Análise retórico-pragmática do uso das emoções em 2Cor 11,1-15.

Jean Richard Lopes*
* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Professor da Faculdade de Teologia – Área San Miguel da Universidad del Salvador – Argentina. Contato: frmichaelmoore@ gmail.com.
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Resumo:
Apesar da sua particularidade, por ser considerada Palavra de Deus, a Bíblia se apresenta como uma comunicação literária, concebida para perdurar e transmitir uma mensagem ao leitor. A partir desta concepção, a crítica literária, com metodologias e abordagens diferentes, tem sido aplicada ao texto bíblico e, com isso, favorecido a aproximação hermenêutica do leitor atual à mensagem do texto. Tal crítica considera as convenções literárias que dão forma ao texto (narração, poesia, carta), a sua perspectiva (retórica, pragmática, sapiencial, histórica) e a importância do contexto imediato (seção) e amplo (livro, carta), para a compreensão dos fragmentos. Este artigo, propõe uma análise retórico-pragmática de 2Cor 11,1-15, apoiada na Retórica de Aristóteles, com o objetivo de identificar as estratégias literárias usadas pelo autor, a partir do emprego de algumas emoções explicitas e implícitas. Estas estratégias visam promover uma mudança cognitiva nos seus destinatários e uma adesão mais convicta ao evangelho. Para isto, Paulo se expõe diretamente e propõe um horizonte reflexivo, cuja representação vai além das acusações que sofreu. A identificação das estratégias literárias faz parte da cooperação ativa à qual o leitor é convocado a atuar na leitura do texto.

Palavras chave:Paulo, Retórica, Pragmática, Emoções, Coríntios, Evangelho

 

Abstract
Despite its particularity, because it is considered the Word of God, the Bible presents itself as a literary communication, designed to endure and convey a message to the reader. From this conception, literary criticism, with different methodologies and approaches, has been applied to the biblical text and, with this, favored the hermeneutic approach of the current reader to the message of the text. Such criticism considers the literary conventions that give form to the text (narration, poetry and letter), its perspective (rhetoric, pragmatic, wisdom, historical) and the importance of the immediate (section) and broad context (book, letter) for the understanding of the fragments. This article proposes a rhetoric-pragmatic analysis of 2 Cor 11,1-15, supported by Aristotle’s Rhetoric, with the of identifying the literary strategies used by the author, using some explicit and implicit emotions. These strategies aim to promote a cognitive change in its recipients and a more convinced adherence to the gospel. For this, Paul exposes himself directly and proposes a reflective horizon, whose representation goes beyond the accusations he suffered. The identification of literary strategies is part of the active cooperation to which the reader is invited to act in the reading of the text.

Keywords:Paul, Rhetoric, Pragmatics, Emotions, Corinthians, Gospel

Introdução

A teoria literária, como reflexão sobre o que é literatura e como esta poderia ser interpretada, desde há muito tempo, tem exercido uma grande influência sobre os estudos bíblicos (BROWN, 2007, p. 38). Prova disso é o desenvolvimento de vários métodos e abordagens exegéticas de interpretação da Sagrada Escritura, a partir dos novos estudos da linguística e literatura, como a Narratologia, a Semiótica, Retórica (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2005, p. 194202; MAGALHÃES, 2012, p. 134) e a Pragmática-linguística. No respeito dos vários gêneros literários presentes na Bíblia, estas abordagens mais sincrônicas têm acrescentado novas perspectivas de acesso à mensagem contida no texto, que a abordagem diacrônica sozinha não era capaz de propor, apesar da sua importância.

O texto literário é, independentemente da forma, uma comunicação. Segre destaca o caráter sui generis dessa comunicação, porque, ao contrário daquela oral, remetente e destinatário não se encontram pessoalmente. O texto mesmo carrega uma mensagem que deve ser decifrada a partir dos seus próprios elementos (1999, p. 35). O estudo literário dos textos somado aos da ciência da linguagem, para além dos elementos constitutivos do texto (categorias gramaticais e lexicais), introduziram a questão do propósito do texto e da sua potência comunicativa, na ordem da persuasão, arguição e elocução. Estes são aspectos que normalmente eram considerados no estudo da retórica e, agora, são desenvolvidos também na pragmática literária (MEY, 2009, p. 549-554).

Ao estudo presente interessa, sobretudo, a dimensão retórica e pragmática da perícope que será analisada. Por isso, se passa a uma breve apresentação conjunta destas perspectivas. Por muito tempo desacreditada, atualmente, a retórica foi assimilada nos estudos da linguística e das ciências da comunicação. Nesta nova abordagem, a identificação dos elementos estético-literários, da estrutura argumentativa e da situação retórica, porque dispostos de forma a persuadir (ARISTÓTELES, Ret., I.2.8), revelam a potência comunicativa (pragmática) e assumem uma perspectiva hermenêutica dos textos. O discurso persuasivo intenciona motivar o leitor/auditório diante de um juízo, conduta ou valor. E o seu significado surge de um contexto, seja literário como histórico, elaborados a partir de questões específicas, e por meio da articulação da sintaxe, semântica e força ilocucionária (DASCAL, 1999, p. 621,628). A retórica, deste modo, ajusta a distância entre orador/escritor e leitor/ auditório, promovendo a identificação de ambos (MEYER, 2000, p. XLII; FIORIN, 2016, p. 166-167).

Do ponto de vista literário e pragmático, tal identificação é estabelecida, sobretudo, por meio dos constructos textuais denominados autor e leitor implícitos. Por detrás do texto, tem sempre um autor empírico, inscrito na sua obra. Mas, na leitura do texto, o leitor empírico (atual) se depara com o autor implícito1, ou seja, uma face daquele empírico, que exerce uma função generativa da mensagem comunicativa, ao mesmo tempo em que guia o leitor implícito. Este último corresponde com a resposta que o autor espera despertar no leitor empírico, promovendo a identificação citada antes (DASCAL, 1999, p. 627; FIORIN, 2016, p. 163). A identificação ocorre, então, no percurso textual em construção por meio de uma série de estratégias literárias, presentes na narração, descrição de um evento ou cenário, elaboração de imagens e personagens, no discorrer de uma argumentação, na evocação e no tratamento dado aos destinatários.

1. Paulo e a retórica

Nos últimos decênios, a exegese tem evidenciado a presença de técnicas retóricas (estilística, dispositio, argumentação) nas cartas paulinas, com finalidade persuasiva (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2005, p. 195). Não obstante, em alguns textos, Paulo afirme a sua inabilidade na arte oratória (2Cor 11,6 [1Cor 1,7.20; 2,4-5; 2Cor 10,10]), esta negação tem a finalidade, sempre “retórica” (WATSON, 2003, p. 77-79), de evidenciar o fator importante da sua pregação, ou seja, o Evangelho (1Cor 1,17-19), revelado mediante a ação do Espírito Santo (1Cor 2,4.10; 1Ts 1,5), e não a roupagem por meio da qual se apresenta o anuncio (1Cor 2,1-5). Paulo é um pastor que faz uso da retórica como um instrumento a serviço da pregação do evangelho. Ao usá-la com humildade e sustentando-se em Jesus Cristo Crucificado (1Cor 1,18), confunde, de forma paradoxal, os critérios da sabedoria humana (ALETTI, 1996, p. 48; DUMONT, 2003, p. 374-386).

1.1 Gêneros retóricos

O ambiente retórico, lugar da apresentação da causa (stasis) e horizonte hermenêutico do discurso, é uma construção determinada pelo auditório/leitores, pelo tempo (referencial) e pela finalidade do discurso (DASCAL, 1999, 626). Normalmente estas categorias se entrelaçam nos três gêneros retóricos (ARISTOTELES, 2006, I.3.2): judiciário (dikanikón), próprio do tribunal; deliberativo (symbouleutikón), da assembleia pública ou senado; epidítico (epideiktikón), o mais fluido dos três, é utilizado em vários ambientes (ARISTOTELES, 2006, I.3).

O primeiro gênero impõe a necessidade de uma decisão judiciária (acusação ou defesa). O segundo empenha o público sobre algo que pode condicionar a vida de todos os agentes envolvidos; a perspectiva é relativa à utilidade ou não da proposta presente no discurso. O terceiro, caracterizado por expressar elogios ou reprovação, pode ser aplicado a várias situações, como funeral, homenagem... Os teóricos da retórica reconhecem nos dois primeiros uma força persuasiva que poderia ser entendida, em categorias da linguística moderna, como pragmática. Em relação ao epidítico, em vez, nem sempre se tem a mesma compreensão comunicativa. Porém, deve-se considerar que, relacionado com o campo ético – o elogio nem sempre é vazio ou puramente de adulação –, os discursos sobre virtude e vício, belo e feio, são sempre uma reflexão sobre valores, que se espera o público acabe por aderir, como se vê em 1Cor 13 (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2001, p. 50-58). Paulo faz uso dos três gêneros, muitas vezes mesclando-os2.

1.2. Retórica das emoções

A eficácia da retórica, como de qualquer modalidade comunicativa, depende da relação entre orador/autor, discurso (oral ou escrito) e auditório/leitor. Estes três âmbitos são, na retórica, denominados: ethos, que expressa a credibilidade do orador; logos, o discurso; pathos, as emoções que se deseja provocar no público. É muito comum que estes três âmbitos encontrem-se entrelaçados na argumentação.

Aristóteles dedica um livro inteiro à questão do pathos (ARISTOTELES, 2006, II)3, no qual explica que não bastam os argumentos demonstrativos ou de convencimento para garantir a persuasão. O autor deve predispor o público, para que este aceite sua argumentação, e, ao mesmo tempo, mostrar-se credível (ARISTOTELES, 2006, II.1.3.). As paixões ou emoções, neste sentido, migram do âmbito privado para aquele público e, no discurso, definem os papéis sociais dos interlocutores, como também da qualidade dos vínculos que unem ou separam os agentes (MEYER, 2000, p. XLVIII). As paixões comprovam o ethos do autor, se ele se comporta, defende ou propõe ideias de acordo com as regras esperadas (DASCAL, 1999, p. 632).

As paixões não manifestam somente um estado de ânimo, mas desempenham também uma função epistêmica. Elas desenvolvem imagens mentais que informam sobre como “o outro age sobre mim” e sobre qual reação provocam (prazer, expectativa, sofrimento...), favoráveis ou não. As paixões, portanto, fazem parte da comunicação e possuem a capacidade de revelar proximidade (identificação) ou distância (diferença) nas relações interpessoais (MEYER, 2000, XLIX). Por isso, Aristóteles diz que, segundo as emoções sentidas, o juízo pode assumir formas diferentes, porque cada emoção, na sua especificidade, produz inferências específicas (ARISTOTELES, 2006, I.2.5; II.1.4; DASCAL, 1999, p. 632).

As cartas paulinas são textos, cuja densidade não se limita ao âmbito do logos, ou seja, do discurso racional e estruturado. Paulo, não raras vezes, precisa afirmar seu ethos, e o faz também com um forte apelo emotivo. Exemplos disso encontram-se na Segunda Coríntios e na carta aos Gálatas. Ele elabora o pathos em duas direções, como propunha a retórica antiga (ARISTOTELES, 2006, II.1.3.8-11; DASCAL, 1999, p. 632): 1. Manifesta a sua disposição intensamente no seu desejo de proximidade, movido pela solicitude pastoral4; 2. Intenciona provocar a reação dos destinatários, de modo a envolvê-los de forma mais pessoal na argumentação5. As duas modalidades podem ser identificadas mediante o léxico, todavia, uma atenção especial é necessária quando as emoções estão no âmbito implícito6.

2. A delimitação de 2Cor 11,1-15 e o seu contexto

A delimitação da perícope em relação ao que antecede é determinada, sobretudo, pela introdução do termo insensatez (aphrosúnê), que marca o ritmo da macro seção (11,1.17.21 [11,16.19.23; 12,6.11]). A respeito da divisão com o que segue, nota-se o uso da conjunção coordenativa oûn (portanto), com valor conclusivo, recapitulando o que foi dito antes. Além do que, no v. 16, com o verbo “dizer” e a advérbio “novamente”, inicia-se outra microsseção, fortemente assertiva (1,16.21).

O contexto literário imediato de 2Cor 11,1-15 é a seção do discurso da insensatez (2Cor di 11,1–12,13). Esta seção concentra o campo semântico da insensatez, com o substantivo aphrosúnē (11,1.17.21), o adjetivo áphrōn (11,162x.19; 12,6.11) e o verbo paraphronéō (11,23);e do orgulho, vangloriar-se, com o verbo kaucháomai (11,12.16.182x.302x; 12,1.52x.6.9) e o substantivo kaúchēsis (11,10.17). O tema do orgulho é um dos motivos que perpassa toda a Segunda Coríntios7. A associação dos dois temas destacados é evidenciada em 11,16.21b.

O discurso da insensatez é articulado em várias partes e, nele, Paulo esclarece algumas das acusações que lhe foram dirigidas, numa clara continuação com as duas seções anteriores: 10,1-11, a autoridade apostólica vem de Deus e é vivida para a edificação da comunidade, e 10,12-18, apresenta alguns critérios de avaliação do ministério e a justificação da vanglória em Deus, quem o conduziu até os coríntios, com o evangelho nas mãos (10,14 [vv. 1.4.7.8]). A microsseção de 11,1-15, seguida da 11,16-21, forma o preâmbulo do discurso. Com um movimento de subida, Paulo começa expondo a situação perigosa dos coríntios e da falsidade das acusações recebidas (11,1-15), segue a justificação da insensatez do orgulho (11,16-21). Depois se vangloria da sua origem hebraica (11,22-29), da fraqueza de Damasco (11,30-33), das visões e revelações do Senhor (12,1-10). Ao final, chama a atenção para falta de recomendação, da parte dos coríntios, em relação a ele (12,11-13).

3. Coesão linguística e disposição de 2Cor 11,1-15

Por coesão, linguística se entende a articulação dos elementos textuais, dispostos de forma a criar conexão entre as partes do texto. Tais elementos compreendem a distribuição do léxico, da gramática, da sintaxe, assim como de referenciais textuais definidos, nome, título, ou extralinguístico, “era uma vez” (BAZZANELLA, 2007, p. 78-80; GRILLI, 2016, p. 31-32).

3.1 Algumas observações gramaticais

O texto de 2Cor 11,1-15 é caracterizada por uma sintaxe paratática que favorece um desenvolvimento muito fluido. Alguns elementos linguísticos (makers), como as conjunções – ou a ausência delas (v. 7.10) –, estabelecem uma relação de dependência, criando uma continuidade lógica8 e um crescimento progressivo do texto.

No v. 5, por exemplo, a conjunção gár não estabelece uma conexão causal forte, mas expressa melhor uma continuação, como faria a conjunção dé (ZERWICK, 1966, p. 473; BAUER, 1979, p. 152)9. Portanto, embora seja identificável uma elipse – “por que não me aceitam?” –, o texto segue seu curso, numa comparação antitética10 sobre a qualificação do apostolado de Paulo e o dos seus adversários. No v. 7, se dá uma mudança dos tempos verbais, passando para o aoristo, determinando o início de uma ulterior parte da comunicação, que se estende até o v. 9. Aquilo que ele afirmou no v. 6, agora é especificado, com exemplos que retratam a atitude do Apóstolo e a introdução de novos agentes, os irmãos da Macedônia.

No v. 10, retorna ao presente, acompanhado de outras duas perguntas retóricas (v. 11). Nesta pequena parte (vv. 10-11), os adversários não são citados, mas são invocados, em vez, Cristo e Deus, como “testemunhas” do Apóstolo. Quando se passa ao v. 12, até o v. 15, os adversários são novamente citados. A sequência de conectivos (gár[v. 13], kaí [v. 14a],gár[v. 14b]) incrementa o que ele disse no v. 12 e conduz a uma conclusão (oûn[v. 15]), ao menos para esta primeira micro seção do grande discurso da insensatez, reconhecida como um unidade dotada de sentido e de coerência comunicativa.

Os tempos verbais presentes na perícope tocam passado, presente e futuro. Do ponto de vista pragmático-linguística, o tempo, tendo como referencial o presente, vai além do fator cronológico e estabelece uma compreensão determinada pela anterioridade e/ou posterioridade (FIORIN, 2016, p. 166ss; REED, 1999, p. 39-40). Também na técnica retórica, o uso dos tempos nem sempre explicita uma relação de causalidade, ao apresentar uma sucessão de eventos, sob vários níveis, como acontece na narrativa, mas é sempre determinado pela argumentação mesma, que pode remeter a fatos passados, como provas, ou projetar situações futuras (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2001, p. 169, 186; ROMANELLO, 2012, p. 61-62), o horizonte a construir, que o leitor não pode desconsiderar.

Assim se observa na perícope, que o presente é usado para expressar, de modo explícito, as emoções de Paulo: tenho ciúmes (v. 2), temo (v. 3), amo (v. 11). É utilizado também para introduzir considerações a respeito do ministério dele, em comparação com os adversários (vv. 5.6 [verbo subentendido].10.12). No v. 4, há uma alternância do presente e do aoristo. Neste versículo os agentes são Paulo, os coríntios e os adversários. A alternância dos tempos verbais evidencia a situação atual da comunidade, que abandonou o evangelho pregado por Paulo, para assumir outro, pregado pelos adversários, cuja atuação ou resultado é ainda presente (vv. 2.3.7-9.12).

O futuro é associado por Paulo, de modo particular, aos dois tempos verbais já citados: no v. 9, com o aoristo, e no v. 12, com o presente. O autor usa o mesmo verbo para os tempos diferentes (tēreō [preservar, prestar atenção a11] e poieō [fazer]), em cada versículo: evitei – evitarei, faço – farei. Tal associação sublinha a constância – e coerência – de Paulo no seu modo de agir, porque ambas as citações são referidas a ações dele. O futuro, então, é localizado nas três últimas partes, quando o problema já foi evidenciado e ele passa a desenvolver a defesa do seu ministério, marcando com força a diferença entre ele e seus acusadores (vv. 9.10.12.15).

3.2 Disposição de 2Cor 11,1-15

Após ter evidenciado alguns elementos de coesão linguística, será apresentada uma proposta de macroestrutura comunicativa da perícope:

I. Apelo inicial e identificação do problema


1 Oxalá pudésseis suportar da parte minha um pouco de insensatez! Mas sim, suportais.
2 Tenho ciúmes, de fato, de vós como o ciúmes de Deus. Vos dei em casamento, pois, a único esposo, para vos apresentar [como] virgem casta a Cristo.
3 Temo, porém, que como a serpente seduziu Eva, com a sua astucia, sejam desviados vossos pensamentos da simplicidade e da pureza, em relação a Cristo.
4 Com efeito, se vem alguém e um outro Jesus [vos] anuncia, que não vos anunciamos, ou [se] recebeis um outro espírito que não tínheis recebido, ou um outro evangelho que não tínheis acolhido, bem dispostos [o] acolheis.

II. Os super-apóstolos


5 Considero[-me], todavia, [não] ser inferior aos super-apóstolos, em coisa alguma.
6 E, se [sou] inexperiente no falar, não [o sou], porém, no conhecimento, mas, em tudo e em todos dos modos vos demonstramos.

III. O anuncio do evangelho e a gratuidade de Paulo


7 Cometi, talvez, pecado, abaixando-me a mim mesmo, para vos exaltar, porque gratuitamente vos anunciei o evangelho de Deus?
8 Outras igrejas despojei, aceitando sustento [delas] para vos servir
9 E, [quando] estava presente junto a vós, [mesmo que] em necessidade, não fui peso para ninguém. As minhas necessidades, de fato, supriram os irmãos vindos da Macedônia, e, em tudo, evitei de ser um peso para vós e [ainda] evitarei

IV. O orgulho do Apóstolo


10 [Pela] verdade de Cristo que está em mim,[vos asseguro] que12 este orgulho não será silenciado em mim, nas regiões da Acaia.
11 E por quê? [Talvez13] Por que não vos amo? Deus o sabe!

V. Desvelamento dos falsos apóstolos e o perigo de segui-los


12 Mas o que faço, o farei [ainda], a fim de que eu possa eliminar o pretexto daqueles que desejam um pretexto, para que, naquilo que se gloriam, sejam parecidos conosco.
13 Estes tais, de fato, são falsos apóstolos, operários enganadores, dis farçados de apóstolos de Cristo.
14 E não é de admirar. Pois Satanás mesmo se disfarça de anjo de luz.
15 Portanto, não é grande coisa, se também seus ministros se disfarçam, como se fossem ministros da justiça.

O fim deles será de acordo com as obras deles.

4. Retórica dos sentimentos em 2Cor 11,1-15

No livro Retórica, Aristóteles afirma que “as emoções (páthē) são todos os sentimentos que causam uma mudança no homem, em relação [aos seus] julgamentos e são acompanhadas de tristeza e prazer, como raiva, compaixão, medo, e outras emoções similares [a estas] ou contrárias a elas” (ARISTOTELES, 2006, II.1.4.8). A força pragmática, tal como se entende hoje, na linguística, isto é aquilo que se produz com o uso das emoções, é evidente. Com o exemplo da raiva, ele propõe ainda três critérios para identificar as emoções: 1. Disposição da mente que leva a uma determinada emoção, o que provoca a raiva, por exemplo1414; 2. As pessoas com as quais a emoção é relacionada, contra quem se sente a raiva; 3. A ocasião que provocou a raiva.

O texto de 2Cor 11,1-15 apresenta emoções explícitas, identificadas a partir do léxico: ciúmes, temor e amor. As três emoções descrevem a disposição do autor em relação aos destinatários e manifestam apreensão mesclada com o desejo de renovação dos vínculos em perigo. Num outro nível da comunicação, as emoções evocadas não são explicitadas e, por isso, exigem uma maior atenção. Aristóteles não se limitou a descrever as emoções, mas oferece também indicações de como provocá-las. Tais indicações, do ponto de vista hermenêutico1515, auxiliam na identificação das emoções implícitas e da perspectiva persuasiva delas.

4.1 Suportar a insensatez

A perícope começa com uma fórmula que expressa um desejo irrealizável (v. 1a), determinado pela partícula óphelon 16 mais o imperfeito do verbo anechō, suportar, ter paciência (SCHLIER, 1965, p. 965-968; BLASS-DEBRUNNER, 1997, 359; ZERWICK, 1966, p. 355 n. 16). A partícula é usada, normalmente, por Paulo em contextos de conflito entorno ao seu ministério (cf. 1Cor 4,8; Gl 5,12). O objeto do verbo coloca uma das temáticas importantes para o desenvolvimento do discurso, aphrosýnēs.

Paulo apresenta, assim, um apelo extravagante, pois, embora aphrosýnēs pertença ao campo semântico da inteligência, há uma conotação negativa17. Deste modo, ele se coloca sobre o mesmo patamar dos seus adversários. De fato, associa a insensatez ao ogulho/vanglória dos adversários, orgulho que ele afirma também ter o direito de pretender (11,16.17.21b.23). Ao aplicar a prodiorthosis18, o autor introduz de forma apelativa a insensatez com finalidade retórica, pois os coríntios parecem não compreender a situação atual. O adjetivo neutro, “um pouco” (v. 1 [mikrón]), ameniza o apelo, para não acirrar demais os ânimos dos interlocutores. O fator irrealizável é imediatamente corrigido pelo que segue (v. 1b), com o indicativo19 presente afirmativo: “mas sim, suportais”.

4.2 As emoções explicitas: a disposição do Apóstolo

Nem todas as emoções, presentes dos textos paulinos, e o uso delas na argumentação encontram uma justificativa direta na Retórica de Aristóteles, apesar de serem empregadas sempre com finalidade retórica, como elementos de persuasão. Paulo usa tudo aquilo que provém do seu ambiente cultural, bastante amplo (judaico, grego e romano), para melhor difundir o evangelho e a aprofundar a compreensão do mesmo. Todavia, o Antigo Testamento, com seu imaginário e teologia, permanece como o pano de fundo imprescindível.

• a. Ciúmes

No v. 2, Paulo diz ter ciúmes dos coríntios. Os significados mais comuns dos vocábulos zēlóō e zēlos, em ambiente helênico, é emulação20 e uma espécie de entusiasmo, de impulso forte na direção de alguém, como inveja ou zelo (STUMPFF, 1967, p. 1486-1518)2121. Diferentemente do que se tende a pensar hoje, no grego antigo, este vocabulário não é usado em contextos de relação conjugal, que traduziria a emoção denominada ciúmes (STUMPFF, 1967, p. 1489; KONSTAN, 2006, p. 219243). Na LXX, em vez, é associado ao matrimônio humano (Pr 6,34; Ct 8,6). O profeta Ezequiel introduz esta terminologia na metáfora matrimonial, para falar da relação entre Deus, que se apresenta como ciumento, e Israel (Ez 5,13; 16,38; 23,25 [Ex 20,5]), que muitas vezes vai atrás de práticas idolátricas (STUMPFF, 1967, p. 1492). A metáfora citada reforça a ideia de uma relação estreita, como aquela do casal, e, em linha com a concepção mais geral do Antigo Testamento, expressa a intensidade da presença de Deus na história do seu povo (Is 9,7; 37,32; 42,13; Zc 1,14; Ez 39,25), como aquele que age para evitar que outros desviem Israel da Aliança com Ele.

Em 2Cor 11,2, Paulo recupera o verbo do ciúmes de acordo com o Antigo Testamento, trazendo seus dois sentidos básicos para a arguição com os coríntios. O primeiro a destacar, em linha com Ezequiel, se coloca no âmbito matrimonial; ele diz explicitamente que deu a comunidade em casamento, como bem indica o verbo harmózomai (BAUER, 1979, p. 107), a um único homem (v. 2b). A metáfora é usada para dizer a exclusividade da relação2222 da comunidade com Deus. Relação que é vivida de acordo com uma nova modalidade, ou seja, na união com Cristo23.

O segundo, mais associado ao próprio Apóstolo, traduz o sentido do empenho apostólico, de quem, inflamado, trabalha para evitar que a comunidade se desvie da vontade de Deus. Tal desvio poderia conduzir ao encontro da sua ira divina. Paulo se coloca, então, em linha com Fineias e Elias, personagens que tomados pelo ciúmes/zelo trabalharam para afastar, com suas ações, o perigo da idolatria ou desobediência à ordem divina e, de consequência, evitar o juízo condenatório de Deus (Nm 25,6-13, 3Re 19,10.14 [1Mc 2,54; Sir 48,1-2)2424.

• b. Temor

O temor corresponde mais à definição aristotélica, que descreve uma dor (desgosto) ou preocupação resultante da suposição de um mal eminente, que pode causar destruição ou sofrimento (ARISTOTELES, 2006, II.5,1). Em 2Cor 11,3, o temor é explicitado pela retomada de Gn 3, o diálogo entre a serpente e Eva2525, narrativa na qual a serpente é descrita como astuta e sedutora. Assim como Sb 2,24, Paulo parece entender a serpente como Satanás (2Cor 11,14). A alusão direta a Gn 3 tem como objetivo despertar a mente dos coríntios. A serpente promoveu a ruptura fundamental entre o homem e Deus, pervertendo o sentido da interdição divina e da imagem de Deus. A alusão desempenha uma função de atualização hermenêutica. O significado básico da narrativa do livro do Gênesis é, então, retomado em 2Co 11,1-15, para explicitar o perigo de que a relação com Deus se desfaça, se a comunidade, como fizera Eva, der ouvidos ao discurso dos adversários de Paulo. O resultado, no Gênesis, foi a condenação dos três personagens envolvidos natransgressão, a serpente, a mulher e o homem, com um fator dramático que é a expulsão do paraíso.

A sedução26 promove a corrupção27 do pensamento. Embora use o termo nóēma (pensamento, mente, propósito), a questão não é limitada a um fator intelectual, mas também existencial. De fato, em 2Cor 10,5, o Apóstolo diz empenhar-se, com as armas de Deus, para destruir todo conhecimento que se coloque contra Deus, a fim de promover a obediência da mente (nóēma) a Cristo. Ao pensamento corresponde uma conduta. Por isso, a obediência é condição para superar qualquer contraposição ao evangelho (2Cor 10,6) e à sua proposta de vida.

O v. 4 revela o temor de Paulo e o porquê do seu ciúme e, deste modo, apresenta de forma clara qual o perigo pelo qual passam os coríntios. Com uma metonímia, Jesus é associado ao evangelho, diante do qual a comunidade vacila, assumindo outras interpretações. O uso do adjetivo indefinido (állon) e do pronome relativo (hón), confirmado pela conjunção alternativa, coloca em confronto duas modalidades de evangelho2828. Alguns missionários itinerantes se apresentaram a Corinto, com uma outra leitura do evangelho. Os coríntios, sempre dispostos a seguir oradores cuja elocução lhes agradasse (1Cor, 1,12), parecem ter-se deixado seduzir.

• c. Amor

No v. 11, duas perguntas retóricas elevam a intensidade do discurso. Na primeira, surge praticamente um grito, “e por quê?”, para despertar os interlocutores (v. 11a). Na segunda, é introduzido o terceiro elemento do pathos explícito, com o verbo agapáō, amar (v. 11). A resposta que se espera da segunda pergunta é positiva, expressando um vínculo forte, que é confirmado pela invocação de Deus como testemunha (v. 11c). A força do vínculo já havia sido apresentada no início da carta (2,4), quando o autor disse ter escrito aos coríntios com um amor imenso, apesar das aflições e angustia no coração. O substantivo agápē é exaltado pelo advérbio perissotérōs (maior, imenso)29.

Como todo sentimento ou emoção, na Bíblia, o amor é entendido como operativo, ou seja, é traduzido em comportamentos práticos. Assim, é possível extrair do texto dois aspectos concretos deste amor. O primeiro é destacado nos vv. 7-9, nos quais apresenta alguns exemplos da verdade da sua intenção e atitude junto aos coríntios (vv. 7-9), vividas de forma gratuita, com a renúncia de lucros (2Cor 12,13-15). Parece que Paulo tinha como prática comum não aceitar compensações das comunidades para as quais pregava (At 20,34; 1Cor 4,10-13; 9,3-19; 1Ts 2,9; 2Ts 3,8). Provavelmente, os intrusos não recusavam contrapartidas e, talvez, até as pretendessem (2Cor 11,20). Se se pensa na tendência à partidarização de Corinto (1Cor 1,10-16), renunciar a compensações econômicas garante ao Apóstolo uma maior liberdade, diante da comunidade. De qualquer modo, a atitude do Apóstolo foi usada, num processo de manipulação, contra ele, como se, ao recusar um salário, ele desmerecesse a comunidade.

O segundo entende-se a partir do v. 10, que começa com uma asserção categórica: “[pela] verdade de Cristo que está em mim”. Tratase de uma formula de compromisso, de uma promessa30, de não calar o orgulho. O orgulho (kaúchēsis) é um motivo presente desde a propositio generalis da carta (1,12). Especificado pelo pronome demonstrativo deve referir-se ao conhecimento do v. 6 ou, mais especificamente, à pregação do evangelho (v. 4 [1Cor 9,15-16]).

Na Retórica, Aristóteles fala do amor com os termos philéō/philía. Na definição do filósofo também se destaca a dimensão operativa e recíproca do amor (ARISTOTELES, 2006, II.4.1-2). Paulo, em vez, emprega agapáō. Certamente, ele não ignora o sentido da amizade, próprio dos primeiros termos31, mas escolhe um verbo mais representativo da vida e da compreensão da fé das primeiras comunidades. Um verbo que abrange um vasto horizonte relacional, da benevolência de Deus (Jo 3,16; Rm 8,37; Col 3,12; 2Ts 2,16; 1Jo 4,11.19) ao amor de Cristo pela humanidade (Jo 13,1; Gl 2,20; Ef 5,2); do respeito e obediência devidas a Deus e a Cristo, da parte do homem (Mt 6,24; 22,37; Rm 8,28; 1Cor 2,9; 8,3; Tg 1,12; 1Pd 1,8; 1Jo 4,10.20), à relação com o próximo (Mt 19,19 [Lv 19,18]; Jo 15,12-17).

4.3 As emoções implícitas: despertar os coríntios

Como já dito antes, na ausência do gancho lexicográfico, a análise entra numa zona cinzenta. Por isso, para identificar as emoções implícitas, ou seja, aquelas que o autor espera despertar nos leitores, se faz mais importante a guia técnica da Retórica de Aristóteles.

• a. Ira

Aristóteles propõe algumas características básicas da ira. Ela é acompanhada de tristeza, dor e do forte desejo de vingança, por um desprezo, que pode assumir a forma de indignação, difamação, desrespeito. Tal emoção se instala, quando nenhuma das suas formas é merecida ou justificada. E tem um objeto claro, pois é dirigida a alguém que fez algo que a provocasse ou que está por provocar (ARISTOTELES, 2006, II.2,1-4). De forma prática, Aristóteles ensina que a raiva, como artifício persuasivo da comunicação, deve ser provocada nos interlocutores, contra aqueles que criaram a situação de tristeza e dor. E o desprezo, componente da ira, é muito mais ardente, quando se ataca a pessoa nos seus atributos, ao jogar sobre a percepção de inferioridade ou superioridade (ARISTOTELES, 2006, II.2,12-14).

Ao mencionar os seus antagonistas, Paulo não entende simplesmente em descrevê-los e nem estabelecer uma discussão direta com eles, mas se esforça para provocar uma emoção nos coríntios, a ira, e, assim, levar estes últimos a uma atitude de desprezo pelos adversários dele. E o faz entrelaçando dois aspectos. O primeiro é a escolha do vocabulário. Nas considerações32 de 11,5c, ele nomeia os adversários super apóstolos. O advérbio de intensidade traduzido por super, hyperlían, carrega o sentido de excesso, algo além da medida, come é típico do prefixo hypér (BAUER, 1979, p. 841; LIDELL SCOTT, 1996, p. 1857) e é usado de forma sarcástica. Na continuação do discurso da insensatez, 11,23a, hypér é usado para falar dele mesmo, marcando a sua superioridade33.

Não obstante, reconheça não ter uma retórica muito eloquente (v. 6a), Paulo possui algo que, de fato, qualifica o “mais” do seu ministério, ou seja, o conhecimento seguro do evangelho, como vindo de Deus e manifestado plenamente em Cristo (2Cor 1,17-18.20; 2,1-2; 1Cor 1,24; 4,4; Rm 1,16; 5,8; Gl 4,4). Tal conhecimento é fruto da graça que ele sabe ter recebido e que se difunde, também, por meio do seu ministério (2Cor 3,3.5-6; 4,1; 6,4 [At 9,3-6; 22,6-11; 26,12-17; 1Cor 15,3-; Gl 1,15-17).

O segundo aspecto retórico afeta a memória dos coríntios, ao recuperar um fato que descreve bem a sua atitude. Pregação e comportamento são incindíveis no exercício do ministério (v. 6c). Por isso recorda de ter despojado – no sentido de apoiado – outras igrejas, com referência explicita aos irmãos da Macedônia (v. 9). Em 11,23ss, também seguem alguns outros elementos exemplificativos do seu agir. Deste modo,

compreende-se, então, que o “menos” adquire seu significado exclusivamente dentro do âmbito do evangelho e a favor dos coríntios, como bem destaca o uso do verbo tapeinóō (v. 7), com o sentido de humilhar-se, rebaixar-se (Lc 14,11; 18,14; 2Cor 12,21).

Para colocar mais lenha na fogueira da ira, observa-se também a presença do advérbio de modo dōrean, gratuitamente. Este confirma a diferença significativa entre aquele que se humilha e os super apóstolos, e enfatiza o modus operandi de Paulo. O mesmo advérbio é usado em outros textos, para indicar a gratuidade da salvação realizada por Cisto (Rm 3,24; Gl 2,21). Paulo, portanto, traduz na sua vida o evangelho que prega, na imitação de Cristo, à qual os coríntios já foram convocados em 1Cor 11,1.

• b. Indignação e compaixão

Para Aristóteles, a indignação (nemesân) é a dor vivida diante de alguém que se considera feliz sem merecer. Este pathos é relacionado com a compaixão (eleeîn). Ambas as paixões, mesmo que com valor antitético, acabam por atribuir um valor positivo ao ethos, pois a compaixão se identifica com quem sofreu a injustiça, enquanto que a indignação surge contra quem prospera injustamente (indignação) (Ret. II.9,1-4). Neste sentido, o orador deve atrair a compaixão do público para consigo, ao trabalhar para ativar a indignação do mesmo público contra a pessoa de quem ele fala, considerando-a indigna de um reconhecimento ou benefício (Ret. II.9,12-16). Em alguns pontos do texto, percebem-se indícios de que Paulo pretende provocar a indignação dos coríntios contra seus adversários e, ao mesmo tempo, a compaixão para com ele.

O primeiro exemplo é o v. 4, articulado de forma antitética, como se vê no quadro abaixo. De um lado, é descrita a relação entre os coríntios e o alguém. O pronome indefinido há uma função de desmerecimento. Com isto, Paulo evita qualquer possibilidade de reconhecimento dos seus adversários. As ações explicitas (vir + anunciar, receber) ou implícita (quando fala do evangelho ele não usa um verbo, porque este é associado com Jesus) está no presente. Enquanto que em relação a Paulo, as ações estão no aoristo, portanto, no passado, porque são referidas à pregação inicial e fundação da comunidade.

Por fim, a última asserção (a4) deixa a conclusão implícita da indisposição diante de Paulo. A inferência que à qual o contexto conduz não é referida ao passado, afinal se a comunidade existe é porque, antes, os coríntios foram acolhedores, mas sim ao momento presente. O implícito ponto b4 é referido ao presente, com consequências relacionadas com o passado, ou seja, no hoje se tende a aceitar interpretações do evangelho que desconfiguram o evangelho recebido, nota-se a insistência dos adjetivos indefinidos (állos e héteros) e sobre o qual a comunidade foi fundada. O ponto a4 é o elemento chave da indignação. Neste, retoma-se o verbo suportar/acolher (anéxō) do v. 1. E, ainda mais, é precedido do advérbio kalōs, com sentido modal de bem e disponibilidade, sublinhando ironicamente um absurdo. Como é possível que se dê tanta atenção a alguém que desvirtua o evangelho e não se considere devidamente quem se empenhou para dar vida à comunidade?

Em sintonia com o v. 4, deve ser lido também o v. 12. Neste, Paulo expressa com força a sua intenção de impedir que seus adversários se aproveitem dos resultados do trabalho dele, para se vangloriarem. A determinação é manifestada com o uso do verbo no presente e no futuro: “o que faço, o farei [ainda]”, como confirmação da coerência de atitudedo Apóstolo34. O termo traduzido como pretexto (aphormē) poderia ser explicado também como ocasião, oportunidade. Ele é usado, normalmente, na cartas paulinas com um conotação negativa, como ocasiões que podem induzir ao pecado (Rm 7,11; Gl 5,13; 1Tm 5,14). Todavia, sem desmerecer este sentido negativo, como um perigo real, a força da expressão e indignação que se deseja provocar deve vir do eco de algo que Paulo havia dito antes, em 5,12, no qual ele afirma de dar pretexto/ ocasião para que seus interlocutores se gloriem dele.

Os últimos três versículos acentuam o retrato negativo dos opositores. Estes são definidos, primeiramente, falsos apóstolos (v. 13). O adjetivo falso (pseûdos), em Rm 1,25 e 3,4, descreve uma atitude de manipulação da verdade de Deus. Significativa também é definição operários enganadores. O substantivo (ergátēs) indica aquele cujo trabalho é remunerado (Cf. Mt 9,37; 10,10; 20,1.8; Lc 10,2.7; 1Tm 5,18; Gc 5,4), mas nas cartas paulinas, de modo especial, descreve o ministério do pregador (Cf. 2Cor 11,13; Fl 3,2; 2Tm 2,15 [Mt 9,37; Lc 10,2]). Certamente estes pregadores intrusos pretendiam um pagamento pela ação deles na comunidade, ao contrário de Paulo que, como já foi visto, renunciou a qualquer direito ou pretensão deste tipo. Todavia, o adjetivo enganador, desonesto (dólios), sublinha o fato de que os intrusos não merecem tal pagamento. A questão econômica usada para atacar Paulo e expressão de uma atitude corrupta dos adversários dele é um ponto secundário que direciona para aquele central, isto é, a disposição diante do evangelho pregado, relacionado com a índole do pregador.

O conceito que une as duas primeiras definições (v. 13) é apresentado pelo particípio adjetivo do verbo metaschēmatízō (mudar forma, assumir uma aparência diferente). Em Fl 3,21, há um valor positivo, porque o agente da transformação é Cristo, que com autoridade, levará o nosso corpo de humilhação à condição do seu, de glória. Em 2Cor 11,13, como se vê dos adjetivos precedentes e do v. 14, tem sentido reprovável, porque o agente da transformação é Satanás, que assume a aparência de anjo da luz. Com esta imagem, Paulo deixa claro que o reconhecimento dado aos intrusos é fundamentado numa aparência, expressa na pregação, que se revela, na verdade, como corrupta e, assim, capaz de manipular a verdade do evangelho. Neste ponto, é desvelada totalmente a sedução da serpente (v. 3)35.

• c. Temor

Aristóteles define o temor (phóbos) como uma agitação que surge a partir da impressão (ekphantasía) de um mal iminente, seja como dor ou destruição, e, assim, perigoso (Ret. II.5,1-5.13). Sem meios termos, Paulo falou do seu temor (phobéomai), como uma preocupação com os coríntios, e indicou o seu motivo no v. 3. Mas esta emoção pode ainda ser inferida em relação aos coríntios. O v. 15 se conclui com uma asserção que ressoa como uma ameaça futura. O futuro deve ser entendido na perspectiva escatológica que remete a ideia do juízo. Em 2Cor 5,10, Paulo havia afirmado que “todos devemos comparecer diante do tribunal de Cristo, para receber cada um a retribuição de acordo com o que fez no corpo, seja bom ou mal”.

Ora, explicitamente, o v. 15 é referido aos adversários e, neste sentido, é um juízo claro de condenação. O autor fala dos adversários, para falar aos coríntios. A disposição (kalōs) pode se revelar perigosa, porque a não adesão ao evangelho verdadeiro (Cf. Rm 10,9-11 [Fl 2,11]), pode colocá-los na mesma condição dos ministros de Satanás, no juízo. O v. 3 já carregava, de fundo, a ideia de uma possível condenação, como explicitado acima, pois o zếlos de Deus nem sempre promove a salvação, mas pode também provocar o seu contrário, condenação e destruição. Em Dt 29,20, zếlos está em conexão com a ira de Deus, uma categoria vetero testamentária para falar do juízo e da condenação presente nele.

Aristóteles, ao descrever o mecanismo que leva ao temor – expectativa que será submetido ao sofrimento ou à desgraça –, fala também da possibilidade de que alguém não dsenvolva esta expectativa, à qual pode se somar outra atitude, ou seja, a indiferença pelo futuro (Ret. II.5,13-15). Por isso, muitas vezes, deve-se provocar esta emoção no público. Mas é importante também conservar alguma perspectiva de esperança (tinà elpída) de ser salvo do perigo ou motivo de angustia. Para isso, é interessante lembrar aos destinatários que outros, talvez até mais potentes, também sofreram algum sofrimento e superaram. E por que é necessário? Porque o temor, com algo de esperança, faz o homem deliberar (bouleutikoúspoieî), pois sem um mínimo de esperança, não há porque deliberar (Ret. II.5,15). É bom não esquecer a perspectiva do v. 3; Eva é expressão de uma experiência que se abateu sobre toda a humanidade. A comunidade seduzida nos seus pensamentos (v. 3) negligencia a condição de exclusividade da relação com o Evangelho verdadeiro, com Cristo (v. 2).

Em 1Cor 9,1, Paulo define a comunidade dos coríntios como obra sua, realizada no Senhor (cf. 2Cor 3,1-3). A esta mesma obra, sempre no Senhor, é associada também aquela efetivada pelo seu colaborador, Timóteo (1Cor 16,10). E, em 2Cor 10,11, diz mais, ao afirmar que a autenticidade – questão do ethos do autor – da carta equivale àquela da obra, quando o Apóstolo se encontrava e espera encontrar-se, de novo, pessoalmente em meio à comunidade. Nesta linha, é interessante retomar a figura de Fineas (Nm 25,11), cuja ação ciumenta/zelosa desviou a ira de Deus, evitando que esta se abatesse sobre Israel.

O futuro, que qualifica o tempo como algo incompleto, algo ainda não alcançado, mas, para os discípulos de Cristo, é o tempo no qual Deus, no juízo, esmagará Satanás definitivamente (Rm 16,20; 1Cor 5,5 [1Tm 1,20], 2Ts 2,9). Neste sentido, o futuro, visto na ótica do temor esperançoso – para retomar o pensamento aristotélico –, permeia o presente, convocando o homem e a mulher de fé a uma adesão sempre mais convicta ao evangelho, de modo que a vida se torne “abundante na obra do Senhor” (1Cor 15,57-58).

Conclusão: a focalização retórico-pragmática

A análise feita seguiu uma abordagem retórico-pragmática. Na sua impostação sincrônica, o texto foi considerado na sua forma canônica, entendido como unidade dotada de sentido e, portanto, com uma intenção comunicativa, que vai além do contexto histórico de origem, e é eloquente também para o leitor empírico de um outro contexto. Da retórica, propriamente, observou-se não todos os aspectos da elaboração da argumentação, mas destacou-se sobretudo o uso das paixões como fator decisivo da arguição, capaz de provocar um processo de transformação cognitiva e, deste modo, exercer uma força persuasiva. A pretensão persuasiva da retórica é, por si mesma, pragmática, enquanto produz algo, no caso, adesão ao evangelho36. Não uma adesão abstrata, mas sim vital, que envolve a vida do leitor empírico, o qual é convocado, pelo texto, para assumir uma postura ativa e cooperante na decifração da estratégias textuais utilizadas pelo autor, identificando-se com a sua proposta e valores.

Como considerações conclusivas, destaca-se, de novo, que Paulo não hesita em manifestar as suas paixões e o faz de forma explicita. Com isto, ele busca promover uma aproximação dos coríntios, recuperar os vínculos abalados. Ao mesmo tempo, ele corrobora a partir delas e de exemplos concretos, a credibilidade do seu ministério. Como Apóstolo, ele se coloca em linha com outros personagens cuja preocupação e ação, na história da salvação, contribuiu para conservar a fidelidade do povo de Deus e evitar a ira. Mas, claramente, com a novidade de mover-se a partir de e para Cristo.

Todavia, a sua postura não é auto referencial. Ele, sem dúvida, faz uma autodefesa, movimento condizente com o gênero retórico judiciário, fortemente presente nos últimos capítulos da Segunda Coríntios. Mas a defesa do seu agir é finalizada também a recolocar o evangelho que ele pregou, assumido como verdadeiro, no centro da vida comunidade. Por isso, é possível afirmar que, se de um lado a postura apologética expõe a falsidade das acusações que lhe foram dirigidas, do outro, o que o autor intenciona é levar o leitor a rever a sua própria posição, diante do que pode significar o distanciamento do Apóstolo. Defender o ministério significa garantir a centralidade do evangelho, já que o primeiro existe somente em função do segundo e o segundo difunde-se por meio do primeiro.

São, exatamente, as emoções evocadas, sobretudo as implícitas a abrirem esta outra perspectiva, não exclusivamente apologética. Por isso, se pensa em aspectos deliberativos que convocam a comunidade a tomar uma posição sobre algo que se revela útil para a mesma. No caso, o que está em jogo é a questão da ira, ou melhor, o perigo da não salvação. Motivados por outro evangelho37, uma interpretação diferente da de Paulo, os coríntios se deparam com um perigo muito grande, a ira de Deus, ou seja, caminhar para a condenação (vv. 3.15). A impostação do texto é escatológica que, por assim dizer, abraça a história, com seu progresso cronológico, dentro da experiência salvadora de Deus efetivada em Cristo. Uma experiência que projeta para o futuro do juízo divino, no qual Satanás é desmascarado e vencido definitivamente. Portanto, a partir daquilo que a retórica deliberativa propõe, poder-se-ia dizer que o “útil” sobre o qual a comunidade deve deliberar é o evangelho que salva.

A representação (pragmática) que o texto propõe ao leitor empírico não depende tanto dos fatos históricos vividos por Paulo, mas do mundo que se abre a ele por meio do texto. As alusões presentes na perícope localizam o leitor num universo bastante amplo, da protologia (Eva) à escatologia (juízo), que é preenchido pela ação salvadora de Deus realizada em Cristo. E é com esse Cristo que o leitor deve se conservar vinculado. Em 1Cor 11,1, Paulo exorta os coríntios a imitá-lo, porque ele imita a Cristo. Num contexto diferente, como é o da Segunda Coríntios ou do leitor de qualquer tempo, esta exortação ainda se faz sentir sempre atual.

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Notas

[1]“Paul’s letter are rhetorical works, not objective depictions of reality. What we encounter in Paul’s letters is not the ‘real’ Paul or the ‘real’ audience, but Paul momentary construction of both himself and his intended audience” (STANLEY, 2004, 63). A crítica literária moderna superou a questão que, considerando a autonomia do texto, uma vez publicado, havia quase que cancelado a importância do autor. Hoje, compreende-se que “author, texts and readers are part of equation in written communication” (BROWN, 2008, p. 57).

[2]Já na retórica clássica se falava da possibilidade de mesclar os gêneros. Cf. QUINTILIANO, 2003, III.4.16; LAUSBERG, 1990, p. 61. A respeito do gênero misto nas cartas paulinas, cf. KENNEDY, 1984, p. 19; LONG, 2004, p. 24-28; KLAUCK, 1998, p. 171-172.

[3]As emoções tratadas por Aristóteles são ira, a calma e tranquilidade, amor e ódio, temor e confiança, vergonha, favor, indignação e compaixão, emulação, inveja e desprezo.

[4]O Apóstolo não evita a manifestação das suas emoções, principalmente, quando estas servem para confirmar o vínculo com seus destinatários, ora expondo-as explicitamente (2Cor 6,11; 7,3; 11,2.11), ora usando imagens, como aquelas parentais (1Cor 4,14-15; 2Cor 6,13; 12,14; Gl 4,19; 1Ts 2,6-7.11).

[5]Com uma argumentação caracterizada pela perspectiva do pathos, Paulo apela para a relação de amizade entre ele e Filêmon, para tratar da situação de Onésimo. Cf. MANES, 2016. Em Filipenses, sublinha a sua grande alegria pela comunidade e usa esta emoção para confirmar a relação entre ele e seus destinatários, entre outras coisas, na perspectiva da mimesis (imitação) de si (cf. Fl 3,17–4,1; 4,9; [1Cor 4,16, 10,32-33; 11,1; 1Ts 1,6; 2,14; 2Ts 2,10-14; 3,7.9]). A mimesis paulina equivale, em palavras simples, ao seguimento dos evangelhos. Porém, se a ideia do seguimento coloca o discípulo diretamente atrás de Jesus Cristo (Mc 1,16-20), na mimesis o leitor se depara com a mediação do Apóstolo. Do ponto de vista da estratégia pragmática, daquilo que quer produzir no leitor, a vida do autor, tal como ela é descrita no conjunto do carta, assume a forma de um percurso que conduz a Cristo (1Cor 11,1). Mas os silêncios também são eloquentes, como se vê na ausência do proêmio na carta aos Gálatas. Normalmente, as cartas paulinas trazem um proêmio, isto é, um hino de ação de graças (ou eucológico), por meio do qual, o Apóstolo direciona uma oração a Deus pelos destinatários. Porém, o hino tem também uma dupla função retórica. Na primeira, ele é expressão do artifício retórico denominado captatio benevolentiae, usado com o objetivo de predispor positivamente os destinatários para a leitura da carta. Segundo, ele antecipa alguns temas importantes do corpo da carta. Em relação aos gálatas, parece que a situação chegou a um nível de conflito muito elevado. Situação diante da qual, Paulo não vê motivos para agradecer. Por isso, enraivecido, ele aponta logo o problema (Gl 1,6ss).

[6]Um excelente exemplo do uso dos artifícios do pathos na retórica paulina encontra-se em WELBORN, 2001, p. 31-60.

[7]Cf. kaúchēsis (orgulho): 1,12; 7,4.14; 8,24; 11,10.17; kaúchēma (orgulho): 1,14; 5,12; 9,3; kaucháomai (orgulhar-se): 5,12; 7,14; 9,2; 10,8.13.15.16.17[2]; 11,12.16.18[2].30[2]; 12,1.5[2].6.9.

[8]As conjunções coordenativas estabelecem uma relação lógica entre as proposições, que, no discurso, acabam por manifestar uma intenção de subordinação. Cf. TYTECA, 2001, p. 165.166.167; REED, 1999, p. 33.

[9]Provavelmente, este é o motivo da troca de conjunções feita no CodexVaticanus (B).

[10]Por duas vezes, Paulo afirma a sua qualificação com a conjunção allá, que estabelece uma forte adversidade e, no caso, marca uma diferença realmente significativa.

[11]Para garantir sentido, ao traduzir para o português, e considerando o conjunto da perícope, optou-se por “evitar”.

[12] A fórmula éstin ... + ... hóti é usada para declarações contundentes (ZERWICK, 1966, p. 557).

[13]Acrescentado para dar evidenciar a força da pergunta retórica

[14]Aristóteles apresenta os três critérios exemplificando-os com a emoção da ira (2006, II.1.9).

[15]As indicações, como Aristóteles as propõe, são parte da inventio, ou seja, do trabalho prévio à elaboração do discurso. Nesta etapa generativa, o orador faz uso da sua criatividade intelectual e reúne todos os elementos que pensa serem pertinentes para a argumentação.

[16]Para outros exemplos do uso da partícula, cf. Ex 16,3; Nm 14,2; 20,3; Ap 3,15.

[17]Com frequência, aphrosýnēs designa presunção do homem diante de Deus, na LXX. Uma ideia similar é presente em Rm 2,17-20; Ef 5,17 (SCHLIER, 1965, p. 145).

[18]Figura de pensamento que descreve uma declaração forte e breve, com a finalidade de introduzir uma argumentação, com uma certa ambiguidade, para exaltar os interlocutores, sobretudo quando o orador sabe da dificuldade de trabalhar as emoções dos destinatários e os julgamentos já estabelecidos, pois o discurso pode ser percebido como uma ofensa. (ANDERSON Jr., 2000, p. 14; BLASS-DEBRUNNER, 1997, 495.4).

[19]Há uma ambiguidade no verbo; ele pode ser analisado como indicativo ou imperativo. A preferência pelo indicativo é devida ao uso da prodiorthosis e das conjunções allà kaì, que dão ênfase ao dito anterior. (BLASS-DEBRUNNER, 1997, 448.6). No caso, a antíteses direta (allà) reformula a nota anterior, dando sentido positivo.

[20]Esta é a definição que se encontra em Aristóteles (Ret. II.11.1). Na Segunda Coríntios também encontra-se este significado, cf. 2,1–2,13 e 7,5-16 (WELBORN, 2001, p. 54-57).

[21]Em alguns textos paulinos, é associada a paixões que devem ser evitadas, cf. Rm 13,13; 1Cor 3,3; 2Cor 12,20; Gl 5,20.

[22]O elemento da exclusividade é sublinhado pela expressão henì andrì (um [único] homem), no v. 2, e pelo termo parthénon (virgem), qualificado com hagnēn (casta) para indicar a condição de virgem pura (cf. 1Cor 7,11.25.28.34.36.37). No texto estudado, o adjetivo remete ao sentido de inocência. Para outros exemplos do uso destes termos, nas cartas paulinas, cf. 1Tm 5,22; Tt 1,6.25. Sabe-se também que a exclusividade do marido era um costume consagrado na antiguidade (SCHERBERICH, 2011, p. 51).

[23]O verbo parístēmi (apresentar, colocar diante de), também é usado em referência ao matrimônio em Ef 5,27.

[24]De modo particular, o tema do matrimônio, como transgressão, aparece em Nm 25,613. Naquela ocasião, Fineias, transpassou o ventre de um israelita que se casou com uma madianita, desobedecendo a ordem de Deus. Com este gesto, Fineias afasta a ira de Deus contra os israelitas (v. 11).

[25]Paulo cita constantemente o Antigo Testamento. Supõe-se que os seus destinatários, de modo particular os gentios, tenham adquirido um conhecimento suficiente dos textos veterotestamentários, para poder entender as citações, que, com frequência, não são acompanhadas de algum comento. Pode-se hipotizar, assim, que a pregação dele tenha oferecido muitos elementos de acesso ao Antigo Testamento (STANLEY, 2004, p. 2-3.76-78.98).

[26]Paolo usa O verbo exapatáō (seduzir) em contextos nos quais alerta sobre um engano já em movimento, em meio à comunidade. Tal fator, de um lado, constata o perigo; do outro, atribui um caráter de urgência. É preciso responder com rapidez e convicção (cf. Rm 7,11; 16,18; 1Cor 3,18; 2Ts 2,3).

[27]O verbo corromper, desviar (phtheírō) está no subjuntivo aoristo passivo. O agente da passiva não é nomeado no versículo, mas v. 4 permite entender que deve ser Satanás.

[28]Outros textos paulinos também manifestam esta preocupação, cf. 1Cor 15,1-5; 2Cor 2,17; 4,2; Rm 16,17-18; Gl 1,6-9; Ef 4,14.

[29]Para outros exemplos, cf. Rm 13,8; 2Cor 12,15; Gl 5,14; Ef 5,25.28; Mt 5,43; 19,19; Lc 7,5; Jo 11,5; 1Pd 1,22. Em outros pontos da Segunda Coríntios, Paulo se lamenta do fechamento ou falta de reciprocidade da parte dos coríntios (6,11-13; 7,3-4; 12,15b [Gl 3,1; Fl 4,15]).

[30]Lambrecht fala de fórmula de juramento (oath formula) e cita como exemplo Rm 9,1 (1999, p. 177).

[31]O verbo philéō e o substantivo philía podem ser traduzidos como amar e amor, mas indicam sobretudo afeição própria da relação de amizade (LIDELL SCOTT, 1996, p. 1933-1934).

[32]O verbo logísasthai (considerar) tem um valor subjetivo, indicando uma consideração pessoal e racional (cf. 1Cor 4,1; 13,5.11; 2Cor 3,5; 5,19; 10,2.7.11; 11,5; 12,6).

[33]Neste versículo encontram-se outros advérbios indicando o “mais”: perissotérōs e hyperballóntōs.

[34]Nos vv. 9.12, o futuro pode ser entendido como gnômico, expressão de algo cujo valor cobre qualquer circunstância. Mas, no v. 12, pode desempenhar também uma função proléptica, isto é, uma alusão implícita ao projeto de uma futura visita à comunidade de Corinto (2Cor 12,20-21).

[35]Em vários textos, Satanás é descrito como tentador que deve ser evitado (1Cor 7,5; 2Cor 2,4; 1Ts 4,28; 2Cor 12,7; 1Tm 5,15) ou como aquele que cria obstáculos à vivencia do ministério (1Ts 2,18).

[36]Poder-se-ia discutir a felicidade ou não da peformatividade do enunciado, isto é, se alcançou ou não o seu objetivo. Mas para isso seria necessário passar a averiguação da realidade do leitor empírico, seja ele o leitor primário (os coríntios) ou aquele atual.

[37]Paulo admite diferentes abordagens, inclusive complementares ao seu operar, como se vê na relação com Apolo, em 1Cor 3,4-6, desde que não estas não desconfigurem o evangelho, desviando os leitores de Cristo, o Senhor e salvador (1Cor 1,3.9; 3,21-23).