“O Senhor é o Senhor” (Ex 34,6c) Insistência no nome visando à relação
And the movie generated the reader: a study about The Chronicles Of Nárnia In Brazil

Matthias Grenzer* e Luciano José Dias**
* Matthias Grenzer é pós-doutor em Teologia pela PUC-RJ, doutor em Teologia pela Faculdade de Filosofia e Teologia St. Georgen em Frankfurt, Alemanha, e mestre em História pela PUC-SP. É professor na Faculdade de Teologia da PUC-SP e líder do Grupo de Pesquisa TIAT. ORCID: 0000-00033490-3112. Contato: mgrenzer@ pucsp.br. O Artigo de investigação aqui apresentado é ligado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da PUC-SP e ao Projeto de Pesquisa Exegese do Pentateuco.
** Luciano José Dias é mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da PUC-SP - Brasil e membro do Grupo de Pesquisa TIAT. ORCID: 0000-0001-8077-4636. Contato: lucianojdias@gmail.com.
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Resumo
A literatura bíblica nomeia Deus, sendo que a tradição judaico-cristã pronuncia tal nome como Senhor. O nome do Deus de Israel ganha sua carga semântica especialmente no livro do Êxodo. Nele alguns discursos diretos atribuídos ao Senhor insistem, com toda a sua força poético-retórica, na presença e no significado do tetragrama, apresentando ao ouvinte-leitor as quatro consoantes hebraicas que formam o nome de Deus. A investigação aqui apresentada se dedicará à interpretação do início de um desses discursos diretos. Far-se-á, primeiramente, uma análise linguístico-literária da frase contida em Ex 34,6c, a qual, em hebraico, é formada somente pela dupla presença do tetragrama. Em seguida, visar-se-á à função que o nome de Deus assume nesse discurso. Com isso, talvez seja possível vislumbrar a intenção que, desde as suas origens na literatura bíblica, acompanha a tradição judaico-cristã ao ela se propor a nomear Deus.

Palavras chave:Literatura bíblica, Êxodo, discurso direto, tetragrama, nome de Deus.

 

Abstract
Biblical literature names God, and the Jewish-Christian tradition pronounces such name as Lord. In particular, the name of Israel’s God gains his semantic burden in the book of Exodus. In it, some direct speeches attributed to the Lord, the God of Israel, insist with all their poetic-rhetorical force in the presence and the meaning of the Tetragram, bringing decisively toward the reader-listener the four Hebrew consonants that form the name of God. The research presented here will be dedicated in interpreting the beginning of one of these direct discourses. It will be sought first by a linguistic-literary understanding of the phrase in Ex 34,6c, and this, in Hebrew, is formed only by the dual presence of the Tetragram. Then it will be focussed the function that God’s name assumes in this discourse. Thus, it may be possible to discern the intention accompanying the Judeo-Christian tradition since its origins in biblical literature, when it insists in naming God.

Keywords:Biblical literature, Exodus, direct speech, tetragrammaton, name of God.

Introdução

Uma das características marcantes do Senhor, Deus de Israel, como personagem-protagonista na narrativa sobre o êxodo – contada nos últimos quatro livros do Pentateuco – é que ele fala.1 Focando somente o livro do Êxodo, trata-se, pois, da ação mais frequente de Deus:

Setenta e sete introduções aos discursos diretos chamam a atenção do ouvinte-leitor para os discursos divinos; além disso, mencionam-se simplesmente discursos de Deus sem que seus conteúdos sejam apresentados (por exemplo: Ex 33,9.11), ou, de forma retrospectiva, constata-se que tudo ocorreu como Deus tinha dito (por exemplo: Ex 7,13.22; 8,11.15; 9,12.35). Fazem parte dos discursos do Senhor também seus clamores, seja quando ele conclama alguém ou clama a alguém (Ex 3,4; 19,3.20; 24,16), seja quando ele proclama algo (Ex 33,19; 34,5-6) (GILLMAYR-BUCHER, 2016, p. 59)

Como os demais, também os discursos diretos atribuídos ao Senhor se destacam por sua linguagem e seus efeitos retóricos. Pensando, pois, no gênero literário das narrativas (poesia épica), existem diferenças marcantes entre os trechos de narração, nos quais se ouve a voz do narrador, e os discursos diretos, em que o narrador empresta sua voz às personagens participantes da trama. Certas formas verbais e determinados tipos de frases somente ocorrem em discursos diretos (GRENZER, 2016). Por si só, os discursos diretos são semelhantes aos poemas e/ou discursos poéticos, que pertencem aos outros dois gêneros literários maiores, a dizer, à poesia lírica e ao drama. No mais, “o conteúdo do discurso direto é estreitamente ligado à função dele: a) expressar emoções, b) acordar posturas, c) motivar alguém a agir ou d) transmitir informação” (BAR-EFRAT, 2006, p. 81).

Dentro da macronarrativa sobre o êxodo, alguns discursos diretos do Senhor adquirem importância ímpar pelo fato de neles Deus se referir a seu nome e, assim, insistir em sua presença e disposição de relacionar-se com seu povo. Nesse sentido, também o que se ouve ou lê em Ex 34,6-7 chama a atenção do ouvinte-leitor. De um modo especial, chama a atenção, logo no início do discurso, a dupla presença do tetragrama (hwhy), conjunto de quatro consoantes hebraicas que formam o nome de Deus. O que, porém, à primeira vista, se revela chamativo e até favorável à memorização, carece de explicações. Um estudo pormenorizado de Ex 34,6c, no entanto, há que se dedicar a questões referentes ao texto provavelmente mais original, à configuração linguístico-literária e ao significado teológico da simples ou dupla presença do tetragrama. A pesquisa aqui apresentada procura discutir cientificamente tais assuntos, a fim de favorecer uma compreensão mais adequada do nome do Deus de Israel, assim como do início do discurso sinaítico dele sobre a graça (Ex 34,6-7).

Texto e estudo linguístico-literário

Embora a intenção aqui seja apenas estudar o início do discurso direto do Senhor em Ex 34,6c, é importante compreender a expressão ou frase dentro de seu contexto imediato, contemplando a provável configuração de todo o discurso direto do Senhor, inclusive a introdução dele. Segue-se o texto hebraico segundo a edição crítica da Biblia Hebraica Stuttgartensia, com atenção aos acentos massoréticos, a fim de acompanhar como essa tradição judaica pertencente à Idade Média propõe juntar ou separar as palavras, indicando a entonação de cada uma delas e, dessa forma, a melodia da leitura, sendo que assim, em certos momentos, ocorre a determinação das relações sintáticas entre os elementos que compõem as frases (FRANCISCO, 2008, p. 202-213; TOV, 1997, p. 54-58). Para facilitar a compreensão da análise a seguir, o texto bíblico é apresentado aqui de forma segmentada, sendo que a respeito da segmentação não existem parâmetros mais definidos no mundo do estudo da Bíblia Hebraica.

Acompanhando somente os acentos disjuntivos, os massoretas indicam, através do sillûq, a maior pausa no final do v. 6. A segunda maior pausa – o ʼat̠naḥ – figura debaixo da palavra aqui traduzida como “misericordioso” (v. 6d), sendo que o versículo se divide aqui em duas metades. Enquanto esses dois acentos formam as duas pausas maiores do grupo dos acentos chamados de “imperadores”, outros acentos do grupo dos “reis” indicam pausas um pouco menores (TOV, 1997, p. 56). Nesse sentido, podem ser observados o zarqāʼ junto à expressão “diante da face dele” (v. 6a), o səḡôlətāʼ junto ao termo “e proclamou” (v. 6b), o zāqēp̄ qāṭān com o segundo tetragrama (v. 6c) e o ṭippḥā junto às palavras “compassivo” (v. 6d) e “longânimo” (v. 6e), sendo que esta última, em hebraico, é formada por dois termos, que também poderiam ser traduzidos como “lento na ira”.

Em vista da dupla presença do tetragrama no v. 6c, por sua vez, é importante observar que os massoretas não optaram por indicar uma pausa entre as duas presenças do nome de Deus. Pelo contrário, um acento conjuntivo – ver o munnaḥ embaixo do primeiro tetragrama no v. 6c – favorece justamente a junção dos dois tetragramas, sem que se interrompa a melodia da leitura. Mais ainda, “a pontuação massorética separa o termo ‘e proclamou’ no v. 6b dos dois tetragramas no v. 6c, optando, assim, por um início do discurso direto com a dupla presença do nome de Deus” (SCORALICK, 2002, p. 78)2.

Como, no entanto, compreender a sintaxe em Ex 34,6c? Quais as funções que pertencem às palavras em vista da construção das frases, seguindo-se a subdivisão aqui proposta? A repetição do tetragrama, muitas vezes, é compreendida como ênfase, semelhante à presença dupla de outros nomes em alguns lugares (ver “Abraão” em Gn 22,11, “Jacó” em Gn 46,2, “Moisés” em Ex 3,4 e “Samuel” em 1Sm 3,11). Afirma-se que “o staccato na linguagem sublinharia a dramaticidade do momento” (FRANZ, 2003, p. 165). Nesse sentido, o que se segue ao v. 6c seria atributivo, em forma de aposição – “O Senhor, o Senhor, um Deus compassivo e misericordioso, longânimo e abundante em lealdade e fidelidade” (v. 6c-e) –, ou predicativo – “O Senhor, o Senhor é um Deus compassivo e misericordioso, longânimo e abundante em lealdade e fidelidade” (v. 6c-d). No primeiro caso, não se teria uma frase completa, mas um substantivo seguido por uma lista de atributos. No segundo caso, se leria uma frase nominal, na qual os dois tetragramas no v. 6c formariam o sujeito, e o que se lê a partir do v. 6d, o predicado do sujeito. Contudo, esse tipo de ênfase parece não se encaixar bem, porque quem discursa – ver “o Senhor” no v. 6a – pronuncia seu próprio nome (SCORALICK, 2002, p. 41). Quer dizer, o locutor não se dirige a outro para, de forma reforçada, chamar a atenção dele.

Existe, no entanto, ainda outra forma de compreender o início do discurso direto de Deus em Ex 34,6. Os dois tetragramas podem formar uma frase nominal com sujeito e predicado do sujeito, sendo que o segundo elemento é seguido por atributos em forma de aposição: “O Senhor é o Senhor, um Deus compassivo e misericordioso, longânimo e abundante em lealdade e fidelidade” (v. 6c-e). Nesse caso, o Senhor, Deus de Israel, também insiste enfaticamente em seu nome. Contudo, não no sentido de chamar sua própria atenção, mas, aparentemente, para destacar a diferença entre seu nome – inclusive aquilo que tal nome representa, algo explicitado novamente nos atributos que se seguem – e nomes pertencentes a outros deuses.3

O Senhor discursa sobre si mesmo

Verificando os noventa e um discursos diretos que, no livro do Êxodo, são atribuídos ao Senhor, Deus de Israel, observa-se primeiramente que, em vinte e dois deles, quem fala não se refere, de forma expressa, a si mesmo (Ex 3,4.5; 4,2.3.4.6.7.8-9.19.27; 6,11.26; 7,9.19; 8,1.12; 9,8-9.22; 10,12.21; 14,26; 32,27). Em outros sessenta e nove discursos pertencentes ao mesmo personagem, por sua vez, ocorre o contrário. De compreensão mais simples são aquelas falas nas quais o Senhor Deus se refere a si mesmo usando a primeira pessoa do singular, seja através do verbo finito na primeira pessoa, seja por meio de um sufixo pronominal na primeira pessoa, sendo que este encontra seu ponto de referência em quem discursa (Ex 3,6.7-10.14a-b; 4,11.14-17; 5,1; 6,1.2-8.29; 7,1-5; 10,1-2; 11,1-2.9; 13,2; 14,1-4.15-18; 16,4-5.112; 17,5-6.14; 19,3-6.9; 24,12; 30,23-33; 32,7-8.9-10.13.33-34; 33,13.5.12.14.17.20.21-23; 34,1-3.27; 40,2-15). São contemplados aqui também aqueles discursos divinos que o Senhor, dentro de seu próprio discurso, apresenta a Moisés, a fim de que este, posteriormente, os transmita a outros.

Entretanto, em vista da presente investigação sobre Ex 34,6c, outros discursos diretos do Senhor surpreendem ainda mais o ouvinte-leitor do livro do Êxodo. Em alguns momentos, o Deus de Israel fala sobre si mesmo fazendo uso da terceira pessoa. Ora esse fenômeno ocorre de forma misturada, alternando o uso da primeira e da terceira pessoa (Ex 3,12.15-22; 4,21-23; 7,14-18.26-29; 8,16-19; 9,1-4.13-19; 12,1-20; 15,26; 16,28-29; 20,2-17; 20,22–23,33; 25,2–30,10; 30,34-38; 31,2-11.13-17; 33,19; 34,10-26). Ora o Senhor, Deus de Israel, insiste somente no uso da terceira pessoa para referir-se a si mesmo (Ex 13,14d-e; 4,5; 9,5; 12,43-49; 16,23; 19,10-13.21-22.24; 24,1-2; 30,1-16.17-21; 34,6-7).

Além disso, uma determinada expressão caracteriza os discursos diretos de Deus referentes a si mesmo. Trata-se de uma autoafirmação formulada como frase nominal: “Eu [sou] o Senhor!”, seja com a forma xE me )הָוהְי יִנ ֲא( ralugnis aossep ariemirp ad laossep emonorp od atruc 6,2.6.7.8.29; 7,5.17; 8,18; 10,2; 12,12; 14,4.18; 15,26; 16,12; 31,13, seja sad asuac roP .5.2,02 xE me )הָוהְי י ִכֹנאָ( emonorp od agnol amrof a moc repetições, tal expressão ganha as características de uma fórmula litúrgica. Além disso, uma pergunta retórica de Deus guarda semelhanças com a fórmula mencionada: “Por acaso, não sou eu o Senhor?” (Ex 4,11).

Enfim, ao observar essas múltiplas e diferentes autoreferências nos discursos divinos, surge novamente a pergunta teológica a respeito do significado mais exato do nome do Deus de Israel e, por consequência, a respeito do sentido da repetição constante dessa nomeação de Deus.

O Senhor diz que e quem ele é

Somente no livro do Êxodo, o tetragrama está presente trezentos e noventa e oito vezes, sendo que, em Ex 15,2; 17,16, aparece duas vezes a forma curta do nome de Deus, constituída somente pelas primeiras duas das quatro consoantes. Em toda a Bíblia Hebraica, o nome do Deus de Israel consta seis mil, oitocentos e vinte e oito vezes (ver a tabela em JENNI, 1984, p. 704). Ao procurar o significado desse nome próprio, no entanto, é de fundamental importância acolher o que, como parte da história sobre a vocação de Moisés, é narrado em Ex 3,13-14:

13 Moisés disse a Deus: “Quando eu for aos filhos de Israel e lhes disser: ‘O Deus de vossos pais me enviou a vós!’, e me disserem: ‘Qual é o nome dele?’, o que lhes direi?” 14 Então Deus disse a Moisés: “Serei quem serei!” Disse mais: “Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O Serei me enviou a vós!’”

Literariamente, a narrativa bíblica em questão explora a semelhança entre as quatro consoantes que formam o nome de Deus (hwhy) – por isso, tetragrama, termo grego que significa “quatro letras” – e as três consoantes que constituem a raiz verbal comumente traduzida como “ser”, “estar”, “acontecer” ou “ocorrer” (hyh). Surge, com isso, a impressão de que a origem do tetragrama se encontre em tal verbo. No entanto, não é possível comprovar historicamente essa hipótese. Seguindo, pois, a proposta cronológica indicada pelas tradições bíblicas e localizando o evento do êxodo no final do século XIII a.C., sabe-se que tais textos foram compostos apenas em séculos posteriores. Mais ainda, não existem fontes extra-bíblicas mais antigas que dessem outro acesso à vocação de Moisés, ao evento do êxodo e, com isso, à origem, à pronúncia e a uma compreensão inicial do nome de Deus por parte de Israel, eventualmente diferente daquela favorecida por Ex 3,14. Não obstante, a configuração dos textos bíblicos em séculos posteriores, por si só, também não é um argumento contra a historicidade do êxodo (FREVEL, 2015, p. 58-65). Enfim, será explorado aqui o que o próprio livro do Êxodo propõe a seus ouvintes-leitores em relação à compreensão do nome do Deus de Israel.4

No que se refere a Ex 3,14, observa-se com nitidez que a narrativa trabalha com “o recurso da etimologia: o verbo ‘ser’ (hyh), que sonoramente se aproxima às consoantes contidas em Jahwe, serve para explicar o nome de Deus” (FISCHER, 1989, p. 147). No caso, a raiz verbal em questão é apresentada duas vezes na conjugação dos prefixos, sempre na primeira pessoa do singular, com um pronome relativo responsável pela ligação entre os dois verbos. Ao respeitar a conotação futura da conjugação dos prefixos (BARTELMUS, 1983, p. 110 e 228; BARTELMUS, 2009, p. 81-82.201-205), a frase relativa, que é paronomástica em razão de uma semelhança fônica ( ,)ֶאְהֶיה ֲא ֶשׁר ֶאְהֶיה é mais bem traduzida da seguinte forma: “Serei quem serei!” (Ex 3,14). O que, por sua vez, esse verbo propõe em relação à carga semântica do tetragrama?

Através do contexto imediato, percebe-se primeiramente que o ser do Senhor indica o companheirismo dele ou sua qualidade de relacionar-se. Justo em seu discurso anterior, pois, o Deus de Israel dirige a seguinte promessa a Moisés, sendo que, em hebraico, a mesma raiz verbal aparece exatamente na mesma forma: “Certamente, estarei contigo! (ִכּי־ֶאְהֶיה ִע ָמּךְ)” (Ex 3,12). Ou seja, o “ser” do Senhor precisa ser pensado a partir do anterior “estar com” (JANOWSKI; SCHOLTISSEK, 2016, p. 248).

No segundo momento, Ex 3,14 dá a entender que o Senhor insiste em sua “futura e livre existência”, no sentido de existir “uma ênfase no ser, mas com abertura ao como” (FISCHER, 1989, p. 152). Assim, de Moisés exige-se que se mantenha aberto para a atuação poderosa e surpreendente desse Deus na história do povo que sofre.

Finalmente, o contexto imediato também esclarece que o Senhor, por mais que esteja absolutamente livre e que somente a história irá revelar sua atuação poderosa, se relaciona com seu povo através de profetas como Moisés, pessoas sensíveis às suas palavras. De novo, a narrativa em Ex 3,14e apresenta a raiz verbal aqui discutida na conjugação dos sufixos e, outra vez, na primeira pessoa do singular, embora o discurso divino a ser transmitido por Moisés ao povo se torne, dessa forma, de difícil compreensão: “O Serei me enviou a vós!” ( ).

Resumindo: ao pensar na carga semântica do tetragrama a partir de sua semelhança com a raiz verbal aqui traduzida como “ser” ou “estar”, seguindo a reflexão proposta pela narrativa bíblica em Ex 3,12-14, o nome de Deus adquire conotações que dão destaque ao Senhor como quem, em sua mais absoluta liberdade, se relaciona com o profeta, a fim de insistir, dessa forma, na libertação do povo oprimido. Para as tradições do Pentateuco, o tetragrama como nome próprio de Deus se encontra especificamente vinculado “à história de Israel, isto é, ao período da história do povo ligado a Moisés, ao êxodo e ao Sinai” (JANOWSKI; SCHOLTISSEK, 2016, p. 248). Nesse sentido, ouve-se ou lê-se em outro discurso divino a respeito dos patriarcas: “Meu nome Senhor não se tornou conhecido a eles” (Ex 6,3).

O Senhor insiste em seu nome

O nome “é o mais importante marcador de identidade” na cultura do antigo Israel, sendo que “uma pessoa e o nome dela, em muitos sentidos, são uma só realidade” (NEUMANN, 2016, p. 347). O que, no entanto, vale para o homem também ganha sua relevância no que se refere a Deus. Conforme Moisés, o povo de Israel irá perguntar a respeito de Deus: “Qual é o nome dele?” (Ex 3,14). Com isso, por sua vez, não se visa à simples informação de “como Deus se chama, mas ao significado do nome dele”, ou seja, “ao programático do nome” e “à relação entre Deus e Israel, focando-se a expectativa que os israelitas poderão cultivar em relação a esse Deus” (DOHMEN, 2018, p. 98). Quer dizer, o nome de Deus ganha relevância à medida que se reconhece a representatividade do tetragrama.

Justamente o meio-versículo aqui investigado (Ex 34,6c) revela outra vez como a narrativa bíblica em questão se interessa pelo Deus de Israel como quem investe em seu próprio nome. Tal insistência já começa com a notícia introdutória, quando o narrador conta em relação a Moisés que “o Senhor passou na frente da face dele” (v. 6a). A face, mais do que qualquer outra parte do corpo, está a serviço da comunicação. Nesse sentido, estar na frente da face de alguém, em princípio, corresponde a um pedido de atenção, exatamente pela tentativa de atrair o olhar e a escuta desse alguém. Logo depois, ainda se narra que o Senhor “proclamou” (v. 6b) o que, logo a seguir, se ouvirá ou lerá como discurso direto dele (v. 6c-7d). Quer dizer, a narrativa não apresenta somente um simples “dizer” ou “falar”, mas algo que, aparentemente, se imagina como anunciado em voz alta e, portanto, celebrado, solene e, com isso, mais chamativo e decisivo.

Em seguida, começa, no texto hebraico, o discurso direto do Senhor com a dupla presença do tetragrama, algo que, de acordo com o estudo linguístico anteriormente apresentado, se compreende bem como frase nominal: “O Senhor é o Senhor” (v. 6c). Nesse sentido, a formulação em Ex 34,6c é singular e ímpar (SCORALICK, 2002, p. 41). Ou seja, por referir-se a si mesmo, com o uso da terceira pessoa do singular, o Deus de Israel insiste, de forma retoricamente realçada, em seu próprio nome. Além disso, a frase aqui analisada se torna chamativa por criar certo suspense ou mistério. “O que, pois, deve ser explicado é explicado através do mesmo elemento, ou seja, a partir de si mesmo – idem per idem” (DOHMEN, 2018, p. 99). Nesse sentido, a explicação em Ex 34,6c trabalha com a repetição do vocábulo decisivo, semelhantemente a Ex 3,14 – “Serei quem serei” – ou Ex 33,19 – “Terei misericórdia de quem tiver misericórdia e terei compaixão de quem tiver compaixão”.

Enfim, ao observar em Ex 34,6c como o Deus de Israel insiste em seu próprio nome, as seguintes duas qualidades ganham maior destaque: de um lado, a disponibilidade do Senhor em relacionar-se e visar, através de seus profetas, à liberdade de quem não está livre; de outro lado, a indisponibilidade do Senhor, no sentido de não abrir-se espaço para o uso mágico do nome dele. Sempre será preciso respeitar o mistério da mais absoluta liberdade do Deus de Israel, sendo que, conforme a narrativa do Êxodo, Moisés foi o primeiro a experimentar que o Senhor é o Senhor.

Considerações finais

A cultura religiosa do antigo Israel valoriza os nomes, sendo que, a partir deles, surgem relações. Sirva como exemplo como “os nomes dos filhos de Israel”, gravados nas ombreiras e no peitoral do sacerdote, têm a tarefa de se tornarem um “memorial permanente diante do Senhor” (Ex 28,9-12.17-21.29). Insiste-se, nesse caso, nos nomes dos israelitas para assim visar, de forma constante, à consciência e à lembrança da relação existente entre o Senhor e seu povo.

Em Ex 34,6c, por sua vez, se narra como o Deus de Israel insiste em seu nome: “O Senhor é o Senhor”. De acordo com o estudo aqui apresentado, tanto a carga semântica do tetragrama como a formulação da frase em questão indica que o dito quer favorecer a relação entre quem se pronuncia e quem é o ouvinte-leitor do discurso pronunciado. Percebe-se que a iniciativa cabe inteiramente ao Senhor. No entanto, em sua mais absoluta liberdade, o Senhor oferece sua palavra e, com isso, seu nome como defesa a quem se sente indefeso.

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TOV, Emanuel. Der Text der Hebräischen Bibel. Handbuch der Textkritik. Stuttgart: Kohlhammer, 1997.

Notas

[1]Neste estudo, o nome do Deus de Israel é grafado com letras maiúsculas. Ou seja, escreve-se e lê-se Senhor. Com isso, segue-se à tradição judaica que não pronuncia o tetragrama. Trata-se, sobretudo, de uma “compreensão rigidamente consequente da imparidade dessa divindade”, no sentido de “praticar-se linguisticamente o monoteísmo”, sendo que os mais diversos termos substitutos do nome de Deus empregados pelo judaísmo – como, por exemplo, Senhor ou, em hebraico, Adonai –, em princípio “não afirmam nada sobre as características da divindade, mas sobre quem faz uso deles” (BROCKE, 2012, 68-70). O cristianismo na versão católica acolheu o mesmo costume. Em vez de escrever e pronunciar o tetragrama como ‘Iahweh’, ‘Javé’, ‘Yahwe’ ou ‘Geová’, por orientação através de uma carta da Congregação para a Liturgia e a Ordem dos Sacramentos (29/06/2008), ele também o substitui pela palavra Senhor. Em todo caso, “um critério importante para a captação do nome de Deus é a distinção entre nome próprio (como Jhwh) e apelativos”, sendo que o Antigo Testamento guarda “aproximadamente vinte nomes diferentes de Deus” (JANOWSKI; SCHOLTISSEK, 2016, p. 248).

[2]Na mesma publicação, Scoralick comenta também a nota de rodapé na Biblia Hebraica Stuttgartensia, segundo a qual o texto original da Septuaginta somente mencionaria uma vez o nome de Deus em Ex 34,6c: contudo, segue-se aqui “a edição de Rahlfs, baseada no texto do códice do Vaticano”, sendo que “a edição de Göttingen da Septuaginta é diferente, mantendo um duplo Senhor (kúrioj) como texto original” (2002, p. 79).

[3]A compreensão de Ex 34,6c aqui favorecida não costuma ser encontrada nas traduções da Bíblia em língua portuguesa: ver BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2008 – “Iahweh! Iahweh ...” –; BÍBLIA DO PEREGRINO (Luís Alonso Schökel), 2002 – “O Senhor, o Senhor ...” –; BÍBLIA SAGRADA (Nova Almeida Atualizada), 2017 – “O Senhor! O Senhor ...” –; BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB, 2008 – “O Senhor, o Senhor ...” –; BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA, 2011 – “Javé, Javé ...” –; NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014 – “Javé, Javé!”; BÍBLIA SAGRADA, 2001 – “Senhor, Senhor!” –; BÍBLIA (Tradução Ecumênica), 1994 – “O Senhor, o Senhor, ...”. No que se refere à história da tradução da Bíblia no Brasil, conferir Cláudio Vianney MALZONI, 2016. Uma tradução alemã recentemente revista, com a primeira edição publicada em 2016, acolhe, por sua vez, a compreensão aqui defendida: DIE BIBEL (Einheitsübersetzung), 2017 – “Der Herr ist der Herr, ...”.

[4]Tentando compreender o tetragrama a partir do árabe antigo, chegou-se à hipótese de que nome do Deus de Israel signifique “ele venta” e indique, originalmente, “o nome de um deus do tempo” (KNAUF, Yahwe, p. 469). Tal hipótese se baseia em estudos linguísticos, focando o valor semântico da raiz verbal hwy. Contudo, não existem textos mais antigos do que as tradições da Bíblia Hebraica aqui investigadas. No mais, o presente estudo imagina que o livro do Êxodo goze de certa autonomia literária, sendo que o escrito, em princípio, se propõe a explicar-se a si mesmo, sem que aquilo que quer comunicar dependesse, contrariamente ou de forma distante ao que apresenta a seu ouvinte-leitor, do conhecimento de tradições pertencentes a outras culturas.