O Padre e a Peste: e o método Karamázov
The Father and the Plague: and the Karamazov method

Rafael de Castro Lins *
* Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email: dicastro.rc@gmail.com.
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Para voar é preciso amar o vazio. O vazio é
o espaço da liberdade, ausência de certezas.
Os homens querem voar, mas temem o
vazio. Não podem viver sem certezas.
Rubem Alves

 

Resumo
No romance A Peste, o literato franco-argelino, Albert Camus, alçou pensar o tema da teodiceia cristã, especialmente através da figura do padre Paneloux. O recorte consiste na análise deste personagem. O intento é notar como Camus assume a teodiceia cristã sob o formato de uma abstração religiosa que será posta em choque com a realidade torturante da peste. Nestes termos se traduz a história do padre Paneloux, ou seja, no seu esforço racional e dogmático para explicar religiosamente a presença do mal e do sofrimento no mundo, sem contanto negar a crença em Deus. Seguir a trajetória deste padre permite conferir a desconstrução das abstrações ante a força esmagadora da evidência do mal e da morte. Por assim dizer, a teodiceia que acompanha o padre se revelará tal como é, abstração, diante da tortura acompanhada, minuto a minuto, de uma criança inocente acometida pelos sintomas da peste. Este episódio emblemar do romance mostrar-se-á, nesse ínterim, um vestígio revelador da influência romanesca do literato russo, Fiódor Dostoiévski, sobre a obra camusiana. Isto é, no mirar deste artigo, é possível notar como Albert Camus apropria-se do linguajar de Ivan Karamázov para enfrentar as abstrações religiosas do padre Paneloux.

Palavras chave:C. S. Lewis; As Crônicas de Nárnia; Sistema literário; Polissistema; Sociologia da leitura

 

Abstract
In the novel The Plague, the French Algerian writer, Albert Camus, sought to think the theme of Christian theodicy, especially through the figure of Father Paneloux. The objective is to realize how Camus assumes Christian theodicy in the form of a religious abstraction that will be sought thinking with the torturous reality of the plague. In these terms is translated the history of Father Paneloux, that is, in his rational and dogmatic effort to religiously explain the presence of evil and suffering in the world, without denying belief in God. Following the trajectory of this priest allows conferring the deconstruction of abstractions before the overwhelming force of the evidence of evil and death. In other words, the theodicy that accompanies the priest will reveal itself as it is abstraction, in the face of torture accompanied minute by minute by an innocent child affected by the symptoms of the plague. This emblematic episode of the novel will show in this context a revealing vestige of the Romanesque influence of the Russian writer, Fyodor Dostoevsky, on the Camusian work. That is, at this article, it is possible to see how Albert Camus appropriates the language of Ivan Karamazov to face the religious abstractions of Father Paneloux.

Keywords:The Plague. Theodicy. Abstraction. Albert Camus. Ivan Karamazov.

Introdução

Nascido em um período conturbado da história, Albert Camus foi um notável literato franco-argelino que viveu sob o espectro de duas Grandes Guerras Mundiais. Perdeu o pai, ainda criança, no despontar da Primeira Guerra. Lucien Auguste Camus foi abatido em batalha, partiu sem deixar nenhuma lembrança na mente do filho (CAMUS, 1979, VIII). Uma vez adulto, Albert Camus testemunhou de perto os horrores da Segunda Guerra Mundial. Longe de sua Argélia natal, Camus se encontrava em solo francês quando os exércitos alemães ocupavam a França, no ano de 1940, em pleno curso da Guerra (GRENIER, 1987, p. 150).

Imerso, completamente, nesse contexto de ebulição bélica, de sombras que encobriam a Europa do XX, Albert Camus publicou seu romance mais famoso, O Estrangeiro de 1942. Nesse mesmo ano publicou O Mito de Sísifo, uma obra espelho que – aos moldes de um ensaio filosófico – retoma os temas essenciais d’O Estrangeiro. Ainda no decorrer da Grande Guerra, compôs e ultimou peças teatrais como O Equívoco e Calígula – peças essencialmente trágicas que trazem à cena uma Europa acuada pelo terror e pelo medo. Imediatamente após a Segunda Grande Guerra, Camus completara sua obra medular, em 1947, a mais bem elaborada delas, o romance A Peste.

O próprio Camus confirmaria mais tarde que A Peste teceu alegorias à Guerra1. O conteúdo tornara-se de sobremodo evidente aos franceses, especialmente quando a cidade de Oran é isolada – sitiada – para conter a agressiva epidemia de peste. Os portões da cidade se fecham com o inimigo dentro dela. A alegoria se torna ainda mais inequívoca quando, a certa altura do romance, os bondes da cidade são usados para o carrego dos cadáveres da peste para o fogo crematório – nos cemitérios demasiados cheios já não havia onde enterrá-los. Albert Camus estetizou essa imagem farta de reminiscências: “e desviou-se a linha para o forno, que se tornou, assim, uma estação final” (CAMUS, 2013c, p. 158). Imediatamente as memórias da Guerra associam-se e reveem os trens nazistas carregados de judeus, conduzindo-os também em direção à morte – sua estação final. O professor de literatura, Nilson Adauto, confirma essa imagem tétrica quando diz que “no auge da peste, a evocação, no texto, dos cadáveres evacuados por bondes, num anonimato desumanizante, das fossas comuns e dos ‘fornos crematórios’ é a imagem do extermínio nos campos de concentração” (SILVA, 2008, p.67).

Entrementes, no interior desse quadro de horrores, Camus dedica grande parte de A Peste para discorrer acerca de um padre. De pronto, pode-se dizer que o padre Paneloux tonar-se-á essencial ao romance. Pois, ele carrega imbuído em si a grande questão que, deveras, acompanha a reflexão cristã desde as origens do Cristianismo, o problema da teodiceia. O desafio desse padre – e da teodiceia por assim dizer – é conciliar a Providência e a peste, a abstração retórica argumentativa com a realidade lacerante da peste – ou da Guerra. Ao cabo, falar de religião nesses dias de Albert Camus também implica na coragem existencial de enfrentar o problema da teodiceia, tornado gigante, nutrido pelas Grandes Guerras do século XX. Nos dias de Albert Camus, alegoricamente, seria improvável que o nome de Deus escapasse, ainda que em vão, sem que com ele não se ouvisse o toque de recolher, as bombas ensurdecedoras, os sons de voo dos ataques aéreos ou o alarido demoníaco nos campos de concentração nazistas. Deveras, o que o homem pensa a respeito da vida depende da dor que ele sentiu ou da dor que ele não sentiu. Em dias como esses, em que a realidade inclemente se exibe sem disfarces, pode alguém, por muito tempo, permanecer alheio às questões do sofrimento?

1. O Padre

1.1.Abstrações

Em A Peste, os grandes temas de camusianos apresentam-se de acordo com cada personagem, como a felicidade para Raymond Rambert, a santidade para Jean Tarrou ou a teodiceia para o padre Paneloux. Não obstante, todos os personagem de A Peste transitam pelo espaço comum das abstrações. Alguns personagens personificam a Revolta camusiana, outros se sentem confortáveis com a peste – como Cottard, por exemplo –, mas apenas o Dr. Rieux coadjuva todos os grandes temas do romance. Coadjuvar todas as histórias que compõem A Peste, neste caso, é uma forma peculiar de protagonismo. O Dr. Rieux perpassa as histórias em torno das quais giram os personagens e as ilumina. É mister não o confundir com um herói, alguém cuja convicção alvorece o problema ou fixa dogmas e julgamentos – quase nada disso corresponde ao nosso autor. Contudo, há veracidade em dizer que Bernard Rieux é o personagem mais acabado de Camus e que dele despontam perspectivas novas para antigas questões. Em outras palavras, o doutor Rieux é a melhor proposta existencial camusiana para um mundo Absurdo. O que lho faz o protagonista dessa história.

Entre outros, o grande tema que entrecruza o romance é o da abstração travestida nas mais diversas aparições, como quando sustém em sua retórica a pena de morte, ou quando atribui poder às entidades de natureza abstrata como o Estado e outros órgãos administrativos – tão providos de inumanidade. A religião cristã surge, assim, no entretempo do romance, como mais um poderoso disfarce de abstrações, e como tal só pode revelar-se ante a força esmagadora da evidência.

A Peste não aparenta, contudo, preocupar-se em definir as abstrações conforme cada situação em que o termo surge. Não obstante, Camus recorre, insistentemente, ao auxílio das vítimas como um antídoto que impede a alienação e desvela um mundo de abstrações. A crueza nauseante com que Camus descreve o sofrimento de uma criança, tomada por tremores e outros sintomas da peste, tem como objetivo último lançar-nos de vez para fora do amortecimento das abstrações2. Por ora, é mister notar que acompanhar aquele pequeno crucificado que oscilava entre lágrimas e suor, entre a crise e o repouso, libertou os principais personagens do romance das cadeias da abstração. Rieux, Tarrou, o padre Paneloux e mais alguns outros acompanham tortura do infante

Tinham visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã. E, naturalmente, a dor infligida a esses inocentes nunca deixara de lhes parecer o que era na verdade, isto é, um escândalo. Mas até então ao menos escandalizavam-se abstratamente, de certo modo, pois nunca tinham olhado de frente, tão longamente, a agonia de um inocente (CAMUS, 2013c, p. 187-188, grifo nosso).

Nesse mirar camusiano, a abstração é um sofisticado recurso de distanciamento do real que, na prática e ao cabo, torna o mal passível de justificação. Compor esbarrões abruptos com o sofrimento, fazê-los ver a dor em seus detalhes, escandalizá-los, eis o método camusiano para demovê-los das abstrações. Esse método literário será aplicado em cada um dos protagonistas do romance, e entre eles o padre Paneloux. De certo o padre transparece a linguagem da abstração, o que o submete a críticas, além de entregá-lo, de início, à antipatia do romance. Não obstante, as abstrações que regem palavras e posturas do padre apresentam-se nas molduras familiares da religião. Sem mais, a religião cristã, protagonizada pelo padre Paneloux, assume no romance o lugar reservado às histórias de abstração

1.2. Fontes cristãs

O padre Paneloux era um homem de letras, um jesuíta erudito atento às demandas modernas, além de um profundo estudioso de “Santo Agostinho e [da] Igreja africana” (CAMUS, 2013c, p. 84). A referência a Agostinho alude à dissertação que Camus escrevera em sua juventude – para a obtenção do Diploma de Estudo Superiores – intitulada Metafísica Cristã e Neoplatonismo (CAMUS, 1965, p. 1224). No desenrolar deste trabalho acadêmico, o jovem Camus percorreu sumariamente a evolução do Cristianismo nos quatro primeiros séculos da era cristã, e a decisiva colaboração grega/neoplatônica na formação e acabamento da Metafísica Cristã. Nesse ínterim, poder-se-á notar que o emblemático sermão que se segue, proclamado oratoriamente impecável pelo padre Paneloux, corresponde ao conhecimento antecipado que Camus conserva, desde a juventude, acerca do Cristianismo. O escritor se fundamenta em pesquisas de tempos acadêmicos que rememoram um Cristianismo primitivo, bem como em impressões da atualidade, como deixa transparecer a fala do Dr. Rieux em conversa com o amigo Tarrou: “Vivi demais em hospitais para gostar da ideia de castigo coletivo. Mas, como sabe, os cristãos falam às vezes assim, sem que realmente o pensem. São melhores do que parecem” (CAMUS, 2013c, p. 112). O doutor referia-se à prédica do padre, austeramente punitiva como se notará doravante.

Outra referência à igreja de seus dias fora desvelada pelo próprio autor, em dezembro de 1948 – aproximadamente um ano após a publicação d’A Peste. Na ocasião, Camus escrevera o artigo Pourquoi L’Espagne (CAMUS, 1965, p. 391) em resposta às críticas e dúvidas de Gabriel Marcel à adaptação teatral Estado de Sítio. Inspirada em A Peste, a peça sofreu comparações inevitáveis com o romance, uma delas particularmente diz respeito ao tom ameno, até complacente, com que o romance dispõe a igreja cristã e a crise do padre Paneloux. Esta mesma imagem tolerável não fora levada aos palcos, e o autor foi convidado a explicar “o papel desprezível” que a igreja recebera na adaptação para o teatro. Com brevidade, Camus respondeu-lhes do seu desejo pessoal de fazer justiça, através do romance, aos amigos cristãos que ao seu lado resistiram à Ocupação Alemã. Com efeito, a certa altura do romance, o padre unir-se-ia às equipes profiláticas de resistência à peste. Quanto ao espetáculo Estado de Sítio e ao lugar odioso da igreja no desenrolar da peça, Camus se explica com vistas à realidade da igreja cristã na Espanha – lugar onde se passa o drama –, fazendo referências ao real papel odioso da igreja cristã na história desse país, uma ferida de alhures que a Europa não esqueceria facilmente (CAMUS, 1965, p. 394).

Ao fim, as fontes camusianas das quais ele recolhe um conteúdo cristão são, sobretudo, impressões do tempo somadas às pesquisas acadêmicas de um período ainda imaturo do autor. No mais, Camus se documentou acerca das grandes pestes da Europa (TODD, 1996, p. 284) e, notavelmente, a maior parte das alusões a este levantamento teórico integram a retórica dos sermões do padre Paneloux. Em outras palavras, todas as referências aos episódios históricos de peste são feitas ao longo dos sermões do padre, salvo o susto inicial da descoberta da doença pelos médicos de Oran – que os fez rememorar os milhões de mortos e os terríveis sintomas da peste, registrados como em um conto de terror. O padre não só se utilizou dos exemplos históricos de peste, das narrativas que lhe serviam como lição, como também trouxe a Bíblia – os juízos do Primeiro Testamento – para legitimar suas verdades (CAMUS, 2013c, p. 86). Tais indícios textuais alargam o número de fontes pelas quais passou o autor, além de sinalizar o seu conhecimento prévio das escrituras bíblicas. Por último, como se avistará logo, algumas questões perturbadoras do texto fazem eco ao romance russo Os Irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiévski. Eis as principais referências de Camus, sobre elas uma compreensão própria do Cristianismo fora tecida e singularmente apresentada em A Peste, bem como na própria trajetória do padre Paneloux.

2. As abstrações de um padre

A religião não obtivera um espaço relevante entre os cidadãos de Oran, nem antes nem depois da peste. As impressões de Camus novamente capturam a contemporaneidade de um mundo liberto das obrigações religiosas, o que não os impedia de, diante da crise, voltarem-se à religião redobrando as preces e as visitas à igreja. Através de uma frase simples, provavelmente tomada do cotidiano, Camus definiu um sentimento comum à maior parte dos fiéis que assistiram o sermão do padre Paneloux: “De qualquer maneira, mal não pode fazer” (CAMUS, 2013c, p. 85). Este sentimento de ineficácia da religião – para o bem ou para o mal – representa o lugar da igreja cristã no século XX. O dia a dia da morte de Deus, em sua consistência mais objetiva, revelava-se aos domingos de manhã quando “os banhos de mar fazem séria concorrência à missa” (CAMUS, 2013c, p. 85). Dessa forma, a inserção da igreja no centro da história da peste realça contrastes, como se outro corpo estranho além da peste invadisse aquele cenário moderno de comércio, trabalho, cafés e prazeres simples. Na cidade da peste eram vãs as palavras de um velho que todas as tardes advertia os transeuntes, proclamando: “Deus é grande, vinde a Ele”. Adiante, Camus traduzia aquele espírito moderno ensurdecido aos apelos piedosos: “Todos se precipitam, pelo contrário, para qualquer coisa que conhecem mal ou que lhes parece mais urgente que Deus” (CAMUS, 2013c, p. 109). Com fidelidade textual, poder-se-ia definir a Modernidade de Camus como o espaço temporal em que qualquer coisa parece mais urgente que Deus. Em outras palavras: o lugar da religião entre os cidadãos de Oran é, para Camus, o lugar da religião entre os cidadãos do Ocidente.

O padre Paneloux, nesse ínterim, desponta como uma figura complexa: apesar da sua vasta erudição, ele é um moralista cujo discurso ainda remete ao obscurantismo de outras eras. Por outro lado, o religioso era um homem que tecia tratados, expunha conferências “sobre o individualismo moderno” (CAMUS, 2013c, p. 84), ademais, havia nele um espírito caridoso que lhe era particular. Enfim, Paneloux não configura um personagem totalmente negativo – como nenhum o é no romance3. O padre Paneloux, inicialmente, é apresentado como uma imagem antiquada que, através da fé e do conhecimento, resiste à Modernidade, mas sem retroceder à Idade Média (CAMUS, 2013c, p. 84).

A abstração, sobretudo aquela erigida sobre convicções religiosas, não se susterá diante da dureza da realidade. Nestes termos traduz-se a história do padre Paneloux. Sua abstração nevrálgica – que também é a das religiões de um modo geral – consiste no esforço racional e dogmático para explicar religiosamente a presença do mal e do sofrimento no mundo, sem contanto negar a crença em um Deus bom e todo-poderoso. Conciliar a presença de Deus e do mal no mesmo mundo, ou da Providência e da peste na mesma história, é a árdua tarefa das teodiceias – é um esforço de abstração protagonizado pelo padre Paneloux.

Muito já foi dito acerca das teodiceias4. Por conseguinte, o objetivo que orienta nosso olhar recai, no momento, sobre a tentativa do padre Paneloux de desfazer, retoricamente, a impossibilidade de conciliar a crença em Deus e a existência do mal. Por ora, uma pequena explanação de Weber basta para a introdução do tema:

[...] quanto mais próxima a concepção de um deus único, universal e supramundano, tanto mais facilmente surge o problema de como o poder aumentado ao infinito de semelhante deus pode ser compatível com o fato da imperfeição do mundo que ele criou e governa (WEBER, 1991, p. 351).

As teodiceias nascem de uma necessidade abstrata de compreensão, nascem da exigência interior de coadunar um Deus abstrato – concebido idealmente sobre amor e poder – com um sofrimento de caráter concreto e irrefutável. Em outras palavras, as teodiceias surgem de uma necessidade de coerência entre interior e exterior, entre o espírito e a realidade, entre o que o homem guarda dentro de si e o que o mundo lhe impõe. Nascem desse apetite de clareza, demasiado humano, diante dos fenômenos que lhe saltam aos olhos e, amiúde, o ferem. A teodiceia há – e com animada loquacidade – porque o mundo bufa silêncios ante a naturalidade do sofrimento humano ou diante da inevitabilidade da morte. O Mito de Sísifo intui o nome deste atropelo da vontade humana – coagida à abstração – por um mundo despropositado, chama-o Absurdo (CAMUS, 2013a, p. 38-39). À vista disso, apenas nos níveis da abstração, o homem recobra a unidade que sua nostalgia sempre nutriu. “Compreender – afirma o filósofo – é antes de mais nada unificar.” E prossegue o arrazoado:

O desejo profundo do próprio espírito em suas operações mais evoluídas une-se ao sentimento inconsciente do homem diante do seu universo: é exigência de familiaridade, apetite de clareza. [...] o espírito que procura compreender a realidade não se pode dar por satisfeito sem reduzi-la em termos de pensamento (CAMUS, 2013a, p. 30-31).

Elucubrando teodiceias, à sua maneira abstrata, o religioso satisfaz seu apelo por unidade, nelas ele acalma angústias provocadas por uma realidade incompreensível e torturada. O Absurdo, ao contrário, não aplaca a nostalgia do homem, ele “fixa seus limites, porque é impotente para acalmar sua angústia” (CAMUS, 2013a, p. 56). E, neste ponto, Camus toca a substância teórica com que entreteceu seus personagens principais, Rieux e Tarrou, homens que recusaram os consolos abstratos da fé: “que essa nostalgia seja um fato [pontua o filósofo], porém, não implica que deva ser imediatamente apaziguada” (CAMUS, 2013a, p. 31). Antes as angústias de uma realidade incompreensível, fragmentada e assolada pelo sofrimento, a nutrir-se de abstrações (CAMUS, 2013a, p. 49-50). As perguntas nascidas do sofrimento, da peste ou da morte, foram relegadas ao silêncio do mundo, precisamente neste vácuo de respostas se instalam as teodiceias, explicações que apaziguam um incômodo sentimento de Absurdo, assim como suprimem – mas não necessariamente – o imperativo da Revolta.

Por fim, teodiceias são abstrações religiosas que dizem o que Deus não o diz. Porque Deus se calou no seu profundo mistério imperscrutável, as explicações humanas se tornam esperadas e talvez até necessárias. No interior das próprias teodiceias dorme a ausência de Deus, ainda que para o fiel ela permaneça inconsciente. Um velho que contava grãos-de-bico para marcar o tempo, em conversa com Tarrou, expressara com algumas poucas palavras vagas a ausência oculta contida nas explicações do padre Paneloux: “tinha dito pouco depois a Tarrou que, certamente, Deus não existia, já que, de outro modo, os padres seriam inúteis” (CAMUS, 2013c, p. 106). O silêncio de Deus diante da aflição do mundo requer padres que arduamente fiem, dia e noite, um largo número de teodiceias que sejam conforme as dores peculiares de cada tempo. Ou dito de outra, é porque não há Deus que há tantos religiosos tão ávidos para explicar o sofrimento. A negativa camusiana para com o primeiro sermão do padre Paneloux, mais do que antiteísmo, traduz uma postura existencial de escândalo perpétuo na presença do mal, sem conceder-lhe o benefício da abstração, sem permitir que a fé o mascare e o torne o que não é, cognoscível e aceitável. Enfim, a negativa camusiana aponta para uma tentativa de salvaguardar a lucidez a todo custo, uma postura de enfrentamento ao que escamoteia o Absurdo da condição humana. Camus desembaraça uma visão angustiante e, apesar do horror que vê, cuida para que ninguém a esconda novamente. Teodiceias são embaraços que turvam a real imagem da vida. Por iniciativa do próprio padre Paneloux, entrementes, forjar-se-á um confronto entre as abstrações da teodiceia e a vivência terrificante da peste. Deste choque novas perspectivas abrem-se para análise.

2.1. Um padre de joelhos

Nas palavras iniciais do padre o sermão fora entregue, em um ímpeto gesticular “atacou a assistência com uma única frase veemente e martelada: ‘Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes’ [...] por um hábil processo oratório, o padre tinha dado de uma só vez, como um golpe que se desfecha, o tema de todo o seu sermão” (CAMUS, 2013c, p. 86). O que daí se estende são argumentações bíblicas, históricas e emocionais que embasam a retórica do padre. A primeira delas retornou ao livro do Êxodo e à história da peste que fora lançada sobre o Egito. Segundo o religioso, aquela praga atendia a um propósito divino, fazer cair um inimigo de Deus – quedá-lo até pô-lo de joelhos. É preciso notar que logo de início, através de um único argumento, o padre justificou o flagelo, fez-lho até necessário. O sermão do padre acolheu o mal e pôs-se em sua defesa. Obviamente não era o sofrimento que ele pretendia proteger, ansiava, contudo, salvaguardar Deus.

Depois do golpe imperativo de voz – ao fundo caía a chuva redobrada –, os ouvintes, um a um, deslizavam da cadeira até cair de joelhos (CAMUS, 2013c, p. 86). Paneloux era, antes de tudo, um personagem ativo no combate à peste, apesar disso, Camus confessa implicitamente que discursos como esse refreiam a Revolta – são obstáculos ao trabalho necessário de enfrentamento do flagelo. Passagens textuais surgem intervaladas, referenciando o sermão do padre Paneloux, a fim de desconstruí-lo com o auxílio da experiência concreta: como quando o narrador se detém em descrever a formação das equipes profiláticas voluntárias no combate à epidemia, opiniões das mais diversas surgiram:

Muitos moralistas novos da nossa cidade diziam então que nada servia para nada e que era preciso cair de joelhos. E Tarrou, Rieux e os amigos podiam responder isto ou aquilo, mas a conclusão era sempre o que eles sabiam: era preciso lutar, desta ou daquela maneira, e não cair de joelhos. Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrerem e de conhecerem a separação definitiva. Para isso, havia um único meio – combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas consequente (CAMUS, 2013c, p. 119, grifo nosso).

O sermão do padre Paneloux enfrentava, claramente, a negação crítica do autor. Ainda que a experiência alerte para a possível autenticidade dessa premissa – “nada serve para nada” –, A Peste atende aos propósitos da Revolta, ao enfrentamento do flagelo apesar de sabê-lo invencível. Ao notar que se tratava de uma luta interminável, Camus toca preciso no coração do seu romance: “Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrer e de conhecer a separação definitiva”. Eis uma síntese puramente camusiana da Revolta. Certa feita, Tarrou arguiu o amigo, o Dr. Rieux, trazendo à conversa o fatalismo daquela empreitada: “[...] Mas suas vitórias serão sempre efêmeras, mais nada. O semblante de Rieux pareceu anuviar-se. – Sempre, bem sei. Não é uma razão para deixar de lutar. [Tarrou concordou] – Não, não é uma razão” (CAMUS, 2013c, p. 115).

A prédica do padre, paulatinamente, sofria confronto com a realidade da peste. O abalo que fez ruir a estrutura do sermão, despindo-o da bela oratória ou do suporte bíblico, foi, em definitivo, a morte do filho do juiz Othon. A forma como a peste torturou o garoto, antes de levá-lo prematuramente, repeliu com violência cada palavra do padre: os planos eternos, a educação divina, nem sequer a retórica do padre foi poupada daquele ataque abruto de realidade. O rompante de negação à prédica alude ao desespero que tomou o padre Paneloux, no instante em que, aos suplícios, a boca da criança se abria aos brados como “um protesto monótono” que se fez sentir em todos os presentes.

Paneloux olhou para a boca infantil, conspurcada pela doença, cheia desse grito de todas as idades. E deixou-se cair de joelhos e todos acharam natural ouvi-lo dizer, com uma voz um pouco abafada, mas nítida, por detrás do lamento anônimo que não cessava: “Meu Deus, salvai esta criança” (CAMUS, 2013c, p. 189).

O episódio exala dor. O que se seguiu após os rogos do padre foi a indigesta morte da criança. Não se pôde ouvi-lo – Camus não o permitiu falar em seu romance –, mas o padre recebera de Deus um “não” inaudito às suas súplicas. A força da evidência dissipava, como o vento a uma nuvem, as abstrações de um padre vencido pela peste – “Uma maré de soluços irrompeu na sala, cobrindo a oração de Paneloux” (CAMUS, 2013c, p. 190). Ouvia-se o pranto mais alto que a prece.

O filho do Sr. Othon compartilhava, em uma única representação, o sofrimento e “o grito de todas as idades”. Vê-lo morrer significou também acompanhar o morrer da esperança. Quer dizer, tendo em vista o estado crítico do garoto, o Dr. Rieux decidiu aplicar-lhe o soro experimental do Dr. Castel (CAMUS, 2013c, p. 186). A criança foi acompanhada, minuto a minuto, na esperança da sua recuperação, da efetividade do soro, da vitória sobre a peste. Morto o garoto, os esforços até ali se mostraram inúteis. Com aquele ser inocente morrera também a esperança, o que os enfraqueceu de sobremodo.

Pouco antes da abertura dos portões da cidade, do cessar da epidemia, o Dr. Rieux externou a natureza dessa esperança torturada, dizia ele que “só havia lugar no coração de todos para uma esperança muito velha e muito taciturna, a mesma que impede os homens de se entregarem à morte e que não é mais que uma simples obstinação em viver” (CAMUS, 2013c, p. 227). Essa velha e sombria esperança, que não se acomoda no futuro, arrola outra objeção à homilia do padre: essa não era a esperança de que o padre falara. Não se trata da esperança que “[vê] sair da obscuridade um rosto divino” (CAMUS, 2013d, p. 107), a esperança que Meursault recusou em O Estrangeiro. Ao contrário, o narrador lembrava que no Natal do ano da peste não se festejou o Evangelho. Aludindo novamente à ingenuidade das crianças, Camus contrapõe a velha esperança de Rieux à jovem esperança de Paneloux:

Na cidade, lúgubre e gelada, algumas crianças corriam, ignorantes ainda do que as ameaçava. Mas ninguém ousava anunciar-lhes o Deus de outrora, carregado de oferendas, velho como o sofrimento humano, mas novo como a jovem esperança (CAMUS, 2013c, p. 227).

Anunciado pelo intrépido padre, o Deus de outrora morreu quando a evidência da morte se fez mais crível que a sua Providência. Dizer que Deus morreu, no ínterim camusiano, é o mesmo que admitir o seu silêncio – é saber que Deus não fala. As esperanças que nele se depositam morrem a cada encontro com a realidade lacerante da peste. As abstrações mais creditadas ruem quando a evidência do mal se impõe de modo inescapável. Nem o Natal pôde salvaguardar a esperança dos oraneses – restou-lhes aquela velha esperança que apenas os impedia de morrer.

Embora Camus não infira uma negação direta à divindade cristã, sua resistência às abstrações religiosas compõe essencialmente a tessitura do romance. A negação que depreende do texto consiste, tão somente, em desconstruir o que fora edificado sobre a abstração. “Um calor de vida e uma imagem de morte, era isso o conhecimento [para Rieux]” (CAMUS, 2013c, p. 254), e sobre nada senão o conhecimento pretendia soerguer juízos e posições filosóficas.

Senhor de seu universo literário, Camus tecia a própria justiça, isto é, a peste que tombou o antigo Faraó bíblico, inimigo de Deus, também pôs um padre de joelhos. No dia em que acompanhou a ira da peste moer uma criança que – estirando-se – “tomou no leito devastado uma atitude de grotesco crucificado” (CAMUS, 2013c, p. 188), o padre Paneloux converteu-se novamente. Rendia-se agora àquele Cristo criança que, ruidosamente, acabava de testemunhar a crucificação. Converteu-se dessa vez às avessas. Caiu do cavalo e desde então via o mundo claramente. Ver claramente, entretanto, não implicava em reconciliação: “[...] a partir do dia em que vira longamente uma criança morrer, pareceu modificar-se. Lia-se no seu rosto uma tensão crescente” (CAMUS, 2013c, p. 193). Quando Paneloux descobrira – naquele relance de malogro – o Absurdo da existência, ele mesmo investiu contra o seu discurso anterior. Em tom sereno e hesitante, o religioso proferira seu segundo sermão que, em grande parte, contradizia o primeiro.

De certo – ao menos até o momento do segundo sermão –, o padre não perdera a fé. Todavia, seu novo discurso orientava-se por um mirar incompativelmente distante das palavras punitivas do primeiro sermão. Desta vez, o religioso tutelou a defesa de uma aceitação singular do sofrimento sem, no entanto, pregar resignação. A peculiar aceitação de que o padre falara requer, de fato, um pouco mais de atenção; entretanto, no momento é mister notar a explícita contradição dessa nova mensagem. Dizia ele:

Não se tratava de recusar as precauções, a ordem inteligente que uma sociedade introduzia na desordem de um flagelo. Não se deviam escutar os moralistas que diziam ser preciso cair de joelhos e tudo abandonar. Era preciso apenas começar a caminhar para a frente, nas trevas, um pouco às cegas, e tentar praticar o bem. Quanto ao resto, porém, era preciso ficar e aceitar entregar-se a Deus, mesmo na morte das crianças, e sem procurar um recurso pessoal (CAMUS, 2013c, p. 199)

O próprio padre Paneloux foi o último a dizer que não adiantaria cair de joelhos e esperar pela salvação vinda dos céus. Nos céus de Camus Deus se calou, e o padre notara tardiamente essa triste notícia anunciada desde outrora, em confissões, pelo Dr. Rieux: “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele, e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala” (CAMUS, 2013c, p. 115). Apesar da constante oposição entre o médico e o teólogo, Paneloux finalmente via o que Rieux descobrira: é preciso desdobrar os joelhos, unir forças e lutar contra a morte – e o que excede a esse conhecimento pertence ao território imperscrutável do mistério. Aos olhos do autor, é tão inútil explicar o inexplicável como é inútil esperar a salvação de onde não há, ao menos, clareza. Se de Deus nada se sabe – exceto abstrações –, o que dele esperar? A experiência, única substância verdadeira de conhecimento para Camus, por fim ensinava o religioso a se levantar e “caminhar para frente” – ainda que desprovido de esperança.

Via personagem, o autor ingressou nesse universo religioso e provocou-lhe uma verdadeira implosão. Não obstante, dos restolhos dessa fé desafiada pela evidência do mal, Paneloux construía uma nova – e herética – perspectiva cristã, afinal “a religião do tempo da peste não podia ser a religião de todos os dias [...]” (CAMUS, 2013c, p. 196-197).

2.2. Inocência e Castigo – o método de Ivan Karamázov

A fim de realçar, outra vez mais, a mudança existencial a que o padre Paneloux fora submetido, uma vez que esteve junto de uma criança enferma – acometida brutalmente pelos sintomas da peste – e viu-a morrer, é indispensável que os contrastes entre seus dois sermões sejam ainda destacados.

Na ocasião da primeira missa, até aquele momento, o padre se encontrava ainda imbuído das abstrações da teodiceia. Fazer do mal algo inteligível, torná-lo culpa dos homens ou dos anjos e fruto de um erro original, é uma explicação que com frequência se recorre nas escrituras canônicas judaico-cristãs desde Adão e Eva – o mito da criação. Com esse propósito o padre referia-se ao livro do Êxodo, queria desenterrar a culpa que principiou o sofrimento, apetecia-lhe explicá-lo. Por fim, o fator provocador da peste era o próprio homem que fez a escolha pelo desprezo ao Criador – “vós o merecestes” dizia o pregador. Insistia em bradar: “sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, o Faraó e Jó e também todos os malditos” (CAMUS, 2013c, p. 88). Em suma, para o padre, os cidadãos de Oran pecaram, a culpa corria-lhes o sangue. Cômodo em sua falta de originalidade, o religioso explicava a morte como salário do pecado.

As teodiceias atendem de tal maneira a exigência humana de compreensão que retornam aos tempos originários, às histórias inverossímeis, anacrônicas ou ulteriores, para dessa forma explicar o sofrimento do presente. Absorve-se o mal nesse discurso até torná-lo instrumento de punição nas mãos de um Deus. Tal como demonstra a tétrica imagem sugestionada pelas histórias da Peste Negra, evocadas pelo padre com uma mescla de fatos históricos, lendas e superstição. Dizia-lhes do “anjo da peste” enviado pelo próprio Deus para punir com a morte os pecadores, “evocou a imensa lança volteando por cima da cidade, atacando ao acaso e erguendo-se de novo, ensanguentada; espalhando, enfim, o sangue e a dor humana ‘para as sementeiras que preparariam as searas da verdade’” (CAMUS, 2013c, p. 88).

A peste, nesse ínterim, é um instrumento de Deus que põe os homens de joelhos. Em uma única assertiva o padre justifica a necessidade daquele mal e, talvez inconscientemente, lhe atribui uma autoria divina. Deus não a quis, ressalva o padre, mas a peste fora necessária para os excelentes e inquestionáveis propósitos eternos. Os escritos de Camus alternam-se entre os céus e a Terra, posto que enfrentam tentativas de justificação do mal e da morte que se apresentam em discursos religiosos e/ou político-racionais. O exercício de desconstrução da homilia do padre segue o mesmo parâmetro daquele que recusa a pena de morte através do personagem Tarrou. Em O Homem Revoltado, esta crítica camusiana tornar-se-á ainda mais direta, voltando-se às construções ideológicas – em especial à política comunista russa – que, por sua vez, amparam a morte sobre justificativas racionais tão abstratas quanto qualquer teodiceia. Religião e política, nesse arrazoado camusiano, incorrem no mesmo equívoco o qual reside a pena capital, a saber: na justificação da morte – no ato de torná-la aceitável através de um parâmetro racional. A aversão à morte, do suicídio ao assassinato, é uma marca ininterrupta da obra camusiana. Admitir a morte sem o devido escândalo – se houvesse pecado para Camus – certamente seria um pecado sem perdão.

A crença na retribuição divina, bem por bem ou mal por mal, desde os escritos bíblicos é questionável, como o revela a história de Jó ou o livro do Eclesiastes. Afirmações categóricas como as do padre Paneloux, que asseguravam o castigo dos maus, foram desditas muito cedo, ao primeiro esbarro com a realidade. Asseverava o padre:

Os justos não podem temê-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e essa desgraça não foi desejada por Deus (CAMUS, 2013c, p. 87).

Sumariamente o pregador esboçava propósitos para o flagelo, o primeiro deles é o castigo dos maus. A concepção de bom ou de mau não fora exposta completamente pelo padre, todavia acusava-os de descaso com a religiosidade (CAMUS, 2013c, p. 88). Camus já admitiu que nunca compreendera bem o significado da palavra pecado (CAMUS, 1979b, p. 39). A despeito disso, ele não poupou clareza quando quis expor a inocência. Para evitar interpretações dúbias, Camus seguira o exemplo literário proposto por Ivan Karamázov – para falar de inocência e sofrimento escolhera uma criança. A descrição demorada de Camus, compondo as pequenas nuanças de agonia e dor do filho do Sr. Othon, rememora a conversa que Ivan tivera com seu irmão Aliócha acerca de Deus e do sofrimento humano em Os Irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiévski. Camus atesta a influência deste último sobre sua obra quando retorna ao tema em O Homem Revoltado (CAMUS, 2013b, p. 74-81). Susan Neiman, ao chegar ao pensamento de Camus, em seu panorama d’O Mal no Pensamento Moderno, constatou a marcante influência deste diálogo dostoievskiano que segue sob um título demasiadamente compatível com o pensamento camusiano: A Revolta. Acresce Neiman:

Ivan Karamázov tornou-se emblema de Camus para o rebelde metafísico, e esse capítulo de Os Irmãos Karamázov foi central para o seu pensamento. O eco que Camus faz dele em seu romance mais importante é muito revelador. O capítulo mais difícil de A Peste é uma descrição agonizante da morte de um menino. Aqui a origem do tormento é tudo menos malévola (NEIMAN, 2003, p. 324).

Em nota, n’O Homem Revoltado, Camus sugere que “Ivan, de certo modo, é Dostoiévski, mais à vontade neste personagem do que em Aliócha” (CAMUS, 2013b, p. 76). O autor de A Peste está convencido que, mediado por Ivan Karamázov, Dostoiévski atinge o cerne da Revolta metafísica, diante da qual o sofrimento humano é tornado injustificável, irredimível e inexplicável

A fim de reduzir a extensão dos seus argumentos, em diálogo com o irmão, Ivan Karamázov restringiu-se aos sofrimentos infligidos às crianças. Inquieto e prolixo, Ivan falava com o aspecto de um louco – o que impressionara o irmão Aliócha – e expunha assim o seu método: “– Ouve-me: peguei só as criancinhas como tema para dar mais evidência ao assunto. Sobre as outras lágrimas humanas, de que toda a terra está embebida da crosta ao centro, não vou dizer uma palavra, restringi de propósito o meu tema” (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 338). O Método Karamázov fora adotado por Camus em A Peste. Em síntese, ele consiste em chocar com a crueza da realidade. Ambos os escritores conferem a força da sua argumentação ao modo esmiuçado, concreto e insuportável com que descrevem o martírio das crianças, uma dor tão bem traduzida que chega tanger – arranhar – a alma dos que a leem. A certa altura do diálogo entre os dois irmãos Karamázov, Ivan relata histórias de martírio em que crianças inocentes são torturadas ou violentamente feitas alvos da crueldade humana. Esse diálogo fora deveras citado por Camus em O Homem Revoltado (CAMUS, 2013b, p. 74-81), o que reduz possíveis dúvidas acerca da influência d’Os Irmãos Karamázov na composição d’A Peste. Doravante, mais intertextualidades se farão notáveis. Por ora basta destacar o suplício do filho do juiz Othon, um texto de verossimilhança coerente com os relatos de Ivan.

A peste flagelou crianças em Oran. A crueldade humana também as flagelou nas histórias de Ivan Karamázov, uma delas em peculiar chama atenção pelos gestos de uma menina torturada pelos próprios pais – trancafiada sozinha em um quarto frio e escuro. Ivan indagava ao irmão:

Compreendes quando um pequeno ser [...] bate com seus punhozinhos minúsculos no peitinho martirizado e chora suas lágrimas de sangue, complacentes e dóceis, pedindo ao ‘Deusinho’ que o proteja ali – tu entendes esse absurdo, [...] entendes para que serve esse absurdo e para que foi criado? [...] Para que conhecer esse bem e esse mal dos diabos a um preço tão alto? Sim, porque neste caso o mundo inteiro do conhecimento não valeria essas lágrimas de uma criancinha dirigidas ao seu ‘Deusinho’ (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 335).

Dostoiévski desenha no imaginário do leitor o suplício perturbador de uma menininha maltratada pelos pais. A imagem não só corresponde ao infante vítima da peste, como também rememora o Cristo agonizante “pedindo ao seu Deusinho” que o privasse do cálice do sofrimento. A moldura do crucificado é um retrato periódico em ambos os escritores e, no que toca Camus e A Peste, a insinuação ao Cristo é visível na morte do filho do juiz Othon. Nenhuma teodiceia escapou àquela agonia insuportável:

Justamente como se lhe mordessem o estômago, o pequeno dobrava-se de novo com um gemido débil. [...] sacudido por calafrios e tremores convulsivos, como se sua frágil carcaça se curvasse sob o vento furioso da peste e estalasse aos sopros repetidos da febre. [...] o menino se retorceu, recuou para o fundo do leito no terror da chama que o queimava [...]. Grossas lágrimas lhe jorravam das pálpebras inflamadas e corriam pela face lívida, e, no fim da crise, exausto [...] a criança tomou no leito devastado uma atitude de grotesco crucificado (CAMUS, 2013c, p. 188).

Nesse paralelo que dispõe discípulo e mentor – Camus ao lado de Dostoiévski e entre eles o sofrimento – poder-se-ia dizer que, como Camus o quisera, daquele calvário acompanhado de A Peste ouvia-se outra vez a voz colérica de Ivan a indagar: “tu entendes esse absurdo?”. O padre Paneloux, que até ali existia sobre certezas, não mais conseguiu encontrar explicações para o sofrimento ou, por assim dizer, não podia desfazer o absurdo que terminara de assistir. O ponto em que chegou Camus fora este o qual as teodiceias não se sustentam, não falam, e o silêncio é o que cabe ao homem, haja vista que “o mundo inteiro do conhecimento não valeria essas lágrimas de uma criancinha...”. O elo de coerência entre os autores no que toca o problema do mal é notável.

O discurso do padre Paneloux não resistiu à crueldade dessa evidência – desse fato atroz. Nesse ponto crucial do romance, o religioso desistiu de explicar a peste. Ora, como novamente afirmar que o flagelo abateria os maus? Rieux, em um ímpeto de violência, devolvia ao padre as palavras de sua prédica: “– Ah! Aquele, pelo menos, era inocente, como o senhor bem sabe!” (CAMUS, 2013c, p. 190). A torre abstrata de justificações cedera com a morte de um inocente. E mesmo se uma nova teodiceia ainda mais consistente nascesse naquele ínterim, a voz de Ivan ouvir-se-ia novamente parafraseada por Camus:

O mais profundo clamor de Ivan, o que abre os abismos mais perturbadores sob os pés do revoltado, é o mesmo se. “Minha indignação persistiria mesmo se eu estivesse errado”. O que significa que, mesmo se Deus existisse, mesmo se o mistério encobrisse uma verdade [...] Ivan não aceitaria que essa verdade fosse paga com o mal, com o sofrimento e a morte infligida aos inocentes (CAMUS, 2013b, p. 75).

Apesar da inquietude do último sermão, a hesitação que o dividia entre o sim e o não, o padre Paneloux evidenciava sinais de transformação, aparentava aceitar as incertezas e até o fim evitou novas teodiceias. Desta vez se negou saltar para além do que sabia, como notara o narrador: “Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podia compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia” (CAMUS, 2013c, p. 196). Paneloux lembrou aos seus ouvintes que a peste estava já há severos meses presente entre eles, bem próxima, cercando-os em suas casas, ruas e cafés. A peste apresentou-lhes a morte como parte do cotidiano. Já era tempo de cessar as explicações e investir contra a morte, “Rieux compreendeu confusamente que, segundo o padre, nada havia a explicar” (CAMUS, 2013c, p. 196).

O padre atingira a positividade no romance, no que se refere à superação das abstrações, ao dosar da lucidez que somente a evidência confere e “não lhe tinham faltado os espetáculos da morte” (CAMUS, 2013c, p. 193). Outros personagens, de um modo menos perceptível, também sofreram choques com o Absurdo, à semelhança do padre Paneloux. É preciso notar, de antemão, que os movimentos camusianos no desenvolvimento da história respondem à relação: abstração e realidade. Sobre esta relação central as histórias ramificadas se desenvolvem, esse é o método camusiano – uma derivação da literatura russa dostoievskiana. No que toca a religião, esses movimentos são mais claros e acabam por alcançar os personagens principais da trama, cada um de um modo singular. O juiz Othon, por exemplo, pai do infante que fora vítima da peste, recebe sobre si a dura educação da peste. Em ocasião da primeira homilia do padre Paneloux, exposto aos benefícios do flagelo e a devida punição divina que recebiam os habitantes do Oran, o Sr. Othon enfatizara “que tinha achado a exposição do padre Paneloux ‘absolutamente irrefutável’” (CAMUS, 2013c, p. 91). Do mesmo modo que o religioso se firmava sobre os dogmas eclesiais, o juiz de instrução fiava-se nas leis como base da sociedade e da sua família. Um e outro – ambos religiosos ao seu modo – foram afetados de maneira decisiva pela peste. Noutra circunstância, com o avançar da doença, o Sr. Othon dizia a Rieux, tentando animá-lo, “que os desígnios da Providência eram insondáveis” (CAMUS, 2013c, p. 130). E de fato o são, visto que nem o padre nem o juiz imaginaram que a ira da peste, ou de Deus, cairia justamente sobre o inculpável Philippe. A primeira vez que Tarrou ouviu o juiz Othon pronunciar o nome do filho sentiu “que alguma coisa mudara” (CAMUS, 2013c, p. 211) naquele pai enlutado. De repente o mundo já não respondia a uma ordem eterna, parecia-lhe imprevisível, parecia-lhe sem lei. Uma força desgovernada que atropela ao acaso. Pelo juiz Othon, Camus propeliu um golpe tímido sobre a ideia de Providência divina, no entanto, não demorou desenvolvendo a crítica, ao menos não como o fez através do padre. Em um trecho curto, emblemático, porém, o Sr. Othon “[...] disse, medindo as palavras, que todos podiam enganar-se. O médico pensou apenas que alguma coisa mudara” (CAMUS, 2013c, p. 226).

A impressão que Rieux teve do juiz também tivera do padre. O médico dizia que havia vivido muito em hospitais para aceitar sem reservas o discurso de castigo divino. Quando a peste fez da cidade de Oran um enorme hospital a céu aberto, nem o juiz nem o padre permaneceram fiéis às suas velhas verdades. De certa forma, Camus suscitava dessas histórias individuais outra conclusão própria de Ivan acerca do sofrimento: “Oh, por minha mísera inteligência terrestre e euclidiana, sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que todas as coisas decorrem uma das outras de forma direta e simples [...]” (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 338).

Por força da evidência, as abstrações ruiriam uma a uma. Permanece somente a certeza do sofrimento. Tentar explicá-lo é perda de tempo – quando muitos pestíferos ainda carecem de ajuda. Resta-lhes, como disse um vigia anônimo do romance, o hábito do silêncio: “É no momento da desgraça que a gente se habitua à verdade, quer dizer, ao silêncio. Esperemos” (CAMUS, 2013c, p. 105).

2.3. Mistérios e Benefícios – o fim da teodiceia

Foi a partir do primeiro sermão do padre Paneloux que o medo tomou o coração dos oraneses, o sermão marca o princípio do desespero coletivo que afligiu a cidade (CAMUS, 2013c, p. 91). O discurso religioso somente realçou um pecado desconhecido que a todos condenou em um só golpe. Camus provavelmente acentuava o desfavor daquele tipo de exposição litúrgica. Todavia, nesse entretempo, não se deve desaperceber a etapa final da homilia, quando o padre pretendera – apesar do efeito inverso – trazer um “imenso consolo” aos seus irmãos ouvintes, “para que não leveis daqui apenas palavras que castigam, mas também um verbo de paz” (CAMUS, 2013c, p. 89).

Mirava trazer paz e consolo, no entanto, somente antecipou o desespero. Camus, espelhando-se em Rieux, tratou com complacência as palavras exageradas do padre, referia-se aos cristãos como ingênuos, “são melhores do que parecem” (CAMUS, 2013c, p. 112). Ao cabo, Paneloux esforçara-se à procura dos benefícios do sofrimento – para dessa forma consolar os seus irmãos de fé. Alçar os propósitos excelsos do sofrimento é ir além da simples retribuição de outrora, vai além da simbiose “culpa e castigo”. A última etapa do primeiro sermão repousou neste além, nos benefícios do sofrimento, nos propósitos ocultos aos olhos dos que sofrem, e na bem-aventurança que os espera.

Ao fim do sermão, o padre revelava-lhes aonde desejava chegar com aquelas palavras;

Quero fazer-vos chegar à verdade e ensinar-vos a vos regozijar, apesar de tudo o que vos disse. [...] Hoje, a verdade é uma ordem. E o caminho da salvação é uma lança vermelha que vos aponta e vos conduz. É aqui, meus irmãos, que se manifesta, enfim, a misericórdia divina que colocou em todas as coisas o bem e o mal, a cólera e a piedade, a peste e a salvação. Este mesmo flagelo que vos aflige, vos eleva e vos mostra o caminho. Há muito tempo os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, para alcançar a eternidade (CAMUS, 2013c, p. 88-89).

Com efeito, o sermão do padre concede ao vazio que jaz ao fundo do sofrimento um propósito. Ao espírito revoltado, porém, palavras desta natureza não bastam, “esse é um raciocínio de outro mundo incompreensível ao coração do homem aqui na terra” (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 329), dizia Ivan ao seu irmão Aliócha. A teodiceia consiste nessa razão erigida em cima do incompreensível, todavia insuficiente para satisfazer os questionamentos de um homem revoltado, de Ivan Karamázov. Ao discutir a respeito desse salto de fé que ultrapassa o Absurdo da existência à procura das razões para o sofrimento humano, Camus resguardou-se: “Tudo o que posso dizer é que, de fato, isso ultrapassa as minhas medidas” (CAMUS, 2013a, p. 49). Para o filósofo argelino, o que o homem possui como evidência sensível é tão somente o sofrimento sem propósito.

O padre Paneloux levantava muros retóricos – racionais até certo ponto e completamente irracionais por fim – para dentro deles proteger o sofrimento do que ele realmente é para Camus, um escândalo. O bem o qual se mira abstratamente abranda, através do discurso, o mal concreto. O sofrimento, assim, é ofuscado pela verdade que reside, misteriosamente, no interior da peste. O preço dessa salvação, o valor dessa verdade velada, diria Ivan, custou a queda de muitos – varridos pela foice ensanguentada do flagelo “para as sementeiras que preparariam as searas da verdade” (CAMUS, 2013c, p. 88). Poder-se-á dizer que o mal, nesse ínterim retórico religioso, não apenas origina-se de Deus, mas também atende a uma finalidade divina. A peste é a antessala da eternidade.

Acompanhar a morte de perto ensina a ver de modo restrito, ou seja, de modo a fronteirar-se dentro dos limites do humano e fora da esfera especulativa. Rieux revelava a Tarrou o que o separava, até ali, do padre Paneloux:

– [...] Paneloux é um estudioso. Não viu morrer bastante e é por isso que fala em nome de uma verdade. Mas o mais modesto padre de aldeia que cuida dos seus paroquianos e que ouviu a respiração de um moribundo pensa como eu. Ele trataria da miséria antes de querer demonstrar-lhe a excelência (CAMUS, 2013c, p. 113).

O último fito do padre foi extrair da peste a sua excelência. Notável como Rieux não se opõe diretamente ao teor religioso ou irracional desse discurso, nega-o, porém, de forma a ressaltar a existência de questões mais urgentes do que entender ou justificar o flagelo. Aqui, como em outras passagens do romance, estabelece-se a oposição entre o médico e o teólogo, entre a medicina e a fé. A opinião de Rieux acredita que as questões da Terra são mais prementes que as questões do Céu, ou de outra, que a ameaça tangível da peste possibilita a superação de questões metafísicas que já foram tão gritantes no passado. Como se quisesse claro que muito já fora dito acerca de Deus, e nestes dias terríveis de agora o homem é quem reclama por atenção. A metafísica reaparece em Camus como um problema insolúvel ao qual cabe o segundo plano do romance, justamente por se tratar de “raciocínios de outro mundo”. A Questão Deus assume a vanguarda somente àqueles a quem faltou acompanhar a miséria de perto, àqueles como Paneloux que ainda não sentiram o odor da pestilência se levantar entre um número suficiente de mortos. De certo esse linguajar camusiano, que compele ao escândalo diante da morte assistida, corresponde às circunstâncias de seu tempo, às quais o fazia compreensível aos seus leitores recém-saídos da Guerra.

Seguir os rastros da morte e da peste torna-se ainda mais conflitante para aqueles que cultivam uma esperança redentora. O conflito existencial que sofrera o padre Paneloux depois de “ouvir a respiração de um moribundo” esboça um exemplo revelador. O padre apregoava verdades em seu primeiro sermão, dizia-lhes: “Para nossos espíritos mais clarividentes, ele faz apenas valer esse clarão sublime de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento” (CAMUS, 2013c, p. 89). Contudo, em seu segundo sermão, o padre recusou a escapatória, tão comum às teodiceias, que consiste em uma esperança posta na eternidade – onde se fará justiça ao mal sofrido no tempo. Paneloux preferiu agarrar-se ao que sabia, afinal, dizia ele, “Quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante da dor humana?” (CAMUS, 2013c, p. 196). Forjando metáforas que recordam O Mito de Sísifo, Camus descrevera o último sermão do padre referindo-se às muralhas da peste, como antes aludia aos muros do Absurdo5. O narrador retratava o padre acuado aos pés da muralha, era, contudo, capaz de saltá-la a qualquer momento, mas “[...] Não, o padre continuaria encostado à muralha, fiel a esse esquartejamento de que a cruz era o símbolo, diante do sofrimento de uma criança” (CAMUS, 2013c, p. 196). Sem aplacar nem enaltecer o sofrimento, o padre permanecera fiel àquele escândalo presenciado. Sabia que saltá-lo em direção de uma esperança abstrata significava traí-lo – e negar-lhe a devida Revolta. Também não ousou mais explicá-lo tendo como base as suas certezas prévias. As verdades que tinha e que apregoava com veemência o deixaram, desmancharam-se como areia diante da evidência e do contrassenso que o mal instaurara. Restava-lhe apegar-se ao que se impunha com clareza, ou seja, às vítimas carentes que – aquém dos muros da peste – reclamavam por socorro. Rieux, portando a voz de Camus, reteve do sermão a coerência de algumas reflexões, uma de suas conclusões observava o seguinte: “Estávamos assim sob as muralhas da peste e era à sua sombra mortal que era necessário encontrar o nosso benefício” (CAMUS, 2013c, p. 196).

Se houvesse oculto no seio do flagelo algum benefício, o padre deveria apresentá-lo atado àquele instante, sem recorrer ao futuro ou a outros mundos. E de certo, mostrar-lhe a excelência, sem o auxílio do amanhã, seria uma tarefa hercúlea. Uma vez diante do sofrimento, tratá-lo precede a tentativa de explicá-lo – ou mesmo de demonstrar-lhe a excelência. Todavia, por ainda comungar da fé cristã, o padre Paneloux experimentou uma profunda crise de coerência. Fazia lembrar, novamente, o icônico Ivan Karamázov. O espírito de Ivan acolhera uma tensão essencial apreendida por Camus nestes termos: “[...] ele não nega de modo absoluto a existência de Deus. Ele o refuta em nome de um valor moral” (CAMUS, 2013b, p. 74). A recusa de Ivan Karamázov ecoou até o derradeiro sermão do padre Paneloux. Nestas palavras Ivan colocava sua Revolta:

[...] recuso a harmonia eterna. Ela não vale uma lágrima minúscula nem mesmo daquela criança supliciada, que batia com seus punhozinhos no peito e rezava ao seu ‘Deusinho’ naquela casinha fétida e banhada em suas minúsculas lágrimas não redimidas! [...] E se os sofrimentos das crianças vierem a completar aquela soma de sofrimentos que é necessária para comprar a verdade, afirmo de antemão que toda a verdade não vale esse preço (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 339-340).

A maior das verdades eternas, das quais o padre falara, não valia a menor evidência humana – não valia sequer uma lágrima. A recusa, deveras radical em Dostoiévski, integrar-se-á ao pensamento camusiano como questão acabada, Camus escolhera a evidência das lágrimas às verdades da fé. As teodiceias não dizem mais nada na literatura camusiana. Não há mais dúvida, quanto a elas há somente uma negação alicerçada na evidência do mal. Uníssono, Camus completara a recusa de Ivan: ficou com as lágrimas salgadas e negou a insípida harmonia eterna que não se deixa experimentar senão pela fé. Deus é uma questão superada em Camus que, entrementes, retorna ao seu pensamento para acentuar a necessidade da Revolta. Em outras palavras, saber-se órfão de um pai celeste impele o homem a construir sua própria redenção, criar os próprios valores e intervir no mundo sem transferir a um outrem etéreo seus deveres. Quando perguntado se acreditava em Deus, Rieux respondera de modo a aclarar a questão: “Sem sair da sombra, o médico disse que já respondera e que, se acreditasse num Deus todo-poderoso, deixaria de curar os homens, deixando a ele esse cuidado” (CAMUS, 2013c, p. 113-114).

À luz de Dostoiévski – ou ao menos de seu personagem Ivan –, Camus fizera sua escolha. Ele volta-se na direção do homem e em nome dele, do valor moral que lhe é inerente, refuta Deus e sua criação. As palavras do Dr. Rieux espelham a Revolta de Ivan. Paneloux, embora tão revoltado quanto o médico, tentava acalmá-lo após a morte indefensável do menino Philippe, o filho do juiz Othon

– Isso é revoltante, pois ultrapassa nossa compreensão. Mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender. Rieux endireitou-se bruscamente. Olhava para Paneloux com toda a força e toda a paixão de que era capaz e abanava a cabeça. – Não, padre – disse ele. – Tenho outra ideia do amor. E vou recusar, até a morte, amar esta criação em que as crianças são torturadas (CAMUS, 2013c, p. 191).

A revolta de Rieux aproxima-o, com indícios intertextuais, à recusa de Ivan. Primeiramente, ambos se voltam contra a criação – onde a morte se dá – e não diretamente contra um Criador abstrato. Como se falasse do seu próprio personagem, o Dr. Rieux, Camus comenta e redescobre a lógica que movia Ivan Karamázov: “Se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável. Ivan não mais recorrerá a esse Deus misterioso, mas a um princípio mais elevado, que é a justiça” (CAMUS, 2013b, p. 75). A criação que acolhe a peste, que tortura crianças sem um fim manifesto, é imperdoável de acordo com a justiça elevada de Ivan e de Rieux. Aceitá-la seria pactuar com o Absurdo da existência.

Morte e mistério, Rieux os julgava inaceitáveis. Ivan foi além e não apenas recusou o mistério divino que cerca o sofrimento humano, mas também antecipou a negação que prometera para o dia do Senhor. Uma vez ressuscitado, com perfeição, Deus lhe revelará todo o mistério e neste dia ele também dirá ao seu Criador: “Inaceitável, Senhor!”. Ivan fantasiava o deslumbre da eternidade: “Compreendo, porém, qual deverá ser o abalo do universo quando tudo sob os céus e sobre a Terra desaguar numa só voz [...]: ‘Tens razão, Senhor, pois teus caminhos se revelaram!’ [...] só que nesse momento não vou querer exclamar isso” (DOSTOIÉVSKI, 2015, p. 339). Em um golpe literário, Dostoiévski desfez o vínculo misterioso que une o sofrimento do presente ao conhecimento da verdade ulterior. Ivan Karamázov mergulha com intensidade no universo das teodiceias, sua completa inserção o permite negá-las, uma a uma, com incontestável autenticidade. Respeitadas as devidas peculiaridades autorais, o padre Paneloux é aquele que – mergulhado no universo do sagrado – também descobre sua Revolta, desde então contesta o que antes apregoava com paixão. As teodiceias de outrora, chegadas ao século das Guerras, não resistiam mais à força chocante da evidência – nem nos corações mais religiosos. Depois de Auschwitz, a recusa de Ivan atingiria à altura da própria da verdade, um grito de revolta perturbador que se ouviria ainda mais claramente no século XX.

Em O Homem Revoltado, Camus resumiu nestas palavras a Revolta de Ivan Karamázov: “A fé conduz à vida imortal. Mas a fé pressupõe a aceitação do mistério e do mal, a resignação à injustiça. [...] Nessas condições, mesmo se a vida imortal existisse, Ivan a recusaria” (CAMUS, 2013b, p. 75). O amor ao que não se pode compreender, como o sofrimento das crianças, não quer dizer verdadeiramente amor – replicava o doutor Rieux. Camus imprimira em A Peste essa negação ao mistério, ou dito de outra forma, tais certezas erigidas sobre mistérios comportam os injustificáveis excessos do mal, entre os quais a tortura de um infante. Ao cabo, uma fé constantemente assaltada pela morte terminara a dar lugar à Revolta e à inobservância dos céus – de onde nada se deve esperar (CAMUS, 2013c, p. 115).

Nesse ínterim, à religião dos dias de peste restava o “tudo ou nada”, como dizia o padre em seu último sermão. Atendo-se ao mistério que comporta em si o bem e o mal, Paneloux afirma ser “preciso crer em tudo ou tudo negar. E quem, dentre vós, ousaria negar tudo?” (CAMUS, 2013c, p. 196). Explicar, no entanto, não era possível. A exigência de clareza deve renunciar o seu apelo e submeter-se à aceitação do mistério total – se se quer permanecer religioso em dias de peste. Ou “abandona-se à vontade divina, ainda que incompreensível” – como Abraão prestes a sacrificar o próprio filho – ou é preciso negá-la por completo como Ivan e Rieux o fizeram. O padre continuava: “Não se podia dizer: ‘Isso eu compreendo, mas aquilo é inaceitável’, era preciso agarrar-se avidamente a esse inaceitável que nos era oferecido, justamente para que fizéssemos nossa escolha” (CAMUS, 2013c, p. 197-198). Ou tudo ou nada. Ou se ama a Deus e se aceita o mal inexplicável do mundo ou nega-o junto com sua criação absurda. Teodiceias, entretanto, não eram mais aceitáveis. Aceitar o Deus de todo amor e todo poder à parte da sua criação terrível não era mais uma opção nos dias da peste – ou nos dias da Guerra. Aos olhos de Camus, seus dias marcavam o fim da teodiceia.

Rieux notara que o padre beirava a heresia e embora conclamasse o povo a uma escolha radical, ele mesmo ainda não havia feito a dele. Por último, o icônico padre ousadamente adotara uma forma peculiar de fatalismo, o narrador ressaltava que “ele não recuaria diante do termo, se lhe permitissem acrescentar o adjetivo ativo” (CAMUS, 2013c, p. 198).

A condição à fé no século XX é a aceitação do mistério do mal, no entanto, o padre acrescia que aceitar não é o mesmo que resignar. De fato, o padre reconhecia diante de si o Absurdo, sabia que não podia negá-lo porque inexplicavelmente Deus o quis, não obstante, recusava-se não combatê-lo. Eis o fatalismo ativo do padre Paneloux. Neste instante a homilia do padre aproximou-se, tangencialmente, da filosofia camusiana. Embora a Revolta desconsidere a opção de tudo aceitar, tendo em vista o abandono à vontade do Criador, Camus traduz em termos de ensaio o fatalismo ativo do padre Paneloux: “Essa revolta [assevera Camus] é apenas a certeza de um destino esmagador, sem [no entanto] a resignação que deveria acompanhá-la” (CAMUS, 2013a, p. 60).

Nesse mirar camusiano, a religião cristã dos dias de Guerra – ou dos dias de peste – seguiu desprovida dos consolos da teodiceia – à semelhança dessa forma peculiar de fatalismo ativo. O povo encontrava-se assim entre o tudo e o nada, a meio caminho entre os limiares da aceitação total e da negação absoluta.

 2.4. A Indiferença do padre Paneloux

Apesar do cuidado que o padre dedicava aos doentes – observava o narrador –, ele mantinha-se sempre atento à própria saúde (CAMUS, 2013c, p. 191). Entretanto, desde que acompanhou o martírio de uma criança, o padre preocupava-se cada vez menos com sua morte. Rieux percebera uma tensão crescente em sua face. A impressão reverberada pelo clérigo, ao término do seu segundo sermão, foi de latente inquietude. Outro padre comentava a ousadia da prédica: “achava que este sermão indicava mais inquietação que força” (CAMUS, 2013c, p. 200). Na efervescência dos comentários – surgidos ainda na saída da igreja –, Tarrou ouvia dizer sobre a história de um padre que, em dias de guerra, perdera fé ao ver um jovem de olhos vazados. Logo em seguida, Tarrou ponderou algo que, como sugere o próprio narrador, ajudaria a esclarecer as estranhas atitudes do padre Paneloux: “– Paneloux tem razão – disse Tarrou. – Quando a inocência tem os olhos vazados, um cristão deve perder a fé ou aceitar que lhe furem os olhos. Paneloux não quer perder a fé. Irá até o fim. Foi isso o que quis dizer” (CAMUS, 2013c, p. 200).

Em O Homem Revoltado, Camus cismou acerca de um outro que também aceitou que lhe furassem os olhos. Enviado ao mundo para resolver o problema do sofrimento, o Cristo precisou sofrê-lo. Camus descreve o doloroso caminho que seguiu o Cristo, até o fim, para aplacar a Revolta do homem:

O Cristo veio resolver dois problemas principais, o mal e a morte, que são precisamente os problemas dos revoltados. Sua solução consistiu, primeiramente, em cuidar deles [em experimentá-los]. O deus homem sofre também, com paciência. O mal e a morte não mais lhe são imputáveis, já que ele está dilacerado e morre. A noite do Gólgota só tem tanta importância na história dos homens porque nessas trevas a divindade, abandonando ostensivamente os seus privilégios tradicionais, viveu até o fim, incluindo o desespero, a angústia da morte (CAMUS, 2013b, p. 50, grifo nosso).

Paneloux aceitará que o mal, que outrora ele justificou, fure-lhe os olhos. Em outras palavras, conscientemente ele caminhará em direção à morte e ao sofrimento que infectam o mundo e inflamam os revoltados. Nada lhe será privado, nem o desespero, nem a angústia ou a morte. Essa decisão do padre se nota em sua recusa constante de receber tratamento médico, uma vez que começou sentir-se gravemente doente. A velha senhora, dona da casa que o acolheu, ofereceu-se para chamar um médico, “mas a proposta fora repelida com uma violência que ela considerava lamentável” (CAMUS, 2013c, p. 201). Incansavelmente a senhora renovava a proposta, mas o padre a recusou por outras duas vezes mais até o agravamento da enfermidade. Segundo a dona da casa, o estado do padre era alarmante “parecia nessa altura ter sido surrado durante toda a noite e ter perdido todas as forças para reagir. [...] E, numa voz em que notou o tom estranhamente indiferente, ele disse que ia mal, que não precisava de médico [...]” (CAMUS, 2013c, p. 203). Paneloux explicava que “recusava essa consulta porque estava em desacordo com seus princípios” (CAMUS, 2013c, p. 202). Por fim não pôde mais escapar e fora levado ao hospital.

Em diálogo com Tarrou, o Dr. Rieux refletia sobre a hipótese de acreditar confiadamente em Deus, dizia que se realmente admitisse um ser todo-poderoso confiaria a ele o cuidado dos doentes. O médico acrescentaria ainda que “ninguém no mundo, não, nem mesmo Paneloux, que julgava acreditar, acreditava num Deus desse gênero, já que ninguém se entregava totalmente [...]” (CAMUS, 2013c, p. 114). A incoerência que o doutor notara consistia, precisamente, nessa crença em um Deus onipotente portada por homens que recorrem a médicos com frequência. Estes, de fato, não se entregavam totalmente – apesar das aparências religiosas. Paneloux, contrariando a opinião do médico, abandonou-se completamente aos cuidados de Deus. Elevou sua coerência ao ponto de colocar sua vida em jogo. “Paneloux encarna o abandono à fé” (SILVA, 2008, p. 73), acrescenta o professor Nilson Adauto.

As horas que seguiram a chegada do Dr. Rieux foram de muita surpresa e de poucas esperanças. Com um ar indiferente o padre recebia intervenções médicas, todavia o doutor não sabia precisar se, de acordo com os sintomas, tratava-se da peste ou não. O caso do religioso continuou ambíguo até o fim, contudo, seu estado era tão grave que isso pouco importava no momento (CAMUS, 2013c, p. 203). Rieux ofereceu-se para ficar ao seu lado, o padre animou-se por um pouco, depois declinou a oferta revelando a suma das suas intenções: “– Obrigado. Mas os religiosos não têm amigos. Concentraram tudo em Deus. Pediu o crucifixo que estava colocado à cabeceira do leito e, quando o recebeu, voltou para ele o olhar” (CAMUS, 2013c, p. 203). Definitivamente Paneloux concentrou tudo em Deus, abandonou-se a ele e foi por ele abandonado. O padre fazia seu próprio calvário, fitava o crucificado e reconhecia-se naquela dor. O mal e a morte não mais lhe eram imputáveis, pois ao invés de explicá-los dessa vez ele os experimentou. O padre vencera as abstrações da peste, embora isso lhe custado a vida. No mais, Paneloux terminaria ao lado das vítimas. Noutra ocasião, tomando conhecimento do trabalho do padre, Rieux manifestava sua satisfação: “– Fico satisfeito em saber que ele é melhor que seu sermão. – Todos são assim – afirmou Tarrou. – É preciso apenas dar-lhes uma oportunidade” (CAMUS, 2013c, p. 134).

Ao leito, em seus últimos instantes de vida, Paneloux não largava o crucifixo. O Dr. Rieux mantinha-se em dúvida quanto ao diagnóstico: “Era a peste e não era” (CAMUS, 2013c, p. 203). Um termo significativo se repetia, insistentemente, nesses momentos finais da história do padre Paneloux, a palavra indiferença: “Em meio ao tumulto da febre [concluía Camus], Paneloux conservava o olhar indiferente, e quando, no dia seguinte de manhã, o encontraram morto, meio fora do leito, seu olhar não exprimia nada. Na ficha, escreveram: ‘Caso duvidoso’” (CAMUS, 2013c, p. 204).

Uma experiência aterradora com o Absurdo da existência marcou os olhos do padre com o sinal da indiferença. De mais a mais ele abandonou-se aos cuidados de Deus, recusou a assistência médica, e Deus o abandonou ao sofrimento – como antes fizera com o Cristo. O padre Paneloux caminhou até o fim do seu calvário e, ao final, era um médico que estava do seu lado – não Deus. É presumível que o padre tenha, naqueles instantes finais, perdido a fé. Todavia, como constava em sua ficha, o caso era duvidoso. Ao longo do romance, o vocábulo “peste” remete a uma infinidade de alegorias, dessa forma, é crível pensar que o diagnóstico de Rieux – “era a peste e não era” – seja igualmente simbólico. A verdadeira dúvida do narrador era se o padre tinha ou não abandonado a fé. Enfim, não se sabe ao certo, o caso era duvidoso. Todavia, quanto à indiferença do padre não cabia dúvidas. A originalidade de O Estrangeiro, a título de exemplo, diz respeito à demasiada indiferença que toma seu personagem principal. É improvável que o termo seja usado ao acaso, sem com ele insinuar um encontro dilacerador com a autenticidade cruel da vida. Ao fim e ao cabo, o padre perdeu a fé? A rigor, pouco se pode dizer com segurança acerca de um caso tão duvidoso.

Conclusão

Antes da morte do infante, o padre enfrentava, claramente, a negação crítica do autor. De sorte que o trato de Albert Camus com o pensamento cristão, essencialmente personificado na figura do padre Paneloux, não foi inteiramente de acolhida. Embora caminhe para a positividade, ainda que se converta à força da evidência e abandone por fim as velhas asserções religiosas que explicavam o sofrimento, a história do padre Paneloux chocou, outra vez, a religião cristã e o sofrimento da inocência. O corolário deste choque desvelou a religião tal como ela é, abstração. O tomo central da história, a dor assistida de um infante torturado pela peste, desfez toda forma de abstração ainda remanescente na atmosfera do romance. Ver morrer uma criança inocente – supliciada como um pequeno Cristo na cruz – revelou ao padre Paneloux a inconsistência das teodiceias no século XX – no século das Grandes Guerras Mundiais. Camus testou as súplicas de um religioso, colocando-o de joelhos diante do martírio de um inocente e, ao cabo, observou suas orações se retraírem impotentes para dar lugar à morte – Deus permanecia em silêncio.

A fim de apaziguar o incômodo silêncio de Deus, os homens elaboram teodiceias. Elas se instalam imperativas nesse vácuo de respostas defronte ao escândalo da morte e do sofrimento. Teodiceias falam, porque Deus se calou – de silêncio se faz uma abstração. Revelada a natureza das teodiceias, Camus mira desfazê-las fazendo uso da crueza incomplacente da peste. No imo da doença – na violência dos seus sintomas – reside a mimese proporcional das dores do mundo.

O combate à abstração religiosa levou Albert Camus até Fiódor Dostoiévski, mais acertadamente até Os Irmãos Karamázov. Trazendo-o para as entrelinhas do seu romance, Camus mirou Ivan Karamázov como insígnia atemporal da Revolta do homem em face da morte. Arrisca-se dizer que Ivan é um personagem-espectro de Camus, oculto no romance - o espírito movente de A Peste. Camus toma-o como uma ideia a partir da qual é possível dizer: todo sofrimento humano é inexpiável, injustificável, inexplicável, irredimível. Camus toma-o como um método, cujo objetivo é fazer notar as abstrações que se chocam contra a crueza da realidade. À luz d’Os Irmãos Karamázov, A Peste redescobre uma força literária impressionante que, em suma, consiste em chocar com o insuportável sofrimento de uma criança. Esgarçar o sofrimento ao seu extremo de inadmissibilidade conserva, ao cabo, o que é essencial à constituição da moral camusiana, a saber, o escândalo perpétuo na presença do mal e da morte.

Disfarçar a evidência do mal ou mostrar-lhe a excelência suprime esse escândalo tão necessário à solução camusiana, portanto, sob nenhuma justificativa, nem mesmo a mais sagrada delas – nem se o próprio Deus revelasse os seus mistérios e motivos –, Ivan Karamázov ou o Dr. Rieux aceitariam o sofrimento de uma criança. Tardiamente, o padre Paneloux também compreendera que, de fato, ele nada sabia sobre o sofrimento, tudo o que tinha – propósitos, benefícios, castigos ou Providência – eram frágeis abstrações que se esvaíram diante da tortura assistida de um inocente, eis o método Karamázov: desconstruir abstrações com a evidência lacerante do mal. O padre fora submetido ao método, seguiu, doravante, resistindo ao flagelo ao invés de explicá-lo e por fim tornou-se o personagem religioso mais positivo de toda a obra camusiana. Não obstante, o cenário da peste o transformou – marcou de indiferença o seu olhar – e não se sabe se ele perdeu a fé.

Em conclusão, nota-se que A Peste torna sonoro – até gritante – o incólume silêncio de Deus em face do mal. No entanto, a resolução última do romance não é outra senão essa resistência coletiva à peste – uma vez que dos céus nada se pode esperar (CAMUS, 2013c, p. 115). Nesse interim, pouco importa se tal esforço coletivo pode ou não cessar a epidemia, “a conclusão era sempre o que eles sabiam: era preciso lutar, desta ou daquela maneira, e não cair de joelhos” (CAMUS, 2013c, p. 119).

Camus tornou ao estado essencial das coisas, despiu o mal e o sofrimento das suas justificativas racionais e religiosas, e os quis mostrar em sua forma mais irredutível, na feição de uma criança morta. Com a firmeza de quem pisa em solo dostoievskiano, Camus enfrentou as teodiceias e todo o mais que escamoteia o Absurdo e represa a Revolta.

Referências

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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991. 1 v.

Notas

[1]“A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência europeia contra o nazismo” Cf. CAMUS, Albert. Da solidariedade à participação. Folha de São Paulo. São Paulo. 5 jan.1997. Disponível em: . Acesso em: 20 dez 2016

[2]Esta passagem angustiante será tratada à frente, entre as perturbações espirituais do Padre Paneloux.

[3]A peça Estado de Sítio, apesar da sua inspiração no romance A Peste, diferencia-se por apresentar personagens completamente negativos, os ditos vilões da trama.

[4]Cf. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991. 1 v. p. 279-418. Ver também: BERGER, P. O Problema da Teodiceia. In: ______. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 2011. p. 5-92.

[5]Cf. CAMUS, A. Os muros absurdos. In: ______. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013a. p. 25-39.