Politeísmo, teísmo e panteísmo em O Homem que foi Quintafeira de G.K. Chesterton
Polytheism, Theism, and Pantheism in The Man Who Was Thursdayby G.K. Chesterton

Arthur Grupillo *
* Doutor em filosofia. Professor do Departamento de Filosofia e dos Programas de Pósgraduação em Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe. Email: aegrupillo@gmail.com.
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Resumo
Em O Homem Eterno, de 1925, Chesterton afirma que às vezes esquecemos que há emoção no teísmo. E que um romance no qual muitos personagens se revelassem o mesmo personagem “seria um romance emocionante”. Isto acende um lampejo de interpretação para o leitor de O Homem que foi Quinta-feira, romance policial publicado em 1907, no qual vários personagens que compõem o Conselho Anarquista Central vão se descobrindo, um a um, detetives disfarçados. O presidente, “Domingo”, por fim se revela o chefe de polícia que os designou para investigar, sem saber, apenas a si mesmos. Seguindo esta interpretação, os membros do Conselho, que recebem por codinomes os dias da semana (herdados dos deuses pagãos na maioria dos idiomas ocidentais), seriam apenas “deuses”, que nada mais são do que disfarces de uma mesma ideia fundamental, Deus, personificado por “Domingo”. Mas uma leitura atenta da obra mostra que “Domingo” é um personagem ambíguo, que ora demonstra características de Deus, ora da Natureza, e que, por isso, O Homem que foi Quinta-feira não deve ser tomado simplesmente como exemplo do pensamento de Chesterton, sendo mais adequado interpretá-lo como resposta a um pessimismo que rondava o autor à época, mas ainda não alicerçada no espírito da Ortodoxia, obra principal de sua teologia.

Palavras chave:Chesterton, romance policial, Deus, Natureza, ortodoxia

 

Abstract
In The Everlasting Man, of 1925, Chesterton states that we sometimes forget that there is a thrill in theism. And that a novel in which many characters turned out to be the same character “would certainly be a sensational novel”. This sparks a glimmer of interpretation for the reader of The Man Who Was Thursday, a detective story published in 1907 in which several characters who make up the Central Anarchist Council go discovering, one by one, as detectives. The president “Sunday” finally reveals to be the chief of police who appointed them to investigate, unknowingly, only themselves. Following this interpretation, the Council members, codenamed after the days of the week (inherited from pagan gods in most western languages), would be merely “gods,” who are nothing more than disguises of the same fundamental idea, which is God, personified by “Sunday”. But a careful reading of the work shows that “Sunday” is an ambiguous character, who sometimes demonstrates characteristics of God, sometimes of Nature. Therefore, The Man Who Was Thursday should not be simply taken as an example of Chesterton’s thought; it is more appropriate to interpret it as a response to a pessimism by which the author was surrounded at the time, but a response not yet grounded in the spirit of Orthodoxy, the main work of his theology.

Keywords:Chesterton, detective story, God, Nature, Orthodoxy

Introdução: motivação filosófica e teológica para o estudo do romance

Assim como O Napoleão de Nothing Hill, de 1904, e como A Esfera e a Cruz, de 1910, o “thriller” policial O Homem que foi Quintafeira [The Man Who Was Thursday], pode ser enquadrado na categoria de “romance alegórico”, para usar expressão do Pe. Ian Boyd (2013, p.6), especialista na obra do romancista, jornalista e apologista britânico G.K. Chesterton.1. A obra tem o aparente objetivo de satisfazer um impulso duplo do escritor: o poético e o filosófico, que, juntos, formariam o teológico. Da mesma maneira que o cristianismo satisfaz, segundo sua reflexão apologética, estes dois impulsos espontâneos e inevitáveis do ser humano, a saber, o impulso criativo e mitológico, de um lado, e o racional e lógico, de outro, objetificando a ideia, sumamente simples e sumamente difícil, do “mito verdadeiro”, que é, para ele, a estranha e real história de Jesus Cristo.2.

É importante mencionar isso, antes de qualquer coisa, para enfatizar a história de Jesus Cristo como verdade “ensinada aos pobres”, isto é, como complexa filosofia tornada muito mais simples na forma da história de um homem. Do contrário, sem a história, esta verdade se perde na obscuridade de conceitos filosóficos que pretendem explicar, eles mesmos, sua concretude – como pretendeu boa parte do gnosticismo especulativo –, o que é aparentemente impossível. Mas essa pretensão, cujo exemplo mais sofisticado é sem dúvida o idealismo absoluto de Hegel, quer, como filosofia, e não como religião, contar apenas a verdade, sem a forma, que ela teria, de uma narrativa, de uma representação simbólica universal, mas não apenas no sentido filosófico, e sim também como algo essencialmente acessível aos pobres, para mantermo-nos fiéis à imagem utilizada nos evangelhos (Mt 11:4-5).3

O objetivo de enfatizar este ponto é que ele constitui, em linhas gerais, a motivação filosófica e teológica para o estudo do romance em questão, e isso contra um pano de fundo bem específico. É que, de acordo com o filósofo esloveno Slavoj Žižek, o escritor G.K. Chesterton – conhecido por insistir nos paradoxos inerentes ao pensamento cristão, tais como o “perder a vida para ganhá-la” e principalmente a ideia de um Deus que se limita em sua própria criação, conferindo livre-arbítrio à criatura e, por fim, sacrificando-se por ela – encarna o que poderia ser chamado de “hegelianismo britânico” (ŽIŽEK, 2006). Ele pensa, aqui, na misteriosa e resignada passagem da obra apologética mais famosa do escritor, Ortodoxia, onde se lê:

O cristianismo é a única religião do mundo a sentir que onipotência tornava Deus incompleto. Apenas o cristianismo sentiu que Deus, para ser totalmente Deus, deve ter sido rebelde bem como rei. Dentre todos os credos, o cristianismo foi o único que acrescentou a coragem às virtudes do Criador. Pois a única coragem digna desse nome deve necessariamente significar que a alma passa por um ponto de ruptura e não se parte. Dizendo isso, de fato estou abordando uma questão que não é fácil discutir porque é obscura e terrível; e peço desculpas de antemão se algumas de minhas frases não forem bem entendidas ou se eu parecer irreverente no tocante a um assunto que os maiores santos e pensadores com razão recearam abordar (CHESTERTON, 2008, p.227).

Chesterton chega mesmo a dizer, no que se refere ao paradoxo extremo do Getsêmani, no extremo do paradoxo de um Deus-homem, de um logos que se fez carne, que se deixarmos aos ateus que escolham um deus, eles “encontrarão apenas uma divindade que chegou a expressar a desolação deles; apenas uma religião em que Deus por um instante deixou a impressão de ser ateu” (2008, p.228). Até aqui, em que pese o fato de a questão se tornar “difícil demais para a fala humana”, não há nada em conflito com o pensamento teológico ortodoxo, mas apenas o risco, imenso, é verdade, de abordar assunto receado até pelos “maiores santos”. Entretanto, Žižek aparentemente não receia afirmar que esta questão – que não é fácil discutir porque é obscura e terrível – é “narrativamente apresentada como a identidade do misterioso chefe de polícia e do Presidente dos anarquistas” em O Homem que foi Quinta-feira (ŽIŽEK, 2006).4 E é esta interpretação que consideramos problemática, seja do ponto de vista teológico seja do ponto de vista literário.5 Para provar sua tese de um “hegelianismo britânico” em Chesterton, Žižek utiliza estas duas obras, quase que exclusivamente: Ortodoxia e O Homem que foi Quinta-feira, e minha hipótese é que elas não se encaixam tão perfeitamente como ele supõe. E ainda menos, se tivermos em mente a obra madura do escritor inglês.

As aproximações de Žižek poderiam funcionar melhor se, em O Homem que foi Quinta-feira, o chefe de polícia e o presidente dos anarquistas pudessem ser tomados por esse misterioso Deus ao mesmo tempo rei (chefe de polícia) e rebelde (presidente dos anarquistas) de que fala Ortodoxia. Mas, a fim de tentar tornar explícito o que torna essa interpretação tão possível quanto problemática, precisamos introduzir o leitor ao conteúdo do romance

 1. O Homem que foi Quinta-feira

Publicado apenas um ano antes de Ortodoxia – o que pode ser uma armadilha para o intérprete – o romance policial O Homem que foi Quinta-feira, que tem por subtítulo “Um pesadelo” [A Nightmare], narra a estranha aventura do protagonista Gabriel Syme, identificado como “um poeta da lei, um poeta da ordem”, ou ainda, “um poeta da respeitabilidade. Por isso alastrou-se, entre os moradores de Saffron Park, a suspeita de haver ele despencado daquele céu inverossímil” (CHESTERTON, 1967, p.11). As alegorias começam desde aí. O primeiro nome de Syme, Gabriel, é rapidamente mencionado no início da história e raramente repetido, em provável referência ao anjo Gabriel. Diz-se do protagonista que “particularizou sua chegada por diferir de Gregory”, na verdade Lucian Gregory, de novo em presumível referência a Lúcifer, o anjo decaído da tradição cristã, identificado como “o poeta dos cabelos vermelhos”, um homem “digno de ser escutado, mesmo que devesse a gente rir dele no fim. Entoava a velha cantiga da anarquia da arte e da arte da anarquia” (CHESTERTON, 1967, p.10). Há uma terceira personagem mencionada no início do romance, Rosamond Gregory, irmã de Lucian, mas que, para todos os efeitos, só aparece no fim, quando tudo acaba, portanto quando o pesadelo acaba, e que representa a “insensata responsabilidade” do homem comum, mais especificamente, da mulher comum.

Na verdade, há uma infinidade de alegorias intrigantes – prováveis ou possíveis – ao longo de todo o romance, que seria naturalmente interessante explorar aqui, mas desnecessário para nosso propósito primordial: chegar à figura chave que para alguns é uma alegoria do Deus cristão. O fato é que Syme, o poeta da respeitabilidade, começa a ridicularizar os ideais anarquistas de Gregory, cuja missão é “abolir o governo”; mais do que isso, “abolir Deus”, negar “todas as arbitrárias distinções entre o vício e a virtude, a honra e a traição, que ainda constituem o fundamento da rebeldia dos simplórios”, abolir até mesmo “o certo e o errado” (CHESTERTON, 1967, p.22).

Mas toda a história de dinamitar cidades, de abolir valores, jamais é levada a sério por Syme, que toma esse ideal por uma “gaiatice”. Tanto que, ao tentar imiscuir-se na sociedade com seus ideais anarquistas, Gregory arrisca vários disfarces, sem sucesso. Inicialmente, vestido de bispo, começou a agir como um ancião terrível e estranho que oculta um segredo cruel. Logo descobriram que ele não era um bispo, pois um bispo não age assim. Depois tentou o disfarce de milionário, e defendia o capital com tanta ênfase, que logo descobriram que na verdade ele era muito pobre. Por fim, disfarçou-se de major, e fez tanta apologia da violência e da guerra, que logo se viu envergonhado, pois os majores não procedem assim. Em desespero, aceitou a recomendação do Presidente do Conselho Central Anarquista, do qual Gregory na verdade ainda não fazia parte oficialmente, de disfarçar-se de anarquista. E ao pregar o anarquismo, o derramamento de sangue e a destruição de todos os valores, enfim encontrou um bom disfarce, já que ninguém levava a sério o anarquismo, nem sua promessa de sangue e destruição. Então ele pôde seguir em paz sendo um anarquista, disfarçado de anarquista.

Tendo sido, então, perguntado sobre quem era esse medonho Presidente, Gregory responde: “– Nós tomos o chamamos Domingo [Sunday]. O Conselho Central Anarquista”, acrescenta, “se compõe de sete membros que receberam os nomes dos dias da semana” (CHESTERTON, 1967, p.24). E para provar a Syme que seus ideais eram “sérios”, Gregory promete levá-lo a uma reunião secreta dos anarquistas no qual seria eleito o próximo “Quinta-feira”, pois o anterior tinha acabado de falecer no melhor exercício de sua função. Gregory julgava que seria escolhido como o próximo “Quinta-feira”, mas a reunião toma uma direção insuspeitada. Depois de fazer um discurso com o intuito de mostrar que o anarquismo é sério, que é incompreendido, mas nobre em seus princípios, logo é rejeitado por seus próprios companheiros, que não querem absolutamente ser nobres, mas querem ser torpes mesmo, e decidem, assim, dar o cargo de “Quinta-feira” a Syme, que estava ali, quem sabe, por acaso ou não.

Mas, ao assumir a condição de Quinta-feira, um dos sete membros de uma organização anarquista das mais perigosas da Europa, Syme trazia consigo um segredo. Ele era na verdade um detetive disfarçado de poeta. Era alguém que um dia tinha se revoltado contra essa atitude meramente vazia e autocontraditória de se revoltar, e resolvera, então, ser um poeta da ordem e da respeitabilidade. “Assediado desde a infância por todos os tipos inconcebíveis de revolta, Gabriel teve de revoltar-se em nome de alguma coisa. Assim, revoltou-se em nome da única coisa que restava: o bom senso” (CHESTERTON, 1967, p.39). E havendo conhecido um guarda que viu sua revolta contra toda revolta, este sugeriu que ele seria bastante adequado para um serviço policial específico destinado a combater as “aberrações do intelecto” (CHESTERTON, 1967, p.41).

O guarda explica que a situação do mundo mudou. Que nos últimos tempos tem havido uma conspiração puramente intelectual contra a civilização. Que, para isso, estavam sendo recrutados não quaisquer polícias, mas polícias-filósofos. Enquanto o detetive comum vai às cervejarias capturar ladrões, o polícia-filósofo vai aos saraus artísticos descobrir pessimistas. As razões dessa polícia filosófica são dignas de citação:

Afirmamos que o criminoso mais temível destes tempos é o filósofo moderno inteiramente bárbaro. Comparados a ele, arrombadores e bígamos são homens de moralidade perfeita. (...) Aceitam o ideal essencial do homem; só que o procuram erroneamente. Os ladrões respeitam a propriedade; só que desejam que a propriedade se torne propriedade deles para que possam respeitá-la mais e melhor. Mas os filósofos condenam a propriedade enquanto propriedade, querem destruir a simples ideia de posse pessoal. Os bígamos respeitam o matrimônio, ou então não levariam a cabo a formalidade altamente cerimoniosa e ritualística da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento como casamento. Os assassinos respeitam a vida humana; apenas desejam obter para si mesmos uma abundância maior de vida humana, com o sacrifício daquelas que lhes parecem vidas menores. Mas os filósofos odeiam a vida mesma, a deles e a dos outros (CHESTERTON, 1967, p.43).

É daí que Syme chega a conhecer o chefe de polícia. Um homem enorme, de grande envergadura, mas que só é visto de costas, e que tem o capricho de viver num breu, sem jamais mostrar o rosto. Só que este homem, estando a par de tudo, rapidamente o recruta. Todo o romance tem a atmosfera lúgubre do estilo de Kafka, que sabemos ter sido intenso leitor de Chesterton, e a história vai tomando, cada vez mais, o sombrio ar sufocante e envenenado de um verdadeiro pesadelo. Pois Syme, na condição de detetive disfarçado, conseguira se infiltrar no núcleo da organização criminosa que combatia, e era agora o novo Quinta-feira.

Sem delongas, Syme é apresentado ao resto da organização, e na primeira reunião conhece o Secretário do Conselho, homem de sorriso medonho (o Segunda-feira), o caricato e ridículo polonês Gogol (Terça-feira), o Marquês de St. Eustache, de postura aristocrática narcotizante (Quarta-feira), o Professor de Worms, de andar paralítico (Sexta-feira), o médico de enigmáticos óculos escuros Dr. Bull (Sábado) e, por fim, o Presidente do Conselho, Domingo, homem descomunal, de dorso montanhoso. A primeira coisa a reparar neste estranho personagem é que “o rosto dele era enorme; mesmo assim, era concebível num ente humano”, diz Syme (CHESTERTON, 1967, p.53). A segunda era que “quando tinha sobre si os olhos do Presidente, sentia-se como se fosse feito de vidro. Reconhecia, sem a menor sombra de dúvida, que Domingo, sossegada e misteriosamente, tinha descoberto que ele era espião” (CHESTERTON, 1967, p.60).

De imediato, o leitor, desde já ambientado à atmosfera alegórica do romance – e com alguma informação sobre a obra apologética de Chesterton –, poderia supor em Domingo traços de um deus ou mesmo de Deus. A ideia de que seu rosto era enorme, mas mesmo assim concebível num ser humano, poderia até aproximá-lo de uma representação cristã, e a de que ele sabia, sem a menor sombra de dúvida, sobre quem era Syme, sugere uma onisciência tipicamente teísta. Outros traços sugestivos deste tipo não deixam de aparecer ao longo de toda obra, mas a primeira ocorrência que nega a interpretação teísta de Domingo se dá concomitantemente ao primeiro encontro, se bem que num “segundo pensamento”. Pois de fato o primeiro pensamento que ocorreu a Syme foi o de que Domingo e o resto do Conselho poderiam esmagá-lo se quisessem, a qualquer momento. Mas:

O segundo pensamento que nunca lhe ocorreu foi o de ser espiritualmente conquistado pelo inimigo. Muitos modernistas, calejados numa impotente adoração da inteligência e da força, podiam ter afrouxado sua lealdade, sob a tirania de uma personalidade vigorosa. Podiam ter chamado Domingo super-homem. E se tal criatura é concebível, sem dúvida era Domingo quem melhor a corporificava, com seu alheamento sísmico, de estátua ambulante. Podia merecer qualquer nome sobre-humano, por sua corpulência, que era demasiadamente óbvia para ser descoberta, e por sua caraça, que era demasiadamente franca para ser decifrada. Mas essa era uma espécie de baixeza moderna com que Syme não podia pactuar, mesmo em extrema depressão. Como qualquer um, ele era bastante covarde para temer a brutalidade; mas não era tão covarde que a admirasse (CHESTERTON, 1967, p.61-2).

Aqui, nesta feroz ironia da visão de mundo evolucionista, sobretudo a de Nietzsche, se coloca seguramente uma visão ambígua de Domingo. Ele é sem dúvida poderoso e vigoroso, de inteligência e força sobre-humanas, mas possui também um “alheamento”, de certo um alheamento que pode causar um abalo sísmico, mas ainda assim um alheamento, um caráter distraído que não condiz com a figura exata de um Deus onisciente. Mas a questão ainda está longe de ser resolvida. Pois que, estranhamente, depois de sofrer uma perseguição aterrorizante por parte do velho Professor manco (Sexta-feira), que surrealmente parecia correr mais do que ele, Syme descobre que não é o único detetive infiltrado entre os anarquistas.

Precisamos relatar com algum detalhe esta descoberta, que envolve uma das frases mais sugestivas do livro, quando os personagens estão discutindo filosofia e Syme diz: “Não me importo de ser o polícia que podia ter sido. Não me importo de ser qualquer coisa no pensamento alemão” (CHESTERTON, 1967, p.76). Mas sua importância maior está no sentimento gerado em Syme ao tomar consciência de que aquela estranha figura manca e rápida de quem esteve fugindo assustadoramente, e que por um momento resolvera combater, era na verdade um colega de trabalho e de missão. O ar mórbido do pesadelo ganha, momentaneamente, a lucidez alegre da normalidade:

Por um segundo, Syme teve a sensação de que o cosmos se tinha transformado, de que todas as árvores cresciam para baixo e todas as estrelas se estendiam sob seus pés. Mas, pouco a pouco, formou-se nele a convicção oposta. A verdade é que nas últimas vinte e quatro horas o cosmos estivera realmente pelo avesso e só agora é que o subvertido universo voltava ao normal. Esse demônio de quem ele tinha estado a fugir durante todo o dia não era mais que um irmão mais velho que agora, do outro lado da mesa, ria zombeteiramente. Não procurou inteirar-se logo dos pormenores; bastava-lhe saborear o fato simples e auspicioso de ser esta sombra, que o perseguira com a intolerável opressão do perigo, apenas a sombra de um amigo esforçando-se por alcançá-lo. Compreendeu – pois que qualquer vitória sobre a morbidez vem sempre acompanhada de saudável humildade – que era ao mesmo tempo um idiota e um homem livre (CHESTERTON, 1967, p.77).

Aqui, não podemos mais do que apontar o sugestivo desta passagem no que diz respeito a Hegel, particularmente à sua intuição de juventude de que o paganismo dos diferentes deuses da natureza revela-se, afinal, um imenso objeto de gozo, no qual a Natureza se doa, sem que seja necessário combatê-la ou dominá-la.6 O paganismo se descobre um imenso e enorme Deus-objeto, no qual amigo e inimigo, perseguidor e perseguido, rei e rebelde, se revelam idênticos. E foi nesta perspectiva que Hegel desenvolveu seu pensamento na direção de uma filosofia panteísta – na verdade, para alguns intérpretes, “panenteísta”7 – com a qual pretendeu pôr fim a todas as suas angústias de juventude, oriundas das diferentes concepções de um Deus alienado, ao qual o homem se submete a fim de controlar a Natureza, mas sofre diante da contingência de seu juízo, que ameaça a consciência incessantemente. Refiro-me às distintas figuras da chamada “consciência infeliz”, que só poderia encontrar sossego ao tomar consciência de que tudo o que ela estranhou num objeto externo, Deus, nada mais é do que ela mesma (Cf. HEGEL, 2002, p.151 et seq).

Apenas a ênfase, aqui, na consciência de que o Professor de Worms, o Sexta-feira, era um amigo disfarçado de inimigo, recai sobre os aspectos particulares desta ideia, a saber, o momento em que diferentes deuses se revelam o mesmo princípio fundamental. Aliás, daí em diante o livro nada mais é do que a sucessão de descobertas de que cada membro do Conselho Anarquista, sem exceção, um a um, são detetives disfarçados. Mas a unidade deles, isto é, a unidade fundamental do politeísmo, seja teísta ou panteísta, é a própria ambiguidade da figura do Presidente, Domingo, que, além de Presidente do Conselho Anarquista se revela, afinal, o próprio chefe de polícia que os designara, a todos, para vigiar e combater a si mesmos.

2. O Homem que foi Domingo

De fato, a ideia de que não há inimigo algum a combater, mas apenas amigos desconhecidos, é reconfortante. É ela que, segundo alguns intérpretes do jovem Hegel, o teria levado a combater todas as formas alienadas de Deus, seja no judaísmo, no cristianismo e mesmo na moral do dever kantiana. Num estudo acurado dos textos do Hegel jovem, juntamente com sua correspondência, Peperzak (1960, p.232) chega à seguinte conclusão:

Nós sabemos de outras fontes que Hegel era naturalmente jovial e alegre, mas é notável que em Tübingen e em Berna ele fale muito de ansiedade sombria suscitada na alma pelo constrangimento moral e sentimental do cristianismo. Sentia ele angústia? Da mesma maneira que sentia a ideia de pecado? Não deveria haver “a realidade terrível do mal”, de modo que ele pudesse decidir, pois que tal realidade tornaria impossível uma reconciliação total.8

O panteísmo ou, no caso de Hegel, talvez uma versão panenteísta gnóstica, onde todas as coisas são reconciliadas, é o remédio filosófico definitivo contra o maniqueísmo ou contra o pessimismo, que partem da realidade do mal. Ele põe por terra a realidade do mal de uma vez por todas. Mas não é esta a visão cristã ortodoxa, segundo a qual o mal tem uma realidade, sim, certamente não inscrita na própria personalidade de Deus, mas no arbítrio do homem criado, e no qual, de certa forma, Deus se limita, por amor, em seu próprio poder. Maniqueísmo e gnosticismo são ambas perspectivas mais filosóficas que religiosas, pois procuram antes domar o paradoxo da realidade do mal, se bem que não em si mesma, e transferi-la para um objeto externo inteiramente oposto ou eliminá-la num sujeito absolutamente reconciliado consigo. Parafraseando Chesterton, aqui a questão se torna “difícil demais para a fala humana”, e esta é uma das razões pelas quais o evangelho tem de tomar a forma de uma história, no sentido de uma narrativa. Não podemos representar pela razão humana a realidade exata do mal, se independente ou dependente de uma realidade maior que a reconcilia sempre no Bem. A ortodoxia cristã compreende, sem determinar, a realidade do mal, guardando o paradoxo em vez de domar o problema.9

Quanto à história que temos nas mãos, não é absurdo dizer que somos levados, pela estrutura geral do romance, onde o Presidente dos anarquistas é o próprio chefe de polícia que os combate, a interpretar O Homem que foi Quinta-feira como uma tentativa de resposta ao pessimismo, no estilo hegeliano. Mas gostaríamos de chamar a atenção para três fatores que tornam esta interpretação improvável e, tendo em vista as reflexões autobiográficas de Chesterton e a consolidação de sua teologia posterior, praticamente insustentável.

1) Esta ideia é um pesadelo, inscrito no subtítulo da obra. A ideia, de sabor hegeliano, de que se foi levado a combater por duas facções que não existem, ou que é a mesma, é a resposta para as angústias da alienação, a angústia de depender do julgamento insondável de um Deus livre e pessoal. De fato, para Chesterton, essa ideia é uma possível resposta ao pessimismo, mas que no fundo é um pesadelo. É, melhor dizendo, uma incerteza, uma ambiguidade. O momento reconfortante em que Syme descobre que o Professor de Worms era também um polícia disfarçado é certamente um momento bastante reconfortante. Sejamos enfáticos quanto a isso. A descoberta é comparada à de um matrimônio, onde o encontro de duas pessoas supera as angústias insuportáveis da solidão. De fato, há momentos em que Chesterton se aproxima perigosamente de Hegel. Mas a sensação reconfortante é caracterizada como uma sucessão de sentimentos tais como o orgulho satânico; ela inclui lágrimas e, por fim, o riso. Mas o riso sofre uma “queda de alívio”. Syme ri da ideia de que o paralítico Professor era um jovem ator disfarçado, mas “teria rido do mesmo modo se o pimenteiro tivesse emborcado sobre a mesa” (CHESTERTON, 1967, p.77-8). Isto é, no fundo chega-se à consciência de que o riso está fundamentado sobre nada, sobre uma surpresa sem importância e banal, de que o alívio não dura por muito tempo. Aliás, uma coisa é descobrir, pela primeira vez, que um suposto inimigo não passava de um amigo desconhecido, o que pode ser reconfortante, mas outra coisa bem distinta é ir descobrindo, um a um, que todos os inimigos não passam de amigos disfarçados, o que acaba por impor, ao longo do livro, a mesma sensação de ar envenenado, de atmosfera surreal de desconfiança e traição, sobretudo em relação à última das figuras, o Presidente do Conselho Anarquista, já suspeito pelo leitor de ser também o chefe de polícia.

2) Quem, ou o quê, é Domingo? É a pergunta que fazem, naturalmente, e precisamente com esta formulação, os seis policiais disfarçados de anarquistas. Encaminhando-nos para o fim do romance, os seis empreendem uma fantástica perseguição de fiacres a Domingo, que foge a largas passadas ou no dorso de um elefante por dentro de um zoológico. “Suponho que ele mesmo desvendará tudo para nós, mas confesso”, diz o Professor, “que recearia perguntar a Domingo quem ele é. – Por quê? Inquiriu o Secretário. Tem medo de bombas? – Não, retrucou o professor. Tenho medo de que ele me diga quem ele é” (CHESTERTON, 1967, p.142).10 E quando Syme, avançando, consegue alcançar Domingo a tempo de fazer-lhe a pergunta “Você o que é?”, Domingo faz um longo e evasivo discurso, do qual reproduzo apenas as seguintes palavras: “Desde o começo do mundo todos os homens tem-me caçado como se caça um lobo: reis e sábios, poetas, legisladores, todas as igrejas e todos os filósofos. Nunca me agarraram, e os céus se despenharão no dia em que me vir em apuros. De todos tenho escapado e a todos tenho confundido. E agora farei a mesma coisa” (CHESTERTON, 1967, p.144).

Simultaneamente, durante a perseguição no zoológico, Syme se dá conta de como a Natureza se entrega continuamente, talvez do mesmo modo que Domingo, a divertimentos misteriosos. “Domingo lhes dissera que eles o entenderiam quando tivessem entendido as estrelas. Syme perguntava a si mesmo se os próprios arcanjos poderiam entender o bucero” (CHESTERTON, 1967, p.149). Não é à toa que a perseguição a Domingo ocorre por um zoológico adentro. O bucero, que tanto chamou a atenção de Syme, e provavelmente de Chesterton, é uma espécie de pássaro inconfundível, semelhante ao tucano, mas com um tipo de bico duplo. Convido o leitor, se já não sabe o que é um bucero, a conferir uma imagem disto que o autor compara ao próprio personagem enigmático do romance.11

No penúltimo capítulo, chamado “Os seis filósofos”, cada um dos detetives, então, empreende um pequeno discurso sobre a impressão que tem do Presidente. Dr. Bull, o Sábado, começa dizendo que sempre tivera simpatias pelo velho Domingo, malvado como é. “Eu mesmo”, diz ele, “nunca li a Bíblia, mas aquela passagem, de que os outros tanto se riem, é uma verdade integral: “Por que saltais assim, altas colinas?” Sim, as colinas saltam mesmo... bom, ao menos tentam... Por que admiro Domingo?... Como poderei dizer-lhes?... Porque ele é tal qual um Saltimbanco” (CHESTERTON, 1967, p.154-5).12 O Secretário, Segunda-feira, discorda imediatamente, dizendo que via em Domingo uma aérea vitalidade, mas grosseira e triste, “movida por uma enfermidade secreta. Movia-se como uma gelatina asquerosa” (CHESTERTON, 1967, p.155). O Inspetor Ratcliffe, o Quarta-feira, repete sua descrição anterior de uma combinação de alheamento e crueldade. Gogol, o Terça-feira, confessa não ser capaz de fazer nenhum discurso, da mesma forma que não encara o sol do meio-dia. O Professor de Worms, o Sexta-feira, é o que faz a descrição mais enigmática, talvez por isso a mais precisa, ao falar do rosto de Domingo como algo que só faz sentido numa certa perspectiva, mas que é uma ilusão; quando visto de perto é como se o olho estivesse há quilômetros do nariz, e este, absurdamente acima da boca. Ele não crê que Domingo possua realmente um rosto e completa: “Não tenho bastante fé para crer na matéria” (CHESTERTON, 1967, p.157). Por último, Syme, o homem que foi Quinta-feira, recorda que, na primeira vez em que viu Domingo, viu apenas as costas, mas quando viu seu rosto, se assustou, “mas não porque fosse brutal, não porque fosse mau. Ao contrário, assustou-me porque era belo, porque era bom” (CHESTERTON, 1967, p.158). Conclui dizendo que o tinha visto tão descomunal como um animal, mas logo compreendeu que era um deus, ao que o Professor arremata: “– Pã era um deus e um animal”.

Toda essa reflexão nos inclina fortemente a pensar em Domingo como a Natureza, talvez como um deus, Pã, mas não como o Deus Criador judaico, e menos ainda como o Deus-homem cristão. A razão pela qual Domingo, sendo ele próprio o chefe de polícia, tinha enviado os detetives para investigarem a si mesmos era que ele é cruelmente distraído, dado a brincadeiras misteriosas, mas não que fosse ao mesmo tempo rei e rebelde, no sentido específico no qual o Deus cristão toma a forma humana para limitar-se e assumir os mais profundos dilemas e medos humanos, entre os quais a morte.

3) Aparece o acusador. E, afinal, como terceira e última razão que torna improvável a interpretação de Domingo como Deus, e a de Deus como Pã, é que Gregory, o “Lucian”, o verdadeiro anarquista que não fora admitido no Conselho Anarquista, reaparece no último capítulo do romance, chamado “O acusador”, com o intuito de acusar a todos de serem felizes. “Eu lhes poderia perdoar tudo, a vocês que governam toda a humanidade, se uma vez, pelo menos, eu pudesse sentir que vocês sofreram uma hora de agonia real, tal como a que eu...” (CHESTERTON, 1967, p.171). Gregory reaparece, portanto, para reafirmar a realidade do mal, acusando a todos de felicidade como desculpa para seu ideal pessimista e destrutivo, embora ridículo. Tanto que, quando ele aparece repentinamente, Dr. Bull, o Sábado, murmura a passagem de Jó 1:6: “No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre eles veio também Satanás”. Chesterton, poderíamos dizer, recusa, neste personagem, a ideia de Hegel de negar a realidade do mal mediante uma filosofia da reconciliação absoluta. A ideia de um Deus que se limita, rei e rebelde, não é exatamente a da dialética hegeliana, mas um paradoxo da religião cristã, “difícil de discutir porque é obscuro e terrível”, e que os mais santos recearam tratar. Talvez seja uma filosofia que cabe numa história, mas certamente não é uma história que caiba numa filosofia.

 3. Apropriação hegeliana do romance: um pesadelo

Em suma, pode-se dizer que O Homem que foi Quinta-feira traz uma visão possível da divindade, que não é a rigor defendida, mas apresentada e ventilada, e contudo na forma de um pesadelo. Além disso, a personagem principal, que poderia desvendar o mistério, é ela própria o próprio mistério, e não se dá completamente a conhecer. Mais precisamente: ela se dá a conhecer como algo que ilude. Não poderíamos dizer, para todos os efeitos, quem ou o quê é Domingo. É provável que seja a Natureza, mas é sempre possível confundi-la com Deus. Porque ela, assim como Deus, sempre escapa e confunde. Porque ela, de certa forma, não deixa de ser a fisionomia visível de Deus. Talvez seja isto que falta ao romance, uma distinção clara entre Domingo e o grande chefe de polícia. As duas facções são a mesma. A Natureza muitas vezes se comporta assim e confunde. Mas isso não significa que podemos tomar tal confusão por uma identidade. Confundir a Natureza com Deus talvez seja humano, mas identificá-la com Deus, talvez seja diabólico. Só se pode confundir duas coisas que, no fundo, não são idênticas.

Mas quem é Deus em O Homem que foi Quinta-feira, se não é a Natureza? Ele está ausente do romance. Mas isso não quer dizer que não exista. Talvez seja o chefe de polícia que só aparece de costas, e cuja face aparente é Domingo, isto é, a Natureza. Mas o fato é que algo está ausente no romance, o que o torna um grande enigma, ou precisamente o que ele é, “um pesadelo”. Chega-se a suspeitar de que uma frase da obra posterior de Chesterton, O Homem Eterno, de 1925, poderia lançar uma luz sobre este romance policial, quando diz que “há emoção no teísmo”, e que “um romance em que muitos personagens separados se revelam o mesmo personagem com certeza seria um romance emocionante” (CHESTERTON, 2010, p.95). Mas, na verdade, O Homem que foi Quinta-feira não é o romance do teísmo, contando sua aventura e sua emoção, como se poderia estar inclinado a pensar. Antes, é o romance do paganismo e do panteísmo, contando seu desespero e seu pesadelo. Não é um romance emocionante; é, poderíamos dizer, até mesmo um romance enfadonho. Todos os deuses (o politeísmo) se revelam o mesmo deus, só que ele é a Natureza, ou Pã (o panteísmo). Descobrimos, posteriormente, uma outra passagem de O Homem Eterno que lança uma luz ainda mais forte sobre o romance:

Suponho a presença de uma imensa implicação por trás de todo o politeísmo e paganismo. Suponho que temos apenas um indício disso aqui e ali nesses credos selvagens ou origens gregas. Não é exatamente o que queremos dizer ao falar da presença de Deus; em certo sentido poderíamos com mais propriedade chamar isso de ausência de Deus. Mas a ausência não significa não-existência; e o fato de alguém beber à saúde de amigos ausentes não significa a ausência total de amizade na vida dessa pessoa. É um vazio, mas não uma negação; é algo tão positivo como uma cadeira vazia. Seria um exagero dizer que os pagãos enxergavam acima do Olimpo um trono vazio. Mais perto da verdade seria tomar a gigantesca imagem do Antigo Testamento, em que o profeta viu Deus pelas costas; era como se uma presença imensurável houvesse dado as costas ao mundo (CHESTERTON, 2010, p.98).13

Aquilo que, para Hegel, é a maior de todas as explicações, para Chesterton é o maior de todos os enigmas, a saber, o panteísmo como presumido teísmo. Embora, para o primeiro, seja uma razão além da razão, uma razão que inclui o próprio enigma, consolando os mortais, para os quais qualquer enigma ou perigo se torna, então, destituído de potência, para o segundo é sempre um ângulo sob o qual é possível enxergar Deus, mas repleto de angústia e desespero. Toda a discussão dos seis polícias-filósofos sobre a fisionomia de Domingo, e o fato de que não se vê o rosto do chefe de polícia, mas apenas as suas costas, mostra que, para o autor, sempre é possível tomar a Natureza por Deus, aliás, uma estratégia possível contra o pessimismo – como, de certa forma, a utilizada por Hegel contra a “consciência infeliz”. Mas com isso o enigma não é resolvido, ou melhor, continua incomodando a presença imensurável de algo que deu as costas.

As explicações do próprio Chesterton não deixam dúvidas. Em sua Autobiografia, publicada em 1936, ano da morte do escritor, ele comenta os anos 1890 no qual teria sido gestado o romance que aqui discutimos. Permita o leitor a longa citação:

Eu ainda me encontrava oprimido pelo pesadelo metafísico das negações da mente e da matéria, com as imagens mórbidas do mal, com o fardo de meus misteriosos corpo e cérebro; contudo, por essa época, eu estava revoltado contra elas e tentava construir uma concepção mais saudável da vida cósmica, mesmo que fosse uma que pudesse se equivocar quanto ao que fosse a sua saúde. Até chamei a mim mesmo de otimista, pois estava horrivelmente próximo de ser um pessimista. É a única desculpa que tenho a oferecer. Toda essa parte do processo viria a ser mais tarde atirada na forma tão disforme de uma obra de ficção chamada O Homem Que Era Quinta-Feira. O título atraiu alguma atenção na época, e havia muitas piadas jornalísticas a respeito. (...) Mas o que me interessa a esse respeito é que praticamente ninguém que olhou o título parece ter visto o subtítulo, que era “Um Pesadelo” e a resposta a um bom número de indagações críticas. Demoro-me neste ponto porque ele é de alguma importância à compreensão daquele tempo. Fui frequentemente perguntado sobre o que eu queria dizer com o monstruoso ogro macaqueador que era chamado de Domingo na história, e alguns têm sugerido – e sob algum aspecto não inveridicamente – que ele era a versão blasfema do Criador. Mas a questão é que a história toda é um pesadelo das coisas não como elas são, mas de como elas pareciam ao jovem meio pessimista dos anos 1890, e o ogro, que parece brutal, mas que também é enigmaticamente benevolente, não é tanto Deus – num sentido religioso ou irreligioso – quanto a Natureza tal como esta se mostra a um panteísta cujo panteísmo está lutando contra o pessimismo (CHESTERTON, 2012, p.127-8).1414

Conclusão

Retomando as motivações filosóficas e teológicas iniciais que orientaram este estudo, o que podemos concluir, afinal, é que, muito provavelmente, não prospera a hipótese de Žižek de que o paradoxo do Deus cristão seja “narrativamente apresentado como a identidade do misterioso” Domingo no romance O Homem que foi Quinta-feira de G.K. Chesterton. E que, parafraseando Chesterton, Hegel, com quem Žižek o comparou, só foi um otimista porque estava “horrivelmente próximo de ser um pessimista”. Eis o que caracteriza uma história cujo riso é sinistro, uma resolução de conflitos que tem a atmosfera de um pesadelo, uma resposta a uma pergunta que não se coloca claramente. Tentando construir uma concepção mais saudável ou feliz da vida cósmica, Hegel, como o jovem Chesterton, pode ter se enganado sobre o que era sua saúde e felicidade. Pois, ao tomar conhecimento de suas reflexões autobiográficas, podemos ainda afirmar que, tendo meditado sobre o que teria sido seu próprio engano, Chesterton veio a ajustar sua posição religiosa tanto quanto seu estilo literário, o que inviabilizaria a leitura do seu romance O Homem que foi Quinta feira como paradigmático de sua posição teológica.

Referências

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Notas

[1]The Napoleon of Nothing Hill conta, em português, com uma edição de domínio público ilustrada e com a tradução de Mathias de Azevedo Bueno: O Napoleão de Nothing Hill. Campinas: Ecclesiae, 2016. Até pouco tempo, The Ball and The Cross não tinha versão em português, quando apareceu uma tradução anônima atualmente comercializada apenas em formato e-book. Diferentemente, The Man Who Was Thursday recebeu várias traduções e edições, no Brasil como em Portugal. Vale a pena mencionar duas: O Homem Que Era Quinta-Feira. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2010, e a que utilizaremos neste artigo: O Homem que foi Quinta-feira (Um Pesadelo). Trad. José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: Agir, 1967, sempre comparada com o original: CHESTERTON, G.K. The Man Who Was Thursday – A Nightmare. New York: Dover Publications, 1986.

[2]Esta ideia, que perpassa boa parte da obra ficcional do autor, está formulada no capítulo A história mais estranha do mundo em: CHESTERTON, G.K. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.

[3]Trata-se da famosa passagem na qual João Batista, na prisão, ouvindo falar a respeito das obras de Jesus, envia discípulos a fim de perguntar se ele era aquele que havia de vir ou se deviam esperar outro. Pergunta à qual Jesus respondeu com as seguintes palavras: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Trad. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional/Paulus, 1995). Ecoando as palavras do profeta Isaías (Is 61:1), a “boa nova” toma a forma de uma narrativa acessível aos pobres, como o derradeiro “milagre” que, junto com os demais, aparentemente mais milagrosos, dá testemunho do que perguntava João Batista. Em suas Lições de Introdução à História da Filosofia, na redação de Berlim, 1820, Hegel se refere a essa passagem como prova de uma consciência religiosa que “é o produto da fantasia pensante, ou do pensar que unicamente apreende mediante o órgão da fantasia e tem a sua expressão nas figuras por elas produzidas. (...) A religião dirige-se não só em geral a todos os modos da cultura – “o evangelho é anunciado aos pobres” –, mas deve também, enquanto religião expressamente dirigida ao coração e ao ânimo, entrar na esfera da subjetividade e, assim, no recinto do modo finito da representação.” HEGEL, G.W.F. Introdução à História da Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2006, p.43 (itálicos nossos).

[4]Žižek se vale dessa intuição em sua filosofia pós-moderna do cristianismo, mais de uma vez: na obra The Puppet and the Dwarf: The perverse core of Christianity. Cambridge/ London: The MIT Press, 2003, e no livro publicado em conjunto com o teólogo John Milbank The Monstrosity of Christ: Paradox or Dialetic? Cambridge/London: The MIT Press, 2009. Os dois livros possuem tradução em português.

[5]Tal opinião é compartilhada, da mesma forma, por TOPPING, Ryan. “Notes from the Underground: Slavoj Žižek on Chesterton on Paradox”. In: The Chesterton Review. v.36, Issue 1/2, Spring/Summer 2010, p.61-2

[6]Obviamente, não queremos dizer que Chesterton tenha se ocupado dos escritos do jovem Hegel. Apenas gostaríamos de mostrar que a ideia de uma “descoberta” de que diferentes coisas na verdade são uma única coisa, ou de que aquilo que aparentemente é inimigo, na verdade é amigo, pode ser interpretada de diferentes modos: ou como uma relação deuses-Deus (teísmo diante do paganismo) ou como relação deuses-Natureza/ Espírito (panteísmo diante do paganismo).

[7]Cf. WILLIAMSON, Raymond K. Introduction to Hegel’s Philosophy of Religion. New York: State University of New York Press, 1984; LUFT, E. & CIRNE-LIMA, C. Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

[8]Cf. também o importante livro de Jean Wahl, Le Malheur de la Conscience dans la Philosophie de Hegel. Paris: Press Universitaires de France, 1951.

[9]Não podemos aqui expor todas as razões do que estamos chamando de “ortodoxia cristã”. Certamente seria um trabalho hercúleo remontá-la a uma tradição histórica, mas podemos certamente associar este conceito a Chesterton e ao movimento teológico de Cambridge chamado “ortodoxia radical”, que se delimita, entre outras referências, a partir de um distanciamento com o idealismo alemão, ao contrário do que pretende Žižek. Cf. ŽIŽEK, S. & MILBANK, J. The Monstrosity of Christ: Paradox or Dialetic? Cambridge/ London: The MIT Press, 2009. Cf. também MILBANK, J. Teologia e Teoria Social. São Paulo: Loyola, 1995.

[10]Modificamos aqui levemente a tradução, segundo consideramos mais apropriado.

[11]A espécie bucero rinoceronte é emblemática de quão incompreensível, e dada a misteriosas brincadeiras, a natureza pode ser. Cf. http://www.nature-pictures.org/it/image/1439/4816/. Acesso em mar 2016.

[12]A passagem bíblica referida é a do Salmo 114:5-6: “Que tens, ó mar, para fugires assim, e tu, Jordão, para que voltes atrás? As montanhas, para saltar como carneiros, e as colinas como cordeiros?”. E não surpreende que a sequência do Salmo seja relativa à superioridade de Deus sobre a natureza, sua própria criação, 114:7-8: “Treme, ó terra, frente ao Senhor, frente à presença do Deus de Jacó: ele transforma a rocha em lago, e a pedreira em fontes de água”.

[13]O autor se refere, aqui, à passagem de Ex. 33:23, em que Iahweh diz a Moisés: “Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver.”

[14]Cf. ainda KER, Ian. G.K. Chesterton: A Biography. Oxford: Oxford University Press, 2011, p.187 et seq.