O Boi e o Pastor e a Mística Zen
The Ten Oxherding Pictures and Zen Mysticism

Monica Giraldo Hortegas*
* Mestre e Doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: mhortegas@hotmail.com
Voltar ao Sumário

 

Resumo
O Boi e o Pastor é um poema chinês do século XII. Inclui imagens que perfazem a orientação zen budista sobre a meditação e como caminho para a iluminação. Conhecido como um importante texto desta tradição, ele possui diversas variações em número de imagens e texto. A utilizada para este estudo é a de Kakuan Shien, monge chinês, com dez imagens. O poema trata sobre um pastor que perde seu boi e o busca até encontrá-lo e reconduzi-lo de volta para casa. A singularidade desta interpretação é que a jornada não se encerra no círculo vazio, como as outras fazem. Ela ultrapassa este estágio e retorna para a simplicidade da natureza e da vida diária. A mística zen budista pode ser vista como uma não-mística ou como uma mística do cotidiano. Após o encontro com o silêncio de Deus, ou melhor, o nada absoluto, o que se expressa é a vida tal como ela é, sem porquês. A partir da análise de Shizuteru Ueda da Escola de Kyoto sobre o poema, trabalharei os conceitos si-mesmo e taleidade para compor o entendimento desta mística que se vincula ao fenomênico, ao simples, sem deixar de lado o transcendente e o sagrado.

Palavras chave:O Boi e o Pastor, mística zen, si-mesmo, taleidade, cotidiano.

 

Abstract
The Ten Oxherding Pictures is a Chinese poem of the twelfth century. It includes images that highlights the Zen Buddhist guidance on meditation and as a path to enlightenment. Known as an important text of this tradition, it has several variations in number of images and text. The one used for this study was made by Kakuan Shien, Chinese monk, with ten images. The poem deals with a shepherd who loses his ox and seeks for it until he finds and brings it back home. The singularity of this interpretation is that the journey does not end in the empty circle, as others do. It transcends this stage and returns to the simplicity of nature and daily life. The Zen Buddhist mysticism can be seen as a non-mysticism or as a mysticism of everyday life. After the encounter with the silence of God, or rather, absolute nothingness, what is expressed is life is its suchness, without whys. From Shizuteru Ueda’s analysis of the poem, I will work on the concepts of self and suchness to build the understanding of this mysticism that is linked to the phenomenal, the simple, without neglecting the transcendent and the sacred.

Keywords:The Ten Oxherding Pictures, Zen mysticism, self, suchness, everyday life.

Introdução

Para escapar do poder do intelecto,
das armadilhas das palavras,
desbravei o mar em busca do
conhecimento
que transborda todo dizer.
Deambulei até desfazerem-se as
sandálias
e o que eu encontrei?
A água no rio, a lua no céu.
Kakuan

O Budismo não é uma única tradição que decorre linearmente dos ensinamentos do Buda Sakyamuni. Ele se espraia após seu mestre, não apenas para além de sua terra natal, como também em diferentes formas, se adaptando a novos desafios culturais. As diversas doutrinas, práticas e escolas podem ser entendidas como uma família de religiões e sistemas budistas (TAN, 2004, p. 27).

O Zen é uma destas facetas. Derivado da palavra sânscrita dhyana, em pali, jhana, nasce a palavra chinesa chan-na. A última sílaba foi eliminada tornando-se Chan. O início formal da tradição Chan ocorreu na China, por volta do século V, com Bodhidharma. Já no século XII, foi introduzida como Zen no Japão com o mestre Eisai e posteriormente, no século XIII, difundida a partir de mestre Dogen (TEIXEIRA, 2012, p. 706). No próprio Zen há uma pluralidade de posicionamentos. Algumas escolas veem o despertar como um processo e outras como súbito. Entre o método para se alcançar a iluminação, alguns privilegiam a meditação e outros os koans, sistema de perguntas e respostas entre mestres e discípulos que ultrapassa a lógica racional do aluno. Mas, no sentido geral, seus ensinamentos estão muito próximos do Budismo original, e são encontrados em textos tradicionais, tais como o Maha Satipatthana Sutta, o Satipatthana Sutta e o Anapaha Sati Sutta, evidenciando uma valorização da natureza, simplicidade e harmonia (TAN, 2004, p. 13-14).

Estes conteúdos são entretanto, pouco explorados academicamente. Na universidade, há uma valorização do saber ocidental, europeu, americano. Os saberes das nações indígenas, africanas e tradições culturais orientais têm ainda pouca presença.

Segundo o psiquiatra Carl Gustav Jung, há, no Ocidente, uma separação entre a ciência e a religião ao longo da história. Com as descobertas geográficas e científicas, o pensamento foi rompendo com a submissão aos ditames da tradição religiosa (JUNG, 2012, p. 68). Esta separação não seria saudável. A ciência não respondia às necessidades e às expectativas que a religião proporcionava, deixando uma lacuna difícil de ser preenchida. Para Jung:

Este conflito existe única e exclusivamente por causa da cisão histórica operada no pensamento europeu. Se não houvesse, de um lado, um impulso psicológico inatural para crer, e do outro uma fé, igualmente inatural na ciência, não haveria qualquer razão para este conflito. Seria fácil, então, imaginar um estado em que o indivíduo simplesmente soubesse e ao mesmo tempo acreditasse naquilo que lhe parecesse provável por estas ou aquelas boas razões. A rigor não há, forçosamente, uma razão para o conflito entre essas duas coisas. Na verdade, ambas são necessárias [...] (JUNG, 2012, p. 70).

Entre os maléficos efeitos desta cisão, o homem ocidental, para Jung, teria uma ciência da natureza mas não seria capaz de compreender sua própria natureza. Ele teria cindido a fé e o saber. Seu intelecto estaria alienado de sua alma, de sua natureza interna e sua tarefa deveria ser a de tentar recuperá-la (JUNG, 2012, p. 71-72). Para isso, primeiramente, ele teria que “libertar-se de suas unilateralidades bárbaras” (JUNG, 2012, p. 76).

Para Paine, as tradições orientais não podem mais ter o papel de meros coadjuvantes ou uma simples nota de rodapé. Os conhecimentos adquiridos sobre as grandes religiões da humanidade, incluindo aqui as orientais, são fundamentais para o Ocidente, incluindo saberes como a filosofia e a ciência das religiões. Segundo este autor, “os contornos dessa paisagem expandida de uma religiosidade quase universal e de implicações em todos os campos da atividade humana revelaram-se, sobretudo, na nova conscientização da variedade e da riqueza das tradições orientais” (PAINE, 2007, p. 70).

O filósofo Karl Jaspers foi um dos desbravadores destas culturas, trazendo para o Ocidente o estudo de Lao-Tzu, filósofo chinês do século V AEC, autor do Tao-Te-Ching e de Nagarjuna, filósofo indiano do século II EC. (CARVALHO, 2005, p. 2-3).

Alguns filósofos ocidentais tiveram influência do pensamento japonês, dentre eles os filósofos Heidegger, Husserl e Derrida, mas nem sempre isto foi dito explicitamente (CARVALHO, 2005, p. 6). A Escola de Kyoto, por exemplo, é uma escola filosófica japonesa que ousou cruzar a ponte entre Oriente e Ocidente e com diversos autores tem se dedicado ao estudo, entre outros, da tradição zen budista em conjunto com o pensamento ocidental. É formada por diversos filósofos, dentre eles o precursor Nishida Kitaro, Keiji Nishitani e Shizuteru Ueda. Não se estuda apenas religião ou filosofia. Estudam-se questões universais fundamentais (CARVALHO, 2005, p. 6). Trazer a reflexão sobre a mística zen budista e suas implicações, a partir de um texto antigo chinês, trabalhado até hoje por esta tradição, para compor este artigo, lança, de forma efetiva, mais pontes. Ao mesmo tempo traz para o primeiro plano a valorização da simplicidade e do cotidiano. Para o Zen, o encontro com o divino não está no transcendente. Não está em terras distantes. Não há nem ao menos a palavra Deus. O que há é algo muito próximo, que está sempre presente, em cada instante. No poema O Boi e o Pastor, este algo é o boi, irmão da caminhada da vida.

O Boi e o Pastor

O Boi e o Pastor é um poema chinês que tem sua origem incerta. Em práticas meditativas bem antigas, já havia o simbolismo do bezerro, do touro e da vaca, encontrado, por exemplo, no Maha Gopalaka Sutta, e em comentários no Maha Satipatthana Sutta e no Satipatthana Sutta (TAN, 2004, p. 8). O texto Sinhala Comys datado do século III a.C. e traduzido no século V por Buddhaghosa, já continha o texto da procura do bezerro. Outros autores dizem que esta data pode ser ainda anterior. Segundo Piya Tan, estes animais são ruminantes e, etimologicamente, ruminar também significa pensar, contemplar ou meditar. Quando o budismo se espalhou pela Ásia e para além deste território, foram criadas imagens da procura do bezerro selvagem, também conhecidas como o Boi e o Pastor (TAN, 2004, p. 8-9). Estas imagens possuem um leque de variações, sendo encontradas em número de cinco, seis ou dez figuras, desde o século XII até o século XVI na China e no século XV por monges japoneses (TAN, 2004, p. 12).

Dentre as versões mais conhecidas do poema está a de quatro etapas de Xueting Yuanjing, criada por volta do século XII (DESPEUX, 2015, p. 57-58). Dois poemas de cinco etapas também foram criados, um de Seikyo (TAN, 2004, p. 12) e outro, de um autor desconhecido proveniente do século XI (DESPEUX, 2015, p. 61-62). Existe a versãode seis figuras de Jitoku Keiki (SUZUKI, 2005, p.89) do século XII. A escola yunmen possui uma versão de oito etapas feitas por Foguo Weibai (DESPEUX, 2015, p. 66) e Qingju criou uma com uma sequência de doze (DESPEUX, 2015, p. 55). Kakuan Shien, mestre da dinastia Sung, proveniente da escola rinzai e monarca do templo Liang-shan Ching-chou na China é o autor dos poemas de dez imagens que serão aqui abordados. Diz-se que ele também teria pintado as imagens1. Entretanto, estas imagens iniciais se perderam. As dez aqui tratadas são de Tensho Shubun, do século XV, que teria se inspirado na versão de Kakuan. A versão deste autor tornou-se parte do Cânone Budista Chinês2, o Hsu-tsang Ching, que em totalidade se compõe de 140 volumes (AUTORE, 2011, p. 13). Existe um outro, também com dez imagens, feitos por Puming mas que finaliza com o círculo vazio (TAN, 2004, p. 12-14). Diz-se que o de Puming é mais conhecido na China, enquanto que a de Kakuan, tornou-se mais popular no Japão (DESPEUX, 2015, p. 53). Uma outra diferença entre eles consiste na descolorização gradual do animal nas figuras de Puming sendo que nas de Kakuan, não há mudanças na cor do mesmo (DESPEUX, 2015, p. 10-11).

Não é apenas um boi que ilustra as passagens. Na versão taoísta, há um adestramento de cavalo, feita por Gao Daokuan. Já no Tibet, há um poema com o adestramento do elefante (DESPEUX, 2015, p. 11). O próprio boi também varia. Existem reproduções de búfalos, vacas, bois, além de bezerros. Segundo Tan, nos cânones mais antigos, a figura do boi é inclusive inapropriada. Há referências ao touro, à vaca e ao bezerro (TAN, 2004, p. 8-9). O termo chinês utilizado é niu, e em japonês ushi. Ambos os conceitos se referem à espécie bovina em geral, sem especificar o tipo ou o gênero (SPIEGELMAN, 1994, p. 51).

Ainda hoje, releituras e comentários continuam sendo feitos. Encontram-se as mais diversas interpretações de mestres, autores e pintores tais como as versões religiosas de Chögyam Trungpa Rinpoche3, Hyon Gak Sunim4; monja Coen com sua versão infantil5; versos e desenhos de Genju6; o trabalho conjunto da poesia de Lucile Clifton e os desenhos de Eugene Gregan7; a singularidade do olhar de Aldous Huxley8 e de Allan Watts99; a fotografia de Andrew Binkley10 e os desenhos com uma versão feminina de Jim Crump,11 entre outros.

A relevância do poema O Boi e o Pastor para o Budismo Zen está em ser um instrumento pedagógico. Os mestres se utilizavam dele para ensinar aos discípulos sobre as etapas da realização da verdadeira natureza (REPS, 1986, p. 135), os diversos níveis de consciência e a prática meditativa (GARCIA, 2012, p. 34) como caminho iniciático (AUTORE, 2011, p. 13). Para os estudantes Zen, seria uma fonte de inspiração (REPS, 1986, p. 135). Estes alunos não recebiam os ensinamentos de forma tradicional. Não havia uma explicação formal. A intenção era suscitar a experiência direta e por isso, a importância da imagem e da poesia. Seguindo esta tendência, muitos textos budistas recorriam às metáforas e, a partir do século VII, se desenvolve, mais especificamente, a metáfora do adestramento do animal como símbolo do caminho para a iluminação ou para a realização da natureza búdica (DESPEUX, 2015, p. 7). A Escola de Kyoto, por sua vez, oferece uma interpretação singular deste poema.

A Escola de Kyoto e o poema

Um diálogo importante surgiu entre o Oriente e o Ocidente através da Escola de Kyoto. Isto ocorreu a partir da segunda metade do século XIX, no período Meiji, após longos anos de isolamento do Japão em relação ao restante do mundo. Com esta abertura, prontamente foram absorvidas por eles, ideias sobre o iluminismo europeu, ciência moderna e mística cristã (HEISIG, 2007, p. 386). Foram influenciados por autores, tais como Friedrich Nietzsche, Søren Kierkegaard, Immanuel Kant, Eckhart de Hochheim, entre outros (UEDA, 2004a, p. 25). Esta escola se compõe de um grupo de pensadores vinculados à Universidade de Kyoto. Autores como Nishida, Nishitani e Ueda desenvolveram reflexões importantes sobre filosofia e religião (DAVIS, 2011, p. 8) a partir de tradições orientais e da filosofia ocidental, de forma crítica e criativa. O olhar que veio a partir do Oriente não teve a intenção de se anular para receber os ensinamentos ocidentais como senhores únicos da verdade. E tampouco criar um corpo de pensamento budista ou japonês unicamente. O que todos tem em comum é uma reflexão crítica à obra do mestre inicial, Nishida e alguns conceitos fundamentais que permeiam toda a escola, como o nada absoluto (DAVIS, 2014, p. 4-5). A partir deste conceito central, foram levantados questionamentos em todas as áreas, incluindo religião, filosofia e ciência (UEDA, 2004b, p. 166). Interessante notar que além dos estudos, estes pesquisadores praticavam a meditação Zen.

Nishida se intitulava um pesquisador da vida. Para ele, era no Zen que se podia conceber a única possibilidade de se encontrar paz de espírito (FRANCK, 2004, p. xx). Trabalhou e praticou a meditação simultaneamente durante dez anos (UEDA, 2004a, p. 175). O aprendizado da prática foi ensinado pelo seu professor Hojo Tokiyuki e posteriormente por Setsumon e Koshu, da escola rinzai (NISHITANI, 2016, p. 31-32). Em seus diários, aparece seu zelo frente ao que fazia. Sentava para meditar ao longo de todo o dia, conforme narra Nishitani, “sentando de manhã, sentando de tarde e sentando de noite” (NISHITANI, 2016, p. 69). Seu aluno, refletindo sobre seu mestre, dizia que “o sentar de Nishida em meditação, mostrava o infinito sentado calmamente no presente eterno [...]” (NISHITANI, 2016, p. 71). Nishitani se recusava também a separar questões intelectuais de religião. Sua base estava nesta mesma tradição (FRANCK, 2004, p. xix), da mesma forma que para Ueda, seu aluno. A filosofia da religião derivaria da experiência concreta (DÖLL, 2005, p. 2). Ueda, também seguidor da escola Rinzai, dizia que o Zen seria o centro de seu caminho existencial. Conta que seu primeiro encontro com a prática foi quando entrou inadvertidamente em uma sala de meditação e viu Nishitani sentado tranquilamente praticando zazen. Ueda começou sua prática em Shokokuji, um monastério em Kyoto. Foi reconhecido como um mestre Zen da escola Rinzai pelo abade Kajitani Sonin Roshi de Shokokuji (DAVIS, 2013, p. 325). Sua interpretação da condição humana tinha a religião como base (UEDA, 2004a, p. 26). O que todos estes pensadores faziam estava para além de disciplinas. Não se confinavam aos limites estabelecidos pela academia (DAVIS, 2011a, p. 3). Sabe-se que inicialmente Nishida narrou o poema para Nishitani (NISHITANI 2016, p. 33), com um possível enfoque da escola Rinzai, da qual faziam parte. Por sua vez, Nishitani apresenta O Boi e o Pastor para Ueda. Shizuteru Ueda utiliza o poema de forma inovadora. Como integrante da Escola de Kyoto, ele não o faz apenas inserido na tradição Zen. Como figura central contemporânea desta escola, ele traz uma interpretação original (DAVIS, 2008, p. 221), que não se isenta da concretude e realidade do mundo, mas ao mesmo tempo se banha no nada absoluto (DÖLL, 2005, p. 2).

Da primeira à sétima imagem há um progressivo desenvolvimento. Conforme as imagens evoluem, o pastor procura pelo boi que se perdeu até que seja possível encontrá-lo. Quando o boi é visto, há também um processo de aproximação, reconhecimento, dominação e conquista. Mas o dominar o boi não é ainda a sua plena realização. Na sétima imagem, tem-se que, capturado o boi, o boi desaparece. Como diz Ueda, o que o ocorre é que o boi é integrado ao pastor. E “só o homem permanece existindo, de modo ‘calmo e sereno’, como seu próprio senhor entre o céu e a terra [...]” (UEDA, 2008, p. 165). O que todas as imagens vão aos poucos apresentando seria a construção ou a busca do ser também chamado de si-mesmo. A partir da sétima imagem, há uma ruptura na sequência da história.

A oitava figura é simplesmente um círculo vazio. Desaparece o boi e também desaparece o pastor. Aonde muitas tradições colocariam a palavra Deus, o Zen a esvazia. É o nada absoluto12 (UEDA, 2008, p. 169). Há autores que trabalharam o círculo vazio como a meta última a que se poderia chegar. No texto O Boi e o Pastor de Kakuan, este é um novo começo. O nada absoluto não seria um fim e também não seria negativo. Negar a negação seria o auge do aspecto positivo a que se poderia chegar. A absoluta negação do nada absoluto é a absoluta afirmação, proporcionando que a liberdade plena do si-mesmo verdadeiro possa existir (NISHITANI, 2004, p. 44). A partir do círculo vazio, é possível iniciar os rastros desse novo si-mesmo, para além do boi e do pastor, mas ainda incluindo a ambos.

Si-mesmo

O verdadeiro si-mesmo que vem do nada absoluto perde toda a sua descrição lógica. O Zen não pretende explicar nada conceitualmente. Para Ueda, quando se retorna do nada absoluto, perde-se o porquê e adentra-se a vida vivida em si mesma. Este sem porquê é a taleidade, ser tal como se é (DAVIS, 2008, p. 228). É o aspecto positivo da realização do vazio (ABE, 2004, p. 213). É um único corpo, o si-mesmo verdadeiro também conhecido como a natureza búdica (KOBORI, 2004, p. 142). E este deixa de ser apenas uma compreensão do humano. Nada é mais visto antropocentricamente (ABE, 2004c, p. 147). Ao mesmo tempo o humano não se perde. Ele é, simplesmente. E realizar esta taleidade é realizá-la também em tudo, incluindo animais, plantas e minerais.

Segundo Ueda, a partir das três últimas figuras de O Boi e o Pastor, é possível compreender o verdadeiro si-mesmo. A partir da oitava figura, rompe-se com o plano das distinções e dualidades, e passa-se a ser um participante da realidade. Neste momento, o nada e o si-mesmo estão inseparavelmente conectados, assim como também o si-mesmo e o outro. É uma estruturação que se dá em dois planos. Seria um si-mesmo de duas camadas como sendo um único corpo. Ao mesmo tempo em que o si-mesmo vive plenamente na concretude da vida, ele é permeado pelo nada absoluto (DOLL, 2005, p. 2). Para o Zen, o si-mesmo é sinônimo de despertar, da iluminação (SOHAKU, 2004, p. 140), mas não é transcendente. É um despertar para a própria natureza. E este aspecto é representado na nona figura onde avista-se uma árvore e um rio. Não há separação entre homem e seu entorno. Seja uma flor ou um rio, tudo faz parte do si-mesmo. É uma ênfase cosmológica que inclui todo e qualquer aspecto da natureza, seja ela imensa como uma montanha ou pequenina como uma folha. Tudo é iluminado.

Ao mesmo tempo em que se valoriza a expressão da natureza na nona imagem, segue-se a importância do encontro com o outro na décima figura. Um velho e risonho ancião encontra com um jovem no início de sua caminhada. Este si-mesmo pode então ser verificado existencialmente aqui e agora (HISAMATSU, 2004, p. 177), na vida cotidiana. Em um diálogo ficcional entre o zero e o um, Sohaku Kobori, apresenta o que seria o verdadeiro si-mesmo. Segundo ele, este si-mesmo não pode ser compreendido de forma epistemológica, ética, física, sexual ou social, se for apenas exposto pela razão abstrata. O entendimento ultrapassa qualquer sentido lógico:

Um: Oh, por favor, mostre-me diretamente.
Eu estou desejoso de ver meu verdadeiro si-mesmo.
Zero: Ei, Um!
Um: Sim, senhor.
Zero: Ei, Um!
Um: Sim, senhor.
Zero: Ei, Um!
Um: Sim, senhor.
Zero: Seu burro! Onde está você?
(KOBORI, 2004, p. 142).

Talvez este possa ser o diálogo que se trava na última figura. Quando se abandona o eu, com seus julgamentos e nomeações, se é banhado pelo si-mesmo de todas as coisas.

A mística Zen é portanto uma não-mística. Não há a meta de um encontro com um divino transcendente. Mas o sagrado em toda a sua plenitude é vivido em cada ato da vida, como percorrer mercados e peixarias, comer ou dormir. A vida é simplesmente vivida. E nessa simplicidade está sua máxima beleza e singularidade.

Conclusão

A mística cristã tem em seu cerne o encontro entre Deus e o humano. Aprender sobre o Zen Budismo é banhar-se com novas visões frente à religião e à vida. No Zen há um silêncio sobre Deus. Seria uma não-mística mas que em si não é niilista. É, ao contrário, feita de esperança pois o maior encontro se dá em cada ato da vida, seja este outro um animal ou uma simples flor. Tudo é sagrado.

Outra importante diferença entre o Ocidente e o Oriente está na concepção ocidental de um si-mesmo substancial, que dividiu o homem e a natureza entre sujeito e objeto e por isso rompeu com a ideia de comunhão e construiu um homem controlador. Para o Zen, o homem deve despertar para sua unidade com a natureza e deve ser humilde o suficiente para aceitar o outro tal como é.

Beber na fonte de tradições antigas inspira mudanças. Como afirmava Nishitani o Zen é uma forma de ler a vida. E para ele, seria a maneira mais abrangente para uma compreensão da realidade. Não é necessário um comprometimento religioso no sentido institucional. Para o Zen a religião é mais ampla. É a própria vida.

Referências

ABE, Masao. Emptiness is Suchness. In: FRANCK, Frederick (org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004. p. 209-213.

ANDRADE, Clodomir Barros de. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo/ Juiz de Fora: Fonte Editorial e PPCIR, 2015.

AUTORE, Maria Grazia. Le dieci ícone del bue. Associazione Culturale Shodo, 2011. Disponível em: http://www.gianfrancobertagni.it/materiali/ Zen/migi.pdf

CARVALHO, José Jorge de. Raro como a flor de udumbara: a influência crescente de Dōgen no pensamento filosófico-religioso mundial. Série Antropologia. Brasília, 2006.

DAVIS, Bret. Introduction: conversations on an ox path. In: DAVIS, Bret W.; WIRTH, Jason M. (ed.) Japanese and Continental Philosophy: conversations with the Kyoto School. Bloomington: Indiana University Press, 2011a. p. 1-16.

DAVIS, Bret. Letting go of God for nothing: Ueda Shizuteru’s Non-Mysticism and the Question of Ethics in Zen Buddhism.” In HORI, Victor Sogen; CURLEY, Melissa Anne-Marie. Frontiers of Japanese Philosophy 2. Nagoya: Nanzan Institute for Religion and Culture, 2008, p. 221-250. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2018.

DAVIS, Bret. Naturalness in zen and sin buddhism: before and beyond self- and other- power. Contemporany Buddhism: an interdisciplinary journal. Abingdon: Taylor and Francis, 2014.

DAVIS, Bret. Revisão do livro Ueda, Shizuteru. Wer und was bin ich? Zur Phänomenologie des Selbst im Zen-Buddhismus. Verlag Karl Alber, 2011. Monumenta Nipponica: studies in Japanese culture. V 68. N. 2. Tokio: Sophia University, 2013b. p. 321-327. DESPEUX, Catherine. Le chemin de l’éveil. Paris: L’asiathèque

DÖLL, Steffen. A phenomenology of self: Ueda Shizuteru’s interpretation of the Tem ox-herding pictures. 11th Conference of the European Association for Japanese Studies at Vienna University, Department of East Asian Studies, Viena, 2005.

FRANCK, Frederick. Prologue. In: FRANCK, Frederick (Org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004. p. xvii-xxiv

HARADA, Shodo. A commentary on the Jūgyūzu: the ten oxherding pictures. Palestras traduzidas por Priscilla Daichi Storandt e poema traduzido porVictor Sogen Hori. 1998.

HEISIG, James. Filosofia como Espiritualidade: O caminho da Escola de Quioto. In: YOSHINORI, Takeuchi (Org.). A espiritualidade budista: China mais recente, Coréia, Japão e o mundo moderno. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 377- 399.

HISAMATSU, Shin’chi. Zen as the negation of holiness. In: FRANCK, Frederick (org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004. p. 171-181.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental. Petrópolis: Vozes, 2012.

KOBORI, Sohaku Nanrei. A dialogue. In: FRANCK, Frederick (Org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004. p. 137-146.

NISHITANI, Kitaro. The I-Thou relation in Zen budhhism. In: FRANCK, Frederick (Org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004. p.39-53.

NISHITANI, Kitaro. Nishida Kitarō: The man and his thought. Nagoya: Chisokudo, 2016.

PAINE, Scott Randall. Filosofia e o fato obstinado da religião: o oriente reorienta o ocidente. Rever: revista de estudos da religião. 2007. Pp. 68-93.

SPIEGELMAN, Marvin. The oxherding pictures of Zen buddhism: a commentary. In: SPIEGELMAN, Marvin; MIYUKI, Mokusen. Buddhism and Jungian psychology. Arizona: New Falcon Publications, 1994. p. 43-87.

SUZUKI, Daisetsu Teitaro. Manual of Zen buddhism. Baghdad: Buddha Dharma Education Association, 2005.

TAN, Piya. The taming of the bull: mind-training and the formation of Buddhist traditions. Living Word of the Buddha, v 8, n 2. 2004. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2018.

TEIXEIRA, Faustino. A espiritualidade zen budista. Horizonte: dossiê, místicas religiosas e seculares. v. 10, n. 27, Belo Horizonte. jul./set. 2012. pp. 704-727.

UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004a.

UEDA, Shizuteru. “Nothingness” in Meister Eckhart and Zen buddhism. In: FRANCK, Frederick (Org.) The Buddha eye: an anthology of the Kyoto School. Bloomington: World Wisdom, 2004b. p. 157-169.

UEDA, Shizuteru. O nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche. Natureza Humana, São Paulo, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008 p. 165-202. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2018.

Notas

[1]Há controvérsias sobre esta autoria. Shodo Harada afirma que Kakuan teria sido o autor do texto, enquanto seu discípulo Gion teria produzido as pinturas. Para conhecer o poema e suas imagens, vide o livro HARADA, S. A commentary on the Jūgyūzu: the ten oxherding pictures, 1988.

[2]Os ensinamentos de Buda Shakyamuni, transmitidos de forma oral, foram posteriormente transformados nos sutras, escritos. Sutra vem do termo fio (ANDRADE, 2015, p. 13) dando o sentido de que tece uma trama entre todo o conhecimento exposto. Estes fios, ou sutras, formam o cânone budista, chamado de Tripitaka. Os primeiros cânones de que se tem registro estão escritos em pali e sânscrito. Porém há outros, como o cânone chinês e o tibetano (ANDRADE, 2015, p. 149). Há tradução para o inglês. Não existe ainda tradução completa para o português. Isto gera confusão para os estudantes de Budismo de língua portuguesa. Estes devem buscar em outros idiomas para se ter acesso ao Tripitaka completo. O termo se encontra como sūtra em sânscrito e sutta em pali. Disponível em:

[3]O poema se encontra no livro de TRUNGPA, C. Mudra: early songs and poems. California: Shambala Publications, 1972, p 73-93.

[4]Disponível em: .

[5]O poema com formato infantil se encontra no livro de ROSHI, Monja Coen. O monge e o touro. São Paulo: Editora Nacional, 2015.

[6]Disponível em:

[7]Disponível em:

[8]O tema se encontra no livro HUXLEY, A. The Perennial Philosophy, New York: Harper Perennial, 2009.

[9]Disponível no livro WATTS, A. O Espírito do Zen. Porto Alegre: L&PM editores, 2008.

[10]Disponível em: < http://terebess.hu/english/oxherd24.html>

[11]Disponível em: http://terebess.hu/english/oxherd0.html#Habito

[12]O termo deriva da palavra sunyata, e tem algumas variações, dependendo da preferência do autor. Círculo vazio, nada absoluto, nada, vazio, vacuidade, campo aberto, abertura infinita, etc. Sem a intenção de igualar categorias, pois cada uma tem a sua particularidade, o que Ueda pretende é que o si-mesmo se desprenda de todo tipo de dualidade ou de unidade da mente discriminativa. Quando o homem mergulha no puro nada, que seria também chamada de a Grande Morte, há uma morte e ressurreição. A morte do velho eu para um verdadeiro si-mesmo, neste mesmo corpo e com esta mesma mente. Para um maior aprofundamento do tema vide o livro UEDA, S. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004.