Mística e Literatura Fantástica Uma abordagem das obras de C. S. Lewis
Mysticism and Fantastic Literature An approach to the works of C. S. Lewis

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Marcio Simão de Vasconcellos*
*Doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor da Universidade do Grande Rio –Brasil. E-mail: marciosvasc@gmail.com
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Resumo
A proposta do artigo é relacionar mística cristã, lida como fundamento da própria teologia, e literatura fantástica compreendendo esta como lugar tanto da teologia como da experiência mística. O que há em comum entre as definições desses conceitos é a dimensão do mistério que ambos compartilham. Por um lado, a mística nos lembra da inefabilidade divina, diante da qual toda expressão da linguagem, embora necessária à sistematização da fé, revela-se insuficiente, uma vez que a experiência de Deus ultrapassa os limites do conhecimento racional-lógico da realidade. Por outro lado, a literatura fantástica introduz no mundo cotidiano a dimensão do insólito, do fantástico, do maravilhoso que enriquece a própria vida. A literatura fantástica é capaz de transmitir, de maneira forte e original, experiências inquietantes à mente do leitor. Estas experiências inquietantes estão intimamente vinculadas à dimensão teológica e mística da existência. A partir dessa relação, o objetivo é investigar as obras ficcionais do escritor irlandês C. S. Lewis a fim de perceber como, nesses textos, Lewis aborda questões vinculadas à mística cristã e à teologia por meio do uso da literatura fantástica.

Palavras chave:Mística cristã; Literatura Fantástica; C. S. Lewis

 

Abstract
The purpose of article is to relate Christian mysticism, read as the foundation of theology itself, and fantastic literature understanding this as a place of both theology and mystical experience. What is in common between the definitions of these concepts is the dimension of the mystery that both share. On the one hand, the mystical reminds us of divine ineffability, before which every expression of language, while necessary systematization of faith, is insufficient, since the experience of God beyond the limits of knowledge rational-logical reality. On the other hand, fantastic literature introduces into the everyday world the dimension of the unusual, the fantastic, the wonderful that enriches life itself. Fantastic literature is capable of transmitting, in a strong and original way, disturbing experiences to the mind of the reader. These disturbing experiments are closely linked to the theological and mystical dimension of the existence. From this relation, the objective is to investigate the fictional works of the Irish writer C. S. Lewis in order to understand how, in these texts, Lewis approaches issues related to Christian mysticism and theology through the use of fantastic literature.

Keywords:Christian mysticism; Fantastic literature; C. S. Lewis

Introdução

O momento em que vivemos é marcado por uma profunda mudança de paradigma que alcança e transforma todas as dimensões da vida. Lido nessa perspectiva, nosso tempo revela uma ambiguidade muito peculiar que, obviamente, afeta também a reflexão teológica: de um lado, permanecem os desafios que essas alterações trazem à vida e à vivência da fé cristã. Por outro lado, surgem novas oportunidades que ensejam reflexões conscientes e reelaboradas a fim de que o centro da fé cristã – a saber, o encontro com o Deus que se revela em Jesus – seja vivido integralmente em outros e novos tempos. Nesse sentido, urge (re) aprender a dialogar com este novo cenário no qual se vivem a fé e a experiência de Deus, por meio da articulação entre coragem e discernimento (GARCIA-RUBIO, 2012, p. 18).

Na percepção da urgência de nosso tempo em repensar a vivência da fé cristã num mundo de tantos desafios e possibilidades como o nosso, também faz-se necessário refletir sobre a mística como fonte da teologia. Essa reflexão reafirma a própria teologia como a ousada ação de dizer o que não pode ser dito, reconhecendo, por outro lado, a limitação de seu próprio discurso. Isso gera uma prática teológica humilde, mais próxima da kênosis divina.

Não se trata, obviamente, de uma negação do dogma ou da própria teologia enquanto sistematização doutrinária de experiências religiosas, histórica e culturalmente situadas, mas antes da abertura clara e consciente ao fôlego da vida de Deus, ao vento que sopra onde quer (Jo 3.8), ao Espírito de Cristo que sempre sabe, melhor que nós, o que deve ser mantido e o que deve ser extirpado em nossas propostas teológicas e eclesiásticas.

Esta reflexão sobre a dimensão mística da fé cristã constitui um caminho necessário caso se deseje realizar a difícil tarefa de comunicar a experiência da fé em novos paradigmas histórico-culturais. Esta postura possibilita reencontrar ou ressaltar uma fé mística, que conduz ao mistério de Deus e que, por isso, não tem como objetivo último elaborar explicações sobre Deus, mas sim experimentá-lo como Emanuel, Deus conosco em meio às alegrias e dores, conquistas e percalços da vida humana. Descrevendo o tempo em que vivemos, Mendoza-Álvarez afirma:

Para habitar esse espaço, será necessário compreender de maneira adequada o jogo de linguagem próprio da mística, enquanto experiência do umbral do divino, a dos pés nus que acariciam a terra santa, a dos lábios impuros purificados pelo carvão do outro, a das feridas que nada exigem do verdugo, senão que antes lhe oferecem o coração: todas elas metáforas poderosas de Cristo enquanto mistério desse autoultrapassamento cumprido de maneira feliz num momento crucial e definitivo para a humanidade inteira. (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2011, p. 215-216).

Afastar-se de dualismos – todos prejudiciais à vida e a fé em Deus – é o pavimento deste caminho, rumo a uma prática teológica relevante e madura, capaz de (re)unir dogmática e mística, prática teológica e prática devocional-litúrgica, pois ambas são oriundas da mesma experiência de Deus: a experiência mística.

Tal caminho também pode ser percorrido pelas vias da literatura, sobretudo a literatura fantástica. O pressuposto para essa relação é a percepção de que a literatura é uma forma não-teórica de teologia (BARCELLOS, 2010, p. 23).

Veremos, a seguir, como é possível relacionar mística e literatura fantástica a partir da análise de algumas obras do escritor irlandês C. S. Lewis. Antes, contudo, é importante ressaltar alguns aspectos centrais à mística cristã e à literatura fantástica, para então identificá-los na narrativa de Lewis.

Mística cristã como caminho da maturidade teológica

O termo “mística” não é uma criação do cristianismo; ao contrário, “nasce em contexto não cristão” (PEDROSA-PÁDUA, 2003, p. 347). Lida em sua perspectiva mais latente, a experiência mística revela a insuficiência das palavras para descrever o encontro com o Sagrado nas diversas tradições religiosas, ao mesmo tempo que constitui um percurso para se alcançar a maturidade na reflexão teológica.

Em termos gerais, a experiência mística pode ser compreendida como a experiência fruitiva, interior e imediata da união do fundo do sujeito com o todo, o universo, o absoluto, o divino, Deus ou o Espírito. Esta experiência é realizada de maneira consciente, mesmo que transborde os esquemas da consciência que regem a experiência ordinária, e provoca na pessoa profunda alteração. (PEDROSA-PÁDUA, 2003, p. 345).

Porque o ser humano possui uma dimensão antropológica voltada ao Mistério que, obviamente, não pode ser acessado de forma absoluta, a experiência mística revela-se fundamentalmente necessária para a percepção das experiências religiosas. Esta “tendência ao mistério é traço fundamental da existência humana, e não apêndice alternativo, próprio dos retardatários pré-científicos.” (HAUGHT, 2009, p. 42).

Faz parte da natureza humana essa inquietude diante da vida, essa busca pela plenitude do ser como resposta à revelação divina. Em formas variadas, as religiões manifestam esse desejo humano pela transcendência. A abertura a esse mistério, horizonte antecipado que fascina o ser humano, é, ao mesmo tempo, reveladora da insuficiência do mundo cotidiano, descortinado como realidade parcial, e geradora de sentido para a existência, que se revela inclusive na criação de “mundos alternativos, sob a forma quer de contos de fadas, quer de utopias, quer de escatologias.” (HAUGHT, 2009, p. 47-48). Em outras palavras, há no ser humano uma inquietação que o leva a assumir um ímpeto visionário que “pode estar ligado ao fato de que, em alguma instância de nosso ser e de nossa consciência, já fomos tomados por infinito mistério” (HAUGHT, 2009, p. 48). Daí a maneira tão poeticamente correta de Santo Agostinho dirigir-se a Deus em suas Confissões: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” (AGOSTINHO, 2004, p. 15). Por isso, podemos afirmar que a experiência de fé não é irracional, mas certamente não cabe nos limites pautados pelo cartesianismo de uma racionalidade fechada ao Mistério.

A experiência que vive o místico cristão é de encontro com uma realidade mais real que aquela que o cerca e que é percebida pelos sentidos. É uma realidade mais surpreendente e encantadora que revela a inesgotabilidade da existência somente naquilo que se percebe com os sentidos. Em outras palavras, o místico é aquele que sabe que “o mundo visível não esgota a realidade” (VELASCO, 1999, p. 297), e que experimenta uma “espécie de rompimento e ruptura do mundo inteiro; a vivência de algo inteiramente novo: luz ou fogo, ardor de amor, ou ‘nada’ ou um ‘tu’” (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 101).

Trata-se, portanto, de um encontro com Algo que é “mais real do que a cadeira em que está sentado o místico, mais real do que tudo o que este considera realidade” (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 102). Encontro que despedaça toda e qualquer imagem representativa de Deus, por mais importante e significativa que esta seja, pois é encontro com outra realidade que supera, mas não nega, aquela em que se vivencia a experiência. Em certo sentido, portanto, a mística é profundamente iconoclasta.

Ao devolvermos à teologia a capacidade de nomear o inominável, de expressar, ainda que de forma titubeante, o encontro real com o Sagrado (sem que esta nomeação seja elevada à condição de um ídolo e sem que se perca a sua dimensão de transitoriedade), encontramo-nos no caminho da maturidade teológica. Por isso, a mística cristã constitui um caminho para um reencantamento do universo e para o desenvolvimento da própria maturidade como homens e mulheres plenamente humanizados. Neste caminho encontram-se a abertura a Deus e ao mundo, simultaneamente presentes e harmonicamente integrados.

Além disso, a experiência mística cristã ressalta o caráter de uma relação sensorial que é a relação com Deus. Na linguagem do salmista, somos chamados a provar e ver que o Senhor é bom (cf. Sl 34.8). A ênfase desse texto recai nem tanto sobre as doutrinas corretas sobre o Senhor, mas antes sobre o espaço dialogal de um encontro pessoal. Na ótica do salmista, Deus não é objeto para ser analisado exegeticamente, nem discurso sistematizado em catedrais dogmáticas, e muito menos texto para ser decorado nas reuniões litúrgicas. Deus é saboreado, tal qual se prova um fruto. A experiência de Deus é, assim, e antes de tudo, encontro com a vida inteira, com a beleza que seduz.

A Literatura Fantástica como lócus teológico e místico

Antes de estabelecermos essa relação, aparentemente tão estranha, entre a experiência mística cristã e a literatura fantástica, é preciso definir esta última. Não se trata de tarefa fácil. Os muitos autores que se debruçaram sobre o tema não encontraram um conceito unívoco sobre o termo. Na verdade, a natureza da literatura fantástica rejeita tal discurso monolítico; o fantástico – assim com a experiência mística – não cabe plenamente na linguagem humana.

Em virtude da proximidade entre gêneros distintos, como a narrativa fantástica, o romance gótico e o realismo mágico (CAMARANI, 2014, p. 7), definir categoricamente a Literatura Fantástica – e com isso, estabelecer seus contornos exatos – constitui empreitada bastante complexa. Como afirma Camarani, num estudo a respeito:

[...] apesar do grande número de estudos teóricos, alguns bastante recentes, há certa flutuação no que se considera como narrativa fantástica no sentido estrito do termo, isto é, uma modalidade literária muito bem definida. Essa oscilação pode ser explicada pelos traços comuns existentes entre o romance gótico, a narrativa fantástica e o realismo mágico, uma vez que essas três modalidades exigem, em sua construção, duas configurações discursivas diversas: a realista e a não realista, na qual o sobrenatural ou insólito se manifesta. Contribui para dificultar essas distinções a questão do desenvolvimento do fantástico a partir do século XX, indicado como fantástico atual, contemporâneo ou neofantástico (CAMARANI, 2014, p. 7).

Não é apenas Camarani que reconhece tal dificuldade na definição da Literatura Fantástica. Em seu O Fictício e o Imaginário, Wolfgang Iser afirma:

Se o discurso fundante provoca o caráter de evento da fantasia, reflete-se aqui a incontrolabilidade própria à fantasia e a consequente dificuldade em defini-la. Confinar a fantasia a contextos, quaisquer que sejam seus fins, significa em primeiro lugar servir-se dela, e muitas vezes os fins são confundidos com a definição. (ISER, 2014, p. 13).

Interessante perceber que esse risco descrito acima é muito semelhante ao risco do aprisionamento da própria experiência teológica, quando suas formas de expressão são confundidas com a experiência em si.

É de Charles Nodier (1780-1844) a prerrogativa de desbravar as teorizações sobre o tema do fantástico na literatura (cf. CAMARANI, 2014, p. 13). Para Nodier, o desenvolvimento da literatura fantástica deu-se em três etapas: a primeira refere-se à poesia, por meio da qual eram apresentadas as sensações experimentadas pelo ser humano em contato com o mundo. Tratava-se de descrever e representar o mundo material “por meio das sensações que despertavam nos espectadores.” (CAMARANI, 2014, p. 14). Num segundo momento, o foco poético volta-se ao desconhecido, e o ser humano pela poesia aprofunda as leis ocultas da sociedade, estudando as fontes secretas da organização universal e, escutando “no silêncio da noite a maravilhosa harmonia das esferas, inventou as ciências contemplativas e as religiões.” (NODIER apud CAMARANI, 2014, p. 14).

O terceiro foco, enfim, é o que Nodier chama de invenção da mentira, uma “região ideal, menos imponente, mas não menos rica em seduções” (NODIER apud CAMARANI, 2014, p. 14), cuja existência fornece à literatura fantástica um elemento divino-imaginativo. Para Nodier, aliás, a literatura fantástica constituiu uma resposta aos anseios humanos por sensações e experiências que ultrapassassem os limites do racionalismo então presente na Europa e alimentado pela Revolução Francesa. Esgotado pela aridez de um racionalismo incapaz de fornecer respostas profundas sobre o sentido da vida, o ser humano necessita de algo que o faça transpor fronteiras, indo ao encontro de fenômenos que não pode conhecer completamente. Sem negar a razão, a literatura fantástica amplia os espaços criativos do ser humano, ressaltando esse elemento do indizível e do fantástico.

A literatura fantástica “se deleita em apresentar homens como nós, situados subitamente na presença do inexplicável, mas em nosso mundo real”; ela se “nutre dos conflitos entre o real e o possível.” (VAX, 1965, p. 6). Por isso, o fantástico não é escapismo ou fuga da realidade. Antes, “o fantástico deve aparecer ligado à representação do real, pois é justamente o desequilíbrio ou a perturbação das leis reconhecidas que determina essa modalidade literária. Daí o real ser imprescindível para a compreensão do fantástico.” (CAMARANI, 2014, p. 15). Este real, contudo, não é prisão, mas ponto de partida para a percepção da estranheza característica da literatura fantástica, que deixa às claras os limites da razão, redimindo-a no processo. Esse elemento insólito, estranho, quando inserido na vida cotidiana, gera o fantástico. Nas palavras de Roger Caillois:

O fantástico manifesta um escândalo, uma laceração, uma irrupção insólita, quase insuportável, no mundo da realidade (...) O fantástico é, assim, ruptura da ordem reconhecida, irrupção do inadmissível dentro da inalterável legalidade cotidiana, e não substituição total de um universo real por um exclusivamente fantasioso. (CAILLOIS apud CESERANI, 2006, p. 47).

Na lógica ordeira das estruturas cognitivas bem estabelecidas, o fantástico é o elemento misterioso, intruso que, no entanto, é bem-vindo pois ajuda a revelar outras dimensões da vida, fora do alcance da mera racionalização. Vale ressaltar, da definição anterior, a interconectividade entre os dois universos – o real e o fantasioso. Não são outros que não seres humanos concretos, históricos, culturalmente condicionados e por meio de sua razão que imaginam novos e fantásticos mundos. Por isso, a fantasia inventiva não requer a destruição da realidade percebida pelos sentidos e nem impede que esses mundos tão diferentes entrem em contato. Antes, a fantasia enriquece a realidade com novos matizes que geram novos sentidos para percebê-la. Olhos e ouvidos tocados pela imaginação fantástica não só enxergam e ouvem melhor, mas são capazes de perceber tons novos e abundantemente frutíferos para a elaboração de um mundo mais humano.

Esse (re)encantamento do mundo é apresentado pela literatura fantástica como uma espécie de oposição participante entre a “existência da ordem do sobrenatural que se opõe à do real” (CAMARANI, 2014, p. 31). Como afirmamos, longe de descaracterizar o real, tornando-o nulo em comparação com o fantástico que se revela, esse reencantamento reestrutura o mundo, dando-lhe riqueza de conteúdo e significado.

O fantástico se “enraíza na banalidade do dia a dia” (CAMARANI, 2014, p. 49). Para Vax, “o fantástico começa a insinuar-se dissimuladamente em um universo cotidiano e termina por transformá-lo completamente.” (VAX apud CAMARANI, 2014, p. 49). É dessa transformação que advém um dos valores da literatura fantástica; esta não propõe fuga do mundo, mas subversão daquilo que é absolutizado como verdade a respeito desse mundo. Em termos religiosos, poderíamos dizer que a literatura fantástica ajuda a rejeitar a absolutização de uma suposta Verdade-Doutrina, tida como unívoca. Num universo aberto ao estranho e ao fantástico não há espaço para propostas que, embora sendo historicamente construídas, sejam consideradas definitivas e absolutas em si mesmas por indivíduos ou grupos que as promulgam.

No fantástico [...] o sobrenatural aparece como uma ruptura da coerência universal; o prodígio torna-se uma agressão interdita, ameaçadora, que quebra a estabilidade de um mundo cujas leis eram, até então, tidas como rigorosas e imutáveis. É o impossível chegando de improviso em um mundo do qual foi banido por definição. (CAMARANI, 2014, p. 55).

O fantástico gera escândalo diante da quebra da normatividade, tida como fixa em suas doutrinas. Trata-se de algo que transmite “de maneira forte e original experiências inquietantes à mente do leitor.” (CESERANI, 2006, p. 12). São justamente essas experiências inquietantes, da qual fala Ceserani, o ponto focal pelo qual podemos compreender o fantástico como uma forma de expressão de uma experiência mística. Pois, as narrativas relacionadas ao fantástico são profundamente envolventes; “tiram o chão” do leitor, inserindo-o num mundo novo, no qual o cotidiano é confrontado – tanto na tranquilidade do país das fadas como no medo que o desconhecido-fantástico traz consigo – por elementos repletos de mistério e assombro. Tais narrativas trazem ao âmbito do cotidiano, marcado pelos relacionamentos interpessoais, pelo trabalho, pelo estudo, pelos prazeres, pelas dores, pelas vitórias e derrotas, enfim, o mundo do dia-a-dia, elementos de surpresa, admiração, terror ou alegria que não são facilmente assimilados e que devolvem à vida o senso de assombro e mistério.

Portanto, com o termo “fantástico” não nos referimos ao elemento apenas interessante, presente em narrativas literárias, mas sim àquilo que abala as estruturas racionais e lógicas da vida humana, superandoas, mas não as suprimindo. Esta invasão de algo absolutamente novo no cotidiano humano, trazido pela literatura fantástica, a faz aproximar-se da própria experiência mística cristã.

À luz de tudo que vimos até aqui, podemos afirmar que as características do fantástico na literatura podem ser relacionadas e até identificadas com a experiência mística cristã. Essa relação não é estranha a autores que estudam o tema. A característica da literatura fantástica é a “irrupção do anormal em um mundo aparentemente normal, não para demonstrar a evidência do sobrenatural, e sim para postular a possível anormalidade da realidade, para revelar que o mundo não funciona como se acreditava.” (CAMARANI, 2014, p. 174). Esse “mundo que não funciona como se acreditava” constitui uma maneira de expressar o maravilhamento diante do Real, sempre maior que a realidade percebida pelos sentidos.

Ora, nesse sentido, há uma íntima relação entre o fantástico na literatura e a experiência mística cristã, pois esta também reconhece uma dimensão inefável no exercício da fé. O “totalmente Outro” do Sagrado, conforme definido por R. Otto (OTTO, 2010, p. 40-41), traz ao mundo racional esse elemento desagregador, espantoso e até temível. “Deus está nesse lugar e eu não sabia! Quão temível é este lugar!” (Gn 28.17); “Tira as sandálias dos teus pés pois o lugar em que pisas é terra santa!” (Êx 3.5); “Afasta-te de mim pois sou pecador!” (Lc 5.8); “Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28), são todos exemplos de expressões delineadoras da dimensão do fantástico percebido pelos sentidos e reconfigurado pela imaginação. Há inquietude em nosso coração enquanto não nos encontramos com Deus e repousamos nele, como bem afirmou Santo Agostinho; mas esse encontro é permeado pelo assombro e maravilhamento – pelo fantástico – de se estar na presença do Deus Eterno, Trindade de Amor, Senhor Santíssimo.

A partir desse tema, podem ser discutidas as fronteiras entre o real e o estranho que o invade repentinamente, seja na literatura fantástica, seja na experiência mística. Trata-se, paradoxalmente, de um estranho familiar, que, na tradição cristã, pode ser descrito como um (re)encontro amoroso, apaixonante e, de certa forma, terrível, entre o Deus-Amante e o ser humano-amado. Nas experiências místicas de Santa Teresa, esse encontro é descrito como a docemente dolorosa experiência de ser ferida pela flecha do amor de Deus.

É tão poderosa essa ação divina, que a alma se desfaz em desejos e não sabe o que pedir. Parece-lhe claramente que o seu Deus está com ela. Direis: se o percebe, o que deseja? Por que se aflige? Ou que maior bem quer? Eu não sei. Só sei que a dor parece traspassar-lhe as entranhas como uma flecha. E quando Aquele que a fere arranca a seta, verdadeiramente é como se levasse consigo as entranhas, tal o sentimento de amor experimentado. (6M 2,4).

A inefabilidade da experiência mística cristã se faz acompanhar de sua inconstância: não se pode controlá-la. A dor-amorosa de sentir-se abraçado ou aprisionado em liberdade por Deus, essa “dor deliciosa – que não é dor – não fica sempre no mesmo grau. Às vezes dura muito tempo, de outras acaba depressa, conforme apraz ao Senhor comunicála. Não é coisa que se possa adquirir por meios humanos.” (6M 2,4). Quando finda, permanece o desejo de experimentá-la novamente. Dela, só se pode balbuciar em imagens nunca absolutas, mas plenamente verdadeiras, que tocam o mais profundo do ser. Tais imagens revestemse das mais variadas formas, incluindo música, pintura, escultura, dança, movimento, poesia e, mais especificamente, a literatura fantástica. Obviamente condicionada por seu próprio tempo, a arte “representa a humanidade na medida em que corresponde às ideias e às aspirações, às necessidades e às esperanças de uma determinada situação histórica” (FISCHER, 1987, p. 15). Assim, a arte fala profundamente ao ser humano justamente por seu vínculo com a vida. Ainda assim, ela se revela capaz de ultrapassar o cotidiano, apontando novas percepções de mundo (e novos mundos!) até então desconhecidos. “A arte supera essa limitação [histórica]”, continua Ernst Fischer, “e, no seu momento histórico, cria também um momento de humanidade, uma promessa de constante desenvolvimento.” (FISCHER, 1987, p. 15). Ainda sobre o tema, vale ressaltar:

[...] a ficção fantástica fabrica outro mundo com outras palavras que não são de nosso mundo, que pertencem ao un-heimlich (estranho, inquietante); mas, por um justo retorno das coisas, esse outro mundo não poderia existir em outro lugar: ele está aqui, oculto e inefável e é tão heimlich (familiar) que não é reconhecido como tal. A leitura do fantástico e a revelação de seus procedimentos mostram a pertinência do que afirmava Freud: o fantástico é o íntimo que vem à tona e que perturba. Nas palavras de Bellemin-Noël, o fantástico finge jogar o jogo da verossimilhança para que se adira à sua fantasticidade, enquanto manipula o falso verossímil para fazer aceitar o que é o mais verídico, o inconcebível e inaudível. (CAMARANI, 2014, p. 84).

A mística cristã é capaz de superar esses paradoxos, na medida em que afirma a integralidade da criação gerada por Deus. Por tudo isso, não é tão simples, como se pode pensar a partir de uma ótica racionalista, delimitar o real do fantástico como se “o limite entre os dois campos conceituais fosse óbvio e as ‘fronteiras do real’ se mostrassem definitivas” (CAMARANI, 2014, p. 146). Ao contrário, “hoje, não se pode mais acreditar numa realidade imutável, externa, nem em uma literatura que não fosse senão a transcrição dessa realidade.” (TODOROV, 2010, p. 176). Assim, “o fantástico literário começa a desenvolver-se em uma época marcada pela ideia de um universo estável ordenado por leis fixas e imutáveis; nesse sentido, o fantástico define-se pela transgressão a essas regra.” (CAMARANI, 2014, p. 166), como algo que desestabiliza a segurança da realidade conforme percebida pelos sentidos.

De igual forma, a experiência mística cristã também percorre caminhos semelhantes. A experiência mística cristã representa uma “espécie de rompimento e ruptura do mundo inteiro; a vivência de algo inteiramente novo: luz ou fogo, ardor de amor, ou ‘nada’ ou um ‘tu’” (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 101). Ora, esse rompimento, essa irrupção do fantástico divino no mundo humano, essa intrusão bem-vinda do insólito que causa espanto, temor, reverência e admiração por sua novidade inigualável, são também ressaltados pela literatura fantástica. Ressaltamos: a fantasia desse gênero literário não gera escapismo ou alienação e nem anestesia seus leitores em relação ao mundo sensível. Ao contrário, sua principal característica é fornecer a esse mundo, percebido pelos sentidos, camadas novas de maior profundidade.

Por isso, na fé cristã, a experiência mística e o fantástico, presente nas literaturas que buscam descrevê-la, se inter-relacionam mutuamente. De certa forma, tal relação deixa transparecer a própria união hipostática presente em Jesus de Nazaré, traço essencial da teologia cristã, a saber: o fato de que a humanidade de Jesus deve ser entendida plenamente, de que Jesus “é verdadeiramente homem com tudo o que isto comporta, com sua finitude, mundanidade, materialidade e com a sua participação na história deste nosso cosmo na dimensão do espírito e da liberdade, na história que atravessa a porta estreita da morte.” (RAHNER, 2008, p. 237). Nesse sentido, Jesus

[...] não pode ser simplesmente o próprio Deus agindo no mundo, mas precisa ser parcela do mundo, momento em sua história e precisamente em seu clímax. É isso que se afirma no dogma cristológico: Jesus é verdadeiramente homem, verdadeiramente parcela da terra, verdadeiramente momento no devir biológico deste mundo, momento da história natural humana, pois “ele nasceu de uma mulher” (Gl 4,4). [...] Não se pode entender o Deus-homem como se Deus ou o seu Logos houvesse se disfarçado de certa forma para fins de seu agir salvífico, com o fito de poder emitir sua voz aqui dentro do nosso mundo para nós. (RAHNER, 2008, p. 237).

Pelo contrário: Deus em Cristo não é estranho à nossa humanidade. Porque está presente tanto na criação como na redenção – pois tudo foi criado nele, por ele e para ele (cf. Cl 1.15-17) –, o Deus-Homem Jesus resignifica todo o cosmo, integrando realidades terrenas e celestes (diríamos realidades ordinárias e fantásticas) numa mesma unidade, indivisível. “Em Jesus”, prossegue Rahner, “o Logos porta o elemento material da mesma forma como porta uma alma espiritual, e este elemento material é parte da realidade e história do cosmos, parte que jamais se poderá pensar como que arrancada de sua unidade com o mundo.” (RAHNER, 2008, p. 236). Ora, isso implica em enxergar o mundo criado como vinculado ao próprio Deus, que o sustenta e anima com seu fôlego de vida. Implica também em reconhecer na produção cultural humana a força subcriadora que cria novos mundos e plenifica nossa realidade por meio da magia da literatura fantástica.

Afinal, Deus também não é estranho às histórias fantásticas. Ao contrário, o Deus da fé judaico-cristã é Aquele que imaginou o universo como espaço “muito bom” para a habitação humana, conforme o relato do Gênesis. Nesse sentido, importa recuperar uma imagem divina bastante presente no texto bíblico: Deus como o grande contador de histórias, o Criador que fornece sentido e narratividade à vida humana, simbolizadas pelo seu fôlego de vida soprado sobre o ser humano (cf. Gn 2.7). “Deus não permanece nele mesmo”, afirma Gesché; “o último segredo da revelação e da Encarnação é que o próprio ser de Deus é aí comunicado a nós” (GESCHÉ, 2005, p. 100). A Encarnação em si mesma constitui numa afirmação do fantástico divino presente no mundo.

“O que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e o que as nossas mãos apalparam a respeito da Palavra da vida...” (1ª Jo 1.1), afirma a carta joanina usando verbos relacionados ao universo sensível, percebido pelo toque, pela visão e audição. A isso, a carta acrescenta que foi a própria vida eterna que estava com o Pai que se manifestou (1ª Jo 1.2). O Deus que não pode ser esgotado pela linguagem e que ninguém jamais viu manifestou-se em glória e construiu seu tabernáculo entre os seres humanos (Cf. Jo 1.14). Tal ação criadora-salvífica divina representa verdadeira “mundanização” de Deus, expressão que pode causar certo incômodo.

A humanidade de Deus nos incomoda. Isso mesmo: a humanidade de Deus. Coisa que os primeiros cristãos descobriram com espanto. Corrijo-me. Não é que os cristãos, depois de solidamente cristãos, tivessem descoberto a humanidade de Deus como algo mais sobre o que falar, algo que se podia acrescentar às suas ideias teológicas [...] A verdade é o inverso. Foi quando eles entenderam que para falar de Deus é necessário deixar de falar de Deus, e falar sobre um homem, um rosto, uma vida [...] Foi então que eles ficaram cristãos. Deus, para falar de si, tornou-se homem. Fala sobre Deus é fala sobre um homem. A palavra se fez carne. Nosso irmão. Um de nós. Nasceu, viveu, morreu [...] (ALVES, 1982, p. 26).

Mística cristã na Literatura Fantástica de C. S. Lewis

Na obra ficcional de C. S. Lewis, podemos encontrar vários elementos que traduzem os conceitos da mística cristã em imagens fantásticas. Em tais obras, a imaginação – que deve ser bem-vinda! – pode ser considerada essa arte plenamente humana, capaz de relacionar elementos do fantástico, da fé e da teologia cristãs no cotidiano. É o que traduz a experiência mística de encontro íntimo com Deus em linguagem poética, capaz de tocar o mais profundo do ser. Poesia e mística tornamse companheiras na caminhada; ambas são vivenciadas nas dimensões do ser que não cabem na mera racionalização.

Poesia como encarnação da grande imaginação divina e criadora: essa expressão carrega consigo vários elementos que se mostram presentes nos textos de Lewis, tanto ficcionais como os de não ficção. Em sua preleção proferida em 8 de junho de 1941, durante o culto vespertino na Igreja de St. Mary the Virgin, na Universidade de Oxford, Lewis defende a proximidade entre poesia e mitologia, à luz da própria imaginação. “Os poetas e as mitologias conhecem tudo a respeito disso.” (LEWIS, 2017, p. 47), afirma Lewis. E prossegue:

Não desejamos meramente ver a beleza, embora, sabe Deus, mesmo isso já seria uma recompensa e tanto. Queremos algo mais que não pode ser posto em palavras – ser unidos à beleza que vemos, estar nela e recebê-la em nós mesmos, nos banhar nela, nos tornar uma parte dela. É por isso que povoamos o ar, a terra e a água com deuses e deusas, ninfas e elfos – para que, embora não consigamos, ainda assim essas projeções possam apreciar em si mesmas aquela beleza, graça e poder de que a natureza é a imagem. É por isso que os poetas nos contam essas falsificações tão amáveis. Falam como se o vento oeste fosse de fato penetrar uma alma humana; mas não pode. (LEWIS, 2017, p. 47, itálico do autor).

Essa impossibilidade apontada por Lewis, contudo, será derrotada pela força do imaginário presente na própria Escritura, por meio do qual os mitos antigos e a poesia moderna se encontrarão perante a Verdade e nela reconhecerão sua origem. Nesse encontro, a plenitude da vida do próprio Cristo será mais uma vez fornecida, de graça, como amor e alegria líquidos, derramados sobre a corporeidade integral. “É necessário mencionar”, alerta Lewis, “que se abandonem pensamentos ainda mais enganosos – pensamentos de que aquilo que é salvo é um mero fantasma, ou que o corpo ressurreto vive numa espécie de insensibilidade dormente. O corpo foi feito para o Senhor, e essas infelizes ideias erram o alvo por muito.” (LEWIS, 2017, p. 49). Para Lewis, o corpo é morada de Deus porque foi feito por Ele e Nele encontra sua plenitude; no corpo do cristão “Cristo também está vere latitat [verdadeiramente escondido] – o glorificador e o glorificado, o próprio Deus da Glória está verdadeiramente oculto” (LEWIS, 2017, p. 51). Essa valorização do corpo em sua relação com Deus, vale lembrar, é parte integrante da mística cristã.

O que é refletido por Lewis através de sermões é ampliado e concretizado em sua ficção. Na Trilogia Cósmica, por exemplo, composta pelos livros Além do planeta silencioso, Perelandra, e Uma força medonha, Ransom, o protagonista, após ter experiências fantásticas em Perelandra, conclui que toda a mitologia terrestre bem poderia ser realidade palpável em outros mundos, isto é, qualquer divisão entre imaginação, mito e realidade só existiriam num mundo em que se experimentou a Queda (LEWIS, 2011, p. 272-273). Sua experiência nos mundos que visita revela a veracidade dessa perspectiva. Na longa conversa que trava com os Oyarsas de Malacandra e Perelandra (respectivamente, os seres que governam Marte e Vênus), essa inter-relação torna-se evidente: Ranson percebe que “na própria matéria de nosso mundo, os traços da comunidade celeste não estão totalmente perdidos. A memória passa através do ventre e paira no ar. A Musa é verdadeira. Como diz Virgílio, um leve sopro chega até mesmo às gerações mais recentes.” (LEWIS, 2011, p. 273). Dito de outra maneira, o fantástico encarna no mundo e, por isso, as inspirações da Musa são verdadeiras. E porque são verdadeiras, podem apontar para a fonte de todas as inspirações: o próprio Criador que se deixa perceber por meio delas.

Esse imaginário humaniza o ser, pois desenvolve uma das características da humanidade: a capacidade de usar a imaginação – aliás, um dom do Criador – como meio de se enxergar a vida. À luz disso, é possível afirmar que a literatura – incluindo a literatura fantástica – pode ser compreendida como espaço para o cultivo da espiritualidade humana; de fato, os mitos geradores de sentido podem também fazernos defrontar com o fantástico subitamente presente no cotidiano.

  O mito persiste no imaginário dos homens. Quando menos se espera ele surge no meio de um cenário profano, dessacralizado, esterilizado da ideia do absoluto. Instaura-se sutilmente (nem sempre, às vezes, aparece com veemência) nos meandros de nossa cultura e de nossas artes. (TRIGO in: MORAIS, 1988, p. 109).

Para Lewis, a literatura (em especial, a fantástica) também é capaz de levar o(a) leitor(a) a reconhecer a si mesmo e ao outro por meio da narrativa. Mas Lewis vai além disso e considera a literatura fantástica como meio de transposição do próprio mundo, como ponte para uma nova realidade que não rejeita a percebida pelos sentidos, mas a amplia, fornecendo a ela plenitude de graça e glória. Aliás, este é o tema de um de seus sermões mais famosos: O peso da glória. Neste, Lewis advoga o que também apresentou em seus textos ficcionais nos quais o tema foi aprofundado pela força da literatura fantástica: a nostalgia que nos invade diante do Real para o qual as belezas que percebemos são meros lembretes ou sinais. Este desejo por algo mais, por uma matéria mais sólida que o chão que nos sustenta, ou por uma luz mais confortadora e doce do que a do Sol; esse querer uma comida mais substancial do que as que podem ser saboreadas por nosso paladar; essa sede excruciante e misteriosamente bem-vinda por uma água que mata verdadeiramente nosso desejo; ou, nas palavras de Lewis, esse “segredo que não conseguimos esconder e sobre o qual não podemos falar, embora desejemos fazer ambas as coisas [...] desejo por algo que de fato nunca apareceu em nossa experiência.” (LEWIS, 2017, p. 35), são todos sinais de que nossa realidade não esgota o Real, antes apenas o relembra.

Os livros ou a música nos quais pensamos que a beleza estava localizada nos trairão, se confiarmos neles; não é isso que estava neles, apenas que veio por meio deles, e aquilo que veio por intermédio deles era apenas um anseio. Essas coisas – a beleza, a recordação de nosso próprio passado – são boas imagens daquilo que realmente desejamos, mas, se forem confundidas com a coisa em si, tornam-se ídolos mudos, partindo o coração de seus adoradores. Elas não são a coisa em si; são apenas a fragrância de uma flor que nunca encontramos, o eco de uma melodia que nunca ouvimos, notícias de um país que nunca visitamos. (LEWIS, 2017, p. 35).

Essa melodia secreta e paradoxalmente familiar se revelará em inteireza na manifestação plena do reino de Deus. Ela, então, ampliará a experiência humana para além das dimensões do tempo e espaço conhecidos. Essa ampliação, contudo, não significará rejeição da criação, mas sim sua redenção. Ou, no dizer de Ernesto Cardenal: “Veremos cara a cara a beleza, não a beleza que transparece através das coisas, mas a beleza em si mesma, diretamente, sem os intermediários das coisas. Veremos a beleza e não as coisas belas, veremos sem véus, simplesmente veremos.” (CARDENAL, 1979, p. 114). Cumpre-se aqui o texto paulino: “No presente, vemos por um espelho e obscuramente; então veremos face a face. No presente, conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido.” (1ª Co 13.12). O “conhecer em parte” e o “ver por meio de um espelho” representam, na perspectiva lewisiana, o contato com o Real que chega até nós nas mediações culturais da Arte e, especialmente, da literatura fantástica. Lewis percebeu que uma boa história “cativa a imaginação. Pode sorrateiramente passar pelos ‘dragões vigilantes’ do racionalismo dogmático’” (McGRATH, 2014, p. 69), é capaz de ultrapassar fronteiras de fé e espiritualidade as quais nem sempre a teologia sistemática se aventura a ir.

Na literatura fantástica de Lewis, esse dado surge em diversas passagens de muitos de seus livros. Em A cadeira de prata, uma das Crônicas de Nárnia, as crianças Eustáquio e Jill, o príncipe Rilian e o Paulama Brejeiro, um dos mais interessantes personagens das Crônicas, são feitos prisioneiros pela Feiticeira Verde, no mundo subterrâneo. Por meio de um encantamento, a Feiticeira quer levá-los a rejeitar a existência de um mundo além dos subterrâneos, alegando que toda experiência com o Mundo Real e com o próprio Leão Aslam, que representa Cristo na história, não passa de ilusão.

Acho que o leão de vocês vale tanto quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaram imaginando uma lâmpada maior e melhor, a que deram o nome de sol. Viram gatos, e agora querem um gato maior e melhor, chamado leão. É puro faz-de-conta, mas, francamente, já estão meio crescidos demais para isso. Já repararam que esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do meu mundo, que é o único mundo? Já estão grandes demais para isso, jovens. (LEWIS, 2009, p. 598).

O encantamento cessa graças ao ato heroico de Brejeiro ao colocar seu pé no meio da lareira ardente, pois, “não há nada como um impacto doloroso para desfazer certas espécies de magia” (LEWIS, 2009, p. 598). Ao mesmo tempo, ele apresenta uma belíssima defesa da fé em Aslam:

Uma palavrinha, dona – disse ele, mancando de dor –, uma palavrinha: tudo o que disse é verdade [...] Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo – árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo. Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja Aslam. Quero viver como um narniano, mesmo que Nárnia não exista. (LEWIS, 2009, p. 598-599)
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Para Lewis, a força da literatura fantástica é sua capacidade de romper os limites impostos por uma visão de mundo deficiente e fechada em si mesma. Esse ultrapassar fronteiras também é proposto pela experiência mística cristã. Mas isso não cria um novo dualismo que ressaltaria a dimensão espiritual em detrimento da sensorial. Ao contrário, a mística cristã e a literatura fantástica, especialmente a maneira como Lewis a compreende, propõem uma integração verdadeira, uma interpenetração que compreende todas as coisas em sua relação com Deus. “Os fenômenos intermediados ‘diretamente’ e os processos lógicos de mundo e ser humano, até mesmo o dogma e a Bíblia, são entendidos em sua referência interna a Deus.” (SUDBRACK, 2007, p. 108). Por isso, continua Sudbrack, “toda experiência de mundo pode se abrir à sua fundamentação em Deus” (SUDBRACK, 2007, p. 108). Obviamente, isso inclui a experiência obtida pela literatura fantástica.

Então, a mística é sobretudo a transformação disso em experiência: é “viver na presença de Deus”, “encontrar Deus em todas as coisas”. O que na reflexão quer dizer “comprovação de Deus” é essa experiência “mística” numa profundidade vivenciada. Na condição direta dos encontros pessoais trata-se na verdade de Deus, intermediado pelo mundo “material”; trata-se de Deus como origem, motivo e objetivo de tudo. (SUDBRACK, 2007, p. 109).

Tal visão integradora da existência é capaz de enxergar a beleza no mundo e valorizá-la pelo fruir da própria experiência de encontro com ela, ao mesmo tempo em que a percebe como reflexo verdadeiro do Real ainda inatingido. Essa postura não desmerece as coisas criadas, antes as eleva em sua condição de criação divina. Toda a criação é incluída, nada fica de fora. Assim como um pintor deixa a marca de sua presença nos quadros que cria – de tal maneira que estudar seus quadros possibilita conhecê-lo – as coisas criadas, quando lidas pela lente da mística cristã e da literatura fantástica, ressaltam o caráter gracioso de Deus.

Para Lewis, ver a beleza não é suficiente; nosso desejo vai além, buscando união íntima com ela, beber de suas fontes, “nos tornar parte dela” (LEWIS, 2017, p. 47). A produção imaginativa da literatura fantástica com seus mundos (im)possíveis é, para Lewis, o sinal de nosso anseio por um lugar ao qual pertencemos verdadeiramente. O anseio do ratoespadachim Ripchip pelo País de Aslam, em A viagem do Peregrino da Alvorada (uma das Crônicas de Nárnia) ilustra esse fato: sua sede por esse lugar só é saciada quando ele é convidado por Aslam a visitar e permanecer em seu mundo. Sua busca pelo país de Aslam é ressaltada pela passagem a seguir:

Por que acha Vossa Majestade que devo falar? – respondeu o rato, numa voz que quase todos ouviram – Os meus planos estão traçados. Enquanto puder, navegarei para o oriente no Peregrino. Quando o perder, remarei no meu bote. Quando o bote for ao fundo, nadarei com as minhas patas. E, quando não puder nadar mais, se ainda não tiver chegado ao país de Aslam, ou atingido a extremidade do mundo, afundarei com o nariz voltado para o leste, e outro será o líder dos ratos falantes de Nárnia. (LEWIS, 2009, p. 499-500).

Este anseio pelo país de Aslam encontra seu paralelo no anseio que místicos cristãos têm por Deus. Nesse sentido, felicidade – isto é, possuir um sentido para a própria existência, que garante significado tanto no agora quanto na eternidade – é encontrar a Deus, pois “Deus não pode dar-nos uma felicidade e uma paz independentes dEle, simplesmente porque não existem.” (LEWIS, 1997, p. 60). No último livro da série – A última batalha – este anseio é plenamente satisfeito quando os personagens alcançam a Terra de Aslam, a verdadeira Nárnia, da qual a antiga era apenas uma sombra:

Os campos da nova Nárnia eram muitos mais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinha de grama parecia ter um significado ainda maior. Não há como descrevê-la: se algum dia você chegar lá, então compreenderá o que quero dizer. Foi o unicórnio quem resumiu o que todos estavam sentindo. Cravou a pata dianteira no chão, relinchando, e depois exclamou:   Finalmente voltei para casa! Este, sim, é o meu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar! É esta a terra pela qual tenho aspirado a vida inteira, embora até agora não a conhecesse. (LEWIS, 2009, p. 730).

Isso não despreza nossa realidade – o universo percebido pelos sentidos não é uma fraude! – mas demonstra que nossos sentidos e razão são insuficientes para dar conta do Real que deseja revelar-se a nós. Segundo Lewis, é preciso ao mesmo tempo “não desprezar essas bênçãos terrenas nem mostrar-me desagradecido por elas” (LEWIS, 1997, p. 140), mas de igual forma é necessário não confundi-las “com esses outros bens dos quais são apenas uma espécie de cópia, de eco ou de miragem” (LEWIS, 1997, p. 140). A imagem verdadeira encontrase muito além da possibilidade de definição pela palavra. Esta não é capaz de enquadrar essa “imagem viva”, da qual fala Santa Teresa.

Quando Nosso Senhor é servido de favorecer com maior ternura a esta alma, mostra-lhe claramente sua sacratíssima humanidade, sob a aparência que julga melhor: ou como no tempo em que andava no mundo, ou depois de ressuscitado. E conquanto seja com a rapidez de um relâmpago, essa imagem gloriosíssima fica-lhe profundamente impressa na imaginação. De tal forma, que tenho por impossível apagar-se, até o dia em que a veja no lugar onde poderia regozijar-se eternamente com ela. Embora eu diga imagem, entenda-se que não é como uma pintura. Para quem a vê, é verdadeiramente viva. Às vezes fala com a alma. Às vezes lhe revela segredos sublimes. Ainda quando dura algum tempo, esta visão é sempre rapidíssima. É impossível fixar nela a vista mais tempo do que se pode fixar no sol. [...] Quase todas as vezes que Deus faz esta graça, a alma fica em arroubamento. Sua fraqueza não suporta espetáculo tão espantoso. Digo espantoso, porque é uma presença de tão grande majestade, que infunde temor e espanto. Excede muitíssimo tudo quanto uma pessoa poderia imaginar de mais belo e deleitável, ainda que vivesse mil anos ocupada em pensá-lo. (6M 9,35).

Vale lembrar aqui da descrição que Lewis faz da realidade celeste, em O grande abismo: “Eu tinha a sensação de estar num espaço maior, talvez até um tipo de espaço maior que qualquer outro que eu já tivesse visto: era como se o céu estivesse muito mais distante e a amplidão verdade da planície fosse mais vasta do que a capacidade deste pequeno globo terrestre” (LEWIS, 2006, p. 38), afirma Lewis no papel de protagonista de sua história. E prossegue, expressando sua incapacidade de descrever o que vivencia:

  Eu havia “saído”, num certo sentido que fazia o próprio Sistema Solar parecer algo interno. Aquilo me dava uma sensação de liberdade, mas também de exposição, talvez de perigo, que continuou a me acompanhar durante tudo o que seguiu. É a impossibilidade de comunicar essa sensação, ou mesmo de fazer você mantê-la na memória enquanto prossigo, que me faz perder todas as esperanças de transmitir o verdadeiro sentido do que vi e ouvi. (LEWIS, 2006, p. 38).

Tanto as narrativas lewisianas, como a descrição que Santa Teresa faz de suas experiências místicas com Deus, demonstram, por um lado, a insuficiência da linguagem em apresentar e dar conta da plenitude de tais experiências, e, por outro, a validade das tentativas em descrevêlas. Uma e outra ressaltam o aspecto mistagógico que deve caracterizar o discurso teológico e também o aspecto reflexivo e dogmático que deve estar presente na prática teológica da Igreja. Um não anula o outro. Se a linguagem é incapaz de descrever a experiência em totalidade, isso não desqualifica a linguagem e não devemos menosprezá-la em nosso labor teológico. Por outro lado, se a experiência mística cristã é superior a qualquer doutrina ou dogmatização, então deve-se superar a rigidez doutrinária que, cedo ou tarde, tragicamente se mostrará impermeável à ação de Deus e ao sopro de sua Ruah.

Conclusão

Na obra de Lewis, a experiência mística da realidade celeste – do Real em si mesmo – não é tratada como algo separada da vida terrena, como se aquela suplantasse e rejeitasse esta. Ao contrário, ambas as perspectivas estão harmoniosamente integradas. Os que vivenciam tal experiência mística desenvolvem novos olhares sobre a vida, lida de forma mais integradora. Nisso tudo, transparece um dado importantíssimo para a prática teológica hoje: reconhecer que muito mais que gerar apologias de Deus, delimitando-o em múltiplos sistemas teológicos, somos vocacionados a gozar de sua presença em nós; somos, afinal, morada do Espírito de Deus, não bibliotecas ambulantes de doutrinações sistemáticas a respeito Dele. Pois, como diz o salmista, Deus não é doutrina a ser decorada, mas fruto a ser saboreado (cf. Sl 34.8).

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