sua inspiração.”

Em que pesem as dificuldades apontadas por esse autor, tem-se assistido nas últimas décadas, à publicação de inúmeros títulos de livros e artigos que destacam no texto bíblico seus traços literários. No campo de estudos da Teopoética, o texto bíblico ocupa quantitativamente grande espaço. Ainda que nesse campo a recepção crítico-literária do texto bíblico não seja o viés mais frequente, encontramos vários trabalhos que destacam aspectos formais e estéticos dos escritos bíblicos.

d) Estudos sobre recepção de textos bíblicos pela literatura

Este modelo de leitura se define pelo interesse em obras literárias que tomam dos textos bíblicos, de forma mais ou menos expressa, o substrato básico de seus temas. Quem não enxergaria a expressa referência à Bíblia, a começar do título, no romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis? A propósito, inúmeros contos de Machado têm na Bíblia seu ponto de partida. Lembramos, dentre outros: Na arca; A igreja do diabo; Adão e Eva. Do mesmo modo, quem poderia ler com o mínimo de acuidade o Caim, de José Saramago, sem conhecer as narrativas bíblicas pelas quais passeia Saramago? Como ler de forma proveitosa A mulher que escreveu a Bíblia ou o Manual da paixão solitária, do gaúcho Moacir Scliar, sem ter em conta as sagas bíblicas ou, no caso particular do Manual da paixão solitária, a história de Judá e Tamar, que constitui o capítulo 38 do livro bíblico do Gênesis? Os exemplos são sem conta.

Neste modelo podem ser incluídos aqueles estudos de obras literárias nas quais o material bíblico não aparece de forma tão evidente; ou aquelas abordagens em que, no extremo das possibilidades do ato da leitura, as conexões entre Bíblia e literatura podem ser construídas pelo leitor. Situam-se aí, à guisa de exemplo, estudos sobre a obra de Clarice Lispector, mais particularmente A maçã no escuro e A paixão segundo GH, lidas como palimpsestos respectivamente das mensagens centrais do Velho e do Novo Testamento bíblicos.

Poderíamos classificar neste modelo também aquelas produções que buscam em outras obras do passado, que não a Bíblia, uma interlocução livre para a construção do discurso teológico e/ou literário. Assim, Orígenes, as Confissões de Agostinho de Hipona, a Divina Comédia de Dante, Lutero, dentre outros autores e obras, aparecem em algumas publicações na área da Teopoética. Poderiam ser incluídos no modelo também os inúmeros estudos sobre mística e poesia que têm como polo de comparação textos de místicos cristãos como Teresa de Ávila e João da Cruz.

Ainda que, no conjunto, os estudos sobre a recepção da Bíblia pela literatura possam ser incluídos em outros modelos de leitura, optamos por categorizá-los num tipo específico, em vista do grande volume de produções com tal viés.

e) Compreensão do texto literário como “lugar teológico”

Este modelo de leitura compreende a literatura como interlocutora privilegiada para mediar o discurso teológico. Pressupõe que, através da literatura, a teologia teria acesso a esferas do real que escapam à análise das ciências, de modo particular aquelas que se dedicam ao estudo do ser humano. Neste sentido, a utilização da literatura pela teologia aparece com mais evidência no âmbito de estudos da antropologia teológica. Trata-se, em geral, de destacar pelo viés teológico valores e também limites humanos expressos pela literatura.

O modelo se sustenta, pois, no pressuposto de que a leitura da obra literária pode revelar à teologia traços profundos da experiência humana que outros discursos não seriam capazes de realizar. Utiliza, assim, o texto literário como etapa útil e criativa do método teológico. Justamente porque se apropria do literário em favor do discurso teológico, este modelo de leitura pode ser tachado de reducionista.

Entretanto, por considerar o texto literário em seu todo e por correlacioná-lo ao conjunto da obra do escritor, o modelo não chega a ser tão instrumentalizante como aquele que apenas destaca de uma obra literária, de modo superficial, temas de interesse à consecução do dizer teológico. Justifica-se: a consideração da literatura em si mesma, em sua autonomia, em sua multiplicidade de realização, torna-se condição indispensável para o diálogo criativo com a teologia. A obra literária terá relevância para a reflexão teológica se for respeitada em sua especificidade.

Este modelo de leitura apresenta-se com grande frequência nas produções bibliográficas em Teopoética.

f) Literatura como forma não-teórica de teologia

Este modelo de leitura parte do pressuposto de que a obra literária configura um modo poético de pensar e dizer o Theós, no sentido de que só a literatura – e nenhuma teologia conceitual – seria capaz de dizê-lo com eficácia. (JOSSUA; METZ, 1976). Não se trata, pois, como no modelo anterior, de compreender a literatura como interlocutora privilegiada da teologia, mas de ler a literatura como teologia. Tal perspectiva se sustenta no pressuposto de que na leitura das obras literárias – enquanto obras literárias – o leitor teólogo poderá fazer crescer e aprofundar o sentido da revelação e das verdades da fé.

Nesse modelo, o texto literário não será reduzido a mera fonte do discurso teológico, ou “lugar teológico” de mediação, instrumentalizado em maior ou menor medida, mas será lido como instância crítica da teologia. Reiteramos: não se trata de abordar teologicamente temas trazidos pela literatura, mas também (e talvez principalmente) de, pelo viés da leitura crítica da obra literária, destacar e assumir as ambiguidades e as contradições das vivências, das instituições e dos discursos religiosos.

O método pressupõe que a revelação divina configura não uma resposta aos problemas humanos, mas antes uma pergunta – que pode ser formulada pela literatura. (KUSCHEL, 1999). Muitas produções bibliográficas que seguem esse modelo, o fazem em correlação com a temática religiosa da mística.

Enquanto discursos que se encontram ‘nas fronteiras dos saberes’ – conforme expressão de Magalhães (2009) – teologia e literatura transitam entre a liberdade do imaginário e as instituições religiosas e sociais sob as quais elas se fazem. Enquanto processo comunicativo, enquanto caminho de entrada para a realidade encenada pelo texto, a escrita – a escrita ficcional, particularmente – lida como fonte de desafios e questionamentos, pode tornar-se espaço de inscrição da vida.

g) Consideração da forma literária como sacralidade

Este modelo assenta-se sobre o pressuposto fundamental de que toda obra literária porta um valor de transcendência, de sacralidade, configurado não (apenas) nos valores existenciais manifestos pelo conteúdo da obra, mas primordialmente no seu aspecto formal, estritamente estético, artístico. Tal perspectiva se coloca em linha de continuidade da compreensão teológica da criação cultural, herdada particularmente de Paul Tillich. Segundo a “teologia da cultura”, proposta por Tillich e outros teólogos, consideram-se teológicas, em sentido amplo, aquelas criações culturais que tratam seu objeto enquanto ele pode se tornar questão de preocupação última para nossa existência.

Observe-se, todavia, que a “teologia da cultura” proposta por esses teólogos ainda se mostra marcada por certa preocupação com o conteúdo da obra de arte. Sob o foco do conceito muito amplo e dinâmico de teologia que propugnam, pode-se inferir que o leitor-teólogo está à procura de formular sua experiência religiosa a partir da realidade histórica em que está inserido e dos anseios e desafios que o conhecimento dessa realidade lhe impõe. Para ele, então, a literatura – qualquer literatura – poderá oferecer-se como interlocutora na busca.

Para além de qualquer interesse contenudista, compreendemos que a teologicidade das formas poéticas não se limita ao poder de expressar os conteúdos de nossa preocupação última. Sob o foco de uma compreensão teológica da existência, as formas poéticas serão, elas mesmas, enquanto poesia, expressões do sagrado. Serão teológicas não porque falam expressamente de Deus, dos deuses ou de alguma ‘preocupação última’. Serão teológicas porque sua beleza é capaz de iluminar o mistério humano. Serão teológicas – falarão de Deus – simplesmente porque são poesia. (CANTARELA, 2010, p. 164).

Conclusão

Este relato de pesquisa mapeou a produção bibliográfica de caráter acadêmico no campo da Teopoética, no Brasil; e identificou traços dessa produção que permitiram pensá-la numa tipologia construída por sete distintos modelos de leitura.

O mapeamento da produção bibliográfica trouxe informações sobre os pesquisadores relativamente à titulação, formação acadêmica e, de particular importância para os objetivos da pesquisa, a sua produção bibliográfica. Identificamos, a partir de alguns critérios construídos por esses dados, os principais pesquisadores em Teopoética no Brasil.

Em relação aos modelos de leitura que subjazem à produção acadêmica em Teopoética, destacamos algumas aspectos das discussões teóricas e metodológicas já existentes, os autores e obras literárias mais lidos e, finalmente, apresentamos nossa proposta de sete modelos de leitura sob os quais se poderia “classificar” a produção bibliográfica da área.

Neste artigo objetiva-se a discussão da recepção de As Crônicas de Nárnia no Brasil, mais especificamente procura-se responder a seguinte questão: quais foram os desdobramentos que o lançamento do filme trouxe na produção do livro? Sabe-se que na realidade brasileira o lançamento da adaptação fílmica em 2005 trouxe um impacto na produção do livro (o que já havia acontecido com a obra O Senhor dos Anéis). Entretanto, não havia sido discutido ainda esse fenômeno pelo viés teórico do sistema literário e polissistema literário atrelados aos números de produção da obra da Editora WMF Martins Fontes (editora responsável pela publicação das As Crônicas de Nárnia no Brasil).

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