Teologia para a paz: a responsabilidade das religiões nos conflitos à luz da obra “Guerra e Paz”, Liev Tolstói.
Theology for peace: the responsibility of religions in conflicts in the light of the work “War and Peace”, Liev Tolstói.

José Diógenes Dias Gonçalves*
* Mestre no curso de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Grupo de pesquisa História, Memória e Literatura Bíblica - Exegese bíblica e história. Contato: dioggeness@gmail.com
Voltar ao Sumário

 

Resumo
O presente trabalho é uma reflexão do potencial da teologia da paz na obra Guerra e Paz. A convergência dos discursos das religiões a favor da paz contrasta com a sua presença no centro dos grandes conflitos mundiais. Cabe perguntar se as declarações pacifistas das autoridades e dos fiéis se limitam secularização, o resultado é a paz em destaque ao invés da guerra ao discurso. Porém, se realmente a intenção existe, como se efetiva a redução de conflitos com a intervenção das religiões? O clássico russo Guerra e Paz é o eixo do argumento. À primeira vista a obra é uma odisseia de guerra, porém, trata-se da celebração de paz, fruto do empenho pela verdade e pela bondade na humanidade. Qual seria a responsabilidade dos teólogos, religiosos e seus líderes neste esforço? Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que objetiva apresentar a contribuição efetiva que as comunidades religiosas possuem em evitar ou diminuir as crises. A combinação dos conceitos Religião e Conflito possui mais espaço midiático que Religião e Paz; pouco destaque é dado ao aspecto positivo. Possivelmente, o incremento de parcerias da sociedade civil com as comunidades religiosas possa mudar este quadro; inobstante a crescente pluralização e o aumento da

Palavras chave:Religiões; Guerra e Paz; Potencial Pacificador.

 

Abstract
The present work is a reflection of the potential of the theology of peace in the work War and Peace. The convergence of the discourses of religions in favor of peace contrasts with its presence at the center of the great world conflicts. One must ask whether the pacifist declarations of the authorities and of the faithful are limited to the discourse. However, if the intention really exists, how to reduce conflict with the intervention of religions? The Russian classic War and Peace is the axis of the argument. At first sight the work is a war odyssey, but it is the celebration of peace, fruit of the commitment for the truth and the goodness in the humanity. What would be the responsibility of theologians, religious, and their leaders in this effort? It is a bibliographical research that aims to present the effective contribution that religious communities have in avoiding or reducing crises. The combination of the concepts Religion and Conflict has more media space than Religion and Peace; little emphasis is given to the positive aspect. Possibly, the increase of partnerships of the civil society with the religious communities can change this picture; notwithstanding the growing pluralization and the increase of secularization, the result is peace in prominence instead of war.

Keywords: Religions; War and Peace; Potential Peacemaker

Non opporre resistenza ai colpi, leggeri o pungenti, inconsapevoli o voluti.
Così, non mi oppongo ala venuta di Gesù in me, nel mio nulla.1

Introdução

Atribuir envolvimento da religião na guerra não causa a mesma perplexidade que vinculá-la à paz! A sociedade está familiarizada com a ligação das palavras religião e conflito, mas pouco se ouve sobre a atuação e o potencial de paz que as religiões têm. A guerra é um fato social que atinge muitas pessoas atualmente; na verdade, a humanidade nunca experimentou momentos de paz duradoura na sua história. Os conflitos sempre existiram e evitá-los é um desafio cada vez mais agudo. Esta invenção humana tem o poder de magnetizar a atenção e, talvez, seja a razão pela qual na obra de Liev Tolstói tenha mais evidência o conceito Guerra do que o conceito Paz (a grande maioria das editoras optam por capas com motivos belicosos). A obra russa é por muitos classificada, e simplificada, como um livro que trata da guerra entre a Rússia e a França. Os aspectos pacifistas de diversos personagens ficam obscurecidos diante do enredo das sucessivas batalhas objetivando a invasão das tropas napoleônicas no território russo, até mesmo a natureza é cooptada como aliada da nação russa contra o invasor estrangeiro. O líder do exército Kutùzov é conhecido como General do Inverno, contando com as baixíssimas temperaturas ao seu serviço.

Entretanto, quando o leitor se permite adentrar com mais arrojo na obra, pode questionar se existe acordo com este senso comum belicista, ou seja, seria mesmo Guerra e Paz um romance que enaltece o conflito ou, na verdade, Tolstói intentava apresentar a capacidade do ser humano de preservar a paz? Os personagens de Tolstói são alimentados pela esperança de paz, sem disputas e morte, apesar do sofrimento causado pela destruição da guerra. A promoção da paz acontece nos momentos e por pessoas inesperadas, contrastando com a atitude dos líderes políticos russos que deveriam ser os defensores da nação e agentes da pacificação; dentre os poderosos se encontram os dirigentes das comunidades religiosas. O inconformismo de Liev Tolstói com a Igreja era evidente. Outras obras foram proibidas e o próprio autor foi excomungado em 1901, pelo Santo Sínodo2 . Este colegiado eclesiástico respondia pelos assuntos religiosos, sendo que toda a liderança, composta por bispos, arcebispos e metropolitas, era nomeada diretamente pelo tsar. A posição e o poder da Igreja na Rússia foram instrumento para evitar os conflitos ou, na verdade, se valeram desta configuração para conservar as estruturas de domínio e prestígio?

O presente trabalho não se dedica a uma avaliação críticoliterária da obra de Liev Tolstói, mas pretende refletir sobre a guerra como fato social, bem como sinalizar a responsabilidade que as religiões têm de evitar conflitos, ou reduzir seus efeitos, apresentando exemplos de grupos religiosos que prestaram uma contribuição decisiva para a paz e a reconciliação.

1 – As religiões e a guerra

Liev Tolstói não deixou de questionar o papel da comunidade religiosa nos momentos de crise; sua tentativa de compreender o espírito humano tem reflexo nas contradições dos personagens, são alegres e bondosos, mas também cometem crueldades e se entristecem. A Rússia de Tolstói era extremante desigual: a elite dominava com força esmagadora, a opressão era a forma de controlar e manter o poder, não havia generosidade no tratamento aos mujiques, camponeses servos que integravam como propriedade as fazendas e as mansões. A aristocracia comandava essa estrutura injusta, sendo que o clero também compunha a cúpula da sociedade russa, ou seja, estava entre os opressores. O discurso de promotora de paz e justiça da liderança da Igreja Russa não era traduzido em benefício aos campesinos.3

Por se tratar de um romance histórico, a obra Guerra e Paz tem o poder de aproximar o leitor da realidade. O livro foi publicado em 1894; a princípio, os capítulos estavam disponíveis em um periódico russo, porém foi muito bem recebido pelos leitores e este é um dos motivos de ser extenso, um dos romances mais volumosos da literatura mundial. No principal argumento está a saga de cinco famílias pertencentes à aristocracia russa, onde três delas merecem destaque. A Rússia sofria a ameaça dos exércitos de Napoleão, que avançavam em seu território entre os anos de 1805 até 1812. O cotidiano dos palácios, com bailes e banquetes, suas intrigas e acordos políticos, é retratado com competência pelo autor que, na verdade, viveu esta realidade, pois pertencia a essa elite. Optou-se pela edição, ano 2011, da extinta Cosac Naify, que traz a tradução respeitável de Rubens Figueiredo, diretamente do russo. A obra é dividida em quatro tomos, com 15 volumes, vinte e três capítulos e dois epílogos.44

Liev Tolstói nasceu em 1828 e aos 10 anos de idade ficou órfão5 , sendo educado por suas tias e empregados domésticos. A princípio ele estudou idiomas, mas aos 15 anos de idade já havia perdido o interesse e voltado a morar em Moscou. Alistou-se no exército e fez carreira militar, entretanto sua energia era concentrada na literatura, alcançando notoriedade na sua juventude. A educação para Tolstói tinha muita importância; ele construiu escolas para os filhos de camponeses, organizando um plano pedagógico que estimulava as crianças a recontarem as histórias que escutavam. Foi tão bem sucedido que esses cadernos infantis foram publicados posteriormente como o “Abecedário”, “Livros de estudo”, “Livros de leitura para crianças” e “Fábulas de Esopo”. O autor produziu muito, em diferentes fases e ficou mundialmente conhecido pelos seus grandes romances, Anna Karenina e Guerra e Paz.6

A inconformidade com as injustiças provocadas pela desigualdade em seu país está presente nas suas obras. A Rússia vivia momentos de profundas mudanças na área econômica e social, os discursos políticos já sofriam forte influência dos movimentos racionalistas europeus e os intelectuais russos criticavam abertamente a opressão aos camponeses. A pesada carga de impostos e taxas que os trabalhadores tinham que suportar desencadeou uma série de manifestações sociais que ameaçavam o poder instituído. Cabe recordar que até 1861 a servidão era a base da economia, os mujiques eram considerados parte integrante das propriedades e tinham valor no mercado, muito semelhante ao sistema brasileiro de trabalho escravo. Todos estes elementos permeiam a composição do romance que, segundo especialistas, teve a colaboração fundamental de Sophia Behrs, que recopilou por sete vezes o conjunto, mas não se limitou a isso, pois influenciou na conformação das personagens, em especial as mulheres. O matrimônio durou por muitos anos, o casal primava pela harmonia e cooperação, seja no trabalho de escrita ou na administração das propriedades e educação dos treze filhos, dos quais cinco faleceram ainda jovens. O perfil pacifista do autor pode ser percebido no perfil dos personagens, em especial o bondoso Pierre Bezùkov e seu esforço em fazer o bem. Tolstói entende que a promoção da paz é responsabilidade individual e coletiva, sendo que os grupos organizados teriam uma cota substancial no dever em prol da paz. Os grupos religiosos têm um papel especial pois trazem esse discurso de paz, o que os responsabilizam por uma atuação coerente.7

O protagonismo da religião russa não estava na pacificação, utilizava-se do conflito para conservar o poder. Podemos imaginar um desfecho diferente no romance se a opção fosse utilizar seu prestígio para promover a paz, ou mitigar os efeitos da guerra entre franceses e russos. É indicativo que a nenhum personagem do alto clero seja atribuído o papel de pacificador no romance. Isto não significa que as religiões não possam, e devam, se empenhar em evitar os conflitos. Por certo isto já ocorre, mesmo que não seja na proporção desejada, ou que a divulgação destas iniciativas não mereça o destaque por parte da mídia.

2 – A paz é um compromisso coletivo

Atualmente as sociedades civis estão desempenhando um papel cada vez mais marcante no cenário sociopolítico, pois a responsabilidade em equilibrar os interesses e evitar conflitos não é somente dos governos, mas de toda a sociedade, com destaque aos grupos religioso, tendo em vista que 80% das pessoas se dizem pertencentes a algum grupo religioso.88 O fato de incluir atores religiosos nas políticas externas pela paz, não significa que a administração pública não seja ideologicamente neutra em questões religiosas. As religiões são políticas no sentido de que fazem parte da sociedade e, portanto, participam com sua cota de responsabilidade para a promoção da paz. O engajamento positivo das religiões é esperado e estimulado por diversos governos, para que haja educação e mediação, em um esforço conjunto para o desafiante trabalho para a paz. Esta parceria entre governo e grupos

religiosos pode dar grandes resultados, tendo em vista a capacidade de penetração que ambos têm nos ambientes conflituosos. Inciativas governamentais que propõem treinamento para líderes religiosos, aperfeiçoando profissionalmente esses atores sociais para que estejam mais preparados para enfrentar as dificuldades, são exemplos de que é eficaz a cooperação.

A complexidade das causas de um conflito dificulta identificar a real motivação da guerra pois, envolve disputa territorial, questões de afirmação de identidade, briga pelo poder, pelo dinheiro e, não poucas vezes, uma rivalidade ideológica. O caso da Irlanda do Norte é um exemplo de discórdia em que o motivo real foi se confundindo com o tempo, uma rivalidade que durou mais de trinta anos. Os protestantes defendiam a ideia de vinculação plena ao Reino Unido enquanto os católicos queriam uma nação independente da coroa britânica. A questão religiosa na Irlanda do Norte era um ponto de pouca importância frente ao problema territorial e de identidade nacional.

O mesmo ocorre nas disputas que envolvem o Estado Islâmico e os EUA, sob a suposta da defesa do Islã existe uma intenção de conquista de território e poder, proporcionado pela riqueza do petróleo, alvo de cobiça dos países ricos e sua enorme dependência de energia não renovável. A eleição dos EUA como inimigo comum entre os árabes não impede que exista sangrentas batalhas internas entre os xiitas e sunitas, que disputam espaço na Síria e Iraque. Poderia questionar se a adesão aos grupos fundamentalistas religiosos não seria resultado de uma revolta aos poderes internacionais que oprimem os povos mais pobres, este “exército” de indignados são utilizados pela liderança extremista do Islã para alcançar seus objetivos que em nada se harmonizam com a paz entre os povos. O Estado Islâmico luta contra a democracia e os governos dos “apóstatas” ocidentais e do Oriente Médio, convocando os islâmicos de todo o mundo a aderirem a grupos jihadistas para matar todos os “infiéis” e implementar o “reino de Alá na terra”. No caso do Afeganistão, a guerra contra o terrorismo foi a justificativa para os EUA, e os aliados, invadirem o país e “caçar” a Al Qaeda e seu líder Osama Bin Laden; após o ataque de 11 de setembro houve uma expansão da Guerra contra o Terror que chegou ao Iraque, porém os motivos apresentados pelos EUA não tiveram a credibilidade esperada. No final restou a impressão de uma guerra do Ocidente contra o Islã, em resposta às ameaças de Bin Laden que ordenou a morte de todos os americanos, para a defesa da fé islâmica.9

A radicalização religiosa não é exclusividade de nenhum grupo, a Guerra na Bósnia em 1990, foi um conflito que envolveu mulçumanos, cristãos ortodoxos (sérvios) e católicos (croatas), uma guerra que tinha como principal ponto de disputa o território da antiga Iugoslávia em suas diferentes etnias e nacionalismos, a barbárie em Srebrenica dizimou mais de oito mil em 1995, meses depois acabou a guerra. O mundo ficou marcado pela brutalidade dos enfrentamentos, com violações dos tratados humanitários, limpeza étnica, uso massivo de armamento pesado que dividiu a Iugoslávia.1010

Um exemplo recente desta danosa conexão da religião com a guerra está em Bangui, capital da República Centro-Africana. O presidente Fronçois Bozizé não ocupa o governo desde 2013 e a luta pelo controle do país é intensa. Grupos cristão que apoiam o presidente enfrentam a Seleka, uma coalisão de maioria mulçumana. O embate já deixou milhares de mortos e forçou a fuga de uma centena de milhares de pessoas que fogem em desespero. A ONU acusa ambos lados pela matança de seis mil mortos com objetivo de “limpeza étnica”, inobstante o acordo de paz que foi firmado em 2017 pelo presidente eleito Faustin-Archange Touadéra. O atual governo controla somente 20% do território nacional apesar da presença das forças internacionais. Os “capacetes azuis” tentam em vão expulsar os milicianos e mercenários que estão em permanente confronto pelo controle de ricas áreas de exploração de diamantes e petróleo. Neste caos, a população não encontra quem a defenda, convivem com a violência, a pobreza11 e os escândalos das forças internacionais (soldados e agentes são acusados de abuso sexual, tráfico de drogas, homicídios e violência injustificada). No dia 10 de abril, a insatisfação da população chegou ao comissariado das Forças Armadas Nacionais e os soldados da União Europeia e mercenários russos abriram fogo em resposta a disparos de milicianos infiltrados, dezenas morreram, entre crianças e mulheres, os sobreviventes se refugiam na mesquita.12

O potencial de contenda e de violência das religiões é evidente; esta realidade contraditória causa inquietação na sociedade, mas, por outro lado (ou até mesmo concomitantemente) a guerra fascina uma grande parte de pessoas. Esta atração não passa desapercebida pela mídia que, com nefasta competência, explora oferecendo em domicílio, diariamente, uma sucessão de guerras santas, extermínio populacional, genocídios, fundamentalismo terrorista e diversas outras formas de atrocidades. O potencial construtivo das religiões não recebe o devido destaque, mas o aspecto destrutivo é publicitado à exaustão, “when it bleeds, it leads”.13 Certamente o olhar mais apurado percebe que os aspectos religiosos são pretextos para outros fatores de interesse mais obscuros. Os conflitos são justificados por motivos religiosos, apesar de o cerne não ser, necessariamente, questões de ordem doutrinária, ou a defesa da crença em si.

A efetiva atuação dos grupos religiosos para evitar conflitos, ou até mesmo evitá-los, não é relatada pela imprensa. Não é divulgado porque as religiões não fazem nada para minimizar as hostilidades? Ao menos, no discurso, os líderes religiosos seguem o mesmo caminho de promoção da paz. Seria um calamitoso exercício de retórica? O mundo seria mais pacífico sem as religiões?

Apesar das grandes calamidades, infinidade de mortes por motivos supostamente religiosos e da inércia de outros tantos grupos religiosos em evitá-las, não há dúvidas de que existem atores religiosos pela paz. As igrejas desempenham um papel importante na vida social, a religião está presente em toda sociedade e possui um grande poder de intermediação por conta da confiança no grupo. A resistência encontrada por governos e até mesmo por ONG’s é muito menor se comparada aos grupos religiosos autóctones. Os agentes religiosos não são recebidos com a mesma desconfiança que um líder político. Diversos fatores colaboram para uma boa acolhida dos religiosos: persistência, independência, desinteresse, ideologia, solidariedade, envolvimento pessoal e exposição ao perigo, altruísmo, entre outros atributos.

3 – O diálogo do cristianismo pela paz

O tema da paz é recorrente nos discursos filosóficos e religiosos, presente em diversas confissões é um bem precioso que proporciona a felicidade do ser humano. O cristianismo tem em sua base os ensinamentos de Jesus Cristo que preconizava a paz, rejeitando a Lei de Talião vigente em sua época. A concórdia e a harmonia são valores da fé, portanto a violência não é resultado da doutrina cristã, mas é fruto da cultura dos povos e da injustificada desigualdade entre os indivíduos que suprime a liberdade. Os conflitos são indesejáveis pois o ser humano não pode viver com tranquilidade, entretanto interesses externos desestabilizam os povos, desencadeando a guerra. Tal instabilidade é resultante de uma construção de cidadania frustrada, ou seja, as sociedades deveriam estabelecer meios de diminuir as desigualdades, rejeitando as discriminações.

Promover os Direitos Humanos é a caridade por excelência, pois a justiça social cria oportunidades iguais para que todas as pessoas possam organizar suas vidas de modo solidário e responsável, fortalecendo a comunidade nos valores de recuperação e reconstrução nos ambientes marcados pelo conflito armado. As lideranças religiosas têm por obrigação denunciar e combater as injustiças, trabalhar pelos mais pobres e promover a democracia. A luta pela igualdade é a forma de encurtar as distâncias, primando pelo respeito às diferenças, inclusive no que se refere às convicções religiosas.

Diante da globalização a religião tem um trabalho a ser feito que não pode mais ser fixado na rigidez das “verdades” religiosas e seus indiscutíveis dogmatismos. Um novo olhar deve ser direcionado ao respeito dos direitos humanos, para a promoção da paz, defender os direitos dos mais humildes e denunciar as injustiças, isso significa um alargamento das fronteiras do que antes era estritamente religioso, uma igreja que se supera para sair dos seus muros ao encontro do mundo. A vivência harmoniosa para a paz pressupõe uma abertura para o diálogo com os que possuem convicções religiosas diferentes.

A convivência respeitosa entre os grupos religiosos é outro desafio para a manutenção da paz. A história do cristianismo é marcada por um impulso que confundia a evangelização com a dominação política, trazendo sérias dificuldades para convivência pacífica entre as comunidades e nações. A ideia de superioridade era intrínseca e esta herança produz efeitos até os dias de hoje. Quando o cristianismo se tornou religião oficial no império romano configurou-se com o sistema religioso e social da época. As autoridades eclesiásticas detinham poder temporal, atribuições do poder civil, com isso não havia diferença entre competência clerical e jurisdição civil. Este cenário propiciou à Igreja aumento de poder político e financeiro, consequentemente a manutenção destas estruturas forjou o cristianismo ocidental para um perfil mais conquistador e pouco inclinado a conviver com ideias diferentes. O resgate da comunhão entre as religiões é uma preocupação da Igreja Católica Romana, traduzido em ações e nos documentos oficiais. Uma amostra deste pensamento é a Declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, do Papa Paulo VI.

De harmonia com própria dignidade, todos os homens, que são pessoas dotadas de razão e de vontade livre e por isso mesmo com responsabilidade pessoal, são levados pela própria natureza e também moralmente a procurar a verdade, antes de mais a que diz respeito à religião. Têm também a obrigação de aderir à verdade conhecida e de ordenar toda a sua vida segundo as suas exigências. Ora, os homens não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a própria natureza, a não ser que gozem ao mesmo tempo de liberdade psicológica e imunidade de coacção externa. O direito à liberdade religiosa não se funda, pois, na disposição subjectiva da pessoa, mas na sua própria natureza. Por esta razão, o direito a esta imunidade permanece ainda naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à verdade; e, desde que se guarde a justa ordem pública, o seu exercício não pode ser impedido.14

O livre exercício da religião é um valor que deve ser resguardado para que a concepção de dominação não prevaleça, desencadeando conflitos e servindo de estratégia para opressão de grupos minoritários. A pluralidade no mundo ocidental europeu aumenta na mesma proporção que a secularização, intensificando a urgência em diminuir as distâncias entre as religiões, para que o discurso seja mais coerente e eficaz. O mundo ocidental, em especial a Europa, enfrenta esse desafio.

A Alemanha é um dos países que convive com esta diversidade de forma evidente entre os dois maiores grupos religiosos: os católicos e os protestantes. De um lado a Igreja Católica Romana com vinte e sete dioceses, congrega vinte e quatro milhões de membros em suas doze mil paróquias; por outro lado a Igreja Evangélica da Alemanha (Evangelische Kirche in Deutschaland, EKD), composta por vinte Igrejas Estaduais, abarca vinte e dois milhões de membros. Os mulçumanos na Alemanha formam um grupo heterogêneo de quatro milhões de pessoas aproximadamente, e outros três milhões são de comunidades religiosas diversas, entre elas os judeus. A realidade na Alemanha é de profunda mudança na configuração da sociedade, em que o maior grupo não é de católicos ou de evangélicos, mas daqueles que se declaram sem nenhuma confissão religiosa, com trinta milhões de pessoas desvinculadas de qualquer Igreja; o número percentual é ainda maior se o recorte for pela faixa etária de 18 e 34 anos, pois 79,4% afirmam que podem ser felizes sem crer em Deus.15 O país é um retrato da Europa e certamente influencia no restante do mundo nas suas políticas externas de promoção da paz.

Nenhum país do mundo é isoladamente responsável por manter a paz no mundo, este empenho deve ser de toda a humanidade. A paz não é um trabalho exclusivo das políticas externas dos países, ou das organizações mundiais, como a ONU. A Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1945, tem em sua formação o ideal de manter a paz mundial, a cooperação cultural, social e econômica, bem como garantir a independência dos povos e, com isso, assegurar as liberdades fundamentais de todo ser humano. Os países que compõe a ONU se comprometeram em buscar soluções pacíficas para os conflitos, empenhando-se em encontrar soluções para as inevitáveis controvérsias entra as nações, seja por mediação, arbitragem, conciliação, ou acordos que instrumentalizem a paz mundial. Muitos acordos resultaram deste esforço da ONU: o Tratado de Roma, o Tratado Salt, Conferência de Helsink, Conferência sobre a Segurança e Cooperação Europeia, Acordo Israel – OLP, Tratado de Paz Jordânia – Israel e a Conferência Mundial das Religiões em favor da Paz.16

Grupos laicos são conhecidos por promover a paz, como a ONU, a UNICEF, Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho; porém grandes líderes mundiais também se destacam individualmente na luta pela paz e o fazem sem perder seu vínculo religioso. Mahatma Gandhi é um símbolo da não violência, seu empenho pela paz na Índia é incontestável, bem como seu compromisso religioso, uma boa representação de que religião e política podem ser benéficas para incentivar a moderação de conflitos e evitar a violência. Da mesma forma Martin Luther King na defesa dos direitos dos negros americanos. O pastor batista não diminuiu sua voz para denunciar os abusos das autoridades e as injustiças contra os mais fracos. A lutas desses atores políticos não foi em vão, apesar de pagarem um alto preço pela defesa de suas convicções.

4 – Atores religiosos pela paz

Muitas atrocidades aconteceram e ainda acontecem com justificativas religiosas, mas também é verdade que por causa da religião o mundo é mais pacífico, pois os grupos religiosos prestam uma grande ajuda na promoção da paz. A título de exemplo podemos citar uma dezena de iniciativas efetivas destes agentes religiosos que reduziram os efeitos da guerra e até mesmo evitaram o conflito17

• Ruanda: os mulçumanos de Ruanda tomaram desde o início posição contra a violência, pois estava em desacordo com o Corão, ensinaram nas escolas e os jovens não foram convencidos pela propagando pró-guerra. No momento-auge do conflito entre hutus e tutsi (ambos cristãos), que culminou com a morte de 800.000 tutsis, os mulçumanos acolheram todos os refugiados sem fazer qualquer distinção religiosa, arriscando a própria segurança para isso. 18


• Colômbia: a Igreja Católica atuou nos bastidores para que o acordo fosse concluído, tendo em consideração a confiança que as partes tinham na instituição. Incontestável o papel do jesuíta Francisco Roux que participou ativamente dos acordos de pacificação com as FARCs, resultando na entrega de armas de alto poder de destruição, muito valiosas, um importante compromisso em prol da paz. O trabalho do padre Leonel Marvaez foi premiado pela UNESCO por conta da Foundation for Reconciliation e as escolas experimentais que promoviam o perdão entre os colombianos marcados pela angústia e pela dor da extrema violência. 19
• Caxemira: as Igrejas da Paz dos Quakers promoveram um diálogo nos bastidores entre os grupos de disputa na fronteira entre Índia e Paquistão. 2
• Índia: ainda neste país da Ásia o mulçumano Khan Abdul Ghaffar Khan liderou um grupo de coerência na resistência da fé islâmica e promoveu um processo de não-violência especificamente entre os pchtum (conhecidos por serem muito violentos), Gandhi aplaudiu o seu trabalho como digno de um conto de fadas moderno.21
• Camboja: mais de dois milhões de pessoas perderam a vida na mão do ditador Pol Pot, mas foi um monge budista Maha Ghosananda que, em 1979, promoveu a reconciliação que resultou em medidas políticas para a reconstrução da paz.
• América Latina: a Nicarágua, El Salvador e outros países latinos foram influenciados pelo empenho da Igreja Católica em parceria com os Luteranos, Conselho Mundial das Igrejas e Menonitas, que de forma contundente colaboraram para redução dos conflitos.23
• Chile e Argentina: João Paulo II conseguiu dirimir uma disputa fronteiriça entre esses países que não encontravam solução e poderia levar a uma sangrenta guerra; o Tratado de Paz foi concluído depois que o Papa, por seis anos, trabalhou para o equilíbrio das transações.24
• Benim: o bispo Isidore de Souza promoveu uma série de encontros com os diversos grupos envolvidos no difícil processo de transição para o sistema democrático em 1989. A Conférence Nationale des Forces Vives de la Nation, reunindo cerca de quinhentos representantes de grupos políticos e sociais, foi o momento fundamental para que não houvesse violência e viabilizasse as reformas políticas e econômicas. O próprio bispo Isidore de Souza, com autorização papal, esteve à frente da Assembleia Constituinte Haut Conseil de la République, por intermédio desta importante posição política foi capaz de intermediar e conduzir um acordo com as partes, direcionando para um caminho pacífico.25
• Filipinas: a conhecida “Revolução do Rosário” foi iniciativa das Comunidades de Base, CEBs, em que a Igreja Católica trabalhou em conjunto com a população em resistência não-violenta contra a opressão sanguinária do ditador Ferdinand Marcos.26
• África do Sul: metade dos jovens pobres fazem parte de gangues, o país está entre os mais violentos do mundo. O fato de 85% dos sul-africanos pertencerem a alguma comunidade religiosa é o ponto de confluência e diálogo entre as diversas igrejas e seus líderes, estes grupos promovem formação profissional e atividades esportivas que são alternativas para estes jovens.27
• Jordânia: a água sempre foi um bem muito valorizado por conta da sua escassez neste país desértico, este fato se tornou mais crítico com a chegada de mais de 700.000 refugiados da Síria. Líderes religiosos, conhecidos como “embaixadores da água”, promovem a formação da consciência que valoriza a água como um valor de todos, além de participarem da construção de captadores e tratamento de águas pluviais.28

Rigorosamente as religiões não são boas e nem más quando se fala de conflitos, todas podem colaborar para evitar ou criar a guerra. Não resta dúvida que, ao menos no discurso, os religiosos coincidem para a promoção da paz entre todos os seres humanos, portanto as distorções que desembocam em justificativas violentas não podem prevalecer sobre o movimento de paz. A formação religiosa e cultural são elementos essenciais para que o aspecto fundamental de harmonia e respeito entre os diversos grupos seja predominante. O empenho das comunidades religiosas deve também refletir na política. O resultado deste esforço conjunto com as organizações seculares é perceptível nos poucos exemplos que foram já enumerados. A responsabilidade dos governantes, da sociedade e dos religiosos é de fomentar mais paz hoje e no futuro.

Conclusão

A influência das religiões, pelas suas conexões, grupos e templos, pode alcançar com muita eficácia e maior abrangência do que qualquer outra organização, mas isso deve ser para o bem, com respeito e equilíbrio. O potencial das religiões pela paz merece mais destaque para que o ideal de Paz esteja mais próximo para toda humanidade, promovendo a igualdade e a reconciliação entre os diversos grupos

A aptidão das religiões em promover a paz é um ponto comum entre todos os grupos, o discurso de repúdio à violência e atuação pela paz faz parte de todas as tradições religiosas, isto faz com que o envolvimento dos atores religiosos seja profunda e desinteressada, na verdade muitos colocam as próprias vidas em risco por permanecer nos locais de conflito ou por tomar partido dos mais fracos

As religiões devem ir além da formação espiritual estritamente falando para que seja influente no caráter dos fiéis, para que sejam comedidos e promovam o equilíbrio, ao invés da radicalidade que produz os nefastos frutos do extremismo religioso. Neste aspecto cabe um acento na responsabilidade da teologia em dar mais atenção ao tema da violência. Para haver clareza quando os discursos reacionários se utilizam de fundamentos religiosos para justificar conflitos. Faz-se necessário demonstrar que a Bíblia não exalta a violência como muitos dizem, mas busca paz entre os seres humanos, apesar das limitações impostas pela nossa realidade. É papel da teologia colaborar para que a crença cristã não seja confundida com intolerância, muito menos com imposição violenta da fé. Os avanços dos movimentos ecumênicos trazem um alento para que o ideal de convivência esteja mais próximo.

Que prevaleça a ideia do romancista, pedagogo e grande pacifista Liev Tolstói, e assim triunfem os amáveis Pierre Bezùkov, ao invés dos violentos Napoleão e Kutùzov... Para isso acontecer precisamos acolher com menos “resistência” o evangelho de Cristo, interpretando com humanidade a palavra de “dar a outra face”, conforme lembra o Professor italiano Piero Coda, “Così, non mi oppongo ala venuta di Gesù in me, nel mio nulla.”, ou seja, quando Cristo vem a mim, não resisto ao seu amor

Bibliografia

BARTLETT, Rosamundo, Tolstoi, a biografia, São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2013.

CODA, Piero, Diario ’95, Brescia: Editrice Morcelliana, 2015. Declaração Dignitatis Humanae

TOSLTOI, L. Guerra e Paz, São Paulo: Cosac Naify, 2011.

www.bertelsmann.de

www.oikoumene.org

www.uni-menster.de/religion-und-politik

www.deutsche-islam-konferenz.de

www.fs-medien.de

www.destatis.de

www.bbc.com

Notas

[1]“Não opor resistência às agressões, sejam leves ou graves, involuntárias ou dolosas. Assim, não me oponho à presença de Jesus, nada de mim mesmo” (CODA, Piero, Diario ’95, Brescia: Editrice Morcelliana, 2015, p. 23, tradução nossa).

[2]Santa Aliança foi criada por Pedro, o Grande, em 1721, (TOLSTÓI, L., Guerra e Paz, São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.1250.)

[3]BARTLETT, Rosamundo, Tolstoi, a biografia, São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2013, p.297.

[4]TOSLTOI, L. Guerra e Paz, São Paulo: Cosac Naify, 2011, pg. 9

[5]Sua mãe faleceu quando ele havia completado somente dois anos de idade. (BARTLETT, Rosamundo, Tolstoi, a biografia, São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2013, p.46.)

[6]BARTLETT, Rosamundo, Tolstoi, a biografia, São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2013, p.161.

[7]BARTLETT, Rosamundo, Tolstoi, a biografia, São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2013, p.17.

[8]http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150414_religiao_gallup_cc

[9]https://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/saiba-mais-sobre-a-trajetoria-de-osama- -binladen/n1300141539620.html

[10]https://www.bbc.com /portuguese/internacional-36762686

[11]O PIB por habitante é de US$ 382, se vive 89 centavos de dólar por dia em média, segundo Relatório S2018/125 da República Centro-Africana, Nova York, 15 fev. 2018.

[12]https://www.africa-expres.info/2018/0826mercenari-russi-centrafrica-per-garantire- -mosca-lo-sfruttamento-delle-miniere/amp/

[13]“quando tem sangramento, funciona” (tradução nossa), “basicamente significa que a mídia ama a violência. A televisão, o rádio e o cinema, em sua maioria, terão uma audiência muito mais alta se o tema for sobre um bando de pessoas sendo assassinadas, em vez de algo agradável , como alguém salvando um gato de uma árvore. Em última análise, é uma declaração sobre o fascínio da América pela violência. Johnny: Você assistiu ao noticiário hoje? Foi incrível, 500 pessoas tiveram suas cabeças cortadas! https://www.urbandictionary.com/define.php?term=if%20it%20bleeds%20it%20leads

[14]DH 2

[15]Departamento Federal de Estatística da Alemanha (Detatis) https://www.destatis.de/

[16]www.unric.org/it/diritto-internazionale

[17]Dados fornecidos pelo Departamento Paz da Fundação Weltethos, Tübingen. Religião e Paz. Dirigido pelo pesquisador Dr. Markus A. Weingardt, autor dos livros “Was Rieden schafft. Religiöse Friedensarbeit” e Religion Macht Frieden”. https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz-das-religioes

[18]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[19]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[20]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[21]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[22]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[23]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[24]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[25]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[26]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[27]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes

[28]https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/sobre-a-responsabilidade-de-paz--das-religioes