Formação de “missionários profetas”: a centralidade das narrativas no método de formação das EFM do Nordeste do Brasil
Formation of “missionary prophets”: the centrality of the narratives in the formation method of the EFM in Brazilian Northeast

Prof.ª Dr.ª Alzirinha Souza *
* Professora do Programa de Pós-Graduação e Graduação da Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Teologia Universidad San Dámaso Madrid Espanha. Doutora em Teologia Université Catholique de Louvain Bélgica. Membro da Société International Théologie Pratique France (SITP). Contato: alzirinharsouza@gmail.com
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Resumo
Entre as diversas formas de desenvolvimento do processo de evangelização, encontra-se a formação, tema continuamente importante e pertinente. Nesse sentido, apresentamos no presente artigo a primeira parte de nossa pesquisa de pós-doutorado, para a qual utilizamos não somente os referenciais teóricos, mas – e sobretudo – elementos de entrevistas realizadas com participantes desse processo de formação. Para tanto, centramo-nos na análise do processo de formação de leigos missionários no Nordeste do Brasil, no projeto das Escolas de Formação Missionária, fundadas por José Comblin. Como estruturação do texto, partimos da história da construção das escolas, da análise teológica-contextual, para finalmente entrarmos na análise de sua metodologia e da centralidade das narrativas nesse processo, que demonstra a compreensão que José Comblin tinha do “fazer teológico”, dada pela prioridade de fazer cumprir “o papel social da teologia”, isto é, fazer-se entender por seus destinatários a partir de seus referenciais. Para a análise dos elementos narrativos, associamos o instrumental de Paul Ricœur, principalmente no que tange à compreensão das narrativas proféticas.

Palavras chave:José Comblin, método, narrativas, leigos, formação, profecia

 

Abstract
Among diverse forms to develop the process of evangelization there is the formation which is continuously important and relevant. This way, the present work presents the first part of our post-doctoral research for which we use not only theoretical references, but – and above all – elements from interviews with participants of the referred formation process. So, the present work focuses the analysis of lay missionaries’ formation process in Brazilian Northeast regarding to the project Missionary Formation Schools (Escolas de Formação Missionária), founded by José Comblin. The structure of the text starts with the history of the construction of these schools, establishes a theological-contextual analysis, and finally analyses its methodology and the centrality of narratives in the process, that demonstrates the understanding of “theological labor” José Comblin had, given by the priority of accomplishing the “social role of theology”, i.e., being comprehended by its receptors from their references. To analyse the narrative elements we use Paul Ricœur’s instrumental, mainly what relates to the understanding of prophetic narratives.

Keywords:José Comblin, Method, Narratives, Lay People, Formation, Prophecy

Introdução

Este texto nasce da pesquisa realizada no contexto de meu projeto de pós-doutorado, cuja proposta central é buscar compreender o impacto e a importância das narrativas no processo de formação de leigos e leigas missionários(as), realizado nas Escolas de Formação de Base, criadas por José Comblin no Nordeste do Brasil.

A localização delas nessa região do País é determinante para o sentido eminentemente missionário das formações aí oferecidas. Comblin acreditava que, devido à extensão geográfica, à distância e até mesmo à ausência de interesse de sacerdotes pelas áreas mais remotas, a evangelização por missão era o processo mais efetivo para essa região: leigos evangelizando leigos; leigos que pudessem ter a possibilidade não apenas da formação teológica, notadamente bíblica e da racionalização da própria fé, como também de compreender a formação dos contextos nos quais viviam e iriam evangelizar e, a partir daí, apropriar-se de suas próprias identidades.

Tal como as particularidades geográficas e sociais dessa região, a evangelização aí realizada também traz consigo suas especificidades. Contudo, é no Nordeste brasileiro que José Comblin decide instalar-se desde 1965, quando, a convite de D. Hélder Câmara, chega à cidade do Recife para iniciar uma nova etapa de sua vida na América Latina que viria a ser, apesar do intervalo forçado pela ditadura entre 1972-1980, sua residência definitiva. Inicialmente, dedica-se à formação acadêmica, na qual vai compor a equipe de formadores do recém-formado ITER (Instituto de Teologia do Recife), juntamente com D. Marcelo Carvalheira, René Guerre, entre outros. Nessa instituição, dedica-se à estruturação dos cursos de Filosofia e Teologia. Este último não só atenderia os estudantes seminaristas do Nordeste, mas também os leigos(as), sendo o primeiro curso de Teologia a abrir-lhes espaço.

Desde os primeiros anos, buscando estar em linha com as novas perspectivas do Concílio Vaticano II, que se findara em 1965, a equipe do ITER buscava abertura e inovações para seus alunos. Podemos dizer que Marcelo Carvalheira, coordenador da equipe de formação, traduz bem o que se esperava como resultado final da formação oferecida: “Que sejam profetas do meio popular. Que vejam o que os outros não veem e promovam não somente palavras que consolam, mas também as que incomodam contra todas as desordens estabelecidas de toda sorte”(Carvalheira, 1966, p.356).

Comblin entra nessa dinâmica para colaborar na construção de uma Igreja renovada e contextualizada. Denominamos as iniciativas por ele realizadas para esse processo “a prática de Comblin”. Estas podem ser subdivididas principalmente em três: CEBs, Teologia da Enxada e Escolas de Formação Missionária. Dentre elas, nesta pesquisa nos centraremos na última e analisaremos o processo aí aplicado à luz do pensamento de Paul Ricœur.

Elementos da prática de Comblin

Antes de entrar especificamente na prática de Comblin, é necessário, em nossa opinião, considerar um elemento essencial e norteador de todo o seu trabalho: o vínculo entre ação humana e esperança. Para Comblin, é a partir do encontro com o Evangelho, em processo de conversão e impulsionado pelo Espírito, que a humanidade é capaz de agir de nova forma. Esses elementos (Evangelho e Espírito) capacitam cada pessoa a redirecionar sua prática e a transformar-se a partir dessa nova referência, transformando os contextos por onde vive. Em suma, é pela ação humana que o “Homem Novo” (Souza, 2014, p.380) se constrói e transforma a si mesmo, bem como a sua realidade no presente da história, tornando-se colaborador ativo do desvelamento do Reino de Deus na história.

É igualmente importante ressaltar como a prática de Comblin reflete a sua teoria. Podemos dizer que, de um modo geral, esta compreende o sentido mesmo de sua teologia que o próprio autor defende: é a teoria posta em prática para estar a serviço das pessoas concretas de tal forma que as aproxime e as ajude a compreender sua relação com Deus (Comblin, 1977, p.63). São práticas que buscam colocar as pessoas em contato com o Evangelho, dando-lhes um caminho de conversão que lhes possibilite o início de uma nova construção humana.

Em linha com a Teologia da Libertação, podemos dizer por último que sua prática: 1) parte da realidade, trazendo consigo a preocupação com ela para que se possa em momento segundo emitir uma resposta teológica que contribua para o novo, para a transformação; 2) tem como centralidade, parâmetro, prioridade e destinatários os pobres, os eleitos de Deus que estão continuamente abertos à esperança e à transformação do mundo; 3) põe a Igreja em movimento contínuo de aproximação com a realidade, refletindo o que Comblin chama de “outro projeto” de Igreja, inclusivo e comunitário, e 4) finalmente reflete o que chamamos de três notas1 de ação, isto é, três características essenciais que marcam as ações de esperança e libertação. Estas devem ser necessariamente: proféticas, missionárias e comunitárias, acontecendo de forma inter-relacionada e complementar.

Ora, o conjunto de atividades desenvolvidas por Comblin, que denominamos “as práticas de Comblin”, responde a uma perspectiva teológica, dentro da qual associamos a perspectiva profética à Teologia da Enxada, a perspectiva comunitária às CEBs e a perspectiva missionária às Escolas de Formação de Base. Sem serem excludentes entre si, elas guardam em comum o traço combliniano da centralidade antropológica. É a partir dessa compreensão que neste texto nos deteremos na análise das Escolas de Formação de Base, em especial no papel da linguagem nesse processo formativo de leigos e leigas.

Os Centros de Formação Missionária: a perspectiva missionária

Se a Experiência da Enxada2 se centrava na formação conjunta de seminaristas e leigos, ressaltando sua perspectiva profética; se as CEBs se tornaram espaços de vivência de diversas vocações, denotando a perspectiva comunitária, os Centros de Formação Missionária (CFM) possibilitaram o avanço no processo de evangelização, tornando-se espaços de referência de formação para a vocação laical missionária.

Em sentido oposto ao das CEBs, onde os leigos assumem a responsabilidade da animação das comunidades em movimento intracomunitário, as EFM encarnam o novo ministério nascido na América Latina: o missionário leigo. Trata-se de pessoas enviadas por suas comunidades para evangelizar os que não pertencem a ela, configurando uma Igreja itinerante até o descobrimento do desconhecido, em movimento no espaço e em saída para o encontro de pessoas novas.

Para Comblin, os missionários como expressão de uma Igreja itinerante, renovada e profética constituem uma expansão do movimento das CEBs. Nesse sentido, eles são novidade e mudam sensivelmente sua figura quase tradicional. Trata-se, agora, de uma realidade nova à qual não há alusão nos documentos da Igreja do Brasil. A figura de ministros itinerantes completa a imagem das CEBs e corrige o que elas poderiam ter de rígido ou fechado em si mesmas (Comblin,1980,p.627). Comblin registra que existem casos de animadores de comunidade das CEBs que descobriram sua vocação missionária (Comblin, 1980, p. 627), revelando que são efetivamente formas distintas de vivência da fé.

Os missionários impulsionados pelo Espírito de Jesus assumem espontaneamente um modo de viver itinerante e começam a evangelizar os pequenos povoados e lugares isolados, reunindo pessoas nas praças e nas ruas. Certamente com permissão eclesial, mas com iniciativa e disponibilidade pessoal, trata-se enfim de uma nova expressão de Igreja itinerante que circula pelos caminhos do mundo.

De fato, a prática missionária não é nova na Igreja. Pelo contrário, ela encontra a fundamentação de sua vocação na pessoa mesma de Jesus, que é o primeiro missionário itinerante, exemplo seguido por seus discípulos. Ainda que essa experiência tenha sido reforçada pelos escritos paulinos e finalmente pela Didaqué (11-15), os missionários judeu-cristãos foram a primeira realização do seguimento de Jesus e o mais antigo modelo de cristianismo e de seus discípulos (Comblin,1980,p.644).

Ora, no Nordeste Brasileiro, os leigos também começaram a tomar a iniciativa de visitar as comunidades isoladas. É a partir dessa identificação que Comblin dá início, em 1989, às EFM que até esta data se encontram em atividade.

Histórico das Escolas de Formação Missionária

Foi em 1989, a partir da reflexão sobre a realidade nordestina, que Comblin, juntamente com D. Mathias Schmidt, bispo de Rui Barbosa, e os bispos das Dioceses de Juazeiro, Senhor do Bonfim, Paulo Afonso, Barra, Vitória da Conquista, Guarabira e Picos, inicia o desenvolvimento de uma formação para os leigos3.

Da análise da realidade sugiram as questões de fundo que motivariam a estruturação do projeto. A primeira questão, que é a mesma que se coloca atualmente, é o baixo número de sacerdotes para fazer frente a todas as paróquias e comunidades que se situam em regiões isoladas. Para avançar na evangelização, era necessário pensar uma formação estruturada para os leigos de forma que eles pudessem sustentar as comunidades na ausência dos padres. A segunda questão, e a principal, foi criar um espaço de formação adequado aos leigos nordestinos, isto é, gente simples da região, seja na questão pedagógica, seja na questão geográfica. A terceira questão ou motivação, descrita por Comblin em 1991, trata de formar leigos capazes de fazer frente ao avanço dos novos movimentos religiosos pentecostais sobre as classes pobres4, razão pela qual as EFM se destinariam prioritariamente aos leigos(as) que estavam assumindo compromissos em suas comunidades5

Estrutura

A partir de então, foram estruturadas seis EFM que reagrupavam em seus cursos leigos vindo de todas as regiões. Atualmente, elas são compostas por seus centros de formação, localizados em diversos estados da região Nordeste.

Com a ajuda de organismos internacionais6, doações, recursos próprios de Comblin e principalmente o trabalho dos próprios leigos, as EFM foram se constituindo. A primeira foi inaugurada em 1989 na cidade de Juazeiro, recebendo leigos das Dioceses de Rui Barbosa, Juazeiro, Senhor do Bonfim, Paulo Afonso, Barra, Vitória da Conquista e Picos. A segunda inaugurada em 1991, funcionando na cidade de Mogeiro, Diocese de Guarabira. A terceira, inaugurada em 1991, está localizada na cidade de Miracema do Tocantins. Em 2004, nasce a Escola de Jatobá, na Diocese de Floresta, que atende a Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Paraíba. Em 2006, foi inaugurada a Escola de Esperantina no Piauí, para atender às Dioceses de Parnaíba (PI) e Brejo (MA). Em janeiro de 2011, dois meses antes da morte de Comblin, ele mesmo participa da inauguração da EFM de Barra, na Diocese de mesmo nome, onde vivia, e finalmente em janeiro de 2017, foi inaugurada a EFM da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso7.

Estrutura da formação

Nesta pesquisa, deter-nos-emos na experiência e no método de formação utilizado nas seguintes EFM: Mogeiro, Floresta, Juazeiro, Barra, Serra da Catita e Prelazia de São Félix8. Contudo, as entrevistas realizadas durante a pesquisa nos revelaram outro dado importante. Com a exigência e a identificação de novas vocações, as EFM se estruturaram nos seguintes polos de formação: Centro de Formação missionária para homens e mulheres em Serra Redonda, inaugurada em 1983, do qual posteriormente nasceu a Associação Missionária Feminina de Mogeiro; Centro de Formação Missionária de Tacaimbó e Salgado de São Félix; Associação de Missionários e Missionárias do Campo (Colônia Leopoldina); Associação Missionários do Nordeste para as periferias urbanas (AMINE), Associação das Árvores em Bayeux, e Grupos de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste9.

O objetivo da formação pode ser apresentado em sete pontos essenciais: 1) oferecer formação a cristãos de classe popular, de forma a prepará-los para atuar no mundo à maneira de Jesus; 2) priorizar a formação humana que desenvolve a personalidade, trabalhando o ser, o ver e o atuar das pessoas; 3) formar para a liberdade e com liberdade no Espírito de Jesus; 4) desenvolver o espírito missionário e a mística da missão entre os pobres além das fronteiras eclesiais; 5) realizar a formação através do testemunho de educadores, com uma metodologia simples e orientada para a cultura popular e o mundo dos pobres; 6) manter a perspectiva de um novo caminho para a Igreja, que sustenta a participação e a comunhão, modelo estudado e vivido na convivência de um mês intensivo de formação, e 7) finalmente manter uma formação constante que seja sobretudo estímulo, espaço de troca de experiências e desafios que levem ao mútuo estímulo entre os participantes.

Método de formação

Algumas características são marcantes no processo de formação das EFM. Dentre elas, podemos destacar: 1) a necessidade e realização de uma formação permanente; 2) o vínculo entre formação e cotidiano; 3) a formação tem momentos fortes no período de um mês em conjunto, mas é seguida de encontros mensais que inspiram uma espiritualidade de partilha de experiências, de conhecimento, de oração e necessidades físicas10, 4) “Não é uma formação estritamente teológica. É uma formação humana, formação com compromisso de um processo de humanização, buscando o ser humano como um todo e sendo todos os seres humanos chamados a experimentar esse mesmo processo. É claro que dentro disso há um lado místico, da espiritualidade, que vai atravessando esses momentos todos também. Então isso é uma coisa que marca dentro da experiência das Escolas de Formação Missionária11”, e 5) a forma particular de trabalhar a compreensão do Reino de Deus (que é maior que a Igreja mesma): ali se trabalha a Igreja como instrumento a serviço do Reino de Deus, em compromisso com a causa de libertação dos pobres. Segundo Calado, nesse sentido o pensamento de Comblin e o tom dado às EFM ajudam a elucidar. Dirá Calado: “Uma das entrevistas tantas que ele deu, delas eu recolho uma coisa importante, quando perguntado pelo entrevistador sobre o que é mesmo esse Reino de Deus. Ele dizia que a expressão mais forte para resumir era a categoria Libertação, compromisso com as causas dos pobres, não vistos como alvo de comiseração, como coitadinhos, mas como protagonistas de seu processo de libertação a partir do chamamento do Reino de Deus. Do chamamento tão presente de Lc, 4”12.

Para tanto, foi estruturada uma pedagogia de longo prazo. A formação é constituída em quatro anos, organizada em duas etapas: a primeira, realizada a distância, com acompanhamento de monitores locais, compreende os temas de informação mais que formação, ou seja, trata de temas da doutrina cristã trabalhados com material popular em 24 cadernos13. A segunda etapa consiste em um período intensivo de experiência comunitária e de imersão de 30 dias, em que são desenvolvidos os seguintes temas: espiritualidade, conselho pastoral, celebrações populares, liturgia e análise da situação social e política do Nordeste brasileiro.

Para o acompanhamento dos que “concluíram” a formação, nasceu a União dos Missionários, criada em 1993, contando hoje com mais de 200 menbros que se encontram regularmente para intercambiar experiências e renovar a missão.

Análise teológica

É importante destacar que a estrutura das EFM reflete a compreensão de Comblin acerca da missão. Também é necessário recordar que, ainda que Comblin tenha concluído seu Doutorado em Estudos Bíblicos, seu trabalho acadêmico e pastoral realizado na América Latina o conduziu ao desenvolvimento de uma perspectiva missionária antes que a bblica14. Tendo isso em conta, apresentamos a compreensão de Comblin sobre a missão.

Uma vez mais, o autor se coloca em linha com sua própria compreensão da centralidade do homem e sua ação transformadora de si e do mundo, a partir da construção da identidade do missionário que é dada pelo seguimento de Jesus. A concepção de missionário que reflete a formação oferecida pelas EFM parte da singularidade proposta em LG31, da especificidade de que cabe aos leigos, por vocação própria, buscar o Reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Ele.

Em convergência com esta ideia, Comblin compreende também a vocação leiga missionária na Igreja: o lugar dos leigos é estar no mundo. Por isso a formação deve ajudá-los a atuar no meio das coisas temporais. Trata-se de mudar o mundo pela força do testemunho de vida. Essa é a razão pela qual o programa da formação é adaptado e diferente do programa aplicado a padres e religioso(as). A finalidade da formação dos leigos é atuar no mundo popular (pobre), pois já estão em movimentos ou atividades humanas em geral, naquilo que constitui o mundo. As instituições (sacramentos, culto, catequese, pastorais) devem constituir uma ajuda a quem é enviado ao mundo. Em nenhum momento, essa estrutura supõe o enfrentamento ou separação da Igreja institucional, mas antes supõe a complementariedade na evangelização entre dois polos que têm como ponto em comum os pobres. Segundo Comblin, apesar das atitudes que podem dificultar o processo, quando existe a opção pelos pobres de ambas as partes, há colaboração mútua na missão15.

Na formação das EFM, os leigos são preparados para buscar espaço de ação fora dos círculos eclesiais. Elas buscam preparar os leigos que estão no mundo popular e cuja missão consiste em transformar, de acordo com a vontade de Deus, esse meio. Segundo Comblin: “O lugar do missionário é no mundo, mas muitas vezes este se reduz a grupos intraeclesiais (as pastorais, o serviço da liturgia e a catequese). Devemos defender-nos do modelo que consiste em integrar o maior número possível de leigos em funções paroquiais ou de culto, deixando o mundo abandonado”16.

O autor afirma que o verdadeiro ministério missionário consiste em estar presente onde a Igreja está ausente: nas fábricas, nas prisões, nos sindicatos, entre os políticos, nos meios ou grupos em risco. Há muitos espaços aonde a mensagem do Evangelho não chega, por isso é necessário sair da Igreja, entrar no mundo e tornar posições cristãs nos diversos meios. É ali, segundo Comblin, que devem nascer as novas Igrejas. Esse é verdadeiramente o ministério do missionário. Insiste Comblin:

Se queremos assumir o ministério de missionários nas paróquias e dioceses, é preciso aceitar que os leigos se dediquem a fazer presença fora dos espaços eclesiais. Não estão a serviço das comunidades paroquiais. A paróquia deve dizer: estão liberados (no sentido de não assumir tarefas interparoquiais) para fazerem-se presentes no mundo, exercitarem a criatividade, despertarem a população para uma vida de fé, suscitarem comunidades. É nesse sentido que se propõe a oficialização do ministério missionário. Trata-se de um reconhecimento no sentido de dar espaço e valorizar a ação missionária17.

Em suma, Comblin sustenta, em sua prática, a coerência com sua teoria eminentemente paulina de compreensão da missão como testemunho. A partir da proximidade e da compreensão da realidade, defende a necessidade de estar no mundo em sentido literal, isto é, de interferir para transformá-lo. A salvação não é abstrata, mas passa pelo conhecimento essencial que considera as estruturas de pecado existentes no mundo. O testemunho assume, pois, a perspectiva de denúncia e de palavra expressada publicamente que pretende enfrentar e vencar tais estruturas (Comblin,1973,p. 61).

O testemunho, no pensamento combliniano, é palavra dirigida (como ação impulsionada pelo Espírito) aos homens que estão organizados no mundo compreendido e por isso é transformador à medida que é dado pelas pessoas que se libertaram igualmente das estruturas.

Essa liberdade não consiste simplesmente na rejeição de dependências exteriores, mas na emancipação do Espírito das forças de cumplicidade com a dominação que o homem traz em si mesmo. Daí a necessidade de trabalhar de maneira mais profunda a personalidade do missionário para que ele seja capaz de dar testemunhos, seja pela força da Palavra que destrói as estruturas, seja pela capacidade de lutar contra as dominações sem as armas dos dominadores, seja por se tratar de um cristianismo que finalmente crê e que esteja encarnado na história. Afirmará Comblin:

O testemunho faz com que o cristianismo seja criador de história. Se fosse somente palavra mediatada no íntimo da consciência e aplicada à vida individual, o cristianismo não engendraria a história: seria apenas uma repetição dos mesmos fatos ocultos, desses fatos que não fazem a história e permanecem desconhecidos. Contudo, há uma história cristã e essa resulta do choque entre o mundo e o testemunho (Comblin, 1973,p.64).

É essa historicidade que faz com que a missão seja possível e concreta: a ação do missionário-profeta não é repetição de modelos, mas invenção de um modelo que responda ao ponto de impacto da mensagem para o tempo presente no qual é realizada, associada ao conhecimento crítico da realidade, que permite efetivar a ação teológica posterior.

Dentro da dinâmica de formação das EFM, seu método privilegia em especial a linguagem expressa pelas narrativas de seus participantes. O primeiro momento das formações é dado notadamente ao reencontro de seus participantes e à troca de experiências trazidas de suas práticas missionárias. É a partir dessa “contextualidade expressada e narrada” que as formações são realizadas. Há uma inversão metodológica: os participantes não estão ali somente para adquirir conceitos. Pelo contrário: a partir daquilo que eles mesmos são e do que se transforma pelo processo da experiência missionária, encontram-se para aprofundar e sistematizar aquilo que já construíram. Para a dinâmica que se apresenta entre narração, compreensão e ação, as EFM apresentam-se como espaços de escuta, apoio, sistematização e compreensão, visando à renovação da prática missionária. Ora, dada essa centralidade, nossa pesquisa se debruça sobre a compreensão e a análise da linguagem, especialmente da linguagem narrada.

Os processos da linguagem

O estudo sobre a linguagem abre uma enorme gama de abordagens e nos permite uma infinidade de compreensões sobre o tema. Marcel Viau nos lembra em geral que linguagem é “todo sistema de signos que podem servir a produzir uma infinidade de discursos” (Viau, 2007,p.41). Ora, o discurso, por sua vez, pode ser então “todo evento do linguajar determinado que supõe um interlocutor e um ouvinte onde o primeiro tem a intenção de influenciar o outro” (Ducrot, 1997, p.1323). Entre linguagem e discurso, encontra-se a noção de signo, uma unidade linguística da base de toda linguagem que comporta duas dimensões: a primeira, material, física ou sensível (o significante) e a outra, abstrata, conceitual e inteligível (o significado). Um discurso é perceptível em suas dimensões de significante e significado, a partir do momento em que ele toca a seu destinatário. Um discurso somente existe quando é endereçado e faz sentido a alguém, e ao final influencia alguém. Para a estruturação da linguagem e do discurso, é essencial a interação entre as partes, a argumentação de cada uma destas que se engaja nesse processo comunicativo.

Ora, o mesmo se passa com o discurso teológico. Ele igualmente se compõe de uma materialidade, objetos físicos, linguagem e símbolos. Da mesma maneira, ele deve tocar a seus ouvintes (de maneira negativa ou positiva) e gerar uma reação. O discurso teológico é discurso exatamente porque visa influenciar seus ouvintes e seus leitores. Por outro lado, se o discurso fica na estante dentro de um livro que não é lido, podemos dizer que há unicamente uma linguagem teológica e não um discurso teológico.

À medida que a linguagem se estrutura em discurso, este se transforma em “artefato teológico” (Viau, 2007,p.41). Tomando em consideração que o ser humano se expressa por diferentes formas (oral, escrita, gestual, com todas suas variações), o artefato teológico cumpre o papel de ampliar a compreensão da linguagem de forma inclusiva a todas as formas de expressão.

Ora, esse artefato teológico se compõe essencialmente por três universos ligados: epistemológico, retórico e estético. Para o primeiro, Viau afirmará que todo artefato teológico é estético a partir do momento em que é experimentado por seu destinatário: “o objeto físico é sempre o mesmo, mas a maneira como o indivíduo entra em interação com este objeto gera alguma coisa radicalmente nova que não existia antes. Este passa a ser um material formado por um produtor pela construção de uma experiência adequada por parte daqueles que lhe complementarão (Viau,2007,p.49). Essa complementação se dá naturalmente a partir de todas as referências que o interlocutor traz consigo.

O segundo, o universo retórico, trata da questão de “como esperar que o outro acredite no artefato teológico, a tal ponto de o transformar em seu sentido pessoal e próprio?” (Viau,2007,p.50). Qual o papel da linguagem no processo de estabelecimento de confiança entre emissor e receptor? O discurso é sempre uma interação particular da linguagem, sempre ligado a uma crença que nós apreendemos por ele e que nos leva a agir. De certa maneira, passamos a acreditar naquilo que se recebe pelo discurso. Nesse sentido, a função do artefato teológico é transferir a crença religiosa de um indivíduo a outro sem perder de vista que a crença não é um objeto, mas uma disposição a agir.

A terceira e última perspectiva toca ao universo estético. Um artefato teológico é um objeto poliforme sucetível de ser percebido por diversas maneiras, mesmo se somente uma face se apresenta a um observador particular, a cada vez, e que por isso está em constante construção. Por trás de cada artefato, haverá sempre um artesão consciente de seus meios.

Ao final, concluirá Viau (2007,p.52):

Ao se construir um artefato teológico, notadamente em teologia prática, não se busca simplesmente dar conta da realidade que nos supera. Trata-se antes de recrear o mundo, ou se prefere modificar dentro de seus limites aquilo que somos”.

É nessa perspectiva que na presente pesquisa analisamos um “artefato teológico” particular: aquele que é construído pelas e a partir das narrativas de troca de experiências realizadas entre homens e mulheres do Nordeste brasileiro, especialmente durante o período de formação intensiva realizado nas EFM.

As narrativas proféticas: o “artefato teológico” de Paul Ricœur

Para compreendermos o sentido mais profundo da importância da linguagem, em especial o sentido das narrativas expressadas, pelas quais Comblin constrói seu processo de formação, utilizaremos o instrumental de Paul Ricœur.

Cientes da densidade e da complexidade de seu pensamento, que se confronta com diferentes correntes intelectuais do século XX, insistimos em nossa eleição, considerando uma de suas abordagens que julgamos poder aproximar ao pensamento do teólogo José Comblin: o agir humano na história. Ora, se o primeiro (Ricœur) sistematiza as estruturas da ação vinculada à expressão humana dada pelas narrativas, o segundo (Comblin) se apropria das narrativas para ajudar a repensar e reconfigurar a consciência, visando uma nova ação de seus formandos.

Muito já se afirmou sobre a centralidade das narrativas no pensamento Ricœuriano. Por isso, em nosso estudo, ofereceremos a seguir os elementos gerais sobre as funções das narrativas segundo Ricœur, para em segundo momento nos determos especialmente nas narrativas proféticas e em como essa reflexão pode oferecer elementos à análise do processo de formação das EFM18.

Funções das narrativas segundo Ricœur

A centralidade das narrativas no pensamento do autor se dá principalmente a partir de três funções essenciais para a constituição do humano. A primeira função é operar uma mediação indispensável entre a descrição e o julgamento moral que se pode fazer sobre essa ação e seu autor. Uma narrativa, por meio da invenção da intriga, “reúne e integra em uma história inteira e completa os eventos múltiplos e dispersos”(Ricoeur,1983,p.12). É uma operação de síntese original que, pelo trabalho da imaginação, faz brotar o novo, o inaudito e o sentido de personagens, finalidades, meios, circunstâncias, acidentes etc. A narrativa é o instrumento que permite ter em conta a ação humana no tempo para além da análise de atos isolados. Uma prática humana somente pode ser descrita no cerne de uma sequência temporal narrativa que combina atos, circunstâncias e pessoas.

Além do mais, somente a narrativa concede à identidade das pessoas uma capacidade de descrição que permite levar em conta a variação do tempo. Uma pessoa não é uma substância invariável, mas um ser capaz de mudanças, por vezes de conversões. A identidade narrativa, atribuída pela intriga (Carvalho,2018,p.3) ao personagem de uma narrativa, opera essa mediação que permite ao sujeito narrador de sua própria história adquirir uma identidade (Ricoeur,1990,p.75). É a narrativa que pode descrever a ação em um nível no qual a pessoa pode ser adequadamente identificada e que, de alguma maneira, “forma” o sujeito ético.

Em O si-mesmo como outro, Ricœur traça o retrato do homem capaz sob a forma de quatro capacidades: “poder dizer”, “poder fazer”, “poder narrar”, “ser responsável” ou “a imputabilidade”. A dimensão ética do si vem de alguma maneira encerrar essa série de capacidades que descrevem a identidade-ipse do sujeito, compreendida a partir de uma dialética entre identidade e alteridade. Cada uma dessas capacidades é uma maneira para o sujeito, por meio de um retorno reflexivo, de reconhecer a si mesmo em sua identidade (narrativa) e sua responsabilidade (que não é ilimitada). Em A memória, a história e o esquecimento, Ricœur (2007) continua essa fenomenologia e acrescenta às quatro capacidades descritas anteriormente outras duas figuras: a memória e a promessa. Em O percurso do reconhecimento, sublinha a importância dessas novas figuras que obrigam a considerar a fragilidade das formas de reconhecimento associadas às capacidades. Afirmará o autor:

[Em O si mesmo como outro] somos autorizados a tratar os diversos modos do poder fazer, da aptidão para poder dizer e poder fazer, da aptidão para narrar e até a imputabilidade, sem conceder um peso igual aos não-poderes que lhes correspondem [...]. Mas não podemos nos permitir um tal impasse com a memória e a promessa; seus contrários fazem parte de seu sentidos: lembrar-se é não esquecer; sustentar sua promessa significa não traí-la (Ricoeur,2004,p.166).

A adição da memória e da promessa coloca em evidência as deficiências, os menosprezos, os face-a-face negativos desses poderes, como mostra o esquecimento ou abuso da memória, a traição de sua palavra. Toda fenomenologia do homem capaz é, assim, colocada em relação com a necessidade do reconhecimento. Cada uma das capacidades que tornam o homem finalmente responsável é colocada diante a um face-a-face que obriga a pensar a reciprocidade exigida pelo reconhecimento. Para Thomasset, o autor o expressa claramente em um de seus últimos textos de 2005:

[...] o discurso é dirigido a qualquer um que seja capaz de responder, de questionar, de estabelecer uma conversação e um diálogo. A ação se faz com outros agentes, que podem ajudar ou atrapalhar; a narrativa reúne múltiplos protagonistas em uma intriga única; uma história de vida é composta por uma multidão de outras histórias de vida; quanto à imputabilidade, frequentemente suscitada pela acusação, ela me torna responsável diante do outro; mais especificamente, ela torna o forte responsável pelo débil e pelo vulnerável. Enfim, a promessa exige um testemunho que a receba e registre; além disso, ela tem por finalidade o bem do outro, caso ela não vise à maldade e à vingança. O que, todavia, falta a essas implicações de outro, na certeza privada de poder fazer, é a reciprocidade, a mutualidade, as que na verdade permitem falar de reconhecimento em sentido profundo.(Ricoeur,2005,p.125).

Por estas razões, para Ricœur, somente a narrativa permite estabelecer um laço sólido entre uma ação e a pessoa que pode ser tida como responsável por ela. É a narrativa que permitirá julgar a decisão de tal pessoa tendo em conta o ambiente, os diferentes atores, suas ações etc. Por isso é imprescindível escutar atentamente para poder reconstruir a narrativa mais verossímil. Nesse sentido, a(s) narrativa(s) nos permite(m) ampliar o olhar, sair de uma visão única, ampliar a consideração de seus agentes, de suas intenções, atitudes inscritas na história. Elaborar uma narrativa significa fazer um trabalho de interpretação, significa perceber que ela traz em si uma revisão e uma evolução.

Além disso, como dirá Thomasset, as narrativas são as principais portadoras das tradições culturais pelas quais temos acesso a nossos ideais éticos, a nossos desejos e a nossas visões da vida boa. Para Ricœur, nós não temos acesso imediato às convicções, às imagens, às práticas e aos símbolos que estruturam nossa maneira de ser no mundo e que lhe dão seu sentido ético, mas somente graças às obras da cultura e aos textos fundadores de nossas tradições. A teoria hermenêutica de Ricœur nos indica como os textos da literatura são portadores de “modos possíveis” (Ricoeur, 1991,p.482).

Por isso, a interpretação não consiste tanto em buscar a intenção do autor por trás do texto, mas, sobretudo, a explicitação do mundo do texto, isto é, a maneira de ser no mundo que o texto propõe diante dele e no qual o leitor se expõe. Compreender-se é compreender-se diante do texto. Ora, as narrativas são, no conjunto dos gêneros literários, aqueles particularmente adaptados à ação humana no tempo. Elas são, como diz Aristóteles, imitações criadoras da ação, mimesis praxeos. Por meio de seu poder “poético” de criar novos mundos, elas podem suscitar no leitor, que delas se apropria, “variações imaginativas” de nossa vida, que corresponde a uma “poética da existência” (por sua vez, a resposta do leitor a suas proposições de mundo).

Finalmente, as narrativas servem de propedêutico à ética, segundo Thomasset. Elas permitem, especialmente no momento da deliberação, exercer o julgamento ético sob um modo hipotético. Nenhuma narrativa é eticamente neutra. Estimativas, julgamentos de aprovação ou condenação estão sempre implicados na própria estrutura do ato de narrar. Como afirma Ricœur, a narrativa é o “primeiro laboratório do julgamento moral” (Ricoeur,1990,p.167). Narrar “é desdobrar um espaço imaginário para experiências de pensamento, no qual o julgamento moral se exerce a partir de um modo hipotético” (Ricoeur,1990,p.200).

É o contato com narrativas tanto históricas quanto ficcionais que nos obriga a considerar nossas ações como associadas às de outros no cerne de uma intriga. Esse contato abre nossos olhos para a reciprocidade da ação feita pelos agentes e também por aqueles que sofrem a ação. No plano das instituições sociais, a interpretação sempre nova dos eventos fundadores ou dos momentos simbólicos da história de um grupo humano, alimenta o lençol freático do “querer viver junto” no fundamento de todo poder e de toda vida social.

Em última análise, essas diversas funções da narrativa estão correlacionadas entre si, pois a narrativa opera uma função mediadora de constituição do sujeito capaz de se decidir e de agir no mundo. As narrativas da cultura, das quais o sujeito se apropria, podem ter uma influência sobre sua maneira de agir e viver; a narrativa, e em particular os personagens construídos pela intriga, contribuem para a “formação” ética dos sujeitos (Thomasset, 2005, p.73). Dito isso, a narrativa não esgota a ética, pois vem o momento não narrativo da decisão, no qual o sujeito escolhe sua tradição e sua ação.

A chamada profética da linguagem

Iniciamos nosso texto apresentando três características teológicas marcantes das práticas de Comblin: comunitária, profética e missionária que, sem serem excludentes entre si, se revelam como elementos da construção do artefato teológico da linguagem de Comblin, dando voz a homens e mulheres do Nordeste brasileiro. Além disso, creio não estarmos equivocados ao afirmarmos que a articulação se revela na forma como os missionários, suportados por suas comunidades e pelas que os recebem, se tornam profetas de seus contextos.

Ligado ao tema da construção de profetas e de profecia, encontramos no pensamento de Ricœur um sentido mais específico das narrativas. Além do sentido que apresentamos anteriormente, as narrativas trazem em si o papel profético da linguagem narrada, expressada pelo “sujet convoqué” (Ricoeur,1988,p.83), ou seja, aquele que expressa sua vocação profética através de suas narrativas.

As narrativas proféticas, segundo o autor, constituem uma sequência de narrativas bem delimitadas, que demonstram seus emissores como mediadores de uma história em marcha, de uma história imanente que somente eles veem e interpretam segundo seu julgamento (Ricoeur,1988,p.85). Uma linguagem que se inicia com um indivíduo que é membro de uma comunidade e que é posteriormente deslocado a um papel específico e pessoal de uma vocação que o torna a exceção (Ricoeur,1988,p.85), arraigado na condição de realização de seus desejos próprios em favor de uma comunidade.

Neste sentido, dirá Ricœur, a narrativa profética pode ser analisada em três fases: a primeira, dentro de uma estrutura de confrontação entre realidade e Deus; a segunda, em uma estrutura de memória no sentido de origem, e a terceira no sentido de envio. Tomando consciência da realidade, guardando sua origem, o profeta se assume como enviado a expressar-se, mesmo se antes apresenta objeções que serão superadas (Ricoeur,1988,p.86-87). A narrativa se faz humana. Dirá Ricœur: “Tal esquema de ‘moi prophétique’ é perfeitamente singularizado pelo chamado, pela resposta, pela resistência. O chamado o distingue da comunidade do povo e o constitui em exceção dentro do sentido mais alto, e o chamado o reenvia e o prende de novo a seu povo. (Ricoeur,1988,p.88)”.

Dessa dinâmica surge um novo paradigma sobre o Soi: “a transformação crística” daqueles que anunciam. Retomando a ideia da imagem de Deus (Gen 1, 26 e 2 Cor 3, 18), a que todos são chamados, o autor ressalta que o homem cristão se transforma em christomorphe, ou seja, a imagem da imagem por excelência, construída pela tríade glória de Deus, glória de Cristo e glória do homem. Dirá o autor: “Ao fim da cadeia, da mediação que remonta a sua origem, o ‘Soi christomorphe’ é a vez plenamente dependente e plenamente consistente: imagem sempre mais gloriosa segundo o apóstolo”(Ricoeur,1988,p.90).

Por último, completará Ricœur sua análise ao incluir o dado da consciência. Se uma interpretação teológica da consciência é possível, ela supõe precisamente a intimidade do Soi mesmo e da consciência.

É sobre o diálogo consigo mesmo que se transplanta a resposta do Soi profético e cristofórmico. Nessa transplantação, os dois órgãos vivos trocam de um ao outro: de um lado, o chamado de “Soi a soi-même” é intensificado e transformado pela figura que lhe serve de modelo e arquétipo e de outro a figura transcendência é interiorizada pelo movimento de apropriação que La transforma em voz interior. (Ricoeur,1988,p.94).

É pela consciência que se realiza a reinterpretação simultânea do fenômeno da consciência do Kerigma, e por isso este pode ser anunciado de forma contextualizada e atualizada. A fé cristã não consiste em dizer simplesmente tudo o que Deus diz na consciência.

Ao contrário, dirá o autor: “O cristão é aquele que discerne a ‘conformidade à imagem do Cristo’ dentro do chamado da consciência. Esse discernimento é uma interpretação. E essa interpretação é originária de um combate pela veracidade e honestidade intelectuais. (Ricoeur,1988,p.99)”.

Conclusão

Nossa intenção neste percurso histórico, teológico e filosófico foi propor uma reflexão sobre a centralidade e o impacto das narrativas no processo formativo das EFM do Nordeste do Brasil. O processo de expressão oral é privilegiado desde o primeiro momento, em que essa formação abre espaço à integração de seus participantes. Os que chegam pela primeira vez são acolhidos por aqueles que já estão na caminhada, ao passo que os que já estão no processo se reconhecem, se reintegram e partilham experiências vividas em comunidade. Especialmente as EFM, antes de serem uma formação “acadêmica”, caracterizam-se por serem uma formação humana crítica a partir do exercício do encontro que permite expressar-se comunitariamente. Nesse sentido, caracterizam-se por serem um espaço relacional próprio para recontar a vida e fazer comunidade.

Ora, da mesma forma que as narrativas de julgamento iniciam as carreiras dos profetas, muitas vezes as narrativas apresentadas por aqueles estão no processo de formação das EFM são expressões de um julgamento livre e crítico sobre situações concretas de injustiça que estão em suas realidades. Apoiados pela partilha comunitária, cada formando missionário, ao expressar-se a si mesmo e – de certa forma – expressando a consciência que tem de sua dura realidade do meio rural e das lutas por seus direitos à luz do Evangelho, constrói de forma crítica um artefato teológico, consistente, contextualizado, colocando-se como mediadores da história que ajudam a construir.

Seu método propicia a seus participantes o engajamento num percurso que os ajuda a apropriar-se de sua vocação missionária, desvelando junto com esta o sentido profético de sua missão. Expressar-se narrando-se permite ao sujeito a tomada de consciência de si, de seu contexto, e a apropriação de sua identidade crística a partir do Evangelho que anunciam. A partir da consciência adquirida das escutas das narrativas críticas, seus participantes tornam-se “sujeitos convocados”, transformados pelo Evangelho e prontos para o anúncio e a denúncia, gestos tão próprios do “Soi profético”.

Em termos estritamente teológicos, a construção de um “Soi profético evangélico”, neste caso, não passa pelos canais tradicionais da formação, mas pela disponibilidade de homens e mulheres simples do Nordeste brasileiro de se colocarem na dinâmica e na abertura, impulsionados pela ação do Espírito Santo, tornando-se sujeitos convocados à defesa da vida e da justiça em suas realidades concretas.

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Thomasset, Alain s.j, (Centre Sèvre, Paris) realizada em 24/11/2017 na UNICAP com o título Paul Ricœur na base de uma ética hermenêutica e narrativa, enraizada em uma ontologia da ação. Texto não publicado.

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Arquivos

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento II, Formando para a missão.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento V, Escolas de Formação Missionária Terceiro Seminário 2001, p. 5. Los órganos extranjeros son especialmente Adveniat Alemania y CMC Holanda.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas de Formação Misionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12 de abril de 2007, p. 6.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Breve histórico das Escolas de Formação Missionária, p.1. Ese material, fue adaptado del curso de catequesis organizado en Talca – Chili y nuevamente revisado y reestructurado cuando del Tercero Seminario de las Escuelas de Formación Misionaria realizado en agosto de 2011.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Lettre de José Comblin, 27/11/1991.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Lettre de José Comblin, 27/11/1991.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Lettre de José Comblin, 20/09/2000.

Entrevistas

Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017 em João Pessoa.

Notas

[1]Este termo “três notas” é de minha criação para identificar as três principais características que, para Comblin, devem estar presentes na ação realizada.

[2]Trata-se da experiência de formação de seminaristas do ITER, criada por Comblin em conjunto com o pastoralista francês René Guerre, que primava pela ruptura indispensável com a formação sacerdotal em vigor, herdada da romanização da segunda metade do século XIX e que representava a cópia do modelo europeu burguês para a realidade brasileira. Essa experiência foi desenvolvida com ênfase nas noções de Homem e realidade, com atenção especial para a Pastoral, buscando integrar formação teológica, formação humana e especialmente o conhecimento da realidade em que futuramente eles trabalhariam.

[3]Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM). Documento II, Formando para a missão, p. 1.

[4]Leuven. Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL). Lettre de José Comblin, 27/11/1991. Afirma Comblin: “No Nordeste os padres são tão escassos que são como máquinas de fazer sacramentos. Não se lhes pode pedir mais que isso. As religiosas são dispersas entre tantas congregações distintas. Mas trabalham mais que os padres com o povo. Agora, quem está mesmo conquistando a América Latina são as Igrejas do tipo pentencostal. Ali há um avanço fulminante. A Igreja perdeu o controle das massas e estas buscam a primeira Igreja que se apresenta a eles em suas culturas”.

[5]Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM). Documento II, Formando para a missão, p. 2.

[6]Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento V, Escolas de Formação Missionária Terceiro Seminário 2001, p. 5. Los órganos extranjeros son especialmente Adveniat Alemania y CMC Holanda.

[7]Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM). Documento II, Formando para a missão, p. 1.

[8]Leuven. Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL). Lettre de José Comblin, 27/11/1991.

[9]Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017, em João Pessoa.

[10]Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017. Destaca o entrevistado: “Quando você tem aqueles momentos mais fortes não somente na EFM, mas em todas as experiências. As Romarias a São Félix são um grande momento de partilha, oração e reecontro (…). Como ouvi de uma pessoa: ‘Eu não entrei nessa escola, mas continuo nela. Ela marcou a minha vida’. São um testemunho esses casais missionários e missionárias que andam fazendo comunidades e o conteúdo estudado não fica parado. Trazem experiências fortes para prehar como roetiro o cotidiano”.

[11]Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017 em João Pessoa.

[12]Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017 em João Pessoa.

[13]Neles Comblin exercita o típico do serviço teológico que para ele significa traduzir a doutrina cristã para os pobres, publicando uma sequência de livros na qual utiliza uma linguagem popular baseada em metáforas. Entre alguns podemos citar: José Comblin, Curso básico para animadores de comunidades, São Paulo, Paulinas, 1987; Id. A Novidade de Jesus, São Paulo, Paulinas, 1986 (dividida em oito temas: Jesus e a preferencia pelos pobres, Jesus missionário, Jesus forma missionários, Jesus luta contra os falsos pastores, Jesus e a Lei, Jesus e a sabedoria da cruz, Jesus e a ressurreição, e Jesus: o mensageiro do Pai); Id. Curso Popular de História da Igreja, São Paulo, Paulus, 1993 (dividida em oito temas: Missão, Martírio, Comunidade, Hierarquia, Profetismo, Sacramentos, Peregrinações e Divisões). Finalmente a coleção Breve curso de Teologia foi dividida em quatro tomos: José Comblin, Jesus Cristo e sua missão, São Paulo, Paulinas, 1983; Id. O Espírito Santo e sua missão, São Paulo, Paulinas, 1984; Id. A Igreja e sua missão no mundo, São Paulo, Paulinas, 1985; Id. A sabedoria cristã, São Paulo, Paulinas, 1986. Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Breve histórico das Escolas de Formação Missionária, p.1. Esse material foi adaptado do curso de catequese organizado em Talca (Chile) e novamente revisado e reestruturado durante o Terceiro Seminário das Escolas de Formação Missionária, realizado em agosto de 2011.

[14]Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Lettre de José Comblin, 20/09/2000. Afirma Comblin: “Em novembro terei que ir ao Congresso de Missiologia em Münster (…). Faz anos que insistem e finalmente eu cedi, mesmo que não goste de falar somente de América Latina. Já faz 40 anos que falo disso e sei cada vez menos (...). Tive que aceitar”.

[15]Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas de Formação Misionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12 de abril de 2007, p. 6.

[16]Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas de Formação Misionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12 de abril de 2007, p. 6.

[17]Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas de Formação Misionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12 de abril de 2007, p. 7.

[18]Além das leituras realizadas para este estudo, tomaremos como base a Conferência do Prof. Dr. Alain Thomasset s.j, (Centre Sèvre, Paris), realizada em 24/11/2017 na UNICAP com o título Paul Ricoeur na base de uma ética hermenêutica e narrativa, enraizada em uma ontologia da ação. Texto não publicado.