Dostoiévski: das influências românticas às convicções religiosas
Dostoevsky: From Romantic Influences to Religious Beliefs

Arlene Fernandes *
* Doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integra o Núcleo de estudos da religião em Dostoiévski e Tolstói. Email: fernandes. arlene@hotmail.com
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Resumo
A obra de Dostoiévski entrou no ocidente europeu como uma crítica perversa que lançava nova luz aos movimentos intelectuais que dominavam o contexto de então. Esse desafio às doutrinas ocidentais, sob a forma de uma dramatização das consequências morais, revela aquilo que está escondido nas partes mais recônditas de nossas teorias. Portanto, no presente artigo, busca-se analisar as críticas do romancista russo às ideologias racionalista e romântica, bem como em que sentido essa concepção é elaborada enquanto uma crítica da modernidade, porém nos termos de um discurso moderno. Por fim, a interpretação do autor acerca do cristianismo do povo russo será apresentada enquanto um aceno de transcendência que será determinante na composição de suas obras futuras e redefinirá suas convicções religiosas.

Palavras chave:Dostoiévski; Cristianismo; Modernidade; Racionalismo; Romantismo.

 

Abstract
Dostoevsky’s work entered the West Europe as a perverse criticism which cast new light to the intellectual movements then dominating that context. This challenge to Western doctrines, under the form of a dramatization of the moral consequences, reveals what is hidden in the innermost portions of our theories. Therefore, this paper seeks to analyze the Russian novelist’s criticism to the rationalist and romantic ideologies, and how that conception is designed as a critique of modernity in terms of a modern discourse. Finally, the author’s interpretation of the Christianity of the Russian people will be presented as a nod of transcendence that will be decisive in the composition of his future works and will redefine his religious beliefs.

Keywords:Dostoevsky; Christianism; Modernity; Rationalism; Romanticism.

Introdução

A crítica de Dostoiévski às teorias racionalista e romântica se dá enquanto uma denúncia do que seria a consequência da tentativa de estabelecer no homem o centro de valor moral. A modernidade se desenvolveu a partir de diversas tendências de um pensamento que se ancorava na razão para pensar o homem enquanto ser autônomo e universal. Essa nova forma de interpretar a realidade marca a oposição moderna às tradições cristãs. O racionalismo se instaurou como verdade através da derrubada de um mundo que atribuía o sentido da vida humana ao conceito religioso de positividade da revelação. O questionamento desses valores implicou a perda das certezas metafísicas e o homem entregou sua vida ao racionalismo, que, ao mostrar suas limitações, culminou no niilismo. Os românticos do século XIX, certos de que poderiam enfrentar o individualismo racionalista, promoveram uma reconciliação do humano com as dimensões transcendentais da existência, o que marcou certo retorno às ideias tradicionalmente cristãs.

A sociedade russa, ainda que em momentos distintos e segundo as particularidades de um pensamento que tende às ações concretas, mais que às abstrações, também experimentou esse conflito. A intelectualidade russa encontrou no romantismo europeu uma narrativa histórica que seria usada para instaurar na sociedade a superação das contradições humanas. Esses dois movimentos citados caracterizaram a dicotomia de um contexto no qual os progressistas discutiam a melhor forma para a assimilação dos ideais liberais e democráticos do ocidente europeu. O impacto deixado pela derrota decabrista, em 1825, seguido de um período de intensa repressão czarista, fez com que os intelectuais se refugiassem nas abstrações do romantismo alemão, o que promoveu certo abandono das ambições por mudanças políticas e sociais. Contra esse momento de inércia política, Tchernichévski, que via na razão e na ciência as possibilidades de construir uma sociedade perfeita, promoveu a entrada do materialismo e do utilitarismo no contexto russo da segunda metade do século XIX.

Contra ambos os movimentos e ao defender as particularidades de sua nação, Dostoiévski surge como um crítico do processo de assimilação dos valores europeus pela sociedade russa. Segundo essa perspectiva, ele se opõe, no início de sua obra madura, ao racionalismo e ao romantismo, e defende uma retomada dos valores tradicionalmente cristãos do povo russo. O período histórico da modernidade, que submeteu a sociedade a um processo de dessacralização, fez crer que a instância religiosa não resistiria ao domínio dos projetos científicos. Algumas correntes de pensamento, porém, denunciaram que o projeto de um mundo, ancorado na lógica das propostas modernas, não se sustentaria. Segundo essa interpretação, a religião voltaria a reivindicar seu espaço ou sucumbiríamos às consequências do niilismo. Dostoiévski foi um desses autores responsáveis por profetizar algumas das trágicas consequências da modernidade.

Das influências românticas às convicções religiosas

A crítica da modernidade elaborada por Dostoiévski se apresenta pela primeira vez, de forma mais evidente, na novela Memórias do subsolo, e é por isso que nos concentraremos nela. Esse livro representou um passo decisivo na orientação do autor rumo aos seus grandes romances filosóficos. Embora tenha sido muitas vezes mal interpretada, tornou-se consenso que seria impossível compreender a totalidade da obra dostoievskiana deixando essa novela passar em silêncio (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 32). Ela representa uma ruptura em relação às ideias expostas nos romances da primeira fase do pensamento do autor porque, nesse texto, o romancista elabora sua crítica da modernidade nos termos de um discurso moderno, e não enquanto uma simples oposição realizada segundo os preceitos da tradição.

A opção por tratar de Memórias do subsolo se dá porque, nessa obra, o literato elabora sua crítica ao niilismo e às concepções materialistas e racionalistas levando às últimas consequências as implicações lógicas da modernidade. Nesse texto, considerado por René Girard como a primeira das grandes obras dostoievskianas do período posterior ao seu retorno da Sibéria (GIRARD, 2009, p. 343), o romancista elabora sua crítica aos opositores – dentre eles, principalmente a Tchernichévski – levando as pressuposições e possibilidades lógicas dos adversários racionalistas à coerente conclusão de um impasse destrutivamente insolúvel (FRANK, 2002, p. 432)

Dostoiévski concebe na personagem central da obra uma personalidade cindida, cujas atitudes são o resultado da formação cultural moderna, isso porque o seu caráter representa as duas fases dessa formação. A novela, dividida em duas partes, não representa uma simples oposição exterior ao racionalismo e ao romantismo, mas apresenta as consequências destrutivas desses projetos “a partir de dentro” (FRANK, 2002, p. 432). Ou seja, o não nomeado homem do subsolo não representa uma rejeição da razão, mas sua aceitação e implicações destrutivas. Da mesma forma, isso se aplica aos elementos humanitários da ideologia romântica que veremos expostos na segunda parte da obra.

Herdando aquela aguda percepção social já presente em sua primeira fase, Dostoiévski concebe no homem do subsolo o reflexo abissal do conflito moral, social e psicológico que caracteriza a experiência moderna. O romancista manifesta esse anseio de reduzir a alma às satisfações puramente materiais nas palavras da personagem: “Direi que acabe o mundo mas que eu sempre possa tomar o meu chá” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 138). Para o autor, o homem do subsolo, que fala de si através dos livros, é um filho das ideologias que permeavam a sociedade russa. Ele esqueceu, como toda a sua geração, sua cultura e aprendeu a viver a partir do que leu nos livros de Tchernichévski. Dostoiévski então escreve nas páginas finais da novela:

Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixainos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 146-147).

Passagens como essa nos ajudam a compreender por que o texto foi interpretado como uma antecipação profética e como uma advertência em relação aos riscos que o homem incorria ao viver segundo a lógica das propostas racionalista e romântica. Tal interpretação atesta, pode-se sugerir, que o homem do subsolo apenas deve ser compreendido em relação ao diálogo que o autor desenvolve frente às teorias filosóficas vigentes no contexto de então. Ao negligenciar esse aspecto de fundamental importância para o entendimento da personagem e ao tratá-la somente a partir de sua dimensão ficcional, muitos intérpretes incorreram no erro de buscar no homem do subsolo uma defesa do modo de vida moderno, em vez de uma crítica desse processo. Isso se dá também porque o autor se utilizou de uma forma diferente para abordar sua crítica da modernidade. Como dito, ele não elabora sua concepção munido de argumentos que partem de uma defesa da tradição, mas através da própria lógica interna de um discurso moderno. A questão que o romancista propõe é: quais serão as consequências na vida de um homem que assimila e vive segundo o que dizem os livros? A grande percepção histórica de Dostoiévski permitiu que ele encontrasse uma resposta para esse impasse denunciando o destino trágico de uma personagem que escolhe viver sob essa perspectiva de sentido.

Para além dos conflitos psicológicos que a personagem central carrega, o romancista também buscou mostrar as consequências da aplicação das teorias filosóficas vigentes na vida concreta do homem. Talvez por prever que seus contemporâneos pudessem não entender a intenção do texto – afinal, o romancista tinha consciência de que grande parte deles estava embriagada pelo discurso vigente –, ele busca esclarecer que o homem do subsolo é a representação de uma ideia ainda abstrata, mas em curso, através da seguinte nota preliminar:

Tanto o autor como o texto destas memórias, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive seus dias derradeiros. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 14).

Durante quase todo o texto, o romancista denuncia as trágicas consequências da modernidade através de uma estratégia que Frank nomeou ironia invertida. Porém, no final, o narrador se sobressai ao questionar se viver segundo as lógicas da personagem central é, ou não, mais destrutivo que segundo a utopia do egoísmo racional defendida por Tchernichévski. Os questionamentos trazidos pela narrativa mostram que Dostoiévski, mais que defendendo um retorno às ideias tradicionais contra o avanço da razão, estava estabelecendo sua crítica de um modo mais elaborado. Ele não se utiliza de um vocabulário cristão para confrontar a razão, ainda que aspectos religiosos possam ter guiado sua escrita de alguma forma, mas recorre aos recursos de linguagem que caracterizam o discurso de seus contemporâneos radicais. Ao admitir essa estratégia, pode-se perceber as paródias que o autor desenvolve a partir dos textos de Tchernichévski.

Tchernichévski compôs O que fazer? entre o final de 1862 e o início de 1863, enquanto esteve preso por sua atuação política, na Fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, deflagrando o espírito revolucionário na juventude de seu país. As reformas instauradas pelo czar Aleksandr II estimularam o desenvolvimento capitalista, mas não foram acompanhadas de uma abertura política e, diante disso, o autor antecipou nesse seu livro que as contradições da modernização desembocariam na derrubada do regime. O fracasso das ações promovidas pelo czarismo fez com que Tchernichévski desacreditasse cada vez mais das reformas incentivadas pelo poder autocrático e apostasse na luta revolucionária.

Turguêniev escreveu Pais e filhos demostrando discordar daquilo que considerava ser um excesso de radicalismo entre os membros da nova geração. Tchernichévski, na condição de expoente dessa nova geração, decidiu demonstrar através da literatura de ficção, único meio permitido a ele na prisão, que os valores da antiga geração estavam obsoletos e que a inevitável transformação da sociedade já estava em curso. O autor então compõe o livro citado em resposta às atitudes reacionárias e defende aqueles que, como ele, não acreditavam em outro meio para o desenvolvimento da sociedade, senão pela ciência. Como veremos, Dostoiévski dará continuidade ao debate, com Memórias do subsolo, através da resposta que desenvolve contra o que considera uma limitação da proposta de Tchernichévski.

A fim de evitar a censura, Tchernichévski envolve o leitor em uma história utilizada enquanto metáfora através da qual seu verdadeiro propósito revolucionário é introduzido no texto. Ao contar essa história que envolve as personagens Vera Pavlovna, Dmitriï Lopukhov e Aleksandr Kirsanov, o autor ancora as passagens de sua narrativa em uma tentativa de justificar as ações humanas através da razão. Assim, apesar de buscar descrever um conflito romântico, o narrador denuncia a real intenção do texto ao despertar atenção do leitor enfatizando algumas vezes que não se inclina ao sentimentalismo: “Não haverá nem efeitos teatrais nem embelezamento. O autor não é dado a embelezamentos, meu bom público, porque ele pensa na confusão em sua mente. Quanto sofrimento desnecessário é infligido a cada pessoa pelos seus pensamentos confusos” (TCHERNICHÉVSKI, 2015, p. 37). Isso pode ser tido como uma crítica contra a influência dos sentimentos humanos na tomada de decisão dos indivíduos, que deveria, em vez disso, ser guiada pela razão.

Grande contribuição do autor às causas revolucionárias da época, o livro foi alvo da contraposição de Dostoiévski. Isso porque, segundo o autor, Tchernichévski não considerou que tal proposta social não poderia ser sustentada sem que se considerasse os aspectos emocionais da alma humana. Essa defesa de Tchernichévski denuncia as influências de Ludwig Feuerbach e John Stuart Mill sobre suas concepções filosóficas e éticas. O autor estava certo de que uma sociedade ancorada no materialismo e no utilitarismo alcançaria um estado de paz e prosperidade porque, uma vez que o homem compreendesse as vantagens de seguir os critérios da razão, começaria a se comportar de modo fundamentalmente egoísta. O reconhecimento do egoísmo racional, que, para o autor, é o mais alto desenvolvimento humano, faria com que os indivíduos entendessem a real utilidade de se identificar com a maioria. A certeza de que as ideias materialistas e utilitaristas seriam o suficiente para guiar a ética humana, sem que fosse preciso recorrer aos preceitos religiosos do sacrifício cristão, despertou forte discordância em Dostoiévski. Tchernichévski, porém, acreditava que tais ideias não só eram viáveis, mas também que já estavam em curso e avançariam:

Mas, hoje em dia, outras alternativas ocorrem: pessoas honestas cada vez mais começaram a se encontrar. Esse desenvolvimento é inevitável já que o número de pessoas honestas cresce cada ano. Com o tempo essa opção vai se tornar a mais comum. Com mais tempo ainda, vai se tornar a única opção porque todas as pessoas serão honestas. Então o mundo ficará realmente bom. (TCHERNICHÉVSKI, 2015, p. 85).

O homem do subsolo busca dominar e tiranizar todos aqueles que encontra e essa atitude, segundo Frank, constitui uma forma de repúdio aos ideais humanitários que o próprio autor depositara nos escritos da primeira fase de seu pensamento (FRANK, 2002, p. 429). Ao reconhecer a realidade do egoísmo, Dostoiévski conclui sua novela a partir da aceitação de que as dimensões de crueldade, dor e sofrimento humano não podem ser racionalizadas segundo nenhuma perspectiva moral.

A primeira das duas partes em que a novela é dividida representa uma disputa direta com o racionalismo e com o utilitarismo, mas de modo algum se pode terminar a análise da crítica do autor nesse ponto, como por muito tempo se fez entre os intérpretes da obra. Não se deve interpretar Dostoiévski como um partidário do romantismo que, logo após criticar o racionalismo na primeira parte, rende-se aos ideais sentimentais e humanitários na segunda parte. Como é possível observar, ao percorrer a trajetória literária do autor, ele já havia se distanciado da influência romântica na ocasião da publicação de Memórias do subsolo. O homem do subsolo é não só um acusador do racionalismo, como também um dos românticos acusados: “Em outras palavras, o homem do subterrâneo não é apenas um tipo moral e psicológico cujo egoísmo o autor deseja expor; é igualmente um tipo socioideológico, cuja psicologia deve ser vista como estreitamente interligada com as ideias que ele aceita e pelas quais tenta viver” (FRANK, 2002, p. 432).

Quando da escrita de Gente pobre, O duplo e A senhoria, Dostoiévski estava marcado pela influência das correntes de pensamento que critica nesse momento de sua carreira literária. O período de exílio foi determinante para que o autor promovesse um distanciamento em relação às ideias desenvolvidas nos escritos iniciais. Quando o homem do subsolo demonstra um sentimento de culpa e aversão em relação às suas próprias ideias, podemos interpretar aí uma denúncia em relação às implicações das teorias então defendidas por aqueles que Dostoiévski reconhecia como radicais revolucionários. Ademais, se analisarmos o homem do subsolo como uma personalidade que dramatiza os dilemas de uma vida baseada em códigos europeus, podemos identificar a representação de dois momentos históricos importantes da intelectualidade russa.

A primeira parte da novela se caracteriza por um diálogo, entre o narrador e um interlocutor imaginário, através do qual a personagem descreve sua tentativa de viver segundo uma proposta racional. Ele fracassa. A segunda parte é, por outro lado, uma tentativa de justificar a atitude altruísta e pseudo-benevolente que parte de um raciocínio egoísta. Ele fracassa outra vez. Dostoiévski denuncia que o vazio moral promovido pela aceitação do determinismo social implica a consciência de que, diante das leis da natureza, não se pode agir. O resultado daquilo que a personagem nomeia consciência hipertrofiada é a inércia diante dos conflitos morais da vida e o refúgio na certeza de que os indivíduos modernos estão destinados a se tornar criaturas sem caráter. Contra isso, nada mais poderia ser feito. “Resulta o seguinte, por exemplo, da consciência hipertrofiada: tu tens razão de ser um canalha, como se fosse consolo para um canalha perceber que é realmente um canalha”. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 20).

A primeira parte da novela é, portanto, uma crítica direta ao racionalismo dos anos de 1860. A segunda parte, como se analisará posteriormente, representa uma crítica do romantismo dos anos de 1840, segundo sua lógica interna. Isto é, o homem do subsolo não rejeita o romantismo, mas o destino trágico da personagem denuncia as implicações destrutivas desse ideal na vida concreta do homem. Porém, por mais enfática e cruel que seja a crítica de Dostoiévski ao romantismo, presente em seus primeiros livros, a defesa humanista da responsabilidade moral e social tem um valor positivo, ainda que se manifeste de forma egoísta. A autonomia da personalidade ainda é melhor que a dissolução do indivíduo promovida pelas distrações racionalistas. A maior aversão do autor se manifesta, portanto, no embate com as propostas de Tchernichévski, que exercia grande influência sobre a juventude revolucionária naquele momento.

Como resume Frank, “A razão diz ao homem do subterrâneo que culpa ou indignação é coisa totalmente irracional e sem sentido; mas a consciência e um senso de dignidade continuam de qualquer forma a existir como componentes inextirpáveis da psique humana” (FRANK, 2002, p. 440). Isso ajuda a entender por que, apesar das convicções de sua razão, o homem do subsolo não admite perder sua consciência e sua capacidade de se reconhecer injustiçado diante da lógica utilitarista. O ressentimento expresso nas falas da personagem pressupõe que o interlocutor seja um homem de ação. Isto é, um partidário de Tchernichévski, que crê na conduta humana enquanto produto das leis da natureza e não considera que alguns sentimentos não podem ser sufocados por um projeto racional de sociedade. A fim de ilustrar essa dinâmica, o homem do subsolo questiona:

Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-los de todos os bens terrestres, afogá-los em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão de ló e cuidar da continuação da história universal – pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão de ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 42-44).

A personagem que se afunda cada vez mais no subsolo sabe que seria mais fácil viver segundo o que proclamam os homens de ação e, por isso, afirma invejá-lo ao extremo. A consciência hipertrofiada da personagem permite aproximá-la, na segunda parte, do protótipo do homem supérfluo, moralmente sensível, mas incapaz de qualquer ação concreta. A discussão entre esses dois tipos da literatura representa uma síntese do complexo conflito de gerações que caracteriza a sociedade russa.

Frente aos dogmas das ciências naturais, os homens de ação aceitam o destino proposto e estagnam. “O muro para eles não é causa de desvio, como, por exemplo, para nós, homens de pensamento, e que, por conseguinte, nada fazemos” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 21-22). Tal ausência de questionamento elimina o sentimento de dever moral e é contra esse processo de perda de valores que Dostoiévski estabelece sua defesa dos ideais do povo russo. “O hiperconsciente homem do subterrâneo, que não tem a graça redentora da estupidez, apenas sabe muito bem que o muro de pedra da ciência e do determinismo frustra a ideia de qualquer tipo de reação moral” (FRANK, 2002, p. 429). Memórias do subsolo ainda não contém a proposta redentora presente nos grandes romances dostoievskianos. O escritor se limita, nesse momento, em apontar os limites da modernidade através do desespero do homem do subsolo diante dos desafios morais.

A ideia de que o egoísmo racional, uma vez aceito, faria com que o homem compreendesse a utilidade de se identificar com a maioria para instaurar o bem comum na sociedade é vista por Dostoiévski como uma utopia. Isso porque tal proposta negligencia a necessidade humana de exercer seu livre-arbítrio. O autor não rejeita a busca por um estado de paz e prosperidade, apenas discorda da defesa de que o único meio de o alcançar seja através do sacrifício da liberdade individual. Nas palavras do homem do subsolo, a afirmação de que o indivíduo irá se abster de suas vontades para responder aos interesses normais – isto é, responder às vantagens sociais justificadas pela razão – não se sustenta. O romancista se opõe a esses ideais, materializados na imagem do Palácio de Cristal,1 ao afirmar que, mesmo se o homem compreendesse que precisa viver segundo as leis da natureza, ele ainda assim inventaria razões para não seguir esse caminho.

A certeza de que a liberdade moral é uma necessidade psicológica expressa o ponto central da contraposição realizada por Dostoiévski. A partir daí, ele conclui sua crítica ao materialismo, iniciada em Notas de inverno sobre impressões de verão, ao decretar a inviabilidade de uma proposta que exclui a necessidade de se considerar o sofrimento humano. Afinal, “No palácio de cristal, ele é simplesmente inconcebível: o sofrimento é dúvida, é negação, e o que vale um palácio de cristal do qual se possa duvidar?” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 48). Cumpre observar que, para o escritor, o sofrimento é o meio através do qual a personagem mantém sua autonomia moral diante de uma sociedade que busca destituir do homem sua liberdade.

Não se encontra, na primeira parte da novela, uma proposta alternativa do autor contra tudo o que é posto ao chão. Isso fez com que muitos intérpretes reduzissem a personagem ao seu caráter revoltado. Segundo Frank, o quinto capítulo, excluído por exigência da censura, era um exercício do autor para apresentar uma proposta, ainda que enquanto possibilidade remota, às teorias deterministas e ao egoísmo racional, defendidos por Tchernichévski (FRANK, 2002, p. 451-454).

O homem do subsolo abandona, no final da primeira parte, a ironia que envolveu seu discurso até então e busca uma alternativa ao que ele vivia: “Bem, modificai-os, seduzi-me com algo diverso, dai-me outro ideal” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 49). Nas palavras do biógrafo, “Dostoiévski indica, assim, que o homem do subterrâneo longe de rejeitar todos os ideais morais em favor de um egoísmo ilimitado, estava buscando desesperadamente um que satisfizesse verdadeiramente o seu espírito” (FRANK, 2002, p. 452). Tal ideal, em vez de incitar a revolta, implicaria uma renúncia voluntária. Ao reconhecer a autonomia da vontade e a liberdade da personalidade, o homem não precisaria mais sucumbir à razão para alcançar o estado de paz desejado. Esse ideal deveria se dar segundo os ensinamentos de Cristo (FRANK, 2002, p. 452).

O texto no qual Dostoiévski possivelmente identificou um verdadeiro ideal social com a necessidade de fé em Cristo, que seria tão importante para a hipótese deste trabalho, foi perdido. Porém, se concordarmos com Frank, é possível extrair da novela, se não a forma exata de como o cristianismo entra pela primeira vez na obra, ao menos o caminho percorrido pelo autor para essa conclusão. A personagem oscila entre a aceitação e a negação do subsolo enquanto melhor lugar para se viver:

Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, se pode... Eh! Mas estou mentindo agora também. Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo! (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 50-51).

A crítica ao subsolo deriva da uma consciência de que há algo além da razão e no qual a personagem poderia acreditar. Aqui, pode-se compreender em que sentido essa novela é tida como um marco na ruptura em relação às ideias que Dostoiévski defendia antes. Pela primeira vez, o autor deixa manifestar um aceno de transcendência em oposição ao racionalismo e, como é visto quando tratamos da segunda parte da novela, também ao romantismo. A certeza de que o melhor lugar para se viver não é o subsolo deriva da percepção dos limites da própria subjetividade. Quando o homem se dá conta da ilusão sobre a qual ancorou sua existência, ele passa a ansiar por algo que realmente satisfaça seu espírito. Como mencionado, segundo Frank, a proposta de Dostoiévski encontra na religião uma alternativa à degradação moral promovida pelas distrações racionalistas.

A influência do vocabulário religioso adquirido no contato com os presos camponeses enquanto esteve preso na Sibéria, que será amplamente usado nos grandes romances filosóficos, aparece aqui pela primeira vez e nisso reside a importância de se considerar Memórias do subsolo dentro de um quadro maior do pensamento do autor. Ao final da segunda parte da novela, as palavras de Liza representarão um aceno de transcendência para o homem do subsolo e, ainda que brevemente, ele experimentará a realidade que só a “vida viva” proporciona. Porém, o aspecto religioso ainda não será capaz de fazer com que a personagem, em um ato de regenerador sacrifício, ajoelhe-se diante de todo o sofrimento da humanidade. O homem do subsolo não conseguirá ainda se distanciar da influência de sua época: “Queria ‘tranquilidade’, ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era difícil respirar” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 142). Ainda que não atinja a redenção, ele ao menos já apresenta o subsolo em toda a sua negatividade. Não há, portanto, uma celebração do niilismo, mas um lamento, por parte da personagem, por não conseguir se distanciar daquela condição.

A figura do homem do subsolo é utilizada enquanto uma crítica ao cientificismo, que, como entende o autor, dissipa os sentimentos morais e sociais humanos. Porém, as inquietações humanas não podem ser reduzidas às ambições racionais. Afinal, como afirma a personagem: “Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chagará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?)”. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 41). A crítica, porém, não é pura rejeição da razão, mas afirmação da necessidade de algo que ultrapasse esse ideal e preencha o vazio ontológico.

Conclusão

Onze anos após a primeira publicação do texto, o romancista escreveu em um rascunho de prefácio: “Eu me orgulho de ter sido o primeiro a pôr para fora o trágico do subsolo, que consiste em sofrimento e autofustigação, na consciência do que é melhor e na impossibilidade de alcançá-lo e, sobretudo, na convicção viva destes infelizes de que todos são assim e, por conseguinte, nem vale a pena regenerar-se” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 31). Essa é de fato uma declaração esclarecedora e revela a dimensão que as passagens da narrativa têm para o autor. As memórias do homem do subsolo não vieram para trazer o apaziguador conforto da inércia de quem não tem mais o que fazer diante do curso da história, mas, como em todos os livros do romancista, vieram para acirrar as polêmicas.

As críticas que temos na novela acerca dos aspectos moralmente mais questionáveis do romantismo europeu revelam os perigos morais e espirituais de um processo cultural que promove a intensidade de sensação como um valor supremo. O anti-herói dostoievskiano representa o desligamento do solo russo e o abandono da tradição, mas, como não poderia deixar de ser, representa também uma crítica às certezas dessa tradição. O homem do subsolo se volta com a mesma força contra o progresso e contra o atraso, contra a razão e contra a sua ausência. A primeira parte dessa novela representa uma conclusão mais acabada daquelas severas críticas ao processo civilizacional europeu desenvolvidas em Notas de inverno. A segunda parte, por sua vez, é um passo decisivo de Dostoiévski rumo aos grandes romances filosóficos e representa uma ruptura definitiva com algumas das suas ideias do período anterior ao exílio.

Temos com essa narrativa uma denúncia que revela e antecipa o fracasso da aplicação dos métodos científicos às práticas da vida humana. A ingenuidade da crença no racionalismo, na mentalidade positivista e no cientificismo, enquanto valores supremos, acaba por ruminar os ideais que o autor considerava primordiais para o convívio humano. Para Dostoiévski, os russos estavam se alienando da verdade por se manterem distraídos com algumas vantagens oferecidas pelo capitalismo ao preço da liberdade. Se, para o homem do subsolo, a única forma de manter a consciência viva para não se inclinar a deificar o existente como ideal é o sofrimento e a dor, então que doa ainda mais.

Referências bibliográficas

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Notas

[1] O Palácio de Cristal, construído na Inglaterra para expor as conquistas da Revolução Industrial, representava para muitos frequentadores a materialização dos triunfos da ciência e da tecnologia. Dostoiévski visitou nesse espaço, em 1862, a segunda Exposição Mundial de Londres e viu nesse monumento a representação daquilo que, mais tarde, contrariando aqueles que foram tomados pelo fascínio, ele perguntaria ironicamente se seria o ideal alcançado da modernidade. Essa imagem se tornou assim a metáfora do autor para sua crítica ao capitalismo