Entre o dizer e o não-dizer: por uma epistemologia da revelação nos limites da linguagem
Between the saying and the nonsaying: for an epistemology of the revelation in the limits of the language
Abdruschin Schaeffer Rocha*
* Professor do Curso de Graduação em Teologia e do Programa de PósGraduação Stricto Senso em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória. Contato: abdrus@gmail.com.
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Resumo
O artigo pretende discutir a revelação no espaço que se constrói entre o dizer e o não dizer sobre Deus; entre a necessidade constitutiva de se compreender Deus e a impossibilidade de se falar dele de forma absoluta. Propõe uma metáfora (a epistemologia do filtro) para se compreender o processo que chamamos de revelação, assumido dentro dos limites da linguagem. A partir da compreensão de Deus como evento, tal como sugerido por John Caputo, o artigo propõe uma epistemologia frágil, capaz de suscitar uma teologia dialogal, em que os conceitos e formulações sejam “albergue” e não “cárcere” daquele que, embora compreendido na linguagem, não se deixa por ela reduzir.
Palavras chave:Revelação; Epistemologia; Linguagem.
Abstract
The article aims to discuss the revelation in the space that is constructed between saying and not saying about God; between the constitutive need to understand God and the impossibility of speaking of Him in an absolute way. It proposes a metaphor (the epistemology of the filter) to understand the process we call revelation, assumed within the limits of language. From the understanding of God as an event, as suggested by John Caputo, the article proposes a fragile epistemology, capable of constructing a dialogical theology, in which the concepts and formulations are sheltered and not imprisoned by the one who, although understood in language, is not left reduce it.
Keywords:Revelation; Epistemology; Language.
Introdução
Embora a filosofia contemporânea, sobretudo em sua matriz pós-metafísica, trabalhe com a ideia de que o mundo existe nos limites da linguagem — o que aqui nos serve de inspiração para pensarmos a revelação —, deve-se fazer a distinção entre a necessidade humana de interpretação da realidade e sua impossibilidade de aludi-la plenamente. Aí, nesse sentido, de fato nada mais pode ser dito além daquilo que está nos limites da linguagem e o mundo (essa produção de sentido) passa a ser uma construção linguística. A formulação de teologias, por outro lado, parece ser tanto uma necessidade quanto uma ousadia humana, resultantes de um desejo constitutivo e inevitável. Mas, não se pode ignorar o perigo de se construir teologias muito ao largo da finitude humana e da incapacidade de se construir conceitos acabados. Como lidar com o paradoxo que surge do desejo de significar o absoluto e, ao mesmo tempo, da incapacidade de se compreendê-lo?
Se é inevitável fazer teologia a partir de impressões do Deus que reverbera no mundo dos humanos, então, urge a necessidade de se construir uma “teologia de textos escritos” 1 a partir da reflexão que surge da ambiguidade entre o dizer e o não-dizer. Tal reflexão exige que se considere tanto a “natureza” desse Deus que se pressupõe revelável quanto o processo epistemológico através do qual ele nos chega. O pressuposto aqui é que tais reflexões pavimentem o caminho rumo a uma teologia mais dialogal.
O presente artigo se divide em duas partes: na primeira, pretende-se discutir as possibilidades de uma revelação que se construa entre o dizer e o não-dizer. Admite, nesse sentido, a inevitabilidade do dizer, desde que somos seres que dão sentido ao mundo e nos construímos, em grande medida, a partir desse sentido. Isso, é claro, inviabiliza algumas propostas que já tiveram lugar na história, tais como a teologia negativa. Entretanto, por outro lado, reconhece a fragilidade do conhecimento humano e coloca em termos específicos a urgência em se construir uma epistemologia “frágil”. Na segunda parte, investigam-se as possibilidades de se pensar a revelação assumindo como referencial uma hermenêutica do evento, tal como sugerida em John Caputo. Espera-se que essa teoria do evento subsidie a teologia, na medida em que o nome de Deus seja visto como uma linguagem que abriga um evento que, por sua própria natureza, não se deixa por ela limitar. À teologia da revelação, nesse sentido, caberia libertar esse evento de seu nome.
Epistemologia kenótica: entre o dizer e o não-dizer
Falar de uma epistemologia como parte integrante na construção de uma teologia da revelação pode parecer problemático, sobretudo, em dois aspectos: em primeiro lugar, não se pode ignorar o desde onde a epistemologia se constrói — isso quase equivaleria a buscar-se uma epistemologia da epistemologia. Conforme ressalta Johannes Hessen, uma teoria do conhecimento, enquanto disciplina filosófica independente, não deve ser buscada nem na Antiguidade, nem na Idade Média. De fato, podem-se encontrar diversas reflexões epistemológicas na filosofia antiga, sobretudo em Platão e em Aristóteles. Entretanto, tais investigações filosóficas são ainda completamente reféns de contextos psicológicos e metafísicos, 2 o que significa que é só na Modernidade que a teoria do conhecimento surge como disciplina independente (1999, p. 14.). Portanto, a epistemologia é filha da Modernidade e como tal carrega suas marcas, algumas das quais em franco confronto com a base a partir da qual se propõe aqui “caminhos” para a construção de uma teologia da revelação. Basta lembrarmos que a teoria do conhecimento figura como uma espécie de “corte” da realidade que favorece a compartimentalização e o consequente domínio da res cogitans sobre a res extensa. É claro que o problema aqui não é o fato de se construir conhecimentos a partir desses recortes, afinal, isso é inevitável quando se fala de epistemologia. O problema da Modernidade parece muito mais o de se acreditar demasiadamente e sem suspeitas nos recortes feitos. Tratase, portanto, de um conhecer que se expressa como representação que um sujeito pensante (o res cogitans) realiza sobre um objeto dado (a res extensa). 3 Ou seja, a Teoria do Conhecimento certamente catalisou os ideais da Modernidade, comprometidos que são com o exercício desmedido da razão sobre a totalidade da realidade. A máxima de Bacon “saber é poder” sintetiza o afã da Modernidade — em que a aposta num saber sem limites acaba por desrespeitar os limites da própria “coisa” — e uma teoria do conhecimento passa a ser um importante instrumento a partir do qual esse “sonho” moderno será buscado. Percebe-se, então, que a Teoria do Conhecimento, como disciplina autônoma e geneticamente ligada à Modernidade, ajuda a estabelecer uma cultura que se acostumou a dizer o que as coisas são.
Em segundo lugar, não se pode ignorar o esgotamento e limite dessa pretensão de objetividade e o ressurgimento de outra tradição que “corre por fora”, desde os primórdios da Idade Média: trata-se da teologia negativa. Pode-se dizer que ela marca o início da questão da negatividade no discurso e embora se distinga da mística, de certo modo, também se relaciona com esta no sentido de uma “mística especulativa” ou “filosófica”. Dionísio Areopagita (ou Pseudo-Dionísio Areopagita) 4 aparece na história como o principal expoente dessa teologia, seguido, dentre outros, por Meister Eckhart, São João da Cruz, Nicolau de Cusa e Angelus Silesius. A teologia negativa consiste num modo de se abordar Deus aplicando-lhe proposições negativas. Ou seja, em vez de proceder por analogias ou mesmo atribuir-lhe qualidades positivas, esse método, também conhecido como apofatismo, consiste em dizer aquilo que Deus não é, recusando-lhe, assim, qualquer predicado. Para Jacques Derrida esse método foi amplamente usado também por São Tomás de Aquino e, para ele, apesar das pretensões da teologia negativa de se querer racional, deve, no entanto, ser relacionada ao “misticismo”. Ou seja, pertence à intuição de uma realidade transcendente que extrapola as possibilidades da linguagem (1995, p. 7-8.).
Não se pode deixar de notar que a atual discussão sobre a religião, incluindo sua reflexão filosófica pós-metafísica — por exemplo, em Habermas, Putnam, Derrida e outros —, passa, de algum modo, pela teologia negativa. Além disso, ela é pressuposto para quem se interessa pela discussão das relações entre Modernidade, religião e teologia (LOSSO, 2007, p. 259-260.).
A teologia negativa, com seu método de falar de Deus a partir do que ele não é, contribuiu de alguma forma para uma compreensão do absoluto a partir de baixo, 5 ou seja, a partir do modo como ele é recebido. Destaca-se a consciência de que o conhecimento de Deus não se dá apenas pelas vias racionais, além do fato de que a mente humana é incapaz de acessá-lo com suas próprias categorias. Nesse sentido, o mérito da teologia negativa tem sido o de ajudar a desembaraçar o intelecto das imagens falsas, abrindo caminho para a possibilidade de um acesso a Deus de forma imediata e essencial, tal qual proposto pela tradição mística. A teologia negativa, sobretudo via Plotino e Dionísio Areopagita, nega tanto as imagens e o culto a estas quanto a possibilidade de qualquer atributo divino (LOSSO, 2012, p. 284.).
Digno de nota são alguns traços essenciais que, segundo Derrida, estão presentes em qualquer teologia negativa: “a passagem no limite, depois a travessia de uma fronteira, inclusive aquela de uma comunidade, portanto de uma razão ou de uma razão de ser sociopolítica, institucional, eclesial” (DERRIDA, 1995, p. 9). Derrida nota a tênue relação entre a teologia apofática e o ateísmo, pois tal teologia não apenas se coloca no limite entre a razão e a “experiência mística”, 6 mas, também, entre a ortodoxia e a heresia e entre a crença e a não crença. Ou seja, a teologia negativa, e mesmo a mística, caracteriza-se por uma ousadia nas declarações, normalmente incompatíveis com a teologia oficial, sobretudo aquela que se alimenta das certezas que derivam de fundamentos.
Derrida marca o caráter não estritamente racional da teologia apofática ao analisar as Confissões de Agostinho. Para ele,
[...] o essencial da confissão ou do testemunho não consiste em uma experiência de conhecimento. Seu ato não se reduz a informar, a ensinar, a anunciar. Estranha ao saber, portanto a qualquer determinação ou a qualquer atribuição predicativa, a confissão divide essa destinação com o movimento apofático. A resposta de Agostinho inscreve-se como ordem cristã do amor ou da caridade: como fraternidade [...] A confissão não consiste em anunciar — e por meio disso ensina que o ensino como transmissão do saber positivo não é essencial. A confissão não pertence essencialmente à ordem da determinação cognitiva. Em relação a isso, é quase apofática. Nada tem a ver com o saber — enquanto tal. Enquanto ato de caridade, amor e amizade em Cristo, destina-se a Deus e às criaturas, ao Pai e aos irmãos para “excitar” o amor, para aumentar um afeto, o amor, entre eles, entre nós (DERRIDA, 1995, p. 13-14).
Mas, apesar da enorme contribuição que a teologia negativa trouxe à reflexão filosófica e teológica e que, de alguma maneira, ajuda-nos na construção de uma teologia da revelação, é preciso dizer que seu modo de se propor é insuficiente para uma abordagem que se pretenda a partir de baixo, ou seja, a partir da recepção. Neste momento, é preciso nos recordar da assertiva de Heidegger quanto ao dasein. Segundo o filósofo alemão, o dasein é o único para quem a pergunta a respeito do sentido do ser se coloca como uma questão. 7 Ou seja, Heidegger sugere que o ser humano é incurável em sua necessidade de indagar pelo sentido das coisas e, consequentemente, incurável em sua necessidade de dizer. O ato de dizer, que sempre mantém no horizonte o não-dito, partindo e ao mesmo tempo direcionando-se a este, também é uma ação com densidade ontológica, constitutiva. Ou seja, é na palavra que o ser humano significa o mundo e ao fazê-lo também se constrói nesse vir-a-ser, nesse constante sendo. Portanto, afora os benefícios que apontamos a pouco, o método da teologia negativa é apenas uma maneira de ignorar aquilo que não é possível: o dizer. Dizer o que Deus é ou dizer o que ele não é sempre será o dizer e, nesse sentido, sempre mostrará essa incondicionalidade. Parece-nos que a teologia negativa poderia ter sido mais efetiva se simplesmente seguisse sua intuição de fundo — que é a consciência da impossibilidade de se compreender plenamente a Deus e traduzi-lo num discurso —, não necessariamente recorrendo a uma fala indireta, mas, assumindo o dizer, porém fazendo-o de maneira frágil, considerando qualquer símbolo ou imagem do divino com a suspeita necessária. 8 Provavelmente por isso Heidegger tenha proposto um questionar dos entes e uma escuta do ser.
Neste momento, gostaríamos de propor alguns caminhos para a construção de uma epistemologia frágil. As metáforas geralmente são uma boa maneira de se falar daquilo que se mostra de difícil compreensão quando acessado pela via da razão. No horizonte teórico a partir do qual aqui se fala, as metáforas são de particular importância, na medida em que nos aproximam do objeto pretendido de uma forma “aberta” e “indireta”, propício à nossa abordagem. Por essa razão, neste artigo, se recorrerá de modo especial a uma metáfora. Na esperança de se explicitar melhor a maneira como se dá o conhecimento no âmbito da revelação, sugere-se aqui uma metáfora para se compreender as bases epistemológicas a partir das quais se poderia falar de um processo revelacional, à luz da hermenêutica contemporânea. Consideremos, pois, a metáfora do filtro – digamos, um filtro de café –, conforme a figura a seguir:
Figura 1: epistemologia do filtro
O processo de realização do café, em seu modo mais tradicional, conhecemos bem: introduz-se água, mais ou menos entre 90º e 100º, num filtro que contenha o pó de café, e o contato da água fervente com esse pó produz uma bebida apreciada por muitos, não só no Brasil como também em outras partes do mundo. Nesse processo, algumas coisas interessantes saltam aos olhos: o líquido que se encontra no fim do processo e que, no final das contas, é o que todos saborearão, não é o mesmo que se encontra no início do processo, embora também o pressuponha. Ou seja, o café não é a água, embora a contenha! O que faz com que o líquido inicial não seja o líquido final é exatamente o “caminho” que a água precisa percorrer — ou seja, o filtro com o pó de café — para que se alcance o fim do processo. Nessa metáfora, chamaremos a água de “coisa-em-si”, o café de “conhecimento final” e o filtro com o pó de café de “quadro interpretativo”. Vejamos, então, cada um desses elementos:
Do que estamos falando quando nos referimos à coisa-em-si? Para se buscar uma epistemologia que faça jus ao caráter da revelação, concebida desde baixo (desde o modo como é recebida), é preciso manter à vista o niilismo de Nietzsche, que nasce, de certo modo, de suas leituras de Schopenhauer. 9 Nessa perspectiva, o mundo em-si-mesmo independe do sujeito que o conhece e diferencia-se, nesse sentido, do fenômeno. A coisa-em-si, aqui simbolizada na água, tem a ver com a realidade nela mesma, ou seja, fora de nossa subjetividade, de nossa linguagem, portanto, fora de nossa interpretação. É claro que tanto para Schopenhauer quanto para Nietzsche, isso significaria a própria ausência de valores absolutos e ausência de uma ordenação moral do mundo, já que esses elementos são o produto do sentido humano, presente apenas no fenômeno. Para Nietzsche igualmente, o mundo-em-si, sem o humano, não é nem bom, nem ruim, não erra, nem mente, não possui valores, afinal, em suas palavras, “tudo somente – humano, demasiado humano”. 10 Nas palavras de Nietzsche:
No “em-si” não há “laços causais”, nem “necessidade” [...] Somos os únicos que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e sempre que introduzimos e entremesclamos nas coisas esse mundo de signos, como se fosse algo “em-si”, agimos como sempre fizemos, ou seja, de maneira mitológica (tradução nossa). 11
É claro que para além do niilismo (non sens) de Schopenhauer e Nietzsche, há embutidos pressupostos e conclusões que não são compartilhados pelos crentes em geral, e nem deveriam ser, se se acredita na possibilidade de uma revelação. Também para além da teologia negativa, partimos do pressuposto de que é possível se falar da coisa-em-si se se admite que a realidade extrapola a linguagem, ou seja, se se pressupõe que a linguagem é limitada para abarcar todas as coisas, incluindo nossas experiências. Ao contrário de nossos filósofos, não é preciso pressupor que no mundo-em-si não haja “conteúdos ordenados”, sobretudo se se acredita na existência de um Deus, e tal suspensão de juízo faria mais jus a um discurso que provém de baixo. Afinal, se se leva Nietzsche e Shopenhauer às últimas consequências, do ponto-de-vista epistemológico, não se poderia afirmar que no em-si não há nada, já que não se tem acesso a tal. Então, é razoável acreditar que há algo para além dos limites do meu “mundo” (“mundo de sentido”, na acepção de Heidegger, por exemplo), algo que o transcende, e a própria experiência humana dá testemunho disso. Parece-nos que o mundo cristão não tem muitas dificuldades para compreender o conceito de coisa-em-si — para além dessa perspectiva de Schopenhauer e Nietzsche, é claro —, já que trabalha com pressupostos que incluem a noção de absolutos. Um absoluto, por assim dizer, é sempre algo cuja realidade independe dos sujeitos envolvidos. Então, o problema com o qual nos debatemos não é se existem absolutos ou não — muitos da tradição pós-metafísica concluíram que não —, mas se temos acesso a eles absolutamente.
O que queremos dizer quando nos referimos ao quadro interpretativo? Nosso “quadro interpretativo”, que designa os filtros que formam nossa subjetividade, é configurado ao longo de nossa vida e determinado por vários elementos, tais como: tradição religiosa; educação; cultura; relacionamentos pessoais; experiências, etc. Determina-se, também, pelas contingências que atravessam os seres humanos, como, por exemplo, suas interrogações e respostas, suas dúvidas e certezas, sua procura e posse, sua necessidade e gozo, seu fracasso e triunfo e até mesmo sua afirmação ou negação. Gadamer chamava o quadro interpretativo de “horizonte” (2003) e Thomas Kuhn de “paradigma” (2007). Ou seja, designa o “lugar” a partir de onde interpretamos o mundo, que sempre é um “lugar” subjetivo, constituído por nossos pressupostos e por nossas experiências da realidade. O quadro interpretativo faz com que a experiência seja experimentada diferentemente. Há um condicionamento mútuo entre o “objeto”, que normalmente já vem interpretado por alguém — a menos, é claro, que haja uma experiência “direta”, epifânica —, e o quadro interpretativo. Gadamer chamou isso de “fusão de horizontes”, querendo se referir à fusão entre o horizonte do intérprete e o horizonte do autor expresso no texto. Nossa experiência interpretativa, então, é epocal, histórica. Gadamer fala de um “círculo hermenêutico” (1997, p. 400-416), em que há uma determinação recíproca entre intérprete e texto, respectivamente uma relação entre o todo (cosmovisão do intérprete) e a parte (o texto). Ou seja, quando vamos ao texto, levamos conosco nossa subjetividade constituída de pressupostos, que de alguma forma afeta esse texto. Por outro lado, o texto ou a realidade experimentada goza de certa autonomia (que pode ser respeitada ou não), e quando o deixamos falar, isso também tem o poder de afetar nossa visão de mundo (pressupostos), já que nem sempre a realidade experimentada corresponde ao que o “quadro interpretativo” espera dela — nesse caso, ela extrapola e explode o “modelo”. Nesse sentido, o “quadro interpretativo” será corrigido e até substituído. 12 Tanto o “quadro interpretativo” coloca limites ao objeto interpretado, como o contrário também é verdadeiro. Então, o “círculo hermenêutico” pressupõe que o intérprete com sua cosmovisão afeta o texto e o texto em sua autonomia afeta o intérprete.
Finalmente, o que queremos dizer quando nos referimos ao conhecimento final, representado na metáfora pelo café? Para Schopenhauer, toda ordenação do mundo e seu significado são manufaturas humanas, pois como se viu anteriormente, para ele o mundo-em-si é desordenado e sem-sentido (non sens). O nosso mundo, portanto, é uma sucessão de representações de nossa consciência — o sentido do mundo, então, só existe no fenômeno, é uma padronização humana e não uma propriedade do mundo-em-si. O que chamamos de realidade, portanto — esse mundo humanizado —, resulta de um processo interpretativo. Em “A Gaia ciência” Nietzsche pergunta o quanto o mundo humano equivale ao mundo em-si. Sua resposta é uma afirmação de que não se pode conhecer o mundo real sem o acréscimo humano. Tal consciência esteve ausente do mundo ocidental por muito tempo, razão pela qual Nietzsche deseja instruir seu leitor a não confundir o mundo em-si, tanto com sua antropomorfização quanto com sua divinização. Partindo de nossa metáfora, então, é possível dizer que assim como aquilo que chega no bule de café não é água — embora a contenha —, mas trata-se do café que também é o produto da mediação do coador, assim o mundo que nos chega nunca é o mundo epistemologicamente puro — embora contenha indícios da realidade-em-si —, mas sempre já mediatizado pelo nosso quadro interpretativo.
Se Deus assume o lugar da coisa-em-si, então também haverá implicações para a maneira como entendemos a revelação. O cristianismo, por exemplo, pressupõe que exista um Deus-em-si, que por ser uma realidade que reverbera no mundo deve se constituir pressuposto para todas as elaborações teológico-religiosas. Mas, se a base hermenêutica sobre a qual repousa a epistemologia que propomos é correta, então isso implicaria em se pressupor que o Deus que nos chega também não é epistemologicamente “puro” e essa suposta “impureza”, que em nada depõe contra a revelação na acepção que aqui estamos propondo — desde baixo —, proporciona que Deus sempre se manifeste absconditamente. Parece óbvio, mas muitos lidam com isso como se o Deus a quem servimos ou do qual falamos identifica-se com o Deus-em-si. É como se a água que é lançada no coador chegasse ao bule com suas propriedades inalteradas, a despeito do pó de café que reside o coador.
Como se sinalizou anteriormente, o problema não está em se pressupor que exista uma realidade absoluta assim como um Deus absoluto, mas em como se experimenta humanamente essa absolutidade. Contudo, não fazemos a experiência do absoluto, já que toda experiência é relativa por definição. Nesse sentido, não acessamos o Deus absoluto absolutamente — acessamos o Deus absoluto relativamente. Nosso acesso é sempre por “imagens”, sendo isso não só legítimo como inevitável. O problema é quando acreditamos que uma dessas imagens, ou um conjunto delas, corresponde ao Deus-em-si — nesse caso, incorremos em “idolatria”. Sempre que o cristão em geral, ou mesmo a reflexão teológica lida com esse para-nós como se fosse um em-si, nas palavras de Nietzsche, incorre-se numa ação mitológica. Trata-se do velho afã por se estabelecer uma correspondência entre a realidade em-si e nossas descrições da realidade, entre o mundo tal como é e o nosso código linguístico. O conceito correspondentista da verdade, embora seja uma prática antiga e de certa forma tenha sido drenado para o universo da teologia, ainda determina boa parte de nossas formulações teológicas. 13 E é por isso que um dos grandes desafios da teologia, nas palavras de Joseph Moingt, consiste em reconciliar o para-nós com o em-si de Deus:
Os teólogos [...] interessaram-se pelos mistérios da eternidade mais que pelas realidades da história, e foi desta maneira que a ideia de Deus terminou por se obscurecer nas especulações da metafísica. A tarefa da teologia hoje — e numerosos teólogos se engajaram nessa via — é reconciliar o em-si de Deus e seu para-nós, sua eternidade e sua presença no tempo. É a condição para reconciliar o pensamento da modernidade com a revelação cristã compreendida sob esta nova luz. É também a condição para fundar sobre Deus mesmo a autonomia e a consistência do mundo (MOINGT, 2010, p. 437).
Se não há correspondência entre a linguagem e a realidade-em-si, então isso significa que seria absurdo absolutizar qualquer conhecimento, mesmo que se trate do conhecimento teológico. Chegaríamos à conclusão, então, de que a realidade extrapola os limites da linguagem. Por outro lado, teríamos que concluir também que só temos algum controle sobre o que está nos limites da linguagem, sendo esse o nosso mundo. Eis aí um paradoxo! Isso implicaria — é preciso reafirmar isso — em se abandonar a ideia de falar desde cima, ou seja, desde o mundo de Deus, e se contentar em falar desde baixo, do mundo humano que nos chega e que nos atravessa. Seria, portanto, lidar com a revelação não na perspectiva de sua emissão, mas de sua recepção, pois é sobre esse conhecimento mediado por todos os condicionamentos humanos que, de fato, podemos falar. Isso, obviamente, implica em humildade. Implica, também, num constante “estar a caminho”, na esperança de que a viagem construa o viajor. A teologia que daí resulta necessariamente será uma teologia humana, provisória e criativa.
Quando se diz que Deus usa os mecanismos humanos, com suas contingências, para se revelar ao ser humano, fala-se de um conhecimento que nos vem a partir de um processo que aqui chamamos de revelação. Assim como quando falamos do café não nos referimos apenas à água nem mesmo ao café, mas pressupomos todo o processo, a revelação também não se resume ao Deus-em-si e também não se refere ao conhecimento final que dele obtemos, mas a todo o processo que inclui os elementos originários e divinos bem como os contingentes e humanos, além das relações que derivam daí. Nesse sentido, somente uma epistemologia kenótica, que construa o conhecimento a partir dessa vulnerabilidade humana, seria capaz de contribuir para a compreensão de uma revelação divina que se realize permanentemente no mundo dos seres humanos.
Hermenêutica do evento como condição para uma teologia dialogal
Martin Heidegger, filósofo alemão, tem sido considerado um dos mais proeminentes pensadores a discutir a questão do ser no contexto da filosofia. Para ele, há uma significativa diferença entre o propor-se silencioso do ser, o que invariavelmente demandaria a escuta de um ouvinte, e o questionar dos entes (Cf. HEIDEGGER, 2005). 14 Bruno Forte nos lembra que a história do pensamento tem mostrado que o questionar dos entes é, há muito, característica determinante do pensar:
[...] o esquecimento do ser e a concentração sobre os entes, típicos da metafísica ocidental, que, nesse sentido, é a história do niilismo, do abandono do ser em favor das essências domináveis do pensamento, induziram o existir, que é o homem pensante, a posicionar-se como o questionador, que pretende conhecer não o ser da coisa, mas “o que ela é”, justamente para dominá-la. A superação da metafísica, entendida como retrocessão (“Schritt zurück”) na direção do originário, exigirá necessariamente o abandono dessa atitude pretensiosa e dominadora do existir, para chegar a uma atitude de acolhida radical do ser que se doa, em que o questionar cede lugar ao ser questionado, a pergunta instrumental converta-se em escuta silenciosa e recolhida, o dizer torne-se o deixar-se dizer por quem escuta a linguagem (FORTE, 2003, p. 105).
É significativo que Heidegger tenha proposto uma relação dialética entre o mostrar-se e o retrair-se do ser, movimento esse que se manifesta concomitantemente na relação entre o dizer originário e o silêncio originário. A linguagem, portanto, é o lugar do advento e do êxodo, já que esse movimento dialético faz a palavra surgir do silêncio e a ele retornar (FORTE, 2003, p. 109). Entretanto, a reflexão heideggeriana nos alerta: a manifestação do ser em seu dizer – assim como a manifestação do divino em seu processo revelacional – pode seduzir as pessoas a querer retê-lo, se ameaçadas pela possibilidade de se perder sua presença e vigor, tal como nos adverte a narrativa bíblica do maná, em Êxodo 16:136. 15 Uma vez que se ceda a tal apelo, assim como em grande medida procedeu a cultura ocidental, resulta-se numa entificação do ser, ou seja, em sua coisificação. Esse mesmo afã pela reificação do ser se verificou na teologia e, na opinião de Heidegger, na ânsia por se absolutizar a manifestação do divino acaba-se por coisificá-lo também. Forte sintetiza:
[...] o pensamento da coisificação ou da entificação de Deus não é senão um caso singular, e talvez o mais exemplar, do niilismo do Ocidente, lugar do ocaso, do declínio no esquecimento do ser. Reduzir Deus a um objeto entre objetos do pensar, explicá-lo com a ideia de causa sui, significa simplesmente esvaziá-lo de toda a santidade e sublimidade, de todo caráter misterioso de seu ser outro, para fazer dele um ente disponível ao jogo instrumental do conceito de existir” (FORTE, 2003, p. 107).
Recentemente John Caputo, filósofo e teólogo norte-americano, influenciado pelas reflexões de Heidegger, procurou pensar uma teologia do evento. À semelhança do filósofo alemão, Caputo propõe uma interpretação de Deus, não como substantivo, mas como verbo, como evento. Para ele, uma maneira de caracterizar aquilo que se poderia chamar de teologia pós-moderna é dizer que é uma teologia do evento. Entretanto, para Caputo, evento não deveria ser traduzido como aquilo que ocorre, como sugere o inglês event. Muito para além desse sentido, evento deve ser visto como “algo dado no que acontece”, ou seja, algo expresso ou percebido a partir do que acontece; algo moldado no que acontece. Não se trata de algo presente, mas de algo que se entrega ao que está presente. Caputo deseja distinguir entre um nome e o evento (esse vigor do acontecer que não se confunde com o ocorrido) que está acontecendo em um nome. Então, se o nome é uma espécie de formulação provisória de um evento, relativamente estável para ser uma estrutura em evolução, o evento, por sua vez, nunca descansa, mas, procura formas inéditas de se propor. Vê-se, portanto, que para Caputo os nomes são históricos, contigentes, meras expressões provisórias daquilo que nunca cala, ao passo que o evento é aquilo que os nomes intentam nomear ou denotar. Embora o evento não seja uma coisa, deve ser visto como algo que atua numa coisa, ou seja, algo que se realiza, se atualiza e se presencia e, paradoxalmente, se oculta nelas. Toda inquietude expressa no fluir das coisas se explica a partir do evento que alberga. Mas, apesar do caráter desconstruível das coisas ou das palavras, o evento por elas acolhido não se desconstrói, afinal, nunca está acabado, formado, realizado. Além disso, afirma Caputo, a temporalidade do evento é tal que mesmo sem nunca se fazer presente, enquanto provocação e promessa nos reivindica de longe; nos convoca e nos evoca, levando-nos para o futuro. 16
O nome de Deus, portanto, é um evento ou, como em Heidegger, uma linguagem que abriga um evento (“a linguagem é a casa do ser”). A teologia, nessa perspectiva, seria a hermenêutica desse evento, e sua tarefa consistiria em libertar do nome esse acontecimento originário, com vistas à sua própria autonomia. Embora se diga que o nome contenha um evento, não se pode ignorar que, em princípio, tal é impossível, já que no evento há sempre algo de incontrolável e incondicional que escapa às determinações linguísticas, como já vimos. Para Caputo, então, o evento se manifesta como promessa em aberto que se encontra albergada num nome, mas que, no entanto, pode ser liberado sob outros nomes, outras condições, outros tempos e culturas, o que também inclui outros nomes que ainda estão por vir – na verdade, o próprio “porvir” é visto como constitutivo do evento, na perspectiva de Caputo. Além disso, interpretar Deus como tal implica, também, em se abrir mão de sua soberania em intervir física ou metafisicamente na natureza e no curso da história, já que é o Deus dos escravos, das viúvas, dos órfãos e isso exige uma ética que se presta à sobrevivência da humanidade (CAPUTO, 2006, p. 1-20).
Tomando como base essa relação proposta por Caputo entre o nome e o evento – ou seja, Deus enquanto código linguístico e Deus enquanto ser que não se deixa reduzir aos signos – resta-nos apontar para algumas consequências que derivam de se propor uma compreensão da revelação que não se arvore para além dos limites da linguagem humana, embora abra caminho para reelaborações cada vez melhores. Se não temos acesso à realidade-em-si, mas apenas àquilo que dela se circunscreve à linguagem, isso inviabiliza o falar do absoluto absolutamente, inviabiliza qualquer teologia que se construa sobre esse “mito” 17 e, consequentemente, inviabiliza as relações humanas que se legitimam em função de algum conteúdo teológico específico e que, por isso, tornariam as relações fraternais entre cristãos e adeptos de outras religiões algo impossível. Inviabiliza, por assim dizer, o discurso apologético. 18 Embora epistemologicamente não se sustente qualquer discurso baseado na absolutidade do conhecimento do mundo, esse é o grande problema que se apresenta quando se fala no diálogo das religiões. Onde há sistemas que se colocam em relação baseados em pressupostos absolutos, ali não há diálogo.
A abordagem excessivamente apologética sustentou perspectivas equivocadas sobre a revelação durante muito tempo. E tal postura esteve presente tanto entre católicos quanto entre protestantes. Do lado católico, a abordagem apologética se verificou em três momentos: 1º) primeiramente surge do confronto entre os católicos e a Reforma Protestante: enquanto os católicos acentuaram os aspectos objetivos da fé, os protestantes ressaltaram os aspectos subjetivos; além disso, o tema principal da controvérsia foi a questão da Igreja; 2º) num segundo momento, no qual a preocupação foi com os vários tipos de irreligião, destaca-se a disputa contra os libertinos do século XVII, caracterizados pela emancipação em relação às crenças cristãs e conhecidos por se tornarem os precursores dos chamados “livre-pensadores”; 3º) num terceiro momento, destaca-se o enfrentamento dos deístas e enciclopedistas do século XVIII, que força a revelação a se justificar dentro dos limites da razão, o que significou redução das verdades da fé a verdades racionais e demonstráveis. Nesse momento, católicos e protestantes uniram-se em prol da sistematização de uma ciência apologética, tornando-se reféns do próprio racionalismo que buscavam combater. Finalmente, buscou-se afirmar tanto a soberania absoluta de Deus quanto a liberdade e capacidade cognitiva do homem — por isso, a busca por uma justificação epistemológica da fé. 19,
Do lado protestante, sobretudo na segunda metade do século XX, autores norte-americanos esforçam-se por elaborarem argumentos racionais em favor dos vários elementos constitutivos da fé cristã. Alguns temas incluem: argumentos em favor da credibilidade, inerrância e infalibilidade das Escrituras; evidências que comprovam a divindade e ressurreição de Cristo; a questão do “Jesus histórico”; a plausibilidade dos milagres e do sobrenaturalismo e insuficiência do naturalismo; a superioridade da fé cristã frente às demais religiões; justificativas quanto às chamadas “dificuldades” bíblicas; desenvolvimento e sistematização do criacionismo, etc.
Com relação a isso se pode dizer que em todos os vários momentos nos quais se verificou o discurso apologético, o que está na base desse posicionamento “forte” é o “mito” que se funda na ideia de que se detém a verdade absoluta, seja a que autoriza a fé ou a que legitima a não-fé; também no pressuposto de que se pode compreender aquilo que está para além dos limites da linguagem a partir do equívoco de que o código linguístico traduz plenamente a coisa-em-si, ou seja, o equívoco de que é possível construir uma linguagem que suporte a complexidade da realidade, seja Deus ou o mundo. Há implícito sempre um recorrente dualismo no discurso, expresso nos seguintes impasses: a Tradição ou as Escrituras, o objetivo ou subjetivo, ou mesmo onde está a salvação, dentro ou fora? Conservadores ou “livres-pensadores”, religião ou irreligião? Deísmo ou teísmo, razão ou fé? Crença ou não crença? Verdade ou mito? Criacionismo ou evolucionismo?
Foi (e ainda tem sido em muitas esferas) esse o quadro que permeou as discussões sobre a revelação. A “força”, no entanto, não nos parece a melhor “abordagem” para propormos uma teologia da revelação que se construa no terreno entre o dizer e o não-dizer, já que não se trata apenas de uma questão de desavenças entre o cristianismo e as demais religiões ou mesmo entre o cristianismo e o ateísmo e/ou agnosticismo. Trata-se de um ingrediente que tem o poder de afetar epistemologica mente o tema. Ou seja, o próprio modo como construímos uma teologia pode conter os elementos da força e da violência que se entremesclam na constituição de um conceito de revelação. Se quisermos libertar a revelação dessa matriz altamente violenta, urge a necessidade de trabalharmos numa teologia mais dialogal, que abandone suas matrizes fundacionais e metafísicas que representam – até onde podemos enxergar – os principais mecanismos de pujança e domesticação da cultura ocidental. Então, se falamos de uma teologia dialogal, o que isso pressupõe, afinal? Eis algumas sugestões:
Em primeiro lugar, o diálogo pressupõe uma autopoiese, um movimento que se faça desde dentro, das próprias entranhas. A despeito dos muitos exageros que se cometem em relação a isso, não se pode negar que há uma chamada ao novo que exige uma superação da reação apologética, tanto na forma mais extremada do fundamentalismo quanto nas formas mais brandas de um endurecimento institucional. Quanto a isso, assim se expressa Queiruga:
A reação cristã só será crível se conseguir acolher o que de genuíno há nestas chamadas do novo e de mostrar-se capaz de integrá-lo, dinamizá-lo e enriquecê-lo desde seu projeto específico. Condição indispensável para isso é a de se deixar questionar honestamente e, renovando o contato com suas raízes, mostrar-se dispostos à mudança e à renovação: à “conversão” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 117).
O termo grego poiésis, que está na origem da palavra “poesia”, significa fabricação, criação. Diz respeito a uma ação que transforma e assim fazendo dá continuidade ao mundo. Inspirado na palavra grega, o conceito de autopoiese foi criado pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (MATURANA; VARELA, 2003). Segundo esse conceito, os seres vivos são sistemas que, em interação com o meio ambiente, produzem a si mesmos continuamente. Com capacidade de criar, inventar e reinventar a si próprio, um sistema autopoiético é “produtor” e “produto” ao mesmo tempo. Ou seja, diferentemente das máquinas, que sempre produzem algo distinto de si mesmas, os seres vivos produzem também a si próprios a partir dessas relações. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos na medida em que possuem a capacidade de recompor-se continuamente em função de componentes desgastados. Presente nos estudos de Maturana, a partir de suas pesquisas sobre o sistema nervoso e os fenômenos da percepção, está a ideia de que o “externo” não determina a experiência, por si só, mas o sistema nervoso funciona também a partir de correlações internas. Os estudos de Maturana, assim, o levam a distanciar-se da maneira tradicional de se compreender o ato cognitivo, enquanto restrito à influência de algo externo ao sujeito. Na verdade, para Maturana, há um paradoxo — que se manifesta no fato de os seres vivos operarem a partir de um “centro da dinâmica constitutiva” e o fazerem tanto de forma autônoma quanto a partir de recursos do meio ambiente — que não pode ser compreendido a partir da binariedade linear (sim/não, ou/ou), caracterizada pela análise das partes separadas. Tal paradoxo, antes, deve ser entendido dentro de uma perspectiva sistêmica. Autonomia e dependência, portanto, traduzem a dinâmica autopoiética. 20 O conceito de autopoiese, compreendido fenomenologicamente, ou seja, da forma como se nos apresenta, conduz-nos a uma compreensão da vida como um constante vir-a-ser nos domínios da existência.
A partir dessa capacidade interna de se reconfigurar, de se criar e se reinventar, o conceito de autopoiese nos ajuda a entender melhor essa vocação do cristianismo de se reconfigurar criativamente diante da crise, inspiração para a própria teologia. 21 Queiruga esclarece:
Fiel a sua origem, o cristianismo é uma religião profética e de resposta à crise: seu Fundador rompeu conformismos (que lhe custaram a vida) e iluminou um futuro repleto de possibilidades de experiências radicalmente novas e fecundas em um mundo angustiado, deslumbrado diante de uma nova era. E quanto à mensagem, o cristianismo demonstrou ser capaz de criatividade e renovação histórica, desmentindo sempre as profecias de um final que tantas vezes parecia evidente [...] É preciso buscar hoje aqueles vetores que, desde sua própria entranha, se mostram capazes de enfrentar criativamente o novo desafio (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 118).
O que Queiruga parece indicar é a capacidade do cristianismo em lançar mão de uma criatividade que lhe possibilita experiências que também destoam do entorno e que, portanto, lhe é interna, surge desde dentro. Essa perspectiva, compreendida pela via epistemológica, é interessante na medida em que não reduz a identidade do sujeito, seja este o ser humano, o cristianismo ou a teologia, às influências externas, ainda que isso seja também uma realidade. 22 Isso nos remeteria a pensar o cristianismo e mesmo a teologia a partir de um diálogo que não se dê apenas com aquilo que lhes é externo, mas, também, um diálogo entre os elementos que constituem o seu “interno” e que, igualmente, lhe proporcionem novas e criativas reconfigurações. Afinal, embora o cristianismo e a teologia tenham se embrenhado por caminhos tortuosos, produzindo em muitos momentos mais prejuízos do que benefícios, não se pode negar que os elementos para sua reinvenção se encontram não apenas do lado de fora, mas, também, dentro de sua própria estrutura constitutiva. Uma teologia dialogal, portanto, que faça jus ao caráter manifestacional e abscôndito da revelação, inevitavelmente requer que se busquem nos elementos que compõem sua tradição, novas e criativas relações. 23
À semelhança do cristianismo, que pode ser visto como um organismo que nasce com a proposta de renovação do ambiente religioso judaico do primeiro século, deve fazer parte de uma teologia dialogal o ideal de transformação. Apesar da lentidão em assimilar mudanças, dado que historicamente contradiz o que parece ser uma vocação do cristianismo e da própria teologia, felizmente nos últimos tempos algumas respostas históricas positivas já se fazem sentir. No plano teórico, a assunção da crítica histórica e reconhecimento da legitimidade das novas filosofias (desde as transcendentais até as hermenêuticas) rumo à atualização da inteligibilidade da fé, já demonstra essa capacidade autopoiética; também no plano prático, a partir de uma consciência geográfica maior, o aparecimento de teologias contextuais; em ambos os planos, verifica-se a gestação de uma nova espiritualidade, “visível nos esforços de renovação querigmática, litúrgica e pastoral, assim como na vivificação da dogmática, que, por um lado, reconheceu seu ‘déficit de experiência’ [...]” (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 119).
Esse ideal de renovação também deve estar presente na própria linguagem a partir da qual a teologia se constrói. Ou seja, faz-se necessário que a teologia que se pretenda dialogal esteja disposta a mudar sua linguagem e suas “imagens” para continuar tendo a força motivadora que já teve. Vale salientar que mudar a linguagem não significa apenas mudar o “médium”, mas implica numa mudança do “mundo de sentido”. Quando mudamos a linguagem ou as “imagens”, incorremos na possibilidade de conceber a realidade de outra forma, no entanto, a coragem da mudança deve se fundar na consciência de que mudar a linguagem ou as imagens a respeito de Deus, por outro lado, não mudam o Deus-emsi, o Deus-evento, apenas nossa compreensão dele. Uma teologia nos limites da linguagem, o que em certo sentido a torna dependente de uma visão hermenêutica do mundo, também estará em melhor posição para respeitar o caráter elusivo do sagrado.
Mas, o diálogo não se realiza apenas internamente, a partir da relação entre os elementos constitutivos da própria identidade. Ele se faz também a partir do outro. Portanto, em segundo lugar, o diálogo pressupõe alteridade. Não se trata apenas de um diálogo com o outro, mas um diálogo desde a relação com o outro. Uma teologia dialogal também será aquela capaz de respeitar as diferenças a partir da compreensão de que isso não é necessário apenas por uma questão de conceder ao outro o lugar que lhe é devido, mas, também, porque identidade se constrói na alteridade. O diálogo pressupõe, nesse sentido, a consciência de que o si-mesmo não se basta, quer se tratem de indivíduos, instituições ou mesmo do discurso teológico. Nosso discurso não faz sentido se não se constrói nos “embates” com o outro, se não se apropria dessa interação. Nós e nossas elaborações teológicas sempre seremos devedoras do outro, compreendido em toda a sua irredutibilidade, afinal, o diálogo parte do princípio de que por mais diferente que o outro seja do mim-mesmo, pode-se por ele ser interpelado, questionado, consolidado ou mesmo completado, de maneira que por todos esses movimentos é possível crescer para além do que se é.
A partir do momento em que se compreende a importância do outro no processo constante de construção do humano, conclui-se que as identidades, conquanto pressuponham certa “durabilidade” — senão não seriam identidades —, não são tão perenes assim. Nos termos de Bauman, posto que o sujeito contemporâneo sofra os efeitos da globalização, do deslocamento, da fragmentação, as identidades se tornaram “líquidas” (BAUMAN, 2005.). Bauman afirma que “é realmente um dilema e um desafio para a sociologia — se você lembrar de que, há apenas algumas décadas, a ‘identidade’ não estava nem perto do centro de nosso debate” (BAUMAN, 2005, p. 22-23.). A reflexão em torno desse tema, portanto, em grande medida se justifica na proximidade cada vez maior que somos obrigados a ter com o outro. Da imigração na Europa e as superpopulações das grandes metrópoles até o fenômeno mais recente das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), somos crescentemente desafiados em face do encurtamento das distâncias que nos colocam diariamente frente ao diferente. Muitos se preocupam em “perder” a identidade diante da possibilidade de ter que dialogar com o diferente. Mas, esse receio quase sempre ignora que nossas identidades estão em permanente construção. Uma teologia dialogal, nesses termos, certamente não se ressentirá de seu constante vir-a-ser.
Considerar uma teologia dialogal na perspectiva da alteridade passa também pelo respeito a outros “sistemas de verdade” — tais como as outras religiões, a filosofia, a arte e a própria ciência — e pela consciência de que a própria identidade se forja nas relações com esses sistemas. 24 Quanto mais a história caminha e quanto mais se tornam complexas as culturas e as sociedades, mais surgem questões não previstas nos vários discursos religiosos e que poderiam ser tratadas a partir de uma análise multidisciplinar. É inegável, também, as contribuições que tanto a filosofia quanto a arte em geral podem oferecer à construção de uma teologia mais humana e afeita às necessidades da sociedade. Além disso, deparamo-nos a todo o momento com “questões-limite”, que se colocam na fronteira entre a teologia e a ciência. Trata-se de questões que não deveriam ser colonizadas nem por uma área, nem por outra, pois demandam uma abordagem mais ampla, para além dos limites que configuram cada uma dessas instâncias. A existência, pois, dessas questões de fronteira deveria ser motivo mais do que suficiente para o diálogo entre as partes.
Conclusão
Heidegger utilizou-se da metáfora da “casa” para falar sobre a relação entre a linguagem e o ser. Em suas palavras: “A linguagem é a casa do ser”. Entretanto, uma casa pode ser tanto albergue quanto cárcere; pode ser símbolo de proteção ou de opressão; pode liberar, mas, também, pode reter. É claro que se não lêssemos o contexto em que essa frase foi dita, poderíamos concordar com ela e ainda assim encontrar legitimação tanto para a ideia de albergue quanto de cárcere; de proteção ou mesmo de opressão. O próprio Platão e a tradição ocidental metafísica que nele se inspira não teria dificuldades em aceitar tal assertiva. Mas, parece ser o modo como se compreende o papel da casa na metáfora que faz surgir duas tradições amplamente distintas e que pensaram e ainda pensam Deus dentro de suas respectivas categorias.
Uma dessas tradições, a mais antiga, acostumou-se a valorizar mais a casa do que as pessoas que nela vivem. É quase como se afirmasse que a própria casa traduz fielmente as pessoas que nela estão. Outra tradição, mais nova, deseja focar nas pessoas e tende a considerar a casa apenas do ponto-de-vista funcional. Para os primeiros, a casa é demasiado importante para que não tenha o papel principal, para que não seja tombada como patrimônio histórico e se torne um fim em si mesma. Para o segundo grupo, por outro lado, casas só se legitimam na medida em que cumprem seu papel de proteger e servir aqueles que nela se refugiam, e quando isso não mais acontece, é preciso ter coragem para dela se libertar.
Mas, e quando o morador da casa é o próprio Deus? Quais as implicações de se pensar um Deus que habita e alberga a linguagem? Também aqui os modos de se responder a essas perguntas variam de acordo com nossas duas tradições. Há aqueles que acreditam que a linguagem traduz o divino e por isso deve ser levada à sério até o ponto de sua sacralização. A necessidade de manutenção dessa ordem faz surgir, inclusive, a figura dos protetores do nome, guardiões da linguagem e da doutrina. Há, porém, os que acreditam que a linguagem é arbitrária e só tem sentido e validade dentro dos limites do diálogo que se constrói no contexto de determinada comunidade linguística. Esses acreditam que ser guardião do nome não passa de uma maneira de aprisionar o divino dentro de esquemas pré-fabricados. Para os primeiros, a teologia consiste em conservar Deus em sua casa, numa busca constante pela simetria de ambos; para o segundo grupo, a teologia consiste numa lembrança constante da assimetria inevitável, consiste em libertar Deus do nome, ou seja, buscar abrigos cada vez mais apropriados que façam jus à vocação eventual do divino. O presente artigo, portanto, se propõe como uma reflexão sobre revelação a partir dessa segunda tradição. Busca, nesse sentido, por uma teologia que se arrisque na ação do dizer, mas, consciente dos seus próprios limites.
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Notas
[1]Com essa expressão, pretende-se apenas fazer a distinção entre uma “teologia de textos escritos” e uma “teologia de textos vivos” (pessoas). Embora se reconheça que a construção de teologias deva ser feita em ambas as frentes, sob o risco de reducionismos, neste artigo pretende-se focar apenas a primeira delas.
[2]Embora isso não seja levado em conta por Hessen, com tal afirmativa não se quer dizer que a Modernidade não tenha, a seu próprio modo, operado dentro de bases metafísicas. Temos um deslocamento da metafísica clássica para a metafísica moderna que não pode ser ignorado. Embora tal deslocamento seja de proporções enormes, isso não pode ofuscar nosso olhar quanto ao fato de que, no que se refere ao horizonte metafísico, só se tem na Modernidade uma mudança de fundamento. Não é mais a Ideia, como em Platão, nem mesmo Deus, como no cristianismo, mas pode-se falar de um sujeito autônomo como fundamento da Modernidade. Muitas coisas mudam, inclusive o tipo de fundamento, mas o que é comum à Modernidade e ao período precedente é que pressupõem um fundamento.
[3]É desse paralelismo — res cogitans e res extensa, o “dentro” e o “fora” — que surge a disciplina “Teoria do Conhecimento”. Ou seja, o conhecimento, no contexto da epistemologia, figura como intermediário ou instrumento que estabelece a conexão entre o sujeito e o objeto — é, portanto, compreendido como uma espécie de epifenômeno. Em grande medida, portanto, o esforço dos teóricos do conhecimento é por determinar de que forma e por quais mecanismos o sujeito apreenderá o seu objeto. A apreensão do cogito daquilo que lhe é externo foi conhecido no contexto da Teoria do Conhecimento como “o problema da ponte”.
[4]No âmbito da filosofia e da literatura Dionísio Areopagita é considerado por alguns como o pai da teologia negativa e da mística ocidental cristã.
[5]Quanto às perspectivas “de baixo” e “de cima”, ver artigo “O Deus que vem a nós...” (Cf. ROCHA, A. S. O Deus que vem a nós: reflexões hermenêutico-teológicas da revelação desde cima e desde baixo. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 974-996, jul./ set. 2017.).
[6]Com relação à “experiência mística” ou “religiosa” e sua distinção da “experiência de Deus” (também a narrativa no contexto desta atualmente) e da “experiência cristã de Deus”, ver BINGEMER, M. C. O mistério e o mundo: paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de Janeiro: Rocco, 2013
[7]A obra mais importante da primeira fase de Heidegger, que comumente se convencionou chamar de “primeiro Heidegger”, é Ser e Tempo. Esta obra foi publicada em 1927 e expõe sua ontologia fundamental, no contexto do qual desenvolveu sua compreensão do dasein, o ser-aí, ou seja, o ser do ser humano ou o ser humano em seu modo de ser (HEIDEGGER, 2005).
[8]John Haught faz menção da atitude de “suspeita” com a qual disciplinas tais como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a crítica literária e a teologia consideram a expressão simbólica atualmente. Em sua opinião, boa parte dessa suspeita com relação aos símbolos é útil, razão pela qual sugere que a chamada “hermenêutica da suspeita”, na acepção de Paul Ricoeur, deve tornar-se um componente do exercício teológico contemporâneo (ver REAGAN, C. E.; STEWART, D. (Orgs.). The philosophy of Paul Ricouer: an anthology of his work. Boston: Beacon Press, 1978, p. 213-222.). Para Haught, a “suspeita” sempre foi um elemento essencial da autêntica religião, assim como pode ser visto, por exemplo, no apofatismo. O “silêncio” proposto pela teologia apofática, nesse sentido, seria o desestímulo ao excesso de confiança depositado em nossos símbolos, cuja radicalização frequentemente anula o mistério (Cf. HAUGHT, J. F. Mistério e promessa: teologia da revelação. São Paulo: Paulus, 1998, p. 18).
[9]Ver, por exemplo, §357 de “A Gaia Ciência” (Cf. NIETZSCHE, 2006, p. 228-229.).
[10]A frase “humano, demasiadamente humano” nomeia uma das obras de Nietzsche e se encontra presente no prólogo desse livro, §1, onde supostamente, nas palavras do filósofo, descreveria o suspiro de seus leitores em face da leitura de seus livros (Cf. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.).
[11]“En lo ‘em-sí’ no hay ‘lazos causales’, ni ‘necesidad’ [...] Nosotros somos los únicos que hemos inventado las causas, la sucesión, la reciprocidade, la relatividade, la coacción, el número, la ley, la libertad, el motivo, la finalidade; y siempre que a este mundo de signos lo introducimos ficticiamente y lo entremezclamos, como si fuera un ‘en-sí’, en las cosas, continuamos actuando de igual manera que hemos actuado siempre, a saber, de manera mitológica” (NIETZSCHE, F. Más ala del bien y del mal: preludio de una filosofia del futuro. Madrid: Alianza Editorial, 1997, §21, p. 46).
[12]John Haught introduz o conceito de “experiência-limite” no contexto da temática sobre o mistério. Segundo ele, o senso de mistério se apresenta mais explicitamente a partir de “experiências-limite” e “perguntas-limite”. Para ele, trata-se de “[...] acontecimentos em nossa vida que nos chocam, levando-nos ao reconhecimento de que nossa existência comum está cercada por um reino do desconhecido, anteriormente não percebido. Muitas vezes coincidem com momentos de tragédia ou de perplexidade, mas também podem surgir inesperadamente em tempos de alegria e de êxtase e até nos momentos mais normais [...] Em meio a essas experiências-limite encontramo-nos entre uma decisão de confiar no mistério, ou talvez entregar-nos a desespero que nos liga ainda mais estritamente ao que é familiar” (HAUGHT, p. 61-62.). Esse conceito parece interessante para se compreender essa reestruturação do “quadro interpretativo”, na medida em que este é confrontado e fraturado a partir de experiências não previstas.
[13]Muitos inadvertidamente admitem uma relação de correspondência entre o Deus-emsi e o Deus-em-nós. Nas teorias da linguagem, essa versão correspondentista pressupõe que a verdade se estabelece na medida em que o signo corresponda à coisa significada, ou seja, pressupõe que a formulação linguística, conceitual, traduz fielmente a realidade em relação à qual pretende falar. A linguagem, nesse caso, seria uma “radiografia” da realidade. Pode-se regressar no tempo, até as versões metafísicas que remontam os primeiros filósofos que se debruçaram sobre o tema, na busca pelos elementos genéticos dessa predisposição à correspondência no âmbito da linguagem. É possível perceber os traços metafísicos dessa semântica tradicional já em Platão. No “Crátilo”, por exemplo, apresentam-se duas teorias da linguagem que servirão de base para inúmeras releituras posteriores que, todavia, se manterão no horizonte metafísico platônico: o naturalismo e o convencionalismo. A tese naturalista advoga a ideia de que há uma afinidade natural entre a coisa-em-si e a linguagem que a expressa — portanto, entre o signo e a coisa significada. Nesse sentido, supostamente a linguagem traria à tona a própria coisa. Por outro lado, o convencionalismo ignora que haja uma afinidade natural entre a realidade e a linguagem, postulando, portanto, a ideia de que os nomes e conceitos são arbitrários e se estabelecem por convenção, o que significa que não obedecem a qualquer suposta relação intrínseca e nem revelam conhecimento a respeito da coisa-em-si. Enquanto a tese naturalista avançará para conceitos mais elaborados, porém circunscritos ao universo metafísico, a tese convencionalista, embora originalmente também opere dentro de uma lógica metafísica, paulatinamente inspirará elaborações posteriores de cunho pós-metafísico (quanto a essa discussão que caracteriza a semântica tradicional na perspectiva platônica, ver OLIVEIRA, Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: 1996, p. 17-23.).
[14]Esse tema atravessa Ser e Tempo, como, por exemplo, a seguinte afirmação de Heidegger: “[...] O barulho do silêncio constitui a forma originária de dizer. No silêncio, o sentido do ser chega a um dizer sem discurso nem fala, sem origem nem termo, sem espessura nem gravidade, mas que sempre se faz sentir, tanto na presença como na ausência de qualquer realização ou coisa. Aqui o discurso simplesmente se cala por não ter o que falar e, neste calar-se, tudo chega a vibrar e viver na originalidade de sua primeira vez. É o tempo originário do sentido.” (Heidegger, 2005, p. 15).
[15]Essa narrativa deflagra a dificuldade humana em lidar com os escapes divinos pelo receio de se perder as “garantias” que asseguram a estabilidade. “A orientação de Javé aos filhos de Israel era que recebessem a porção de cada dia e não retivessem o maná para o dia seguinte. Nesse sentido, a atitude divina, ao mesmo tempo em que mostrava que deveriam confiar em seu Deus, na certeza de que aquilo que se manifestou “hoje” se manifestaria também “amanhã”, mostrava também que seria insensata toda tentativa de garantir com as próprias mãos o sustento do futuro. Levando-se em conta o fato de que Javé se manifestava por meio da provisão do maná, pode-se pensar que uma tentativa de controle dessa provisão, num primeiro momento, certamente facilitaria aquela atitude (por vezes inconsciente) que até hoje se manifesta numa relação com a divindade marcada também pela tentação de dominá-la por meio de práticas religiosas. Ao contrário, portanto, em vez de a reterem, deveriam acolhê-la em sua subversão” (Cf. nota “283” em ROCHA, A. S. Hermenêutica do cuidado pastoral: lendo textos e pessoas num mundo paradoxal. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012, p. 270.).
[16]John Caputo se aproxima de Gianni Vattimo em muitos aspectos, sobretudo no que respeita à perspectiva heideggeriana do ser como evento. Muitas dessas aproximações podem ser vistas na obra “Depois da morte de Deus: conversas sobre religião, política e cultura” (Cf. VATTIMO; CAPUTO, 2010, p. 75-77).
[17]A palavra “mito” aqui está sendo usada em sentido nietzschiano (ver nota 11).
[18]Embora se possa argumentar que a apologética possua outros sentidos possíveis, a expressão “discurso apologético” aqui é usada em sentido pejorativo, ou seja, em contraponto ao diálogo.
[19]Para uma perspectiva detalhada desses três momentos, considerar a obra de João Batista Libânio (LIBÂNIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 33-37).
[20]Cf. MARIOTTI, H. Autopoiese, cultura e sociedade. Disponível em: http://bit. ly/1IQqOas. Acessado em: 22-05-2015.
[21]Não nos parece equívoco a utilização de um conceito oriundo da biologia para se compreender o caráter dialogal da teologia, já que os autores do conceito de autopoiese, Humberto Maturana e Francisco Varella, também o elaboram a partir de uma perspectiva transdisciplinar. Não só os conhecimentos da biologia são movimentados nesse conceito, mas, também, os da cibernética, da epistemologia, da psicologia, etc. (Cf. MATURANA, H. Autopoiese e cognição. São Paulo: Record, 1972.).
[22]Pode-se pensar a construção dessa identidade também na perspectiva da ânsia pela defesa e manutenção de si mesmo, normalmente presente no discurso apologético. Entretanto, uma postura autopoiética deveria incluir uma defesa contra si mesmo, ou seja, uma atitude de suspeita que opere também dentro dos próprios portões. Uma apologia que nos protejesse de nós mesmos, embora quase que totalmente ausente no trato com as tradições, deveria se constituir em postura capaz de impedir que caiamos em sono dogmático.
[23]A própria ideia de uma “recepção” da tradição, remete-nos a uma “inovação” da mesma, já que se pressupõem conteúdos que foram gestados por determinadas pessoas, num certo ambiente, que operam a partir de certas expectativas, e que são legados a outras pessoas, que se encontram imersos em outro ambiente e que se movem a partir de outras expectativas. Claude Gefré fala de uma “hermenêutica conciliar”, a partir da qual se pode compreender que a tradição não se opõe à “inovação”. Nesta, a ideia de um surgimento da verdade (que é de ordem operatória) liga-se essencialmente à nossa experiência histórica e por esta é condicionado. Ou seja, há um passado que nos afeta ao mesmo tempo em que se requer uma postura responsável diante da recepção ativa desse passado, que se faz inevitável. Há, portanto, um diálogo ativo que se constrói na tensão entre um espaço de experiência que nos antecede, e que por vezes opera mesmo sem dele possuirmos qualquer consciência, e um horizonte de expectativas, que nos convocam ao futuro. O diálogo, então, se manifesta numa fidelidade ao passado que necessariamente é uma fidelidade criativa (Cf. GEFFRÉ, C. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004, p. 65-69.).
[24]São cada vez mais comuns no mundo contemporâneo propostas de teologia que procuram dialogar com outras “ciências”: desde as ciências humanas, tais como a filosofia, a história, a sociologia, a antropologia, a psicologia, até as chamadas “ciências duras”, tais como a física, química, biologia, neurociência e etc. Esse diálogo tem sido significativo para uma compreensão mais crítica e criativa da teologia, que aqui constitui base para nossa abordagem.