O absurdo em Kierkegaard e Camus: limite extremo, fé e revolta
The Absurd in Kierkegaard and Camus: extreme limit, faith and revolt

Douglas Ferreira Barros*
Carlos Câmpelo da Silva**
*Professor de Filosofia da Faculdade de Filosofia e do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Contato: dfbarros@ puc-campinas.edu.br
**Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas com bolsa Capes (Modalidade II). Possui formação em Psicologia pela Universidade Paulista. Contato: carlos. peniel77@gmail.com
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Resumo
O objetivo do trabalho é investigar aspectos da noção de absurdo em trechos de obras de Camus e de Kierkegaard, centrando nosso interesse sobre o que chamaremos aqui de limite em face do absurdo para ambos os pensadores. Iniciaremos nossa leitura sobre Camus em O mito de Sísifo (2017), e dedicaremos especial atenção ao capítulo “O suicídio filosófico”. Aqui o pensador franco- -argelino se remete a Kierkegaard incluindo- -o entre os pensadores que efetuaram, de um modo específico, o suicídio filosófico. A partir daí, investigaremos a noção de absurdo em Kierkegaard, especialmente em sua obra Temor e Tremor (1843), onde o autor nos apresenta a noção do duplo movimento da fé em virtude do absurdo. Como conclusão, pretendemos mostrar a diferença de perspectivas sobre esse limite em face do absurdo e como as alternativas de ação propostas por ambos não são contraditórias entre si, embora Camus seja crítico de Kierkegaard.

Palavras chave:Camus, Kierkegaard, limite extremo, absurdo

 

Abstract
The article aims to study aspects of the notion of absurdity in Camus’ and Kierkegaard’s works. Focusing on what we named the limit facing the Absurd for both thinkers, our reading will analyse some passages of “The philosophical suicide” chapter from Camus’s work The Myth of Sisyphus (2017). The FrenchAlgerian thinker refers to Kierkegaard as a philosopher that performed a “philosophical suicide”. Based on this idea, we will investigate Kierkegaard’s conception of absurdity, specifically as it appears in Fear and Trembling (1843), where he presents the double movement of faith before the notion of absurdity. As a conclusion, we intend to show the differences between the perspectives about the limit facing the Absurd and how the alternatives of action for both thinkers are not contradictory, although Camus criticises Kierkegaard.

Keywords:Camus, Kierkegaard, limit, Absurd

1- Camus, limite e absurdo

E m O mito de Sísifo (2017), Camus observa que o mito tal como recuperado dos gregos e pensado como um arquétipo do destino corresponde ao absurdo do qual nenhum homem escapa. Estaríamos todos condenados ao absurdo, mas nem todos teríamos consciência disso. De acordo com Camus (2017, p. 123), o mito de Sísifo só é trágico porque seu herói tem consciência daquilo que o atinge. “O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo?”.

A lenda de Sísifo é uma das mais destacadas alusões da mitologia grega ao destino humano. Sísifo era filho de Eólo, deus dos ventos e descendente direto de Prometeu (aquele que roubou o fogo dos deuses). Sísifo ficou conhecido como “o mais astucioso de todos os mortais” . Também é conhecido por ter fundado a cidade de Corinto e dela ter-se tornado rei; Sisífo também reivindicava para si a glória de ser o verdadeiro progenitor de Ulisses e não Laertes. De acordo com Franchini & Seganfredo (2007), tal lenda merece algum crédito, uma vez que, quando alguém pretendia ofender Ulisses, “recorria ao baixo expediente de chamá-lo de ‘filho de Sísifo’”(p. 431). Mas o que nos interessa abordar aqui é a intromissão de Sísifo nos assuntos dos deuses, que resultou no seu castigo eterno

Conta-nos a lenda que um dia Sísifo estava passeando, quando viu a águia de Júpiter “passar ao alto carregando Egina, filha de Asopo, em direção ao Olimpo”. Dada sua astúcia, Sísifo logo pensou em tirar proveito da situação, foi à corte do desesperado rei e disse-lhe: “Asopo, vou ajudá-lo a encontrar sua bela filha [...], mas em troca quero sua palavra de que fornecerá a Corinto uma fonte límpida de água”. E o rei lhe respondeu: “Está bem, farei brotar uma nascente na sua cidade [...], mas isto somente se você der um jeito de encontrar a minha filha”. Sísifo falou ao rei: “sua filha foi raptada pela águia de Júpiter e levada para uma distante ilha” (franchini; Seganfredo, 2007, p. 431).

Júpiter, que observava tudo do Olimpo, ordenou à Morte que alcançasse Sísifo. Além de escapar da Morte, o astuto e ardiloso habitante de Corinto fez dela sua prisioneira. Júpiter então lançou Sísifo na masmorra dos infernos no Tártaro, resgatando a Morte. Entretanto, Sísifo, fazendo jus a sua fama de ardiloso, conseguiu escapar dizendo que sua esposa não lhe prestara as honras fúnebres e que precisava voltar à Terra para resolver essa desonra e depois retornaria. Mas Sísifo não retornou. Júpter decidiu por fim às “velhacarias” de Sísifo e puni-lo por suas afrontas: “Sísifo foi então precipitado ao Tártaro – desta vez em definitivo – sendo condenado a rolar uma enorme rocha até o alto de uma escarpada montanha. Tão logo chega ao cume, despenca, obrigando Sísifo a recomeçar o estafante trabalho, o qual se repete para todo o sempre” (Franchini; Seganfredo, 2007, p. 431-432).

Para Camus, Sísifo é o herói do esforço absurdo. Tanto por suas paixões, bem como por seu tormento. “Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se empenha em não terminar coisa alguma”. Camus ainda faz-nos ver alguns detalhes da ingrata tarefa reservada a Sísifo:

[...] vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de suas mãos cheias de terra. Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta à planície (2017, p. 122).

Nesta história, o que mais interessa a Camus é esse regresso, essa pausa e o recomeço intermitente. Observar esse homem descendo com seus passos “pesados e regulares” de volta ao tormento cujo fim não conhecerá. Esse movimento, nos diz o pensador franco-argelino, é semelhante a uma respiração a se repetir com tanta certeza como sua desgraça, “essa hora é a da consciência”. “Em cada um desses instantes, quando ele abandona os cumes e mergulha pouco a pouco nas guaridas dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que sua rocha” (Camus, 2017, p. 122).

Sísifo está consciente de sua miserável condição, mas é justamente esta clareza que possibilita que aquilo que deveria ser o seu tormento, consuma ao mesmo tempo a sua vitória. De acordo com Camus (2017, p. 123), “não há destino que não possa ser superado com o desprezo”. A partir de então, Camus pode observar como todos os homens estão condenados ao mesmo destino absurdo de Sísifo. O destino do operário de hoje não é menos absurdo:

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa” isto é o importante (Camus, 2017, p. 27).

A partir do momento em que o homem conscientiza-se do absurdo surge a questão, que segundo Camus, é o único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Uma vez que “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder a pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões se o espírito tem nove ou doze categorias vêm depois” (Camus, 2017, p.19). Entretanto, o homem deve responder à pergunta acerca do sentido da vida sem realizar aquilo que Camus irá chamar de fugas metafísicas. Camus coloca o problema e também resiste a encontrar uma saída definitiva: “seu pensamento o torna notável por resistir ao salto metafísico, empenhado na descoberta dos limites do homem absurdo uma vez lançado nestes desertos da existência” (Sudario; Lins, 2016, p.239). A afirmação extrema de Camus estabelece tensão em relação a pelo menos duas alternativas filosóficas que respondem, de algum modo, ao ceticismo

Evocar a ausência completa de um ponto de segurança e de ruptura em face do absurdo não constitui um pretexto para trazer à luz um elemento capaz de resistir à ausência de sentido da existência. Camus pretende afirmar a intensidade suprema e exclusiva do absurdo e do que ele envolve. O absurdo não constitui um momento de antecipação negativa -entre tantos outros esboçados na história do pensamento filosófico- da emergência de Deus como opositivo, redentor de todos os males e tormentos. Não é o caso de se afirmar aqui a existência de Deus como redenção ao absurdo, tampouco Camus pretende negá-la, visto que negar “já é em si uma forma de afirmação”. Nosso autor tão somente recusa considerar Deus no horizonte do absurdo. Introduzi-lo aí, mesmo como uma possibilidade, seria o mesmo que dar ensejo a um novo tipo de misticismo: erguer a própria vida sobre um “mistério abismal” (Sudário; Lins, 2016, p.261). Para o pensador é impossível saber se esse mundo tem algum sentido que o ultrapassa. Camus prefere encarar o desespero e o desamparo do que se alimentar como o asno das rosas da ilusão (Cf. Camus, 2017, p.50).

Mas, se Camus rejeita as explicações metafísicas como afirmado acima tampouco aceita aquelas racionalistas. O autor também engrossa a fileira dos pensadores que foram críticos do racionalismo. Ele afirma:“Essa razão universal, prática ou moral, esse determinismo, essas categorias que explicam tudo fazem o homem honesto dar risada” (Camus, 2017, p. 33-34). Segundo o pensador franco-argelino a tradição do pensamento humilhado sempre esteve viva (Camus, 2017, p. 35).

A ausência de qualquer anteparo metafísico ou de um estratagema da razão deixaria os homens em face do mais puro desamparo. Nessa condição, encontraríamo-nos em um universo privado de ilusões e de luzes e sentiríamo-nos inadaptados, estrangeiros, forçados que somos a enfrentar um destino sem redenção ou ruptura de superação. É um exílio sem solução, pois veríamo-nos privados das lembranças de uma pátria perdida, de uma época de ouro, ou da esperança de uma terra prometida: “esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo” (Camus, 2017, p. 21). Mas, estaria o homem divorciado do mundo? Alojado na experiência da interioridade que neutralizaria qualquer reação sua em relação ao mundo? Sísifo não teria outra saída a não ser alojar seu esforço em si mesmo e lançar-se à busca de alguma liberdade interior? Para Camus, o absurdo experimentado por cada homem está entrelaçado ao mundo. Não há como dele se desvencilhar porque a aventura de cada homem, como a de Sísifo, é uma trajetória mundana por excelência de cumprimento do próprio destino. Desse modo:

O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por hora, é o único laço entre os dois. Ele os adere um ao outro como só o ódio pode juntar os seres. É tudo o que posso divisar claramente neste universo sem medida onde minha aventura se desenrola. Paremos por aqui. Se considero verdadeiro esse absurdo que rege minhas relações com a vida, se me deixo penetrar pelo sentimento que me invade diante do espetáculo do mundo, pela clarividência que me impõe a busca de uma ciência, devo sacrificar tudo a tais certezas e encará-las de frente para poder mantê-las. Sobretudo, devo pautar nelas minha conduta e persegui-las em todas as suas consequências. Falo aqui de honestidade. Mas, antes, quero saber se o pensamento pode viver nesses desertos (Camus, 2017, p. 34).

O absurdo rege as relações com a vida; impõe que o homem conviva com os seus próprios desertos. É esse o limite possível do absurdo: a percepção de que a sua presença é a condição do próprio viver?

2. O absurdo e os três estádios da existência: Kierkegaard

Segundo Sudario e Lins (2016, p. 239), Camus não arrogou para si o conceito de absurdo, mas o procurou nos pensadores que o antecederam, como Kierkegaard, que, diz Camus, “fez melhor do que descobrir o absurdo: ele o viu”. Segundo o autor (2017, p. 37-38), Kierkegaard:

[...] rejeita os consolos, a moral, os princípios de todo repouso. Não pretende acalmar a dor do espinho que sente cravado no coração, pelo contrário, ele desperta e, com a alegria desesperada de um crucificado contente de sê-lo, constrói peça por peça, lucidez, rejeição, comédia, uma categoria do demoníaco. Esse rosto ao mesmo tempo terno e zombeteiro, essas piruetas seguidas de um grito surgido do fundo da alma, eis o próprio espírito absurdo às voltas com uma realidade que o ultrapassa.

Kierkegaard, mais do que descobrir reflexivamente a absurdidade da existência, também a assumiu individualmente, isto pelo menos perante uma parte da sua vida. O período aludido por Camus é aquele em que o próprio Kierkegaard chamou de estádio estético da existência (Pérez, 2010, p.93). Kierkegaard formou uma visão integrada do ser humano, expressa por meio dos três estádios da existência: estádio estético, estádio ético e estádio religioso (Gouvêa, 2006, p.253). De acordo com Gouvêa (2006), o estádio estético associa-se ao imediato, não há aceitação consciente de nenhum ideal. Afirma: “O esteta evita compromisso a todo custo encarando-o como uma limitação, mas ele nunca alcança a satisfação. Variedade e não conexões é o mais importante. A possibilidade de algo é mais importante que sua realização” (p.256). O esteta, portanto, vive para o momento e não tem consciência do télos ultimo da existência (Almeida; Valls, 2007, p.35). Veja-se como a perspectiva – do estético - de Kierkegaard, assim como a perspectiva de Camus apontam para um limite diante do qual o homem se coloca. Don Juan seria o arquétipo máximo da concepção estética da vida, uma vez que o prazer é breve e o pesar é longo, o esteta procura um prazer após o outro (Le Blanc, 2003, p. 56). Porém, a fome do estético é fome do infinito, mas como Don Juan não tem consciência do próprio desejo, sacia-o erroneamente, procura satisfazer a sua fome do eterno na perspectiva horizontal: “ele o busca na multiplicação infinita de experiências finitas e, por falta de rumo e prumo, seduz 1.003 donzelas (só na Espanha), mas não conhece nenhuma e nem a si próprio” (Almeida; Valls, 2007, p. 40). Uma vez que os prazeres são muito breves, esse tipo de vida leva o indivíduo inevitavelmente a um limite, materialmente representado pelo tédio e o fracasso. A beleza das mulheres dura “o tempo em que duram as rosas, uma manhã” (Ronsard apud Le Blanc, 2003, p.57).

Quando consciente do fracasso da vida estética o ser humano decidiria escolher outra forma de vida: então estamos no estádio ético. O estádio ético caracteriza-se pela escolha: “A principal característica do ético não é escolher isto ou aquilo, mas escolher o fato de escolher, ou seja, comprometer-se concretamente com a existência” (Le Blanc, p. 62). Desse modo, o ético distingue-se do estético na medida em que não vê as suas qualidades e disposições como um fato inalterável da natureza, ao qual ele deve se submeter, mas ele as encara como desafio, o autoconhecimento do ético não é uma mera contemplação, mas uma reflexão sobre si-mesmo, que já é em si uma ação (Gardiner, 2001, p. 58).

A pessoa ética tem seu centro em si mesma, não fora de si. Enquanto a pessoa estética tenta esquecer a si mesma, a pessoa ética tenta esquecer tudo exceto ela mesma. A pessoa ética escolhe a si mesma em seu valor eterno. No ético, a repetição torna-se uma possibilidade já que se é submetido ao universal e continuamente se tomam atitudes com o pensamento do eterno. O esteta identifica a felicidade humana com o prazer. O ético “identifica a felicidade humana com a realização de uma tarefa obrigatória, tão essencialmente relacionada à personalidade a ponto de ser imanente dentro dela, sendo nada mais nada menos do que a realização de seu verdadeiro eu”. (Gouvêa, 2006, p.260).

Para Gouvêa (2006, p. 261), é possível que chegue um mo-mento em que o indivíduo fique sobrecarregado pela culpa e cansado do esforço de ser moral: “as dificuldades inevitáveis que um indivíduo encontra ao tentar cumprir todas e cada obrigação ética representa o colapso da estação ética”. Diante de tal situação o homem sente-se desesperado, o que pode motivá-lo a caminhar para o próximo estádio, a saber, o estádio religioso (Cf. Gouvêa, 2006, p. 261). Entretanto, alguns podem se questionar: “Por que um estádio religioso? O ético e o religioso não podem ser então fundidos?” De acordo com Charles Le Blanc (2003): não. Por duas razões, pelo menos

Em primeiro lugar, porque a religião revelada considerada, o cristianismo, não é apenas um conjunto de preceitos morais aos quais se deve adequar, como entendem as Igrejas, ou de mandamentos, como entende o judaísmo; não afeta apenas a vida exterior: pela Encarnação, provoca uma reviravolta na vida interior e anuncia uma relação singular entre o indivíduo e o Absoluto (Deus). Essa relação instaura-se pela consciência do pecado. O homem que se reconhece fraco e imperfeito, encontra contudo em seu coração uma aspiração ao perfeito e quer elevar-se até ele. Essa vontade é alheia à ética; ela só conhece o erro moral que, como qualquer moral, é relativo. O pecado é decerto erro moral, mas absoluto, porque cometido diante do Absoluto (p. 69)

A outra razão, é porque não foi dado a todos os homens realizar o geral: uma posição social, redimir-se de uma condição social moralmente apartada daquela que aspiram os homens que decidem por constituir família, criar filhos, juntar-se a grupos religiosos etc. Afirma Charles le Blanc:

para Kierkegaard cada um de nós carrega em si o segredo, o inexprimível o misterioso, que importa mais para si do que todos os discursos e todas as mediações filosóficas nas quais os conflitos de consciência encontram uma solução no papel. É essa parcela de segredo da consciência que impede a fusão do ético e do religioso. Se, com efeito, a interioridade é superior à exterioridade, a consciência é superior ao próprio erro, o indivíduo só pode entrar em conflito com o mundo, como prova a história de Abraão, o pai da fé (Le Blanc, 2003, p. 71-72).

Não falaremos ainda da figura de Abraão. Tomaremos o exemplo desse personagem Bíblico, quando observarmos a afirmação de Camus acerca de Kierkegaard, segundo a qual o pensador dinamarquês teria cometido um “suicídio filosófico” (Cf. Camus, 2017, p.50). Nosso recurso aqui aos três estádios da existência consiste em um esforço de compreender a afirmação de Camus de que Kierkegaard teria experimentado o absurdo pelo menos em parte da sua vida, identificando este momento ao estádio estético (Pérez, 2010, p. 93).

Sobre que bases se ampararia a afirmação camusiana? De fato, a maior parte dos comentadores e biógrafos de Kierkegaard concordam que em um período de sua juventude este filósofo teria adotado “a atitude do esteta romântico” (Le Blanc, 2003, p. 55)1 . Durante esse período ele exibe certa displicência: “faz dívidas nas tabernas, agradam-lhe os lugares onde a virtude das mulheres tem preço2 [...] o teatro é então sua paixão, quase um modelo de existência” (Le Blanc, 2003, p. 55). Nesse período também parece que Kierkegaard estava deprimido, parece até mesmo que ele chegou a considerar o suicídio uma alternativa para dar fim a sua condição errante. Gouvêa (2006, p. 41) cita uma passagem dos diários em que se “insinuam esses sentimentos”:

Eu acabo de chegar de uma reunião em que fui a alma da festa, palavras espirituosas fluíam de minha boca; todos riam, me admiravam – mas eu parti, sim, o hífen poderia ser tão longo quanto o raio da órbita da terra e desejava dar um tiro em mim mesmo.

Há também algumas passagens nas obras de Kierkegaard que parecem apontar para o tédio experimentado no estádio estético, como a seguinte passagem de Ou-Ou:

Não me apetece mesmo nada. Não me apetece montar, é um movimento demasiado intenso; não me apetece andar, é demasiado extenuante; não me apetece deitar- -me, pois ou haveria de ficar deitado, e isso não me apetece, ou haveria de levantar-me outra vez, e também não me apetece fazer isso. Summa Summarum, não me apetece fazer mesmo nada (Kierkegaard, 1843/2013, p.44).

Há ainda passagens que apontam para aquilo que Camus chamou de o desejo do homem por respostas e o silêncio do mundo. Vejamos: “Ninguém regressa dos mortos, ninguém entrou no mundo sem chorar; ninguém pergunta a alguém quando quer chegar, ninguém pergunta quando quer partir” (Kierkegaard, 1843/2013, p.54). Essa passagem recorda uma das cartas do jovem de A repetição (1843) ao seu confessor Constantin Constantius:

A minha vida atingiu um ponto extremo; a existência provoca-me náuseas, é insípida, sem sal nem significado. Mesmo que eu estivesse mais faminto do que Pierrot, não gostaria contudo de engolir a explicação que as pessoas oferecem. Enfia-se um dedo no solo para cheirar o tipo de terra em que se está; eu enfio o dedo na existência – não cheira a nada. Onde estou? Que quer isto dizer: o mundo? Que significa esta palavra? Quem me enganou, metendo-me em tudo isso, e me deixa ficar aqui? quem sou eu? Como entrei neste mundo; porque não me foi perguntado, porque não fui informado das regras e costumes, mas metido nas fileiras como se tivesse sido comprado por um vendedor de almas? Como foi que me tornei parte interessada nesta grande empresa que se chama realidade? Por que razão hei de ser parte interessada? Não será isso matéria de livre decisão? E, no caso de me ser obrigatório sê- -lo, onde está o gerente, já que tenho uma observação a fazer? Não há gerente? A quem devo dirigir-me para apresentar a minha queixa? Afinal a existência é um debate; poderei pedir que a minha observação seja posta à consideração? [...]. (Kierkegaard, 1843/2009b, p.107).

Que ponto extremo seria esse? Estaríamos diante do limite em face do abismo, ou do absurdo, tal como afirma Camus? Por mais interessante que possam ser essas passagens elas não podem ser tomadas como a posição filosófica de Kierkegaard a respeito de um suposto limite extremo.3 Em todas elas Kierkegaard se utiliza de heterônimos. E lembremos que no artigo Confissão pública Kierkegaard pede que nunca no futuro fosse considerado como autor de livros que não levassem o seu nome (Cf. Kierkegaard, 1859/2002, p. 61). E ainda no Post-Scriptum (1846) - obra em que Kierkegaard pensava em encerrar sua produção – ao assumir a responsabilidade pelos escritos heterônimos ele expressa-se da seguinte forma:

Meu desejo, minha súplica é, portanto, de que, caso ocorra a alguém citar alguma passagem dos livros, que me preste o favor de citar o nome do respectivo autor pseudônimo, não o meu, isto é, de repartir as coisas entre nós de tal modo que a expressão pertença femininamente ao pseudônimo e a responsabilidade civilmente a mim4 (Kierkegaard, 1846/2016, p. 342-343).

Kierkegaard estava preocupado com o destino de sua obra e com as possíveis -inevitáveis? - confusões que os intérpretes poderiam fazer no futuro. Desejava então assegurar uma compreensão adequada sobre seu pensamento multifacetado, por assim dizer. No livro Ponto de vista explicativo de minha obra de escritor (1859), publicado postumamente, Kierkegaard esclarece que os escritos heterônimos faziam parte de um método que foi cuidadosamente preparado. Tal método consistia basicamente na publicação de obras estéticas assinadas por um heterônimo e que atraia a atenção do público, pois, cada obra encarnava um modo de vida: o sedutor, o juiz, um casado, entre outros personagens. E simultaneamente Kierkegaard publicava obras de conteúdo estritamente religioso assinadas com o seu nome, os chamados Discursos edificantes.

Kierkegaard chama a atenção para o fato de que o caráter duplo da obra existe desde o princípio. Observando a obra Ou-ou (1843) em que sucessivamente apareceram Dois discursos edificantes (1843), desse modo percebe-se a presença do religioso, inversamente, o estético está presente até o ultimo momento:

Após dois anos consagrados à publicação de escritos unicamente religiosos, assiste-se ao aparecimento de um artigo de estética. No começo e no fim, tem-se a certeza de não poder explicar o fenômeno, dizendo que se trata de um autor do domínio estético e que mudou com os anos e se tornou um autor religioso. (Kierkegaard, 1859/2002, p. 30-31).

Não obstante a declaração acima, toda a preocupação de Kierkegaard para que não atribuíssem algumas concepções de seus heterônimos a uma mudança em sua forma de vida, parece que foi dessa forma que Camus entendeu algumas concepções defendidas pelo autor. O pensador francês considera que Kierkegaard evadiu-se ante o absurdo por meio das fugas metafísicas. Para Camus (2017, p. 47) aquele que antes havia visto o absurdo agora dá o seu salto. Kierkegaard voltara-se finalmente para o cristianismo, em seu rosto mais duro que tanto o assustava na infância 5 . Afirma o pensador francês:

A antinomia e o paradoxo tornam-se critérios do religioso. Assim, aquilo mesmo que lhe provocava desespero quanto ao sentido e a profundidade desta vida lhe dá agora sua verdade e sua clareza. O cristianismo é o escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade é o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loyola, aquele com o qual Deus mais se delicia: “o sacrifício do intelecto”. Este efeito do “salto” é bizarro, mas não deve nos surpreender mais. Ele faz do absurdo o critério do outro mundo, enquanto não passa de um resíduo da experiência deste mundo. “em seu fracasso”, diz Kierkegaard, “o crente encontra o seu triunfo”(Camus, 2017, p. 47).

Em Kierkegaard teríamos um caso de limite extremo transicional? Um instante radical a partir do qual uma ruptura o alçaria à condição moral, ético e religioso? Ou cada estádio apresentaria o seu limite extremo sem necessidade de transição, cabendo ao indivíduo escolher se permanece na condição que se encontra ou “salta” para o estádio seguinte?6 De acordo com Camus (2017, p. 42) “o absurdo só tem sentido na medida em que não seja admitido”, em que não sirva de pressuposto para a superação metafísica. Desse modo, a pior coisa que poderia acontecer é afeiçoar- -se ao absurdo. E é precisamente isso o que acontece com as filosofias existenciais, entre as quais a de Kierkegaard. Segundo Camus, todas elas, sem exceção propõem uma evasão: “partindo do absurdo sobre os escombros da razão, num universo fechado e limitado ao humano, elas divinizam aquilo que as oprime e encontram uma razão para ter esperança dentro daquilo que as desguarnece”. Essa esperança forçada, diz-nos Camus, tem uma essência religiosa (Camus, 2017, p. 43-43).

E é nesse sentido que Camus entenderá a afirmação de Kierkegaard em Temor e Tremor (1843/2009, p. 65):

Se no homem não houvesse uma consciência eterna, se na origem de tudo se encontrasse apenas uma força bravia e lêveda que ao contorcer-se em escura paixão tudo criasse, o que fosse grande e o que fosse insignificante; se um vazio sem fundo, nunca saciado, sob tudo se escondesse, que outra coisa seria a vida a não ser desespero?7

Segundo Camus (2017, p. 49-50), Kierkegaard pode gritar e avisar. Porém, o seu grito não pode deter o homem absurdo. Diante da angustiante pergunta: “o que seria então a vida?” “O espírito absurdo prefere adotar sem tremor a resposta de Kierkegaard: ‘o desespero’. Afinal, uma alma determinada sempre acaba se saindo bem”. Desse modo, para Camus, o deus de Kierkegaard e dos existencialistas só se sustenta em vista da negação da razão humana (Camus, 2017, p. 50).

Ainda que Camus esteja entre os autores que foram críticos da razão, aquilo que ele chamou de “tradição do pensamento humilhado” (Camus, 2017) ele faz questão de ressaltar: “[...] se reconheço os limites da razão, nem por isso a nego, reconhecendo seus poderes relativos. Só quero continuar nesse caminho médio onde a inteligência pode permanecer clara” (p.35). Desse modo, diante do absurdo da existência, Camus não quer encontrar consolo na fé, ele prefere a revolta. Ele “prefere [...] a fuga furiosa da soberania dos deuses – ainda que esta seja inútil – à adesão apaixonada ao despotismo de um Deus” (Sudário; Lins, 2017, p. 243).Enquanto Camus escolhe a revolta, Kierkegaard, de acordo com a análise camusiana, substitui a rebeldia por uma adesão furiosa e, assim, ignora o absurdo que o iluminava até então e diviniza a única certeza que terá daí por diante: o irracional (Camus, 2017, p. 48). Camus cita uma frase do abade Galiani a Mme. d’Epnay, que diz o seguinte: “o importante não é se curar, mas conviver com os próprios males” e Camus conclui: Kierkegaard quer se curar. Curar-se é seu desejo furioso [...]: “É assim que, por um subterfúgio torturado, ele dá ao irracional o rosto do absurdo e a Deus, seus atributos: injusto, inconsequente e incompreensível. Só a inteligência tenta sufocar nele a reivindicação profunda do coração humano. Já que nada é provado, tudo pode ser provado” (Camus, 2017, p. 48).

Desse modo, Kierkegaard em Temor e Tremor (1843) recorre à história Bíblica do patriarca Abraão e ao pedido de Deus para que ele sacrifique o seu filho. Cabe agora observarmos se a análise de Kierkegaard dessa história e o conceito de fé na força do absurdo presente nessa obra, implica de fato em um “endeusamento” do irracional, tal como sugeriu Camus.

3. O duplo-movimento da fé em virtude do absurdo em Temor e Tremor

É preciso salientar antes de tudo que Kierkegaard não escreve Temor e Tremor (1843) valendo-se do próprio nome, mas utiliza- -se do heterônimo Johannes de Silentio. Isso é importante, visto que como foi apontado anteriormente não se deve atribuir a Kierkegaard as conclusões dos seus heterônimos, ainda que de certa forma todos eles façam parte do projeto de Kierkegaard. O filósofo dinamarquês seria como o autor de uma peça teatral e seus heterônimos como atores onde cada um deve cumprir o seu papel.

O mote para as reflexões de Johannes de Silentio/Kierkegaard nesta obra é a passagem de Gênesis 22: 1-2: “[...] pôs Deus Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui, acrescentou Deus: toma teu filho, teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te a terra de Moriá; oferece-o em Holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei”. Silentio/Kierkegaard pinta-nos um quadro vívido dessa história, detalhes que muitas vezes escapam quando essa história é contada: como a dor da provação, a angústia que Abraão estava sentindo, os três dias de viagem até o monte Moriá, “aliás estes três dias e meio haveriam de se tornar infinitamente mais longos do que esses milhares de anos que me separam de Abraão” (Kierkegaard, 1843/2009a, p.110).

Uma coisa é contar a história de Abraão e dizer que ele é o pai da fé: “outra coisa bem diferente é atrelar o jumento e fazer a viagem de três dias rumo ao monte Moriá”. Pois, é no momento em que a sombra fatídica da montanha o recobre, parece congela-lo até a alma [...] (Le Blanc, 2003, p.72). Porém, o que mais chama a atenção nessa história é que em nenhum momento Abraão duvidou da promessa de Deus, lembremos que Isaac era fruto de uma promessa, uma promessa de posteridade a Abraão, mas agora Deus pede esse filho e tudo parecia estar perdido, no entanto mesmo após os três dias de viagem, Abraão diz aos seus servos: “[...] Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós” (Gn. 22:5).

Desse modo, o que Johannes de Silentio/Kierkegaard considera absurdo nessa história não é a disposição de Abraão em sacrificar Isaac, pois, nisso, mesmo quem não tem fé poderia imitá-lo (Kierkegaard, 1843/2009a, p. 83). O que é absurdo é que em todo o tempo que se preparara para matar Isaac, está igualmente convencido que o terá de volta (Valls, 2000, p. 183). Abraão confiara na promessa que havia recebido de Deus e acreditava para essa vida:

Sim, tivesse a sua fé apenas residido no que está por vir, e ter-se-ia despojado de tudo mais facilmente para precipitar para fora de um mundo a que não pertencia. Mas a fé de Abraão não era dessas, se é que haverá uma fé dessa espécie; pois que não é propriamente fé, mas sim a possibilidade mais remota da fé, que pressente o seu objeto no extremo limite do horizonte, embora dele esteja separada por um abismo devorador no fundo do qual o desespero cruel dirige o seu jogo. Mas Abraão acreditava precisamente para essa vida; acreditava que haveria de envelhecer na terra, honrado entre o povo, abençoado entre as gerações vindouras, inolvidável em Isaac, em vida o seu ente mais querido, por ele rodeado de um amor para o qual havia apenas uma expressão pobre – cumpria fielmente o seu dever de pai, o de amar o filho – como aliás esta e se ouve na invocação: o filho que tu amas [....] (Kierkegaard, 1843/2009, p.72).

Aqui é preciso fazer a distinção entre fé e resignação presentes em Temor e Tremor sob as figuras do cavaleiro da fé e o cavaleiro da resignação. Se Abraão fosse um resignado ele teria entregado Isaac sem a esperança de reavê-lo e tudo estaria perdido. Entretanto, há uma diferença fundamental que deve ser observada. A figura representativa da resignação é Sócrates e não Abraão. Por isso Valls (2000, p.183) afirma que, na apologia, ele se defende sem se defender; “provoca os juízes, não faz questão de viver, pouco está ligando, está rindo, como um terrorista a provocar os juízes”. Mas Abraão não é Socrático, ele “se dispõe a despojar de tudo, mas durante todo o tempo sabe que voltará do monte com Isaac [...]. Neste sentido, a sua fé é uma fé por força do absurdo, um Credo quia absurdum: se não fosse absurdo não seria preciso crer”.

A ideia fundamental que percorre Temor e Tremor é a ideia do duplo movimento da fé. A resignação é necessária; é o último passo que antecede a fé. Abraão não teria subido a montanha se ele não se resignasse. Porém, a resignação não seria suficiente para ele descer do monte de volta com Isaac. “Para este retorno, a fé seria necessária. Somente o cavaleiro da fé seria capaz de executar o duplo-movimento, subir e descer do monte Moriá, renunciar ao finito e então, na fé, abraçá-lo novamente” (Gouvêa, 2009, p. 121). E é precisamente essa concepção do duplo-movimento do infinito e da fé em virtude do absurdo que impede que a concepção de Kierkegaard seja compreendida como um salto no irracional. Pois ao voltar do monte, Abraão não recebe somente Isaac, mas toda a sua Weltanschauung8 é transformada . Desse modo, em Temor e Tremor (1843) é possível encontrar de forma paradoxal:

tanto a afirmação dos limites da racionalidade quanto a justificação para o avanço além desses limites pela própria racionalidade, que será, todavia, uma racionalidade autoconsciente, transformada por meio de um processo dialético de humilhação e exaltação, processo que poderíamos também chamar de morte e ressurreição gloriosa do logos (Gouvêa, 2009, p. 11).

Entretanto, não sabemos se Camus percebeu ou não a ideia do duplo movimento da fé em virtude do absurdo, que permite a recuperação daquilo que foi previamente sacrificado, incluindo os poderes da razão. O fato é que Camus não nos diz nada acerca desse conceito, mas parece-nos que mesmo que ele tenha percebido é muito provável que este conceito não tenha sido capaz de aplacar a revolta do “homem absurdo”(Camus, 2017, p.50).

Considerações finais

Camus e Kierkegaard constataram o trágico da existência e a ausência de respostas (ainda que o segundo o tenha feito sob heterônimos). De fato, algumas conclusões de Camus parecem se aproximar muito de algumas concepções desenvolvidas por Kierkegaard em suas obras estéticas. Entretanto, os autores se separam no que tange a temática do absurdo enquanto Camus insiste na falta de um sentido para a vida e a ausência de respostas, em suas formulações acerca do limite a que se pode chegar diante do qual tudo parece estar destituído de qualquer sentido e nada se pode esperar. Em Temor e Tremor (1843), sob o heterônimo Johannes de Silentio, Kierkegaard parece apontar a fé como um sentido para a vida e a possibilidade de uma ressignificação da razão.

Este artigo não se ocupou em tomar uma posição em favor de algum dos autores. Nossa preocupação consistiu em apontar a interpretação de Camus em O mito de Sísifo acerca de algumas conclusões de Kierkegaard e apontar aquilo que parece ser o entendimento do próprio Kierkegaard acerca dessas noções. Desse modo, deixamos ao leitor a tarefa de escolher qual o caminho lhe parece mais adequado: sem temor de rolar a pedra todos os dias até o cume da montanha e vê-la descer e diante do desespero, revoltar-se; ou seguir com Temor e Tremor as pegadas de Abraão até o monte Moriá e acreditar na possibilidade do impossível.

Referências

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CAMUS, Albert Le mythe de Sisyphe. Paris: Folio, 1942.

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KIERKEGAARD, Søren . Ou-Ou: Um fragmento de vida (Primeira Parte). Tradução Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2013.

KIERKEGAARD, Søren . Temor e Tremor. Tradução Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2009a.

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KIERKEGAARD, Søren . Textos Selecionados. Tradução e notas de Ernani Reichmann. Curitiba: UFPR, 1971.

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VALLS, Álvaro L.M. Algumas reflexões sobre razão e religião em Kierkegaard. In: VALLS, Álvaro L.M. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000 (Coleção Filosofia, n. 113).

Notas

[1]Nosso recurso a alguns aspectos da biografia de Kierkegaard tem o propósito de investigar a afirmação de Camus. Não pretendemos compreender a obra de Kierkegaard a partir de sua biografia cometendo o erro constantemente repetido de interpretar seus textos pela sua biografia e não pelos significados inerentes aos mesmos. Tal atitude foi denominada por Howard Hong de falácia genética. Segundo Hong (apud Gouvêa, 2006, p. 74): “Uma aproximação histórica e biográfica a qualquer trabalho pode atingir uma iluminação, mas este tipo de aproximação torna-se excêntrico se ele distrai a atenção do pensamento do autor para a vida do autor. Através de toda sua obra, Kierkegaard tomou cuidado especial para evitar que seus leitores fossem assim distraídos, que cometessem a falácia genética”. Entretanto, de acordo com Gouvêa (2006, p. 72) essa foi uma tendência nos últimos 150 anos.

[2]É provável que esse incidente sexual nunca tenha acontecido, segundo Thompson (apud Gouvêa, 2006, p. 41): “Pode-se procurar o diário de Kierkegaard em vão por qualquer descrição de um encontro sexual pessoal... De fato, não há evidência de que Kierkegaard tenha tido qualquer relação sexual com quem quer que seja; muito provavelmente ele permaneceu ‘virtuoso’ até sua morte”.

[3]Com exceção das passagens dos Diários.

[4]O leitor deve levar em consideração que, do século XIX para o XXI as relações sociais mudaram. Hoje o homem já não é mais o responsável civil pela sua mulher

[5]O pai de Kierkegaard, Michael Pedersen Kierkegaard, recebeu uma educação religiosa austera, na qual a imagem principal não era a do Cristo Redentor, “mas a do Cristo ensanguentado morrendo na cruz, fustigado pelo vento e pela tormenta que caía sobre o Gólgota. [...] A humanidade cospe sobre aquele corpo mortificado: o sangue, a dor, a obscuridade do pecado, a solidão, a perdição, a tentação infernal e sobretudo a incerteza da salvação; este era o cristianismo do pai de Kierkegaard e que foi transmitido a seu filho (Le Blanc, 2003, p. 21). Sobre este período de sua vida Kierkegaard declarou: “Aqui reside a dificuldade da minha vida. Fui educado por um velho com uma severidade extrema no cristianismo, o que perturbou a minha vida de uma maneira horrível e me levou a conflitos dos quais ninguém suspeita e muito menos chega a falar [...]” (Kierkegaard, 1971, p. 18). Sobre os perigos do uso da biografia de Kierkegaard para interpretar a sua obra vide nota 3.

[6]Segundo Charles Le Blanc (2003, p. 53), “não são os estádios que se transformam, que passam de um a outro (senão teríamos uma teoria ou um sistema objetivo da existência): é o indivíduo que muda, experimenta, sente, detém-se, e pode até recuar. Pode passar de um estádio a outro ou não: nem necessidade lógica, nem necessidade dialética, mas opção de romper ou não com aquilo de onde provém”

[7]Cf. Camus, 2017, p. 49.

[8]Expressão filosófica que significa visão de mundo. A palavra é empregada por Gouvêa (2009) em sua obra A palavra e silêncio, a fim de expressar a transformação ocorrida em Abraão a partir da experiência do monte Moriá (Cf. Gouvêa, 2009, p. 111).