Homo Cordis Absconditus: A Mística do Coração nos Relatos de um Peregrino Russo
Homo Cordis Absconditus: Heart Mysticism in The Way of a Pilgrim

Victor Hugo Pereira de Oliveira* e Wiliam Alves Biserra**
*Doutorando em Estudos Literários Comparados pela Universidade de Brasília. Email: victorhpoliveira@ gmail.com.
**Professor adjunto do departamento de teoria literária e literaturas da Universidade de Brasília. Email: wiliamalvesbiserra@ gmail.com.
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Resumo
O presente artigo tem como objetivo a exposição da Mística do Coração no livro Relatos de um Peregrino Russo. Visando a exploração da interface entre a teologia e a literatura russa, será feita uma breve recensão dos principais teólogos (especialmente os russos) no que se refere à simbologia do coração e seus principais pressupostos, como o Hesicasmo e a Philokalia. Em seguida, será investigada a maneira como a Mística do Coração reverbera nos Relatos, que fora escrito na Rússia Imperial na segunda metade do século XIX inserindo-se na literatura espiritual russa. Com o objetivo de divulgar para todos os cristãos os tesouros da Igreja Ortodoxa que antes estavam restritos aos ambientes monásticos e eclesiais, os Relatos trazem a história de um peregrino anônimo que aprende de um velho sábio e da leitura da Philokalia a Oração do Coração. Sendo o ponto fulcral do Hesicasmo, tal Oração mostra um novo modo de ser ao Peregrino Russo. Viu-se, desta forma, que o livro traz em si a Mística do Coração junto do seu fundamento teológico.

Palavras chave: Mística do Coração; Teologia Ortodoxa; Literatura Russa.

 

Abstract
This article aims to expose the Heart Mysticism in the book The Way of a Pilgrim. Aiming at exploring the interface between theology and Russian Literature, a brief review of the main theologians (especially the Russians) will be made with regard to the symbology of the heart and its main asumptions, such as Hesychasm and Philokalia. Then the way the Heart Mysticism reverberets in the book will be investigated. Written in Imperial Russia by the second half of the nineteenth century, the book is inserted in russian spiritual literature. In order to spread to all Christians the treasures of the Orthodox Church which were previously restricted to monastic and ecclesial environments, the book brings the story of an anonymous pilgrim who learns from an old wise man and from reading the Philokalia the Prayer of the Heart. Being the focal point of Hesychism, such way of praying shows a new way of being to the Russian Pilgrim. It was thus seen that the book carries within itself the Heart Mystique with its theological foundation.

Keywords:Heart Mystique; Orthodox Theology; Russian Literature.

Introdução1

O livro Relatos de um Peregrino Russo contém as memórias espirituais do Peregrino Russo narradas por ele ao seu pai espiritual. Uma vez que a narrativa faz referência à Guerra da Criméia e à Libertação dos Servos2, é possível inferir que o livro fora escrito na Rússia Imperial na década de 50 do século XIX. Quanto à sua origem, Leloup (2008) aponta para a possibilidade de uma parte destes relatos – os quatro primeiros – ter sido escrita por um peregrino anônimo e, posteriormente, passar por uma breve revisão teológica. M. Evdokimov (1990) afirmou que os últimos relatos, aparecendo como se fossem um apêndice aos textos iniciais, aparentam ter uma autoria monástica, uma vez que surge um tom densamente teológico nos diálogos entre os personagens. O título original do livro, em russo, lê-se: Откровенные рассказы странника духовному своему отцу3 (Otkrovennyye rasskazy strannika dukhovnomu svoyemu ottsu4). Tendo sido publicado no final do século XIX, este livro foi trazido para o ocidente juntamente com os cristãos ortodoxos que fugiram da Rússia na ocasião da Revolução Bolchevique. Através de diversas traduções para os idiomas da Europa ocidental – francês, holandês, inglês, entre outros –, os tesouros da tradição cristã oriental (especialmente a tradição da Igreja Bizantina Grega e Russa) foram, ao seu tempo, sendo descobertos pelos cristãos ocidentais (católicos romanos e protestantes de diversas denominações). Sendo particularmente famoso fora do âmbito da Igreja Ortodoxa Russo, este livro divulga para todos os cristãos – por causa de sua linguagem simples – algumas das riquezas do Oriente Cristão, a saber: a Philokalia, o Hesicasmo, a direção espiritual com um Stárets5 e a Oração do Coração.

Esta última – a Oração do Coração – terá a sua presença nos Relatos do Peregrino Russo analisada neste artigo tendo em vista a contribuição com os estudos sobre a interface entre a literatura russa e a teologia. Utilizar-se-á, como aporte teórico, as reflexões de alguns dos principais teólogos que se debruçaram sobre a espiritualidade russa, entre eles: Olivier Clément (1993), Michel Evdokimov (1990), Paul Evdokimov (2011), Tomáš Špidlík (1978) e Vladimir Lossky (1976). Será feita uma investigação acerca da simbologia do coração e a sua importância para a espiritualidade cristã ortodoxa russa conforme Chevalier & Gheerbrant (1993), Chryssavgis (2003), Leloup (2003), Tomberg (1989), entre outros. Em seguida, será feita uma perscrutação das quatro primeiras narrativas dos Relatos com o objetivo de se investigar as ressonâncias da mística do coração na espiritualidade do Peregrino Russo.

A Mística do Coração na Espiritualidade Russa

A Mística do Coração é mencionada no verbete que o teólogo jesuíta Tomáš Špidlík escrevera sobre a Mística Russa no Dicionário de Mística compilado por Luigi Borrielo (2003). A Mística Russa seria composta por uma espécie de personalismo, pela presença dos pais espirituais, pela devoção ao Cristo Kenótico, pelo papel redentor do sofrimento, pela necessidade do conhecimento espiritual, pela beleza, pelo esplendor da iconografia, pela visão espiritual do cosmos, pela visão histórica, pela importância da Divina Liturgia e pela Mística do Coração. Esta última, para o teólogo, teria uma importância particular para a mentalidade do povo russo. Tal importância estaria fundamentada, especialmente, numa espécie de resposta ao racionalismo e iluminismo da Europa Ocidental que acabaria por recalcar o conhecimento espiritual ao âmbito do irracionalismo. Špidlík ressaltou os diversos autores da cristandade ortodoxa russa que sistematizaram a constituição da espiritualidade desta denominação cristã que estaria fortemente fundamentada na Philokalia6 e no Hesicasmo7: estas duas bases da espiritualidade ortodoxa russa teriam como ponto fulcral comum a oração e a purificação do coração. No entanto, é importante ter presente que a palavra coração, no âmbito de tal espiritualidade tradicional, conforme será exposto posteriormente, está muito longe de fazer referência tão somente ao âmbito das emoções e afetos.

A própria etimologia da palavra coração teria muito a revelar sobre as suas diversas camadas de significado que estariam ocultas por detrás da taxação que este leva de ser a apenas a sede das emoções e da afetividade. Conforme Cunha (2015), o vocábulo cor não daria somente origem à palavra coração. Mas, também, origem às palavras vontade, ânimo e coragem. O equivalente grego seria καρδία (kardía) que também poderia significar, de acordo com Bölting (1953), alma, pensamento, razão, sentimento, juízo etc. Quanto ao vocábulo russo para a palavra coração, este seria, conforme Kedaitene (1983), се́рдце (sérdce). De acordo com Mallory & Adams (1997), editores da Enciclopédia da Cultura Indo-europeia, todos estes vocábulos acima citados teriam uma origem comum na raiz indo-europeia *ḱr̥d- que, de acordo com Chevalier & Gheerbrant (1993), também significaria centro e meio. Ao que se refere à significação da raiz *ḱr̥d- como centro e meio, ou seja, do coração enquanto centro e meio, Cavalcanti, no seu livro intitulado O Simbolismo do Centro, afirmara que “O Centro é o lugar no qual o homem pode reconhecer a sua verdadeira identidade e recuperar a consciência da sua unidade com o universo e com Deus, libertando-se do sentimento de alienação e isolamento” (CAVALCANTI, 2008. p. 12). Esta noção do coração enquanto centro anímico do ser humano é também consoante com o que é percebido na cosmologia e antropologia das grandes religiões do mundo.

Chevalier & Gheerbrant (1993), no Dicionário de Símbolos, afirmam que o coração, enquanto símbolo, corresponderia à noção de centro, de sede dos sentimentos e o local do intelecto e da intuição, conforme as civilizações tradicionais. Sendo assim, o coração seria melhor compreendido como o centro da personalidade. Da mesma forma, nas grandes religiões do mundo, o coração seria a morada da divindade, ou seja, o local onde a transcendência habitaria no ser humano. Além disso, conforme os autores e compiladores do Dicionário de Símbolos, no que concerne à tradição bíblica, o coração seria símbolo da interioridade do ser humano. Sendo um símbolo de grande difusão nas artes, especialmente na literatura, o coração fora utilizado para apontar tanto para a dimensão afetiva quanto para a dimensão espiritual do ser humano. Diversos títulos de romances comprovariam isto. Um dos romances mais emblemáticos de Carson McCullers fora por ela intitulado como O Coração é um Caçador Solitário8. É também notória aquela frase presente no livro O Pequeno Príncipe: “Até mais, disse a raposa. E aqui está o meu segredo. É bastante simples: só podemos ver bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos” (SAINT-EXUPÉRY, 1987, p. 72)9. Vê-se, através destes dois exemplos da literatura mundial, como a simbologia do coração vem sendo utilizada para apontar para a afetividade humana e além. Ademais, o coração, enquanto símbolo, possuiria uma profundíssima gama de significados tanto na mística quanto na literatura de todos os povos. Em se tratando da mística cristã ortodoxa russa, Špidlík, afirmara o peso o conceito do coração na religiosidade e na arte poética das culturas pelo mundo:

O conceito de coração, escreve Boris Vyšeslavcev, ocupa o lugar central na mística, na religião e na poesia de todos os povos. Muitos autores orientais tomaram o coração como um emblema para se dissociar do ocidente racionalista que muitas vezes parecia esquecer que o coração é a fundação da vida cristã. De fato, quantas vezes nos aproximamos do termo ‘coração’ na espiritualidade oriental! Falam de custódia do coração, de atenção ao coração, de pureza do coração, dos pensamentos, desejos e resoluções do coração, da Oração do Coração, da divina presença no coração e assim por diante (ŠPIDLÍK, 1978, p. 105-106, tradução minha)10.

Cavalcanti discorrera, entre outros assuntos, sobre o coração enquanto centro real do Ser. O coração seria tido como o centro do ser humano, o local que conteria a verdadeira essência da pessoa humana. Tal local possuiria, portanto, outro nível de qualidade, entrando no âmbito do espaço sagrado por excelência. O coração, de acordo com Cavalcanti, seria um local sagrado por ser o espaço onde a centelha de Deus habitaria:

Considerado universalmente o Centro da verdadeira natureza do homem, o coração é o espaço sagrado interno, o lugar da real experiência do Ser, onde habita a centelha divina, a imagem de Deus. O punctus cordis médium (ponto médio do coração) é onde Deus acendeu a sua luz na alma, colocou o seu amor e soprou o Espírito (CAVALCANTI, 2008, p. 139).

Para Cavalcanti, o coração teria ocupado, desde sempre, uma posição de destaque nas diversas tradições religiosas. Quanto à tradição cristã, que é aquela a qual pertencem os Relatos de um Peregrino Russo, tal ideia foi evidenciada por diversos teólogos que a autora citou, entre eles: Evágrio Pôntico11, João Cassiano12, Clemente de Alexandria13, Mestre Eckhart14 e Angelus Silesius15. Portanto, a mística do coração teve um desenvolvimento profundo tanto no cristianismo ocidental quanto no cristianismo oriental. Cavalcanti também ressaltou a maneira como alguns textos da Bíblia referem-se ao coração: chamam-no de receptáculo do sopro divino, lugar impregnado pelo hálito de Deus, local onde se espera que ocorra uma mudança daquilo que se sente por meio de um ato feito com consciência. Por fim, Cavalcanti enfatizou o desenvolvimento da compreensão das diversas dimensões do coração na Igreja Antiga, que era visto como o órgão através do qual o cristão conhece a Deus. Além disso, de acordo com Clemente de Alexandria, um dos autores da antiguidade cristã, o verdadeiro conhecimento seria o conhecimento de acordo com o coração onde, conforme a autora, “o amor e a consciência não estão separados” (Clemente de Alexandria APUD Cavalcanti, 2008, p. 146).

Qual seria, portanto, a importância do coração para esta prática contemplativa? Para além do seu papel enquanto órgão responsável por bombear sangue para todo o corpo, o coração, enquanto símbolo, poderia significar algo mais. Além de ser identificado como a fonte primordial das emoções e dos afetos humanos, o coração teria, de acordo com Leloup,

um significado muito mais rico: é o órgão principal do ser humano, físico e espiritual; é o centro da vida, o princípio determinante de todas as suas atividades e de todas as suas aspirações. O coração inclui também as emoções e os afetos, mas significa muito mais: ele abrange tudo que chamamos ‘pessoa’ (LELOUP, 2003, p. 206).

Ainda na tradição judaico-cristã, o coração seria visto como um órgão de dupla dimensão: física e espiritual. A sua dimensão física, composta pelos movimentos da sístole e da diástole que, conforme Chevalier & Gheerbrant, fariam do coração um símbolo do ritmo do universo, apontaria para o núcleo vital. Quanto à dimensão espiritual, o coração seria, conforme Leloup, a sede da alma humana.

Do ponto de vista anatômico, o coração é um vazio. No entanto, é este vazio que permite que ele possa efetuar os movimentos sistólicos e diastólicos – que permitem que o sangue seja bombeado para todo o corpo. O coração profundo, tal qual é compreendido na teologia da Igreja Oriental, refere-se, conforme Ware, à interioridade da pessoa humana. Utilizando-se da linguagem junguiana, Ware fala sobre a presença de Deus nas profundezas quase inalcançáveis do coração humana conforme a teologia néptica16

Significa que a pessoa humana é um mistério profundo, que eu compreendo apenas uma pequena parte de mim mesmo, que minha autoconsciência está longe de esgotar a realidade total do meu Self autêntico. Mas isto significa muito mais. Implica que nas profundezas de meu coração, eu transcendo os limites da minha personalidade criada e descubro, dentro de mim, a presença direta e sem mediações do Deus vivo (WARE, 2004, p. 9, tradução minha).17

Ademais, Ware propõe uma explicação do coração enquanto termo utilizado constantemente na Bíblia. Como um símbolo, o coração fora amplamente utilizado, virtualmente, em todos os textos das Escrituras para significar, especialmente, a interioridade da pessoa humana que poderia tanto estar limpa de qualquer mancha quanto poderia ser as fontes das piores imundícies. No entanto, Ware aponta para o coração como ponto de união entre o corpo e a alma conforme os textos das Sagradas Escrituras:

Por toda a Bíblia, o coração é compreendido, geralmente, num sentido inclusivo. Assim como não há contraste entre a cabeça e o coração nas Escrituras, também não há separação entre o corpo e a alma. O coração não simboliza a exclusão da alma no corpo, ou a exclusão do corpo na alma, mas envolve ambas juntos. A ‘antropologia cardiaca’ é, desta forma, holística: o ser humano é contemplado como uma totalidade psicossomática, uma unidade indivisa. O coração é, ao mesmo tempo, uma realidade física – o órgão corporal localizado em nosso tórax – e também um símbolo psíquico e espiritual. Acima de tudo, significa integração e relação: a integração e a unificação da pessoa total dentro de si mesma e, ao mesmo tempo, a centralização e foco da pessoa total em Deus (WARE, 2004, p. 8, tradução minha).18

Sendo considerado como a morada de Deus, o coração seria, conforme Cavalcanti, o local apropriado para a adoração de Deus, uma vez que o coração seria a região, no ser humano, onde haveria uma proximidade com a centelha divina, ou seja, o relacionamento com o Santo Espírito, conforme a tradição cristã oriental. Além disso, a purificação e a transformação do ser humano se dariam através do coração, uma vez que, conforme Evdokimov (2011), seria nele onde todas as faculdades do ser humano estariam integradas. Logo, as diversas expressões que envolvem o coração teriam um sentido espiritual. Ware cita o texto do profeta Ezequiel quando este se refere ao coração de pedra que deveria ser transformado em um coração de carne. Tal transformação indicaria uma conversão espiritual de todo o composto corpo-alma.

P. Evdokimov ressaltara a necessidade de se unificar, através daquilo que ele chamou de intuição mística, o intelecto e o coração. Ademais, o coração, “princípio da unidade da pessoa, também dá estabilidade à multiplicidade dos momentos sucessivos da vida” (ŠPIDLÍK, 1978, p. 108).19 O intelecto e o coração, portanto, deveriam estar plenamente unificados e, ao falar sobre a relação que deveria haver, no místico, entre o coração e as faculdades intelectuais, Lossky dissera:

Mas, se o coração deve ser sempre ardente, o espírito deve permanecer calmo, pois é o espírito que é o guardião do coração. Para a tradição ascética do oriente cristão, o coração é o centro do ser humano, a raiz das faculdades ‘ativas’, do intelecto e da vontade, e o ponto do qual toda a vida espiritual procede e para a qual converge (LOSSKY, 1976, p. 200-201).20

Além disso, por ser considerado o fundamento da alma – local onde Deus estaria criando, a todo o tempo, a criatura –e, por ser o local de encontro entre Criador e a criatura, o coração pode, por vezes, se mostrar conspurcado pela ferrugem, pelas impurezas do ego, como afirmou Cavalcanti. Daí viria uma necessidade da purificação do coração através do método hesicástico, conforme Leloup. Além disso, no cerne da meditação hesicástica, estaria, de acordo com Evdokimov (2011), a Oração do Coração.

Evágrio Pôntico e João Clímaco, ambos citados por Cavalcanti, ressaltaram a necessidade da purificação do coração de todas aquelas doenças espirituais sistematizadas por Leloup21. Para Cavalcanti, tal purificação desencadearia um novo modo de apreensão da realidade, ou seja, esta seria transfigurada. Tal transfiguração do espaço fora experimentada pelo Peregrino: “quando orava no fundo do meu coração, tudo que me cercava surgia sob seu aspecto mais encantador: as árvores, a grama, os pássaros, a terra, o ar, a luz” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 62).

Chryssavgis, no capítulo dedicado ao estudo do coração no seu livro intitulado In the Heart of the Desert, indicou a relação entre o recolhimento (deserto) e o descobrimento dos conteúdos internos do coração. Para além de conter as paixões descontroladas que, de acordo com o autor, seriam as feridas interiores, o coração seria passível de uma purificação intensa através das práticas ascéticas desenvolvidas pelos padres e madres do deserto. Esta purificação, conforme Chryssavgis, teria um papel importantíssimo na formação e restauração da pessoa humana: “Os padres e madres do deserto reconheceram que leva bastante tempo para se tornar um ser humano. É necessária uma espera infinitamente paciente para se poder juntar todas as partes variadas do coração humano” (CHRYSSAVGIS, 2003, p. 59, tradução minha)22. Essa entrada no coração, através de um recolhimento profundo, não mostraria apenas os desejos perversos da pessoa humana, pois, para Lossky:

O místico cristão, [...], ao entrar em si mesmo, e fechando-se na ‘câmara interna’ do seu coração, encontra lá, mais profundo que o pecado, o começo de uma ascensão com um percurso no qual o universo parece cada vez mais unificado, cada vez mais coerente, penetrado por forças espirituais e formando um todo nas mãos de Deus. (LOSSKY, 1976, p. 106, tradução minha).23

P. Evdokimov, um dos principais teólogos russos do século XX, apresentou, em sua obra intitulada Orthodoxy24, uma admirável síntese do pensamento cristão ortodoxo russo – com suas bases alicerçadas, principalmente, nas Sagradas Escrituras e na Patrística – que inclui uma apresentação da visão antropológica e teológica do coração. Conforme o pensamento de São Gregório de Nyssa, o ser humano, por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus – conforme o texto das Sagradas Escrituras – e, através da sua participação, por meio da graça, da natureza de Deus, poderia ser considerado como se fosse um deus pequeno, ou, de acordo com o pensamento de Gregório de Nyssa, um microtheos. Para P. Evdokimov, a chave da compreensão deste mistério seria a entrada nas profundidades do coração humano, pressupondo-se de que este não pode ser meramente reduzido à dimensão afetiva e sentimental. A visão de coração aqui é exigida é a de que o coração humano é o local onde todas as dimensões da pessoa podem vir a ser integradas. Partindo de citações das Sagradas Escrituras, o teólogo recorda como o ser humano pode endurecer o seu coração tornando-o lento para a fé e fechado para a dimensão transcendente da realidade por meio da dúvida. O teólogo frisa que tal dúvida poderia, com o passar do tempo, acarretar a fragmentação anímica e fazer com que ela chegasse, portanto, ao estágio final da desintegração completa. P. Evdokimov também relembra o ensinamento ascético no que concerne o amor próprio25, que usurparia o trono de Deus no coração humano. Outro ponto da síntese do teólogo refere-se à necessidade de se ter um coração indiviso, o que acabaria por se refletir na unidade da personalidade. Desta forma, a expressão conhece-te a ti mesmo poderia significar entre em teu coração e esteja pronto para encontrar Deus, os Anjos e a Jerusalém Celeste. No entanto, o ser essencial da pessoa – que é o seu próprio fundamento transcendente – estaria para além dos limites da consciência: tão somente os sentimentos, as sensações e os atos estariam passíveis de ser apreendidos. Apenas a intuição mística, conforme o teólogo, possibilitaria tal entrada nas camadas profundas da personalidade humana, que é simbolizada pelo coração. Graças à semelhança que deveria haver entre a pessoa humana e Deus, existiria uma ressonância da Natureza Inacessível de Deus na dimensão espiritual da pessoa. Citando o versículo onde São Pedro fala sobre o homem oculto do coração26, P. Evdokimov ressaltou que o ser essencial da pessoa humana, ou seja, o seu fundamento transcendente, estaria presente no mais profundo do seu coração. Sendo assim, o Deus Absconditus estaria ressoando no Homo Absconditus.

Essa União Mística, que consiste no encontro entre o místico e Deus, aconteceria no coração unificado ao intelecto fortalecido pelos exercícios espirituais do hesicasmo. O intelecto serviria, portanto, como uma espécie de guarda do coração. A custódia do coração, que é tão cara aos hesicastas, conforme Špidlík, ganharia contornos mais fortes através da constante vigilância do coração feita pelo intelecto iluminado pela luz divina através da constante Invocação do Nome de Jesus. De acordo com Clément

O intelecto, fortalecido pela invocação, encontra a sua conexão com o coração novamente, e isto, ou a sua presença nela, se torna consciente. Intelecto e coração juntos formam aquele coração-espírito no qual uma pessoa recolhe-se, abre-se, unifica-se, harmoniza-se e se expande infinitamente. Constitui-se, propriamente, o lugar de Deus (CLÉMENT, 1992, p. 204, tradução minha).27

Haveria, ademais, a constante necessidade de um elo resistente entre o coração e o intelecto. Este elo resistente serviria, principalmente, para a reconstituição da pessoa e criar, conforme Leloup, a possibilidade de conhecer a realidade do mundo espiritual:

Ontologicamente, a consequência da queda para o ser humano é precisamente esta desagregação espiritual pela qual sua personalidade é privada de seu centro e sua inteligência se dispersa num mundo que lhe é exterior. O lugar desta dispersão da personalidade no mundo das coisas é a cabeça. Pelo cérebro, o espírito conhece um mundo que lhe é externo ao mesmo tempo que ele perde contato com os mundos espirituais, cuja realidade o coração, cego e impotente, pressente, embora obscuramente. Portanto, para reconstruir a pessoa na graça, é preciso reencontrar uma relação harmoniosa entre a inteligência e o coração. (LELOUP, 2003, p. 209).

A Via Unitiva, na tradição da Igreja Oriental, sintetizaria todas aquelas clássicas expressões que se referem às etapas do hesicasmo. Ao falar acerca da União Mística, Lossky afirma, ressaltando o papel crucial da faculdade volitiva do ser humano:

O homem deve viver de acordo com o espírito; todo o complexo humano deve se tornar espiritual, deve adquirir a ‘semelhança’. De fato, é o espírito que se torna unido (unificado) com a graça batismal, através da qual a graça entra no coração, o centro daquela natureza humana total que está para ser deificada. ‘a união do espírito com o coração’, ‘a descida do espírito ao coração’, ‘a guarda do coração pelo espírito’ – estas expressões recorrem constantemente na literatura ascética da Igreja Oriental. Sem o coração, que é o centro de toda atividade, o espírito é fraco. Sem o espírito, o coração permanece cego, destituído de direção. É, logo, necessário atingir uma relação harmoniosa entre o espírito e o coração de forma que se desenvolva e se construa uma personalidade na vida da graça – pois a via da união não é meramente um processo inconsciente, pois pressupõe uma vigilância espiritual incessante e um esforço constante da vontade (LOSSKY, 1976, p. 201, 202, tradução minha.)28

A purificação do coração, conforme fora ressaltada por Lossky, mostra-se, então, necessária para a sua posterior unificação e, como consequência, a descida do intelecto ao coração. Estes dois processos, que poderiam acontecer simultaneamente, conforme Leloup, seriam realizados através do método hesicástico. Assim como Julien Green dissera que “o maior explorador da terra não faz nenhuma viagem tão longa como aquele que desce ao fundo do seu coração” (GREEN, Julian apud EVDOKIMOV, Michel. 1990), é possível pensar que o Peregrino dos Relatos estava em busca da maneira de descer até o seu próprio coração enquanto perambulava pelas vastidões da Sibéria. Quanto a esta temática, M. Evdokimov escrevera abundantemente sobre as correspondências entre a imensidão externa das paisagens da Rússia e a vastidão interna que seria possível encontrar no coração.

O coração, através da prática hesicástica, seria, conformer Leloup, transformado no ponto de encontro entre o imanente e do transcendente e da capacidade de intensificar os graus qualitativos do espaço e do tempo. Portanto, através do coração purificado pela prática do hesicasmo, o místico experimentaria uma transfiguração do espaço-tempo29. Tal transfiguração fora experimentada, diversas vezes, pelo Peregrino quando este descansava e se punha a ler a Philokalia30.

A Mística do Coração nos Relatos de um Peregrino Russo

O livro Relatos de um Peregrino Russo insere-se na grande tradição do hesicasmo. Escrito por um peregrino russo anônimo, tal livro conta, de forma autobiográfica, as quase intermináveis perambulações do Peregrino Russo desde que ele conhecera a oração incessante. O livro apoia-se em diversas citações da Philokalia e procura expor, de forma compactada, os pressupostos do hesicasmo. A presença de um Stárets31, a participação na Divina Liturgia, a Oração do Coração e alguns dos fenômenos místicos decorrentes da prática do hesicasmo estão todos presentes na história do Peregrino Russo e corroboram para a hipótese de que tais Relatos foram escritos – com um posterior acréscimo teológico por parte de monges – para uma divulgação do hesicasmo fora dos ambientes monásticos.

Sendo composto por sete narrativas espirituais32, os Relatos apresentam o Peregrino Russo narrando a sua história para o seu pai espiritual. Com o desejo de peregrinar aos principais espaços sagrados da cristandade33, o Peregrino Russo percorre as imensidões da Sibéria tendo como fiel companhia um exemplar da Bíblia, um exemplar da Philokalia, um Komboskini34 e um cajado.

O primeiro relato mostra o Peregrino Russo que, tendo se encontrado com o seu Stárets, relatara-lhe a sua experiência desde a primeira vez que ficou inquieto com o convite à oração incessante feito por São Paulo aos Tessalonicenses. A sua busca durou cerca de um ano até que encontrou este stárets, que era um velho sábio bastante experimentado na vida espiritual. O Stárets, ao falar sobre a oração incessante, dissera que é difícil falar sobre tal oração, porque “essas explicações são mais difíceis de serem dadas do que todas as suas explicações. Elas pedem não um saber escolar, mas um conhecimento místico” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 39, grifos meus). Este conhecimento místico parece referir-se, justamente, ao hesicasmo que tem, como cerne, a mística do coração como foi exposto acima.

Em seguida, o Stárets lera um trecho da Philokalia que resume de forma ímpar a meditação hesicástica e a sua mística do coração: “imagine que está olhando para dentro do seu coração, faça sua mente, ou seja, seus pensamentos, passar da sua cabeça ao seu coração” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 42). O Peregrino Russo, então, começara a praticar este exercício. Este conselho que o Stárets dera ao Peregrino era uma forma dele adquirir a consciência do coração. Tal conselho parece estar em consonância com uma das sentenças de um dos padres do deserto: “Se você tem um coração, você pode ser salvo” (WARD, 1984 p. 197)35. Fazer com que os pensamentos passassem da cabeça para o coração aponta para aquela união entre a mente e o coração mencionada acima. Sendo o coração a sede da personalidade e a cabeça a sede do intelecto, a união deste intelecto ao coração poderia possibilitar a salvação da qual falara Abba Pambo. Depois disso, o Peregrino Russo recebera do seu Stárets um Komboskini de forma a ter um auxílio na prática do hesicasmo. Tal prática consiste na repetição incessante da prece Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim. As repetições tinham o objetivo de fazer com que a prece fosse inscrita no ritmo vital do Peregrino Russo:

Em pé, sentado, deitado ou caminhando, diga sem parar: Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim! Repita essa frase suavemente e sem pressa, recite-a exatamente três mil vezes ao dia, sem aumentar ou diminuir o número de repetições. Dessa maneira você chegará à atividade perpétua do coração (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 44-45).

No começo, esta prática era bastante custosa para o Peregrino Russo. Este sentia-se fatigado por causa destas repetições até que, em um determinado momento, o Peregrino Russo começara a sentir uma crescente facilidade nas repetições da Oração de Jesus. Quanto a isto, o Stárets dissera ao Peregrino Russo: “esse é um efeito natural, decorrente do exercício e da aplicação constantes” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 47). O Peregrino Russo não menciona, mas é de se esperar que estivesse acontecendo a purificação do seu coração através da prática do hesicasmo. Como se fosse um fogo abrasador que limpasse o ouro das suas escórias, a Oração de Jesus agia através da purgação do coração de todas as impurezas advindas das ressonâncias do pecado – o original e os pessoais.

Para Tomberg36, nada haveria de técnico no âmbito da mística cristã, em particular o hesicasmo, que consiste na repetição incessante, através das batidas do coração, da oração Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim. Este aparente automatismo seria, para o autor, algo que pertence ao âmbito da arte e da graça. Assim sendo, Tomberg apresenta uma oposição entre aquilo que ele chama de princípio do ritmo e princípio da técnica. A repetição presente na prática do hesicasmo – e outras práticas meditativas – seria “uma aplicação do princípio mecânico, isto é, do princípio fundamental da técnica do esforço mínimo para se obter o efeito máximo” (TOMBERG, 1989, p. 505).

O ritmo, então, faria com que a oração passasse do âmbito da psicologia para o âmbito da vida. Trata-se de “fazer com que a oração empregue a linguagem da vida, e não a dos sentimentos e dos desejos pessoais” (idem). Desta forma, o Peregrino Russo poderia falar da expansiva alegria que o preenchia numa espécie de antecipação da visão de Deus. Ele dizia que, na terceira narrativa dos Relatos, antes da experiência do hesicasmo, a sua mulher e ele tinham uma experiência incompleta da oração incessante:

Todas as manhãs líamos o hino acatista e todas as noites cada um fazia mil inclinações diante dos ícones para não cairmos em tentação. Assim vivemos tranquilamente durante dois anos; no entanto, o mais surpreendente é que nós nada conhecíamos sobre a oração interior feita no coração, nós jamais tínhamos ouvido falar dela, orávamos apenas com a língua, fazendo inclinações como dois bobos. Contudo, o desejo de orar estava presente, essa longa oração externa não nos parecia difícil e a cumpríamos com prazer. Sem dúvida, tinha razão o mestre quando me disse que existe no interior do homem uma oração misteriosa que ele próprio não sabe como ela se produz, mas ela estimula cada um a orar segundo o que pode e sabe (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 96).

Este ritmo, unindo a oração feita de forma consciente com esse desejo inconsciente de se estar sempre em estado de prece é, conforme Tomberg, a prece espiritual: “o rosário, o hesicasmo ortodoxo, as ladainhas, os salmos repetidos etc. operam a transformação da prece-esforço em prece-vida” (TOMBERG, 1989, p. 506). Eis que, depois de perseverar na prática do hesicasmo, o Peregrino Russo relata que começara a perceber que a oração passara do nível vocal para o nível que envolve o ritmo das batidas do coração:

Decorrido algum tempo, senti que a própria oração passava dos meus lábios ao meu coração, ou seja, as batidas do meu coração começavam a recitar por si só as palavras da oração. Por exemplo: 1 – Senhor, 2 – Jesus, 3 – Cristo, e assim por diante... Parei de pronunciar a oração com meus lábios e passei a escutar com atenção o que dizia meu coração; (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 51-52).

Isto que ocorreu ao Peregrino Russo parece tratar-se daquilo que Tomberg denominou como sendo a concentração sem esforço: “aprendei primeiro a concentração sem esforço; transformai o trabalho em jogo; fazei com que o jugo que aceitastes seja suave e que o fardo que carregais seja leve!” (TOMBERG, 1989, p. 25). Trata-se, antes de tudo, de estabilizar o máximo possível de atenção num ponto espacial mínimo. Para o autor, esta seria o caminho necessário a ser percorrido quando houvesse o desejo de ter sucesso num âmbito qualquer. Além disso, o autor afirma que tal concentração só se faz viável quando há “tranquilidade e silêncio do automatismo do intelecto e da imaginação” (TOMBERG, 1989, p. 26).

O silêncio – a hesychia – foi conquistado aos poucos pelo Peregrino Russo como consequência da sua perseverança na prática do hesicasmo. A concentração obtida pelo Peregrino Russo resultou, posteriormente, em diversos dons espirituais que ele mencionara na segunda e na quarta narrativa: o dom do aconselhamento, o dom da cura, entre outros

Para Tomberg, há dois tipos de concentração. Há a concentração desinteressada e há a concentração interessada. Na concentração desinteressada, conforme o autor, a vontade não é dominada pelas paixões, pelas obsessões e pelos apegos escravizadores. Um exemplo de pessoa concentrada desinteressadamente, para o autor, seria um monge em oração. Já a concentração interessada seria a consequência de uma vontade dominada pelas paixões, obsessões e apegos. Tomberg considera que um exemplo claro de uma pessoa tomada por este tipo de concentração seria um maníaco. A concentração sem esforço, conforme Tomberg, acontece quando há a “transposição do centro da consciência diretiva da cabeça para o peito – do sistema cerebral para o sistema rítmico” (TOMBERG, 1989, p. 27).

Como consequência, há a experiência da vontade silenciosa pela qual o Peregrino Russo passara diversas vezes. A sua concentração, marcada pela Oração de Jesus, acontecia sem esforço por causa da mudança de centro. Sua prática meditativa tornara-se tão natural quanto a respiração e as batidas do coração.

Em um determinado momento da meditação dedicada ao arcano da Temperança, Tomberg começa a discorrer sobre a existência e o significado das asas nos anjos e em alguns homens. Para ele, as asas, juntamente com os tentáculos, as patas e os braços, seriam formas diferentes de um protótipo universal. Assim como as pernas existiriam porque há a vontade de caminhar, as asas manifestariam a vontade de movimentar-se tanto na vertical quanto na horizontal. Além disso, Tomberg afirma que há, para além das asas físicas – como as dos pássaros – as asas que possibilitariam a movimentação no mundo espiritual, que o autor denomina como asas etéreas e asas astrais. Tais asas pertenceriam ao corpo do tipo sutil, vital e anímico. O Anjo que, conforme Tomberg, movimenta-se por meio das correntes de energia vital e psíquica – em contraposição aos pássaros que se movimentam por meio do ar – teria o objetivo de elevar-se no mundo espiritual para os elementos vitais e astrais.

Partindo do pressuposto de que os anjos são portadores das mensagens divinas para os seres humanos, Tomberg também discorre sobre o significado da dualidade das asas dos anjos. Para ele, uma delas teria contato com o entendimento de Deus (aspecto contemplativo – imagem), enquanto que a outra teria contato com a imaginação ou a memória de Deus (aspecto ativo – semelhança). Desta forma, Tomberg expõs que a asa esquerda do anjo estaria contemplando a Sabedoria de Deus e, por meio da asa direita, estaria na atividade de mensageiro de Deus. O autor também afirma que, conforme uma tradição, haveriam homens alados. Assim, ele resgata o ícone russo de Nicéphorus Savine que apresenta São João Batista Alado. Estas asas – astrais e etéreas – simbolizariam, para o autor, um nível ligeiramente desenvolvido da restauração da semelhança divina. Tomberg também fala da necessidade de fazer com que os esforços espirituais estejam completamente voltados para Deus, o que faria com que a prática da oração e da meditação se transformasse em atos orgânicos, ou seja, passar do domínio do inconsciente para o domínio do consciente.

Para o autor, o conselho de São Paulo aos Tessalonicenses, “orai sem cessar”, seria solução para esta empreitada: “A contemplação que se estabelece como um estado cada vez mais permanente na alma – por meio das asas – torna-lhe sempre mais penoso o movimento horizontal de suas faculdades – entendimento, imaginação e vontade – mergulhadas na contemplação” (TOMBERG, 1989, p. 383).

Tomberg apresenta uma contraposição entre o eu consciente e os corpos astral e vital. Estes podem orar sem cessar, o que não seria possível para o eu consciente. Citando um trecho dos Relatos de um Peregrino Russo, Tomberg afirma que é possível levar a oração incessante para a consciência através do seu próprio esforço para, assim, instaurá-la no inconsciente psíquico – que o autor identifica com o corpo astral – e no inconsciente vital – que o autor identifica como corpo etéreo. O trecho dos Relatos, que traz o Peregrino Russo discorrendo sobre como o seu coração batia cada uma das palavras da Oração de Jesus, é utilizado por Tomberg como argumentação acerca da forma como a oração incessante havia sido firmada no corpo astral e vital, o que havia composto correntes, nesses corpos, apontando para o alto. Tal acontecimento, para o autor, poderia possibilitar a formação de asas. Estas asas, presentes nos corpos psíquico e vital – teriam um determinado efeito na consciência do homem que consiste na perene orientação da consciência para Deus: haveria sempre a intensa sensação da presença de Deus e da dimensão espiritual da realidade.

Desta forma, por mais que o texto dos Relatos não informa ao leitor sobre a aparição explícita das asas no Peregrino Russo, é possível pensar que o efeito delas fazia-se bastante intenso na própria vivência dele enquanto perambulava pela Sibéria tendo companhia a Oração do Coração. A sensação da presença de Deus e a dimensão espiritual da realidade estariam presentes através da revelação do esplendor da natureza e o seu significado para o ser humano:

quando orava no fundo do meu coração, tudo que me cercava surgia sob seu aspecto mais encantador: as árvores, a grama, os pássaros, a terra, o ar, a luz, todos pareciam dizer que existiam para o homem, que davam testemunho do amor de Deus pelo homem; tudo orava, tudo cantava glória a Deus! Compreendi, assim, aquilo que a Philokalia chama de “conhecimento da linguagem da criação” e percebi como é possível conversar com as criaturas de Deus (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 62).

No segundo relato, sucedendo a morte do seu Stárets, o Peregrino Russo começa a deparar-se, no curso das suas enormes caminhadas, com diversos personagens clássicos da Rússia Imperial. Depois de sobreviver ao ataque de dois ladrões e de encontrar-se com um velho capitão, o Peregrino Russo conhecera um Guarda Florestal que contara a ele a sua história. Ao adentrar a velha cabana que lhe fora indicada pelo Guarda Florestal, o Peregrino Russo iniciara uma nova leitura da Philokalia e, depois de perceber que não se tratava de um livro qualquer, ele compreendera que tal livro, por causa da sua composição, apresentava um obstáculo para aqueles que não eram iniciados no estudo da teologia ortodoxa. Depois de ter passado o dia mergulhado em oração de petição dirigida a Deus para que Ele iluminasse o seu intelecto para que fosse possibilitado um começo de compreensão da linguagem espiritual da Philokalia, o Peregrino Russo caiu em sono profundo e, em sonho, viu-se presente na cela do seu falecido Stárets.

Neste sonho, o Stárets lhe explanara acerca da elevada ciência espiritual encerrada na Philokalia. No entanto, tal ciência espiritual não estaria disponível a todos que se colocassem a lê-la. Contudo, a Philokalia apresentaria ensinamentos espirituais que poderiam ser colocados em prática por, virtualmente, todas as pessoas: “máximas... profundas para os espíritos profundos, e simples para os simples” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 68). Desta forma, o Stárets explicara que as pessoas mais simples – dentre as quais encontrava-se o Peregrino Russo – não poderiam pôr-se a ler os capítulos da Philokalia no ordenamento no qual eles se encontram dispostos, uma vez que tal ordenamento refletia o gradual estudo da complexa ciência que é a teologia ortodoxa. Assim, o Stárets mostrara ao Peregrino Russo uma sequência que deveria ser observada com atenção por aqueles, dentre os mais simples dos cristãos, que queriam compreender e assimilar a Oração do Coração. Depois da explanação, o Stárets assinalara, com uma lasca de carvão, as páginas relacionadas aos capítulos que ele apontara ao Peregrino Russo, que havia escutado atentamente a tudo o que o Stárets havia dito. Depois de acordar no lusco-fusco da madrugada, o Peregrino Russo pôs-se a meditar sobre tudo o que havia acontecido no seu sonho. M. Evdokimov, comentando esse episódio, disse:

Os sonhos premonitórios têm um lugar importante nos Relatos. A morte não pôs um ponto final à intimidade com o mestre espiritual que, volta e meia, visita os sonhos do discípulo para o consolar, admoestar, interpretar o que significam as suas aventuras, esclarecer esta ou aquela passagem obscura da Philokalia. Esess sonhos podem ser os “sinais” de um elo vivo, além da morte física, na oração e na comunhão do Espírito (EVDOKIMOV, 1990, p. 171).

É ilustre aquele acontecimento na vida de Santa Teresa no qual o seu diretor espiritual, São Pedro de Alcântara, lhe aparecia, depois de falecido, para aconselhar a carmelita.37 No que concerne este fenômeno de natureza sobrenatural, Tomberg discorrera sobre a possibilidade da pessoa manifestar-se, depois da morte, no plano físico da realidade:

acontece às vezes, depois da morte de uma pessoa, que essa pessoa ou ‘alguma coisa’ dela, ou semelhante a ela, se manifeste de maneira externa e física [...] como energia ativa. É como se certa quantidade de energia, libertada depois da morte, mas permanecendo condensada, se manifestasse como alguém ou como ‘corpo’ individual (TOMBERG, 1989, p. 359).

E eis que o Peregrino Russo havia notado que a sua cópia da Philokalia estava “aberta na página indicada pelo Stárets e marcada com um traço de carvão, exatamente como no [meu] sonho” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, op. cit., p. 69). Tal constatação deixara o Peregrino Russo bastante impressionado e fez com que ele viesse a acreditar que o seu falecido Stárets realmente lhe aparecera no sonho e que tinha assinalado com carvão algumas das páginas da Philokalia. Em seguida, o Peregrino Russo começara a ler e meditar, na ordem indicada pelo seu falecido Stárets, os capítulos da Philokalia e começara a praticar os exercícios espirituais nela recomendados. O primeiro deles, que era baseado no descobrimento do lugar onde se encontra o coração, foi executado pelo Peregrino Russo com sucesso, depois de uma dificuldade inicial. O segundo exercício espiritual tinha por objetivo a inserção da Oração de Jesus no coração e fazer com ela entrasse no ritmo da respiração: na inspiração, o Peregrino Russo deveria dizer a primeira parte da oração (Senhor Jesus Cristo); e, na expiração, o Peregrino Russo deveria dizer a segunda parte da oração (tenha piedade de mim). Aos poucos ele ia aumentando a frequência da oração de maneira que ele passava praticamente o dia todo imerso neste nível da prática da Oração do Coração. O Peregrino Russo começara, passadas três semanas desde que começara a prática perseverante destes exercícios espirituais, por colher os frutos da Oração do Coração: “senti uma dor no coração, depois uma tepidez agradável e um sentimento de alívio e paz” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, op. cit., p. 70). Igualmente, ele observou que tinha mais sensações agradáveis no espírito e no coração. Junto a tudo isso, o Peregrino Russo sentia uma espécie de leveza espiritual e de um regalo e liberdade que vinham acompanhadas daquilo que a tradição cristã denominou de dom das lágrimas.

De acordo com Borriello (2003), este dom das lágrimas viria acompanhado de uma carregada contrição por causa dos pecados cometidos contra Deus. Além disso, Tomberg apresentou uma meditação acerca da relação entre o fenômeno da experiência mística no cristianismo e o dom das lágrimas. As lágrimas viriam em decorrência da consolidação da personalidade humana por meio da união do fiel com Deus: “Também a mística cristã fala do ‘dom das lágrimas’ como dom precioso da Graça Divina. [...] Assim, a característica externa daqueles que escolhem a [...] via mística [...] do Deus do Amor, é que eles têm o ‘dom das lágrimas” (TOMBERG, 1989, p. 51).

Por fim, o Peregrino Russo chega ao entendimento de “que os efeitos da Oração do Coração aparecem sob três formas: no espírito, nos sentidos e na inteligência” (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, op. cit., p. 70). Conforme este agrupamento, a sensação da calma, a experiência do amor de Deus e a pureza da mente estariam relacionadas aos outros efeitos que apareceriam sob a forma espiritual. E, quanto à sensação de leveza, de ardor no coração e o vigor vital estariam relacionados aos outros efeitos que apareceriam sob a forma sensorial. Por fim, quanto à iluminação da mente, a compreensão dos textos da Sagrada Escritura e a compreensão do sistema de símbolos do mundo estariam ligadas a outros efeitos da ordem da forma intelectual. O Peregrino Russo parece estar se referindo aos efeitos que surgem ao longo da prática do hesicasmo. Ou seja, conforme Leloup (2003), tais efeitos seriam o surgimento da αμεριμνία (amerimnia)38, a irradiação da ησυχία (hesychia)39, o estabelecimento da νῆψις (népsis)40 e a presença da Luz Tabórica41, que iluminaria a faculdade intelectual da pessoa humana.

Esta experiência que o Peregrino Russo tivera do belo está em consonância, conforme M. Evdokimov (1990), com a espiritualidade derivada da Philokalia. Este amor pela beleza seria uma das características do homem philokálico, uma vez que a beleza é considerada como sendo um dos atributos de Deus:

A espiritualidade philokálica é profundamente evangélica, ou mais exatamente, joânica, na linha do Apóstolo amado de Jesus, estupefato pela luz que veio a este mundo. O homem philokálico aspira a entrar no amor de Deus por toda a criação, a estabelecer o coração no silêncio – hesychia – longe das especulações abstratas. Eleva-se-lhe na alma um concerto de louvores, e ele mesmo, o hesicasta, se faz uma chama ardente (EVDOKIMOV, 1990, p. 167).

Na quarta narrativa dos Relatos, o Peregrino Russo depara-se com uma família ortodoxa, que lhe oferecera hospedagem em sua casa que funcionava como uma espécie de albergue. Como fazia um tempo que o Peregrino Russo não se dedicava à Oração do Coração, este demonstrava uma certa inquietação e uma vontade de afastar-se da conversa barulhenta dos outros hóspedes da família ortodoxa. Ele, no entanto, notara que o seu coração tinha necessidade de fazer-se um com a sua consciência para que a oração pudesse fluir sem impedimentos:

Eu sentia em mim uma fome de oração, uma violenta necessidade de deixá-la brotar, pois fazia dois dias que eu não passava momentos de tranquilidade e silêncio. Sentia no meu coração uma espécie de maré crescente, prestes a transbordar e a se espalhar por todos os meus membros. Como eu a retivesse, senti uma dor aguda no coração – mas era uma dor benfazeja que simplesmente me impelia à oração e ao silêncio. Compreendi, então, por que os verdadeiros adeptos da oração perpétua fogem do mundo, escondendo-se de todos; (ANÔNIMO DO SÉCULO XIX, 2008, p. 120).

Vê-se, portanto, como o Peregrino Russo já havia sido tomado pela prática da Oração do Coração. A prece já havia entrado no seu centro vital de forma que ela começava a quase executar-se por si só. O Peregrino Russo ressaltou a tendência ao isolamento que pode acometer os hesicastas que trocam o convívio humano pela fuga do mundo para dedicarem-se à oração perpétua. Quanto a este risco, é importante ressaltar que a vida cristã autêntica é compreendida pelos teólogos como sendo a união da ação e da inação. Se o hesicasta escolhe o isolamento, tal experiência mística poderia certamente ser posta em dúvida: “O místico que só quer a experiência mística, sem compreender a mística, sem querer ser útil aos outros, que esquece tudo e todos para fruir da experiência mística, pode ser comparado a bêbedo espiritual” (TOMBERG, 1989, p. 58).

Conclusão

A Mística do Coração, conforme o estudo das principais obras sobre a mística cristã ortodoxa russa, tem como pressuposto a noção de que o coração, para além da noção de emotividade e afetividade, é o local onde todas as dimensões da pessoa humana se encontram. Além disso, é importante ter presente que tradição contemplada neste artigo também considera que o coração é o local onde é possível haver o encontro entre a pessoa e Deus. Sendo assim, percebeu-se como toda essa noção está presente – em alguns momentos de forma implícita; noutros, de forma mais explícita - nos Relatos de um Peregrino Russo. A fortuna crítica utilizada neste livro ajudou a revelar como o principal personagem da narrativa estava impregnado da mística do coração. Através da espiritualidade solidamente fundamentada na Philokalia e na recitação da Oração do Coração, o Peregrino Russo foi-se tornando, gradualmente, uma espécie de homem celestial.

Percebe, desta forma, como as principais características da mística cristã ortodoxa russa estão consonantes nos Relatos de um Peregrino Russo: a participação na Divina Liturgia, a presença de um Stárets, a leitura intensa das Sagradas Escrituras, o estudo aplicado da Philokalia e a prática do hesicasmo com o auxílio de um komboskini. Todas estas práticas puderam colaborar para a recuperação das asas que, conforme Tomberg (1989), o homem primordial tinha. No Peregrino Russo, a aparição de tais asas se deu de forma espiritual através do seu crescente contato com Deus e consciência da sua própria dimensão celestial. Espera-se, assim, que este artigo contribua para os estudos que relacionam a teologia e a literatura russa.

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Notas

[1]Este artigo traz um recorte expandido de um capítulo da dissertação de mestrado intitulada Um Caminho entre a Literatura e a Espiritualidade: As Ressonâncias do Hesicasmo nos Relatos de um Peregrino Russo. Agradecemos a Ribanna Martins de Paula a leitura crítica de uma versão prévia deste artigo. Eventuais erros e incoerências, entretanto, são de nossa exclusiva responsabilidade.

[2]Cf. FRENCH, R. M. (1965).

[3]Cf. FRENCH, R. M. (idem).

[4]Algo como “narrativas sinceras de um peregrino ao seu pai espiritual”.

[5]Do russo: ancião. Cf. ŠPIDLÍK, T. in: BORRIELLO, L. 2003, p. 744.

[6]Do grego amor pela beleza, a Philokalia é composta por diversos textos compostos por diversos autores da cristandade oriental ao longo de, aproximadamente, 1000 anos. Tais textos foram compilados no século XVIII por dois monges da Igreja Oriental, a saber: Macário de Corinto e Nicodemos da Montanha Santa.

[7]A palavra Hesicasmo pode ser traduzida por a arte da quietude e refere-se à prática meditativa característica da Igreja de tradição bizantina.

[8]Cf. Carson McCullers. The Heart is a Lonely Hunter. Boston: Houghton Mifflin, 1940.

[9]“Adieu, dit le renard. Voici mon secret. Il est très simple: on ne voit bien qu’avec le cœur. L’essentiel est invisible pour les yeux” (SAINT-EXUPÉRY, 1987, p. 72).

[10]«La notion du cœur - écrit B. Vyšeslavcev - occupe la place centrale dans la mystique, dans la religion et dans la poésie de tous le peuples. Maints auteurs orientaux prennent le cœur comme emblème pour se distinguer de l’Occident «rationaliste» qui semble assez souvent oublier que le fondement de la vie chrétienne est le cœur. En fait, que de fois nous rencontrons le mot cœur dans la spiritualité orientale! On parle de la garde de cœur, de l’attention au cœur, de la pureté de cœur, des pensées, désirs et résolutions du cœur, de la prière du cœur, de la présense divine dans le cœur, etc.» (ŠPIDLÍK, 1978, p. 105-106).

[11]Escritor cristão egípcio do século IV.

[12]Escritor cristão dos Bálcãs do século IV.

[13]Escritor cristão grego do século III.

[14]Escritor cristão alemão do século XIV.

[15]Escritor cristão alemão do século XVI.

[16]A teologia néptica – do grego, népsis (νῆψις), sobriedade, vigilância – seria a teologia ortodoxa por excelência, pois seria feita por pessoas que já tivessem passado pela longa catarse que precederia a sobriedade vigilante necessária para o estudo sistemático da teologia.

[17]It means that the human person is a profound mystery, that I understand only a very small part of myself, that my conscious ego-awareness is far from exhausting the total reality of my authentic Self. But it signifies more than that. It implies that in the innermost depths of my heart I transcend the bounds of my created personhood and discover within myself the direct unmediated presence of the living God (WARE. In: CUTSINGER, op. cit., p. 9).

[18]Throughout the Bible, the heart is generally understood in an inclusive sense. Just as there is no head/heart contrast in Scripture, so there is no separation between body and soul. The heart does not denote the body to the exclusion of the soul or the soul to the exclusion of the body, but it embraces both of them together. “Cardiac anthropology” is in this way holistic: the human being is envisaged as a psychosomatic totality, an undivided unity. The heart, that is to say, is at one and the same time a physical reality—the bodily organ located in our chest—and also a psychic and spiritual symbol. Above all it signifies integration and relationship: the integration and unification of the total person within itself, and at the same time the centering and focusing of the total person upon God. (WARE, op. cit., p. 8)

[19]«Principe de l’unité de la personne le cœur donne aussi une stabilité à la multiplicité des moments successifs de la vie» (ŠPIDLÍK, 1978, p. 105-106).

[20]But, if the heart must always be ardent, the spirit must remain calm, for it is the spirit which is the guardian of the heart. For the ascetic tradition of the Christian East, the heart (ή κὰρδία) is the centre of the human being, the root of the ‘active’ faculties, of the intellect and of the will, and the point from which the whole of the spiritual life proceeds, and upon which it converges (LOSSKY, 1976, p. 200-201).

[21]Cf. Leloup (2003).

[22]The Desert Fathers and Mothers recognized that it takes a long time to become a human being. It takes an infinitely patient waiting to put together all the variegated parts of the human heart” (CHRYSSAVGIS, 2003, p. 59).

[23]“The Christian mystic, …, entering into himself, and enclosing himself in the ‘inner chamber’ of his heart, finds there, deeper even than sin, the beginning of an ascent in the course of which the universe appears more and more unified, more and more coherent, penetrated with spiritual forces and forming one whole within the hand of God” (LOSSKY, 1976, p. 106).

[24]Sem tradução para o português brasileiro até o momento da escrita deste artigo.

[25]Do grego, φιλαυτíα, filautia, amor de si contra si. Cf. Paulo Ricardo Azevedo Junior. Um Olhar que Cura: Terapia das Doenças Espirituais. São Paulo: Editora Canção Nova, 2008.

[26]Homo Cordis Absconditus” (1 Pd, 3: 4).

[27]“The intellect, strengthened by the invocation, finds its connections with the heart again, and this, or rather the presence in it, becomes conscious. Intellect and heart together form that heart-spirit in which a person collects, opens, unifies, harmonizes and enlarges himself infinitely. It properly constitutes the ‘place of God’” (CLÉMENT, op. cit., p. 204).

[28]“Man must live according to the spirit; the whole human complex must become ‘spiritual’ (πνευματικός), must acquire the ‘likeness’. It is in fact the spirit which becomes united with baptismal grace, and through which grace enters into the heart, the centre of that total human nature which is to be deified. ‘The uniting of the spirit with the heart’, ‘the descent of the spirit into the heart’, ‘the guarding of the heart by the spirit’ – these expressions constantly recur in the ascetic writings of the Eastern Church. Without the heart, which is the centre of all activity, the spirit is powerless. Without the spirit, the heart remains blind, destitute of direction. It is therefore necessary to attain to a harmonious relationship between the spirit and the heart, in order to develop and build up the personality in the life of grace – for the way of union is not a mere unconscious process, and presupposes an unceasing vigilance of spirit and a constant effort of the will” (LOSSKY, op. cit., p. 201, 202).

[29]Do grego θιλοκαλία (philokalia). Significa amor pela beleza. Trata-se de uma coletânea de textos patrísticos acerca da oração hesicástica. Cf. OLIVEIRA, 2018c, p. 14.

[30]Cf. OLIVEIRA, 2018c, p. 80-81.

[31] Do russo: ancião. Cf. OLIVEIRA, 2018c, p. 18.

[32]Das quais as quatro primeiras apresentam uma narrativa mais fluida, enquanto que as três últimas apresentam um adensamento do conteúdo teológico do Hesicasmo.

[33]Entre eles Kiev, Odessa e Jerusalém.

[34]Espécie de rosário típico da tradição cristã oriental.

[35]Esta é uma das sentenças do Abba Pambo, um monge e sacerdote egípcio que fora considerado posteriormente por São Jerônimo – o principal tradutor das Escrituras para o latim – como um dos grandes mestres da espiritualidade do Deserto.

[36]Valentin Tomberg, filósofo russo, é um dos principais estudiosos no que concerne a espiritualidade prática. Seu principal livro, Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô, é um dos maiores estudos sobre a temática. Publicado no anonimato, sua autoria foi descoberta recentemente.

[37]Cf. Marcelle Auclair. Teresa de Ávila. São Paulo: Quadrante, 1995.

[38]Do grego: tranquilidade. Cf: BÖLTING, Rudolf. Dicionário Grego-Português. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1953.

[39]Do grego: quietude. Cf. BÖLTING, Rudolf. Dicionário Grego-Português. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1953.

[40]Do grego: sobriedade. BÖLTING, Rudolf. Dicionário Grego-Português. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1953.

[41] Trata-se da luz que três dos discípulos do Cristo experimentaram no Monte Tabor no episódio da Transfiguração. Conforme os hesicastas, tal luz seria também experimentada por um santo que tivesse passado pela União com Deus. Cf. LOSSKY (1983).