Editorial
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Alex Villas Boas* e Antonio Manzatto*
Editores
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Paul Ricoeur tem frequentado habitualmente as páginas de Teoliterária e o faz novamente neste número, talvez de forma mais indireta que das outras vezes. Sua importância para a filosofia e todo trabalho de hermenêutica nos tempos atuais é bastante conhecida, de onde vem sua importância para os trabalhos que querem relacionar teologia e literatura. Afinal, tratam-se de formas diferentes, mas dialogantes, de hermenêutica do mundo, da história, do humano e mesmo do divino. Na atualidade, as referências à nomeação de Deus passam, quase que necessariamente, por seus textos ou, ao menos, por seu pensamento. Sua hermenêutica ensina que:

A nominação de Deus nas expressões originárias da fé não é simples, mas múltipla. Ou antes, ela não é monocórdia, mas polifônica. As expressões originárias da fé são formas complexas de discurso são tão diversas quanto narrações, profecias, legislações, provérbios, preces, hinos, formulas litúrgicas, escritos sapienciais. Essas formas de discurso nomeiam Deus todas juntas. Mas elas o nomeiam diversamente1.
1. RICOEUR. Paul. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus. In RICOEUR. Paul. Leitura

Esta polifonia é, desde certo ponto de vista, intrínseca ao próprio ato de nomear Deus, porque corresponde às diversas experiências de vida, diversos lugares e diferentes situações de vida que possibilitam e ocasionam diferentes vivências religiosas ou experiências de Deus ou do divino. Culturas distintas, situações existenciais múltiplas, pessoas com referenciais diferentes, tudo contribui para que a percepção de Deus, de sua ação e sua presença sejam vivenciadas, interpretadas, explicadas e narradas de formas distintas. É verdade que nem tudo precisa ser uma cacofonia incompreensível, próximo do irracional, porque pode haver uma espécie de confluência, de sintonia ou de concordância entre as diversas manifestações que procuram dar conta desta percepção ou experiência de Deus.

Nomear Deus significa, de alguma maneira, identifica-lo. O nome personaliza o indivíduo, reconhece-lhe a existência, dá-lhe não apenas cidadania, mas identidade. O ato de nomear Deus também tem esta característica, como se percebe nos textos que compõem o dossiê ora apresentado por Teoliterária. Deus não é um desconhecido, um invisível despercebido pelos olhares e sentimentos humanos. De alguma forma ele é percebido e apontado como companheiro de caminhada, presença constante, força impulsionadora da história, misericórdia, socorro e salvação sobretudo para os mais enfraquecidos, esquecidos e maltratados. O ato de nomear Deus significa percebê-lo, senti-lo, reconhece-lo e testemunhar de sua identidade.

É verdade que a experiência de Deus nem sempre precisa passar pelos indicativos de experiência religiosa. Tornou-se já tradicional a distinção entre fé e religião, chegando-se mesmo, em determinados momentos e situações, a estabelecer uma oposição entre elas, em certa perspectiva de concorrência até. Posteriormente chegou-se a nova aproximação entre elas, mas guarda-se a perspectiva de que fé e religião são coisas diferentes, mas não opostas.

A religião é um sistema baseado em cultos e ritos, com normas legais próprias referentes a comportamentos, tabus e interditos e um sistema doutrinal onde se expressam seus conteúdos. De maneira geral, o cumprimento de ritos e obrigações cultuais, certo comportamento ético ou moral ao menos no que diz respeito às suas normas internas, e o conhecimento, de maneira inicial ou completa, de suas afirmações doutrinais são exigências suficientes para a prática religiosa.

A fé é outra realidade. Embora possa expressar-se também através da prática religiosa, a fé é, fundamentalmente, ato de confiança em Deus que se faz presente na vida do crente. Exprime-se, por isso, não apenas ou necessariamente através de práticas religiosas, mas através de uma prática de vida, um ethos comportamental que perpassa todos os campos da atividade e do existir humano.

Aceitando-se tal distinção, pode-se admitir que haja prática religiosa independente da fé, mesmo que se exija que a fé se expresse em termos religiosos. A religião, de per si, não exige uma adesão maior que a prática exterior. Pode-se cumprir ritos, obedecer a comportamentos e saber os conteúdos doutrinais sem que isto signifique alguma forma de afirmação de valor de absoluto na vida. Um religioso exemplar pode, sem dramas de consciência, ser corrupto, explorador dos amigos ou até mesmo criminosa. A história, antiga e recente, está cheia de exemplos assim.

Por outro lado, a fé se expressa em atitudes vitais que podem incluir expressão por via de religião, ou a incluem efetivamente, mas vai muito mais além. Ela é interiorizada no sentido de pervadir a consciência pessoal como matriz de comportamento e critério de escolha e opções existenciais. Refere-se ao absoluto, à ultimidade da vida do sujeito, e por isso é capaz até de conduzir ao martírio. A história antiga e recente também está repleta de exemplos neste sentido, pois a convicção de fé transforma a existência da pessoa e a torna capaz de relativizar o que não é absoluto.

A experiência religiosa não é ruim nem incompleta, não é algo a ser combatido e pode ser o momento inicial do encontro com o divino e de sua percepção na vida e na história; experiência de fé é existencial, constitui-se em verdadeiro encontro que ultrapassa a exterioridade de comportamentos para atingir a matriz existencial, a alma das pessoas. Não é necessário que se dê fora de quadros religiosos, e normalmente ali está inserida, mas pode acontecer independente das estruturas religiosas e transcende-las em direção ao encontro efetivo com Deus presente na vida e na história.

Em uma tipologia bastante simples, podemos dizer que a experiência religiosa é percebida de modo individual, emocional, momentâneo, de bem estar e de confirmação de pontos de vista, buscando a própria realização pessoal e com obrigações dogmáticas; por sua vez a experiência de fé mostra-se comunitária, existencial, permanente, de conversão que inquieta e questiona a existência, engajando em ações em favor dos outros a partir daquilo que é anunciado.

O ato de nomeação de Deus tem mais este sentido de experiência de fé, porque significa percepção do encontro com alguém outro, alguém que se quer reconhecer e nomear de maneira a identifica-lo, o mistério que, se dele não se pode dizer muito, pode-se talvez dizer seu nome, mesmo que seja misterioso, parcial e incompleto. Neste sentido, a nomeação de Deus não é sua definição e nem será feita de modo definitivo, mas indicativo. Donde a possibilidade de sua expressão em termos existenciais ou artísticos, principalmente literários, e a necessidade da correspondente hermenêutica em suas várias formas e vertentes, que ajudem a compreender a multiplicidade de vozes e situações que permitem a percepção da presença de Deus na história.

O presente dossiê, Nomear Deus, foi editado pelos professores Marcelo Furlim e Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Pesquisadores de renome e atuando exatamente nesta área, colaboram com Teoliterária e a eles manifestamos nossos mais profundos agradecimentos. Ambos assinam o texto que prefacia e indica a pertinência e o alcance da temática do dossiê apresentado neste número de Teoliterária.