Jean Nabert e a noção de divino: uma chave conceitual para a antropologia filosófica de Paul Ricoeur
Jean Nabert and the notion of divine: a conceptual key for the Philosophical Anthropology of Paul Ricoeur

Cristina Amaro Viana Meireles*
*Professora Adjunta II no curso de Filosofia do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da UFAL (Universidade Federal de Alagoas). Licenciada, Mestre e Doutora em Filosofia, com estágio sanduíche CAPES no Fonds Ricoeur (Paris/ FR). Áreas de Pesquisa: Filosofia da Mente, Ética e Hermenêutica Filosófica. Temas de pesquisa: identidade pessoal, consciência de si, o problema filosófico do mal.
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Resumo:
Pretendemos explorar o pensamento do filósofo Jean Nabert (1881-1960), com foco em sua obra póstuma (inacabada) Le désir de Dieu (1966). O objetivo é buscar esclarecer a noção de divino, de interesse para uma melhor compreensão da antropologia do homem finito-infinito apresentada por Paul Ricoeur (1913-2005) em L’Homme faillible (1960). Se, na visão de Ricoeur, o homem consiste numa perene mediação entre duas dimensões que constituem seu ser – a finitude e a infinitude –, não podendo ser compreendido por nenhum dos dois polos separadamente, parece que a filiação a Nabert pode ser verificada ao acompanharmos as reflexões nabertianas sobre a noção de divino. Isso porque, segundo Nabert, o divino não coincide com Deus. Ora, não sendo o divino exclusivamente predicado de Deus, ele pode ser estendido ao homem, o que ilumina a noção ricoeuriana de mediação imperfeita. Aos olhos de Nabert, o divino explica a aproximação entre homem e Deus no seio mesmo da experiência concreta, que é sempre finita. Mas finitude aqui engloba fundamentalmente a ultrapassagem da finitude na própria finitude. Para além do que possa nos dizer sobre Deus, parece que a noção de divino tem algo a nos dizer sobre a natureza do próprio homem.

Palavras chave:divino; mediação imperfeita; Jean Nabert; Paul Ricoeur.

 

Abstract
We intend to explore the philosopher Jean Nabert’s thought (1881-1960), focusing on his posthumous (and unfinished) work Le désir de Dieu (1966). Our aim is to clarify the notion of divine, which provides a better comprehension of the finite-infinite man’s Anthropology presented by Paul Ricoeur (1913-2005) in L’Homme faillible (1960). If, according to Ricoeur’s view, man consists of a perpetual mediation between two dimensions that constitute his being – the finitude and the infinitude – which means that we can’t understand him by only one of those two poles, then it seems that the affiliation to Nabert can be attested when we follow Nabert’ reflections about the notion of divine. According to Nabert, divine doesn’t coincide with God. So the divine, once it isn’t exclusively a God’s attribute, can also be extended to men. This conception will enlighten Ricoeur’s notion of imperfect mediation. In Nabert’s eyes, the divine explains the convergence between man and God within the very concrete experience, which is always finite. But finitude, here, essentially includes the surpass of finitude in the very finitude. Beyond what the divine notion can say about God, it seems that it also has something to say about human nature itself.

Keywords:divine; imperfect mediation; Jean Nabert, Paul Ricoeur

Introdução: A filosofia de Jean Nabert

Pretendemos neste trabalho expor uma análise da noção de divino, tal como desenvolvida pelo filósofo francês Jean Nabert (1881-1960), a partir da qual pretendemos lançar luz sobre a antropologia do homem finito-infinito desenvolvida pelo também francês Paul Ricoeur (1913-2005). O interesse central desse estudo é ampliar a compreensão filosófica do homem; nesse sentido, a noção nabertiana de divino interessará justamente porque ela tem muito mais a nos dizer sobre a natureza do homem do que de Deus, como tentaremos argumentar.

Jean Nabert não era teólogo, tampouco um cientista da religião, mas sim um filósofo da religião. É evidente que tais áreas dialogam e mesmo se interpenetram em muitas discussões temáticas; porém, visando uma melhor aproximação do pensamento nabertiano, julgamos relevante realçar, ao menos incialmente, algumas especificidades da filosofia da religião. Com Urbano Zilles (1937- ), vemos que “[...] a filosofia da religião não se confunde com a teologia, pois esta tematiza a relação homem-Deus a partir da livre revelação de Deus ao homem, ou seja, a partir de Deus” (ZILLES, 1991, p. 9). A diferença de abordagem entre filosofia da religião e ciência da religião é realçada por Manfredo Oliveira (1941- ):

[...] para tratar filosoficamente a religião, a primeira tarefa consiste em ir além de uma consideração sobre a função que a religião exerce ou exerceu de muitos modos na vida e na cultura dos povos no passado ou pode ou deve exercer nas sociedades modernas. Estas são basicamente as perguntas das ciências da religião e das pesquisas fenomenológicas sobre os princípios de ordenação das diferentes manifestações religiosas [...]. No quadro teórico próprio à reflexão filosófica, se põe em primeiro lugar uma consideração daquilo que constitui a religião enquanto uma atividade específica na vida humana e a questão de sua pretensão de validade teórica ou prática. (OLIVEIRA, 2015, p. 15).

Se filosofia da religião é o nome que damos às reflexões que “[...] tematiza[m] a abertura do homem para o mistério que o envolve [...]” (ZILLES, 1991, p. 5), é preciso indagar sobre qual seria a especificidade da filosofia da religião de Nabert, uma vez que a admissão de que o fenômeno religioso é originário no homem pode ser trabalhada por posições tão diversas quanto a defesa da sua redutibilidade mas também a defesa da sua irredutibilidade (ZILLES, 1991, p. 17). Um caminho para essa resposta é começarmos nos perguntando se a filosofia de Nabert é apenas uma filosofia da religião, se é sobretudo uma filosofia da religião, ou se suscita uma filosofia da religião. Para uma resposta definitiva a esta questão, nos parece que seria preciso empreender uma pesquisa prévia sobre a viabilidade de se poder falar em uma filosofia nabertiana, no sentido de um pensamento sistemático. Quanto a este ponto, de saída encontramos controvérsias. Para Jacques Baufay, por exemplo, este está longe de ser o caso. Comentando sua própria interpretação da obra nabertiana, ele adverte já na Introdução: “Ela [sua própria leitura] apresenta, no entanto, vários inconvenientes, dentre os quais o mais grave é, sem dúvida, o de exagerar o aspecto sistemático de um pensamento que tudo indica que estava ainda em plena pesquisa” (BAUFAY, 1974, p. 14, trad. nossa). Numa direção oposta a esta de Baufay, vemos Sthéphane Robilliard e Frédéric Worms como comentadores mais propensos a eleger um eixo temático que traria unificação à obra de Nabert – que no caso seria a ideia “afirmação ética” (ROBILLIARD; WORMS, 2010, p. 9)

Seja como for, ainda assim ousaremos ensaiar caminhos para circunscrever a especificidade da filosofia da religião de Nabert. Se Nabert pode ser considerado – numa medida e alcance que ainda precisaríamos investigar – um “filósofo da religião”, o lugar que as reflexões sobre a dimensão sagrada do homem ocupam em seu pensamento ainda é um pouco controverso. Jacques Baufay é um dos autores que enxerga as preocupações de Nabert com esta temática como uma presença constante desde suas primeiras obras:

[...] se, com efeito, o pensamento de Nabert se orienta em virtude de uma necessidade interna, em direção ao domínio religioso, não é de se espantar que ele se comprometa de início a manifestar as estruturas de um sentimento fundamental, aquele do divino. Ainda é preciso mostrar que este, cuja importância é manifesta em Le divin et Dieu e em Le désir de Dieu, já tinha sido evocado, ou pelo menos estava secretamente presente, nas obras anteriores. (BAUFAY, 1974, p. 12-13, grifos do autor, trad. nossa)

Já Paul Ricoeur – conforme leitura de Philippe Capelle – efetua uma interpretação mais prudente, chamando a atenção para “[...] a inclusão de motivos fundamentais da última obra de Nabert na primeira [...]”1 (CAPELLE, 2010, p. 294, trad. nossa). Assim, se Ricoeur defende uma continuidade na obra de Nabert, trata-se de uma permanência das mesmas questões ao longo de abordagens sempre novas e em virtude de novos desafios. Podemos pensar num sistema filosófico em evolução constante? Ou teria Ricoeur apenas projetado demais a sua própria filosofia na de Nabert? Perguntas para as quais não temos resposta, ao que nos limitamos a avançar um pouco mais nas considerações de Ricoeur acerca da filosofia da religião de Nabert. Com base no penúltimo texto que Ricoeur escrevera sobre Nabert2 , que é o Prefácio à edição de 1994 de sua tese escrita em 1924, L’expérience intérieure de la liberté, podemos constatar que Ricoeur, ao intitular este referido Prefácio de “A árvore da filosofia reflexiva” tem por meta sugerir uma interpretação da obra de Nabert segundo a qual ela apresentaria uma unidade, porém uma unidade viva, em que as suas partes estariam em estreita colaboração, porém desempenhando funções bastante distintas. Citamos integralmente esta belíssima imagem com a qual Ricoeur inicia seu Prefácio, que em nossa opinião é o texto mais denso que Ricoeur escrevera sobre Nabert:

Para retomar uma célebre alegoria emprestada de Descartes, eles [os ensaios reunidos nesta edição de 1994] erigem juntos preferencialmente uma árvore vigorosa. O longo ensaio de 1924 dedicado à ‘L’expérience interne chez Kant’ seria as raízes dessa árvore, enterradas no solo da filosofia crítica, o desenvolvimento de ‘La philosophie réflexive’ do tomo 19 da Encyclopédie française (1957) constituiria o seu tronco. Quanto à copagem, ela se dividiria entre os estudos críticos intitulados ‘La raison et la religion selon Brunschvicg’, ‘Les instincts virtuels et l’intelligence dans ‘Les deux sources de la morale et de la religion’.’, L’intuiton bergsonienne et la conscience de Dieu’, para culminar no ensaio do próprio Nabert ‘Le divin et Dieu’. (RICOEUR, 1994, p. V, trad. nossa).

Seja a filosofia da religião de Nabert o ponto de chegada de uma reflexão que começa pela crítica – como entendera Ricoeur –, seja ela o motor latente de todo o pensamento deste filósofo – como acreditava Baufay – ensaiemos agora uma entrada em seu pensamento por uma outra porta que não esta da estrutura interna de sua filosofia. Perguntemos, então, de modo mais direto: qual o lugar de Deus e do homem nas reflexões de Nabert?

Nabert: o homem e Deus

Para nos aproximarmos da concepção nabertiana de homem, um caminho promissor parece ser a sua herança da filosofia reflexiva francesa. Para esta corrente – na qual se encontram Maine de Biran (1766-1824), Léon Brunschvicg (1869-1944) e Louis Lavelle (1883-1951), para citar alguns expoentes – a característica que define o homem é a reflexão. Longe de significar o processo pelo qual se criam as imagens e as representações mentais, a reflexão, segundo esta corrente filosófica, dirá respeito a um ato pelo qual a consciência se apropria de suas próprias produções. Segundo Nabert, trata-se de “[...] uma reflexão que constitui, logo de início, o sujeito ele mesmo e reapreende, depois disso, imanentes às suas operações, as leis e as normas da atividade espiritual em todos os domínios”3 (NABERT, 1994-A, p. 398, trad. nossa).

A reflexão é, então, o ato que constitui o próprio sujeito, de modo que, assim fazendo, acaba por elucidar os princípios gerais que guiam todas as operações espirituais do próprio sujeito que reflete. É evidente que as filosofias reflexivas variam, sobretudo na eleição desse ato reflexivo inaugural, como bem observa Nabert:

[...] de fato, o que diferencia as filosofias reflexivas em seu ponto de partida é a escolha do ato ao qual se aplicará a reflexão primeira: ora é o ato de pensar, o juízo, a afirmação, ora é a criação ou intelecção do signo, ora é a apercepção imediata do eu no fato primitivo do esforço. (NABERT, 1994-A, p. 400, trad. nossa)

Podemos talvez dizer que Nabert dedicou grande parte dos seus escritos a explorar esse ato reflexivo primeiro que funda a consciência de si no homem. Numa clara crítica à abordagem kantiana da interioridade humana, que em grande medida realça o aspecto racional e intelectivo da subjetividade no homem, Nabert afirma que é preciso despertar o pensamento por meio do choque de um Eu (NABERT, 1994-B, p. 259), que ultrapassaria em muito as fronteiras de um “Eu penso”. Esse ato, no entanto, não pode ser apreendido por simples introspecção; é assim que o caminho pelo qual o homem apreende a si mesmo é, segundo Nabert, sempre indireto: “Não que a análise reflexiva não tenha, ela também, a ambição de apreender os atos puros, mas ela sabe que só pode fazê-lo por meio de signos nos quais eles liberam sua significação”(NABERT, 1994-A, p. 408, trad. nossa).

Podemos dizer de passagem que essa proposta de pensar o homem pelo viés da reflexão chamou a atenção de Ricoeur, um filósofo que, como se sabe, também problematizou a pretensa consciência imediata4 e propôs uma concepção de identidade pessoal que integra a mediação narrativa5 . É o próprio Ricoeur que vai sublinhar que, apesar de indireto, o acesso do homem a si mesmo por meio da reflexão é legítimo e eficaz:

Se nós não podemos nos reapropriar da origem de nossos atos, ao menos podemos ‘reapreender’ a sua energia e a sua luz graças às permutas entre essas fontes, e em virtude da complementaridade entre a análise reflexiva aplicada à ordem do conhecer e aquela aplicada ao domínio da ação. (RICOEUR, 2003, p. 144, trad. nossa)

Ora, se o homem teria, para Nabert, essa peculiaridade do acesso a si mesmo pela reflexão, vejamos agora como o filósofo compreendeu Deus. Um primeiro ponto que observamos é que Nabert recusou a ideia de um Deus enquanto sujeito de predicados divinos, ou seja, “[...] a ideia de um ser necessário, numericamente distinto do ato pelo qual uma consciência busca a compreensão de si mesma” (RICOEUR, 1996, p. 10, trad. nossa). Isso não significa que Nabert seja, no fundo, partidário de um agnosticismo ou mesmo de um ateísmo. O que percebemos é que ele preferiu deixar este ponto em suspenso, preferindo antes focar na ideia de divino. O divino é, como veremos a seguir, um predicado da consciência.

Os comentadores de Nabert, contudo, se interessaram em tentar compreender o que Nabert entendia por Deus. Jean Greisch (1942- ), por exemplo, levanta a hipótese de que existe um ateísmo na filosofia de Nabert, mas que este é apenas metodológico (GREISCH, 2003, p. 61-63). Greisch analisa a enigmática frase com a qual Nabert encerra uma longa (e incompleta) reflexão em “La conscience peut-elle se comprendre?”, a saber: “Esta [i.e., a religião] não verá, se proibirá de ver que o ateísmo é um método, a verdade do ateísmo como método. A teologia negativa está para a teoria de Deus da mesma forma que o ateísmo está para a teoria da consciência” (NABERT, 1996-A, p. 428, trad. nossa). A análise de Greisch busca entender esse ateísmo metodológico sugerido por Nabert postulando uma interessante aproximação com Heidegger, a qual não teremos condições de desenvolver aqui.

Já Ricoeur traz uma análise segundo a qual uma certa personalização do absoluto acaba sendo sugerida, “ou pelo menos não proibida” (RICOEUR, 2003, p. 153, trad. nossa) pelas reflexões de Nabert em Le désir de Dieu, de modo que isso explicaria a sua atitude em não “[...] riscar de sua agenda a palavra Deus e se [limitar] a mantê-la em suspenso” (RICOEUR, 2003, p. 152, trad. nossa). Seja como for, uma coisa parece certa: da ênfase que Nabert confere ao conceito de divino não podemos extrair nenhuma inferência válida acerca da existência (ou não) de Deus. Por um lado, vemos que ele não descarta a possibilidade de que exista um ser que, para a consciência humana, apareça como totalmente divino: “Isto não significa que a consciência não possa, não deva concentrar o divino em um ser, segurar-se nele, ligar-se a ele” (NABERT, 1996-B, p. 178, trad. nossa). Por outro lado, ao mesmo tempo em que meditou longamente sobre a legitimidade de se falar em “uma multiplicidade de divinos” (NABERT, 1996-B, p. 186, trad. nossa), ele também expressou uma desconfiança de que a exigência de não multiplicidade de divinos – e por conseguinte a exigência de um ser mais divino que os demais divinos – fosse talvez uma marca de nosso modo humano de pensar, e não uma exigência conceitual forte (NABERT, 1996-B, p. 84-85 e também 187-188).

Avancemos agora para o tópico central deste trabalho, a saber, a noção mesma de divino, tentando compreender de que modo ela poderia permitir-nos pensar na aproximação entre homem (esse ser que se compreende indiretamente e pela reflexão) e Deus (o absoluto que reflete um traço equivalente da própria consciência) de uma maneira bastante peculiar, no seio da concretude mesma.

3. O que é o divino na concepção de Jean Nabert

Para compreender a tese nabertiana sobre o divino, é na voz de Jean Lacroix que buscaremos nosso ponto de partida: “[...] Deus não está antes do Divino, mas o Divino antes de Deus” (LACROIX, 1966, p. 22, trad. nossa). Para entender esta afirmação de Lacroix, é preciso recorrer ao último texto que Nabert escreveu em vida, o artigo Le divin et Dieu, um artigo de quatorze páginas, bem como à obra póstuma Le désir de Dieu, composta de trezentas e sessenta páginas que reúnem uma grande quantidade de escritos esparsos, por vezes pequenas notas contendo apenas um ou dois parágrafos, cuja organização não foi pensada por Nabert, mas por seus editores, seguindo na maior parte das vezes uma orientação cronológica – quando Nabert concedia o obséquio de datar o escrito, coisa que nem sempre ele fazia. Difícil é não partilhar da opinião de Ricoeur quando se chega ao final das breves quatorze páginas de Le divin et Dieu:

O artigo da [Revista] Études philosophiques de 1959, intitulado ‘Le divin et Dieu’, é de uma dificuldade extrema, devido tanto à sua concisão como a seu caráter deliberadamente problemático. Ele se torna menos im-penetrável se nós o aproximamos daquilo que a obra póstuma Le désir de Dieu chama ‘criteriologia do divino’, na sua segunda parte, e ‘metafísica do testemunho’, na sua terceira parte [...]. (RICOEUR, 1994, p. XXI, trad. nossa)

Seguiremos à risca estas orientações de Ricoeur a fim de, compreendendo a ideia nabertiana de divino, investigar o quanto Nabert teria influenciado a concepção ricoeuriana de homem enquanto misto de finitude e infinitude, concepção essencial para a antropologia filosófica de Paul Ricoeur. Daí a necessidade de se buscar uma chave de leitura para Le divin et Dieu na volumosa Le désir de Dieu, apesar de toda a peculiaridade da sua condição póstuma. Buscaremos explicar que essas duas expressões mencionadas por Ricoeur – criteriologia do divino e metafísica do testemunho – são etapas necessárias para a compreensão do que é o homem e de qual o lugar que Deus ocupa em sua antropologia

Comecemos então esta análise. O que é o divino, para Nabert? Primeira pista: o divino não é Deus. Segunda pista: o divino não é o absoluto. Primeiramente, podemos dizer que o divino não é Deus porque, para Nabert, “divino” não é predicado de um ser, mas “[...] característica de um ato inseparável de nossa reflexão [...]” (RICOEUR, 1996, p. 11, trad. nossa). É numa belíssima comparação com a beleza de uma música que encontramos uma primeira conceituação nabertiana do que seja o divino:

Como a beleza de uma obra musical não é atributo da sinfonia tomada como tema, e da qual nós poderíamos dizer indiferentemente que ela é bela, emocionante, ou que ela não o é e não merece ser considerada como tal, como se ela subsistisse por si, independentemente da emoção que ela suscita, então se dá que, ao contrário, ela [a beleza da obra musical] circula através da obra e a constitui como sinfonia precisamente em virtude do julgamento de beleza que ela suscita. Semelhantemente, o divino em sua autenticidade – ou o não-divino – não é atributo afirmado ou negado de um sujeito, designado ou afirmado previamente como homem ou como Deus [...]. Mas, bem ao contrário, o divino circula através das ações e dos pensamentos de tal maneira que no momento em que nós chamamos de divino o sujeito que é progressivamente constituído por essas ações e esses pensamentos, nós não estamos dizendo que ele é homem, nem que ele é Deus, nem que ele é conjuntamente homem e Deus. (NABERT, 1996-B, p. 177-178, grifos e trad. nossos).

Toda a problemática na qual se insere o conceito nabertiano de divino, tal como observada por Ricoeur, pode ser entrevista nessa passagem se detivermos nossa atenção em duas expressões chave nela presentes: “circular através de” e “em virtude do julgamento”. Se o divino “circula” nas nossas ações e pensamentos, será preciso meditar sobre os critérios para podermos identificá-lo (eis a temática da criteriologia); se o divino está ligado a um “julgamento” que ele mesmo suscita em sua manifestação concreta, é preciso refletir sobre o papel fundador do testemunho (eis a temática da metafísica do testemunho). Parece que já podemos entrever uma das consequências da conceituação nabertiana de divino: o divino não será exclusivamente predicado de Deus, podendo ser estendido à consciência humana – e aqui entendemos melhor as colocações de Greisch a respeito da delicada situação da teoria desenvolvida por Nabert: “Ela não será jamais suficientemente teológica aos olhos do teólogo. Ela será sempre demasiadamente teológica aos olhos do filósofo” (GREISCH, 2003, p. 61, trad. nossa).

Na medida em que o divino tem a ver com experiências humanas concretas, finitas, e que de algum modo revelam a presença do absoluto, Nabert dedicou especial atenção às experiências do sacrifício, do perdão e outras formas de sublimidade (NABERT, 1996-B, p. 185). Não tendo condições de acompanhar essa análi-se minuciosa nos limites deste trabalho, observemos o papel mediador que o divino exerce entre a finitude e a infinitude humanas, segundo Nabert:

O divino corresponderia à maneira pela qual o absoluto se manifesta no mundo, é acessível à consciência que, afirmando o absoluto, é obrigada a buscá-lo, a reconhecê-lo. A afirmação do predicado divino é a réplica, no plano da existência e do mundo, da afirmação absoluta do absoluto. Ela conduz ao absoluto, mas recebe dele, em troca, garantia e justificação. (NABERT, 1996-B, p. 180, trad. nossa).

Mas o que é o absoluto para Nabert? Uma pista pode ser encontrada no título de um dos fragmentos de Le désir de Dieu, o qual chama a atenção por trazer um título (quando a maioria dos fragmentos não o traz). Tal título é “A relação entre o divino e a afirmação originária, e entre esta última e Deus” (NABERT, 1996- B, p. 266-267, trad. nossa). A ideia de afirmação originária foi desenvolvida por Nabert na sua segunda obra, Éléments pour une Éthique, publicada em 1943. Sem termos condições de adentrar nesta obra, sublinhamos inicialmente que a maior dificuldade com a ideia de afirmação originária é o seu estatuto ontológico mesmo: ela não é afirmação meramente individual, psicológica, mas ao mesmo tempo não é afirmação de um absoluto externo à consciência individual. A afirmação originária é uma afirmação absoluta, mas não provém de um absoluto exterior; antes, ela se dá no âmbito da experiência finita.

Ora, o divino, enquanto essa experiência finita que temos do absoluto, ressona “[...] o despojamento radical de si que [a afirmação originária] implica” (NABERT, 1996-B, p. 267, trad. nossa), de modo que não seria errado dizer que o divino encontra na afirmação originária que se manifesta em nossos atos e pensamentos o fundamento mesmo de sua autenticidade:

Eu só reconheço esta afirmação [originária] como um modo de um pensamento que a transborda se eu a destituir de sua primazia, a subordinando a um ser do qual ela derivaria ou procederia. [Porém,] Ela não é afirmação de um ser primeiro, de um além de si, ela suprime a questão que ela poderia se colocar a respeito de sua relação com um além de si do qual ela seria apenas o prolongamento. Mas, se afirmando como primeira, ela se assegura de sua não identidade com a consciência individual como tal. (NABERT, 1996-B, p. 266, trad. nossa)

Se o divino é uma das expressões finitas do absoluto, podemos talvez por esta via nos aproximar melhor do conceito nabertiano de absoluto. Uma primeira tentativa de aproximação parece ser a conceituação negativa. Mais acima tínhamos recolhido uma pista nesse sentido, qual seja o divino não é o absoluto. É verdade que ambos padecem de uma mesma dificuldade fundamental em serem apreendidos diretamente pela consciência. O divino, “circulando” nos atos e pensamentos concretos, precisa de uma criteriologia para ser identificado no plano concreto, bem como de uma hermenêutica do testemunho para ter aferida a sua relação com o absoluto. O absoluto, por sua vez, sendo o que “torna possível o divino” (NABERT, 1996-B, p. 332, trad. nossa), é aquilo que “só pode ser pensado, afirmado” (NABERT, 1996-B, p. 332, trad. nossa). A insistência de Nabert sobre este traço do absoluto salta aos olhos do leitor em diversas passagens nesta obra póstuma. O absoluto, não sendo equivalente a um Deus – considerado enquanto sujeito de existência – só pode ser afirmado, de modo que “não há mais espaço para se buscar quais são os atributos do absoluto” (NABERT, 1996-B, p. 182, trad. nossa): “A ideia de absoluto é a promoção, a garantia de todos os movimentos da alma. A forma do absoluto e o ato de afirmação são uma só e mesma coisa”. (NABERT, 1996-B, p. 184, trad. nossa).

Em suma, para Nabert, o que o homem busca e tem a possibilidade de vir a verificar é o divino; o absoluto, o homem apenas o afirma, e nada mais. É ao divino, e não ao absoluto, que se aplicarão tanto a criteriologia como a hermenêutica do testemunho. Ora, mas se o absoluto só pode ser afirmado, isso nos leva a ter de olhar mais atentamente para a afirmação originária, percebendo de saída uma dificuldade, a qual foi apontada por outro perspicaz comentador de Nabert, Paul Naulin:

A dificuldade é evidente: na falta de intuição intelectual, nós só podemos alcançar o absoluto por meio dos signos que são aqui os atos reais nos quais se exprime a afirmação originária. Ora, mesmo se, como é o caso, o significado é imanente ao signo, este último, por essência, não é o significado, ele implica ao contrário a ausência do significado. Mais precisamente, para nós só há experiência pela mediação do mundo do qual nossos atos são solidários e seria contraditório se a afirmação originária pudesse parecer como tal no mundo. Entre elas e os atos em que ela se exprime subsiste uma diferença absoluta que reintroduz a transcendência no interior da imanência [...]. (NAULIN, 1963, p. 478, grifo e trad. nossos)

Ora, Naulin chama a atenção para um aspecto fundamental da afirmação originária: mesmo ela, tal como toda experiência, não poderá ser apreendida diretamente. É assim que, mais do que trazer uma solução para o problema da apreensão do absoluto, a ideia de afirmação originária acaba, ela também, passando a fazer parte da dificuldade. Daí a necessidade premente de uma criteriologia do divino, que se coloca como “[...] o critério ao mesmo tempo do absoluto e da manifestação do absoluto” (RICOEUR, 1996, p. 11, trad. nossa). Somente por meio de uma criteriologia será possível estabelecer se uma certa manifestação do divino expressa o absoluto ou apenas uma contingência ou relatividade qualquer. A necessidade de uma criteriologia é o corolário da operação, tão cara à filosofia reflexiva de Nabert, pela qual ele “reintroduz a transcendência no interior da imanência”, como afirma Naulin na passagem supracitada. O encaminhamento de Nabert é muito explícito: “Nós gostaríamos de substituir as discussões sobre a transcendência e a imanência pela relação entre o absoluto e o divino” (NABERT, 1996-B, p. 181, trad. nossa). Nesta obra póstuma, Nabert tateia a possibilidade desta criteriologia, analisa suas possibilidades, lança seus alicerces, dá-lhe os primeiros desenvolvimentos. Não teremos condições de percorrer aqui os caminhos (e descaminhos) através dos quais ele se empenha no propósito de erigir uma criteriologia, ao que nos limitaremos a destacar uma das direções da criteriologia na qual ele investe, que é aquela segundo a qual o divino pode ser apreendido e reconhecido por meio de “[...] uma manifestação notória do despojamento de si, prova de uma força transcendente ou da participação em uma força transcendente” (NABERT, 1996-B, p. 227, grifo e trad. nossos).

É esse despojamento de si que, paradoxalmente, está no cerne da dimensão ontológica da consciência humana, tal como a entenderam Nabert e Ricoeur. Embora não façamos o percurso de uma criteriologia do divino estrita, é na direção aberta por ela que entendemos se inserir a aproximação entre a antropologia filosófica de Ricoeur e a filosofia da religião de Nabert na qual estamos apostando.

É verdade que o projeto filosófico de Ricoeur não inclui a proposta de nenhuma criteriologia do divino, muito embora ele reconheça a importância de tal empreendimento. Em vez disso, ele parece preferir seguir as intuições de Nabert, mas focando mais na manifestação do que no manifestado, por assim dizer. O árido texto de 1994 é finalizado com uma passagem que, no nosso entendimento, revela fortemente a marca pessoal que Ricoeur imprime na herança nabertiana, nisso que diz respeito à temática da manifestação do absoluto:

A evocação de uma traição que seria o não retorno a si da causalidade espiritual abre a via a uma outra criteriologia, que não seria mais aquela dos predicados divinos, mas que seria aplicada ao testemunho da vida. E desta dupla criteriologia poderia, em minha opinião, surgir uma dialética específica: entre a atestação ‘interior’ do espírito e o testemunho ‘exterior’ da vida. (RICOEUR, 1994, p. XXVI, trad. nossa).

4. Ricoeur e a noção de síntese – uma inspiração no “divino” nabertiano

Voltemos agora o olhar para a obra ricoeuriana L’Homme faillible, o livro I da obra Finitude et culpabilité, publicada em 1960. Há algumas importantes especificidades do empreendimento no qual se insere esta obra às quais não poderemos voltar nossa atenção, tal como o fato de que ela constitui o segundo tomo de um audacioso projeto que é a Philosophie de la volonté de Ricoeur; outra especificidade que igualmente não abordaremos é a relação de complementaridade entre L’Homme faillible e La symbolique du mal, os dois livros que compõem Finitude et culpabilité. Focaremos apenas no cerne de L’Homme faillible, a saber, a antropologia do homem finito-infinito.

É verdade que não encontramos em L’Homme faillible uma formulação do conceito nabertiano de divino. Entretanto, mesmo se Ricoeur não dá continuidade à criteriologia do divino proposta por Nabert, e mesmo se ele sequer fala de divino, acreditamos poder supor que sua ideia de síntese humana expressa uma forte ressonância desse conceito nabertiano e, de modo mais evidente, uma forte convergência entre os propósitos filosóficos de ambos, no que se refere às suas intuições quanto à temática do despojamento de si.

Ora, o que é a síntese humana, para Ricoeur? É nada menos que o resultado, o balanço entre os dois polos que inevitavelmente compõem o homem: a finitude e a infinitude. Não existe em L’Homme faillible um capítulo dedicado exclusivamente a esmiuçar cada uma dessas dimensões; na verdade, cada um dos três capítulos centrais aborda a finitude e a infinitude em seus três planos, a saber, transcendental, prático e afetivo. Não entraremos nessa explicação minuciosa aqui, buscando apenas extrair o sentido geral da polaridade do homem finito-infinito segundo Ricoeur.

A finitude humana, segundo Ricoeur, consiste na limitação própria à nossa condição. No plano transcendental, por exemplo, nossa finitude implica em nossa visão perceptiva ser sempre incompleta em relação a uma visada totalizante. No plano prático, nossa finitude pode ser vista como a marca do nosso caráter, que sempre é perfilado por traços determinados, a partir dos quais intencionamos a felicidade. No plano afetivo, a finitude humana consiste no prazer, que advém de uma circunscrição finita da beatitude. Interessante é observar que Ricoeur tematiza a finitude realçando não a sua limitação em relação aos seus horizontes possíveis, mas sim a sua abertura em direção àquilo que lhe escapa:

A primeira significação que eu apreendo de meu corpo, enquanto mediação do aparecer, não é a de que ele é finito, mas precisamente a de que ele é aberto a...; é precisamente esta abertura a... que faz dele mediadororiginário ‘entre’ mim e o mundo; ele não me fecha, à maneira deste invólucro de pele que, visto a partir de fora, o faz aparecer como coisa no campo das coisas; ele me abre ao mundo, seja deixando aparecerem as coisas percebidas, seja me fazendo dependente das coisas que me faltam, das quais eu experimento a necessidade, das coisas que eu desejo porquanto estão em outro lugar ou mesmo em lugar nenhum no mundo; ele ainda me abre ao mundo mesmo quando ele me isola no sofrimento [...]. (RICOEUR, 2009, p. 56, grifo do autor, trad. nossa)

Ricoeur destaca com muita veemência, ao longo de todo o livro, que a finitude contém em si um movimento de ultrapassagem de si mesma e em si mesma. E a ultrapassagem se dá justamente em direção ao polo infinito que igualmente compõe o homem:

[...] nos permitindo partir do tema cartesiano do homem finito-infinito – arriscando -nos a reinterpretá-lo totalmente – nós nos separamos um pouco da tendência contemporânea em fazer da finitude a característica global da realidade humana. Certamente que ninguém entre os filósofos da finitude possui um conceito simples e não dialético da finitude; todos falam em um sentido ou outro da transcendência do homem. [...] nós veremos que o homem não nos parece menos discurso que perspectiva, menos exigência de totalidade que caráter limitado, menos amor que desejo; a leitura do paradoxo a partir da finitude não nos parece ter nenhum privilégio sobre a leitura inversa segundo a qual o homem é infinitude e a finitude é um índice restritivo dessa infinitude, como a infinitude é o índice de transcendência da finitude. (RICOEUR, 2009, p. 39-40, grifos do autor, trad. nossa)

Se o homem é composto de finitude e infinitude, para Ricoeur ele é um “misto”. Isso significa várias coisas; em primeiro lugar, que ele não se apresenta de modo dicotômico; em segundo lugar, que um polo não é mais importante que o outro; em terceiro lugar, que nenhum dos dois polos jamais se diluirá no outro; por último, que o homem não pode jamais escapar de sua finitude e coincidir com a sua aspiração ao infinito. Daí a feliz expressão cunhada por Ricoeur para designar a natureza humana: desproporção ontológica. A ideia de desproporção ou de “misto” é central para compreendermos a especificidade (mas também a tragicidade) do homem aos olhos de Ricoeur:

[...] a ideia de intermediário implicada na de desproporção é, ela também, fonte de confusão; dizer que o homem está situado entre o ser e o nada é já tratar a realidade humana como uma região, como um lugar ontológico, como uma localidade alojada entre outras localidades; ora, este esquema de intercalação é fortemente equívoco [...]; o homem não é intermediário porque ele está entre o anjo e a fera; é nele mesmo, de si a si que ele é intermediário; ele é intermediário porque ele é misto e ele é misto porque ele opera mediações. (RICOEUR, 2009, p. 39, grifos do autor, trad. nossa).

A tese de que o homem é o intermediário – ideia que percorre todo L’homme faillible – é central para clarificarmos a noção ricoeuriana de síntese humana. Como o homem é esta mediação interminável entre finitude e infinitude, uma mediação que nunca atinge um ponto de chegada, a síntese será sempre uma síntese frágil (RICOEUR, 2009, p. 123), sujeita a se alterar ou se perder: “Somente um ser que quer o todo e que o esquematiza nos objetos do desejo humano pode se equivocar, isto é, tomar seu tema pelo Absoluto, esquecer o caráter simbólico da ligação entre a beatitude e um tema de desejo [...].” (RICOEUR, 2009, p. 181-182, grifos do autor, trad. nossa).

É neste ponto que gostaríamos de aproximar a noção de síntese de Ricoeur da noção de divino de Nabert, seguindo o fio da fragilidade humana implicada pela desproporção ontológica entre finitude e infinitude. Há, evidentemente, de saída, uma certa diferença de ênfase nas análises dos dois filósofos: Ricoeur explica a síntese buscando fazer uma antropologia filosófica, ao passo que a análise que Nabert faz do divino parece visar mais propriamente uma filosofia da religião. Mas, fora esta diferença, podemos constatar uma similitude muito forte entre as posições intermediárias ocupadas pela síntese e pelo divino, respectivamente.

Do lado da infinitude, vemos que a síntese é guiada por uma aspiração à universalidade, e, semelhantemente, o divino é guiado por uma aspiração ao absoluto: “Se o divino é aquilo que diviniza, é o divino que me ajuda a conceber um Deus que não é nada além de divino” (NABERT, 1996-B, p. 210, trad. nossa). Do lado da finitude, vemos a incerteza com que ambas as aspirações são alcançadas: a síntese permanece frágil; o divino carece de uma criteriologia. Se a síntese demanda um esforço, o divino, paralelamente, demanda uma imitação. É Maria da Penha Vilella-Petit que chama a atenção para este ponto: “Eu fico impressionada com o número de ocorrências do substantivo ‘imitação’ ou do verbo ‘imitar’ em Le désir de Dieu. [...] Busca, reconhecimento, imitação, tais são as etapas da busca constitutiva da experiência do divino” (VILELLAPETIT, 2003, p. 29, trad. nossa).

Assim como, segundo Nabert, a consciência humana se perfaz pela ideia de divino, ela também é devedora da síntese frágil, segundo Ricoeur. A relação entre homem e Deus que ocorre no seio mesmo da consciência humana não poderia ser bem compreendida se não atentássemos para esta fragilidade da síntese entre finitude e infinitude. Ricoeur desenvolve sua análise da síntese humana esmiuçando seus três planos, como já mencionamos: transcendental, prático e afetivo. Não cremos que Nabert tenha feito uma análise tão minuciosa do divino, de modo que – assim nos parece – a análise de Ricoeur sobre a síntese incorpora mas também complementa a análise nabertiana do divino.

CONCLUSÃO

É evidente que a tematização nabertiana do divino interessa a uma análise sobre Deus e demais temas do domínio religioso. No entanto, neste trabalho, procuramos enfatizar aqueles aspectos dessa noção que têm a nos dizer muito mais sobre o próprio homem. O divino é a noção pela qual Nabert concebeu a aproximação entre homem e Deus no seio mesmo da experiência concreta, que é sempre finita, mas no sentido ricoeuriano já explicitado mais acima, ou seja, englobando a ultrapassagem da finitude na própria finitude, que é o traço trágico do homem, tal como expressa Ricoeur nas últimas páginas de L’Homme faillible: “O homem é a Alegria do Sim na tristeza do finito” (RICOEUR, 2009, p. 192, trad. nossa).

Temos elementos para acreditar que a noção de síntese frágil não fica restrita a L’homme faillible. Se pensarmos nos desenvolvimentos posteriores da filosofia de Ricoeur, que escapa aos limites de uma antropologia filosófica e se encaminha para uma hermenêutica e por fim para uma ética, é possível ver que a tematização da cisão interior ao homem permanece central, ainda que enrobustecida por outras análises. Tal é o caso, por exemplo, da noção de cogito ferido em De l’interprétation: Essai sur Freud (1965), bem como da noção de identidade narrativa em Soi-même comme un autre (1990). Evidentemente, seria preciso um estudo futuro para investigar quais possíveis traços da noção nabertiana de divino ainda permaneceriam nessas elaborações posteriores de Ricoeur.

Por fim, observamos que, na análise ricoeuriana da síntese frágil em L’Homme faillible, a criteriologia do divino foi mais visível do que a metafísica do testemunho. Sabemos que ela era central para Nabert, como ele já deixava claro desde o artigo de 1959: “No entanto, em quais signos, em quais índices, nós discerniremos o divino?” (NABERT, 1994-C, p. 422, trad. nossa). Acreditamos poder dizer que Ricoeur aproveitará melhor esse aspecto da filosofia nabertiana somente num momento posterior, quando sua filosofia se desenvolverá de uma antropologia filosófica para uma hermenêutica. Igualmente, este tópico deverá ser investigado em algum momento futuro. Seja como for, finalizamos sublinhando que, possivelmente, a hermenêutica ricoeuriana seja uma decorrência natural da sua herança da filosofia da reflexão nabertiana, uma vez que hermenêutica do testemunho e criteriologia do divino estão imbricadas, como bem o sabia Ricoeur:

Criteriologia do divino e ‘compreensão dos testemunhos’ são, para dizer a verdade, inseparáveis: pois a reflexão sobre si e a interpretação dos signos e índices nascidos da história caminham lado a lado; nós não saberíamos acolher a esses signos, esses índices, a partir de um movimento diferente daquele que regula a purificação da consciência de si; é este parentesco profundo entre a reflexão e o discernimento do testemunho que deixa entrever alguma coisa da relação entre a razão e a fé [...]. (RICOEUR, 1996, p. 13, trad. nossa)

REFERÊNCIAS

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ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991 (Coleção Filosofia).

Notas

[1]No caso, a primeira obra de Nabert à qual o autor se refere é sua tese de doutorado L’expérience intérieure de la liberté (1924), e a última é Le désir de Dieu (1966, póstuma).

[2] Ricoeur escreveu notadamente seis textos sobre Nabert, sendo quatro deles prefácios aos livros de Nabert e dois artigos sobre sua filosofia. Além desses, publicou outros três textos que não fazem referência direta a Nabert no título, mas cujo conteúdo é estreitamente ligado à clarificação e discussão de sua obra: Négativité et affirmation originaire (1956), L’herméneutique du témoignage (1972), e Emmanuel Levinas, penseur du témoignage (1989)

[3]Uma tradução que fizemos desse texto foi publicada na Revista Ideação. Feira de Santana, Nº 27, 2013, p. 365-386.

[4] Ricoeur desenvolve este tema, por exemplo, em Le conflit des interprétations (1969).

[5] Discussão apresentada em Soi-même comme un autre (1990), em particular no Sexto Estudo.