A Cidade Fictiva e a Lisboa Mística de José Rodrigues Miguéis
The Fictive City and a Mistical Lisbon of José Rodrigues Miguéis

Paula Vera-Bustamante*
*Doutorado em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo- USP. E-mail: paulinhavera@yahoo.com
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Resumo
A cidade fictiva nasce da criação estética literária. Um de seus paradigmas é a cidade mística ou cidade da redenção, caracterizada pelo vínculo com as cidades sagradas (a cosmópolis) e, portanto, possui um elo determinante com a divindade e com o mito de Sophia e da Nova Jerusalém, retratados no Apocalipse de São João como uma iniciação do ser, segundo o gnosticismo de Jung e a antroposofia de Steiner. Outro de seus paradigmas é a tecnópolis, uma cidade profana que escraviza os homens com base no ter, na individualidade e nos avanços tecnológicos, criando um crescimento desmedido da urbe e profundas injustiças sociais, que aniquilam o princípio do bem comum dos primórdios. O escritor português José Rodrigues Miguéis, ciente dessa oposição entre uma Lisboa tecnocrata e uma Lisboa mística, aborda em seu conto “A bota” a possibilidade da restauração do bem-estar perdido. Nele, o protagonista Joaquim vive um processo de autognose, ao lograr se contemplar e contemplar Lisboa para superar a perda da namorada, que o abandonara na noite de Natal, devido à sua falta de dinheiro. Assim, a cidade fictiva se transforma em uma experiência cognitiva que leva à consciência do ser e da cidade em que habita.

Palavras chave:Cidade Fictiva – Cidade Mística – Tecnópolis – José Rodrigues Miguéis – Literatura Portuguesa

 

Abstract
The fictive city is born of the literary aesthetic creation. One of its paradigms is the mystical city, or city of redemption, characterized by its bond with the sacred cities (cosmopolis). It has, therefore, a determinant link with the divinity and the myth of Sophia and New Jerusalem, wich are depicted in the Apocalypse of St. John as an initiation of being, according to Jung’s Gnosticism and Steiner’s Anthroposophy. Another of its paradigms is the technopolis, a profane city that enslaves its inhabitants based on having, on individuality and on technological advances, creating an excessive growth of the urbs and deep social injustices, which annihilate the principle of the common good of the beginnings. The Portuguese writer José Rodrigues Miguéis, aware of this opposition between a technocratic Lisbon and a mystical Lisbon, addresses in “The Boot” the possibility of restoring the lost welfare. In this short story, the protagonist Joaquim undergoes a process of autognosis when he can contemplate himself and contemplate Lisbon to overcome the loss of his girlfriend, who had abandoned him on Christmas Eve. Thus, the fictive city becomes a cognitive experience that leads to the consciousness of the being and the city in wich it lives.

Keywords:Fictive City – Mistical City – Tecnopolis – José Rodrigues Miguéis – Portuguese Literature

Introdução

Meu interesse pelo estudo da cidade na literatura remonta ao ensino médio, no início da década de 1990, quando tive um curso epifânico sobre “enxergar a cidade de Santiago”, que nos levou pelas ruas e cités (cortiços) da capital do Chile mostrando o contraste entre as construções antigas, o que restava delas, e as modernas. O novo olhar sobre suas edificações do começo do século XX, suas fachadas de antigos palacetes que evidenciavam um esplendor já perdido, revelou-nos um mundo novo, era a descoberta da cidade antiga na época contemporânea. Essa convivência entre o passado e o presente mostrou que a cidade vai contando sua própria história, e isso me incentivou para aprofundar no entendimento de como as cidades nascem e se transformam, e especialmente no estudo dessa simbiose única entre a História e a Literatura.

Essa viagem reveladora me fez atualizar as imagens que gravei na memória sobre uma Santiago precária e periférica descrita no romance chileno de 1920 “El Roto”, de Joaquín Edwards Bello. Era o universo dos cités, dos proletários, dos prostíbulos e da pobreza, causada pelo fim do ouro branco do Chile, o salitre. Ao relacionar a imagem real dos cités, que ainda persistiam na década de 1990, com as imagens do romance de Edwards Bello, pude ver o estreito vínculo entre a cidade real e a cidade da obra literária, o que desencadeou meu desejo de conhecer como nascem as cidades na literatura.

Assim, o que começou como um curso do ensino médio acabou se transformando, com o tempo, em uma tese de doutorado. Uma pesquisa na qual descobri que há uma cidade que paira entre a realidade e a ficção, está construída no imaginário de um autor e tem como referente a realidade histórica. Ela é o vínculo entre o real e o imaginário, e pode cruzar os limites entre um e outro para poder vir a ser também uma cidade real − é o que denomino cidade fictiva.

Em minha pesquisa, a partir da análise de contos contemporâneos portugueses, chilenos e brasileiros, detectei alguns elementos comuns, que serviram de base para determinar paradigmas de cidade fictiva. Como, por exemplo, a callípolis (a cidade bela e ideal platônica), a necrópole, a mnemópolis (a cidade das reminiscências), a tecnópolis e a cidade-labirinto, entre outras.

Neste artigo, abordo o paradigma do nascimento da cidade como ato cosmogônico, cosmópolis, e o advento de Sophia e da cidade mística, segundo a visão gnóstica de Carl G. Jung e a antroposófica do filósofo austríaco Rudolf Steiner. As principais características da cidade mística serão, finalmente, analisadas no conto “A Bota”, do escritor português José Rodrigues Miguéis.

A cidade fictiva: uma ponte entre o real e o imaginário

A cidade fictiva responde ao fenômeno da construção da cidade na literatura. Pois embora a cidade literária, aquela que se escreve e se lê, seja um referente emprestado da realidade histórica, ela é uma possibilidade de cidade real. Em alguns casos, a cidade é só um mundo possível fantástico, como as cidades narradas por Marco Polo a Kublai Khan em As Cidades Invisíveis. Mas, em outros, pode chegar a ser uma cidade real histórica, superando os limites da ficção, como a labiríntica Cnossos, descoberta no final do século XIX por Minos Kolakairinos e Arthur Evans. Eles demonstraram que existiu efetivamente a Cnossos lendária narrada por Homero na Ilíada, que emergia das ruínas para contar sua própria história (VERA-BUSTAMANTE, 2007, p. 54-55).

O estudo da cidade fictiva está baseado na tríade o real, o fictivo e o imaginário, desenvolvida por Wolfgang Iser, e na Teoria dos Mundos Possíveis.

O fictivo vem da estética (aisthátikos) literária, como consciência ou percepção que se dá em um ato de contemplação do objeto criado, e é também uma experiência cognitiva, como explica Gianni Vattimo (1996, p. 124-127). Mas foi com Iser que se transformou em uma teoria, com seu estudo sobre o real, o fictivo e o imaginário. Para Iser, o fictivo é o ato intencional que cruza a fronteira entre o real e o imaginário; é o elemento mental que dá forma e substância discursiva ao plano imaginário, que é um modo difuso e sem objetos de referência (ISER, 1991, p. 15-21). O fictivo recolhe da realidade histórica seus referentes para construir, no plano imaginário, novas realidades.

É por isso que falamos neste estudo de uma cidade fictiva e não ficcional, pois o adjetivo ficcional designa apenas uma característica do ato de fingir (do latim fingere, ficção), enquanto o fictivo é a ação que transforma a condição difusa do imaginário em uma construção mental articulada (Gestalt), permitindo a criação de mundos. Sendo o nexo ou a ponte entre o real concreto e o real imaginário.1

A cidade fictiva está relacionada com a Teoria dos Mundos Possíveis, pois a linguagem literária tem a capacidade de gerar novas realidades (autopoiesis), isto é, novos mundos possíveis que nascem das referencialidades. Gottfried W. Leibniz foi um dos primeiros filósofos a entender a existência como mundo possível. Na Teodiceia (“Justificação de Deus”), de 1710, explica que o universo, como realidade efetiva, é um dos diferentes mundos possíveis que foi atualizado por Deus; o melhor deles. Ante isso, Tomás Albaladejo (1998, 74-75) indica que a noção de mundos possíveis está na reflexão diária dos homens, para os quais há um mundo real objetivo e mundos alternativos a ele, alguns dos quais poderiam, em determinadas ocasiões, chegar a ser reais, enquanto outros se manteriam na situação de existência mental.

A cidade fictiva: o nascimento da cosmópolis

Refletir sobre a cidade na literatura é fazer uma viagem ao tempo mítico, como explica Mircea Eliade (2001, p. 63-64), ao tempo sagrado em que foram criadas as cidades arcaicas, quando os primeiros homens deixaram de ser nômades por causa delas.

Destaco que o percurso desta viagem não foi feito pela consciência histórica, e sim pela consciência poética da literatura. Pois as cidades arcaicas – como Uruk e Babilônia – foram “narradas” em tábuas cuneiformes junto com os primeiros mitos da humanidade, dando pinceladas de sua realidade histórica, mas recriando, principalmente, sua dimensão mitopoética. Tal como nos textos antigos da civilização assírio-babilônica, a Epopeia de Gilgamesh, o poema da Criação Enuma Elish ou o próprio Antigo Testamento. Assim, as duas cidades, a real e a fictiva, têm coexistido, paralelamente, graças à palavra poética que as espetacularizou nos textos literários e as transmitiu até hoje. (VERA-BUSTAMANTE, 2007, p. 17).

As cidades arcaicas eram concebidas como cidades sagradas, porque existia a crença de que os deuses habitavam nelas. Por isso, a construção de uma cidade arcaica sempre era considerada uma réplica da Criação do Cosmos Primordial.

Eliade explica que a existência se compreendia a partir da noção do sagrado e do profano, isto é, da proximidade ou afastamento da divindade. Assim, podemos entender o sagrado como o modo pelo qual os homens se comunicam com a divindade, enquanto o profano seria a negação dessa determinada divindade. Nessa compreensão do mundo, o lugar onde se estabelecia uma cidade era um espaço sagrado em que se ritualizava a “fundação do mundo”. Esse espaço se caracterizava por ser heterogêneo, com quebras ou rupturas, que para Eliade simbolizavam uma hierofania (do gr. hiéros, sagrado e, phania, revelação), marcando o espaço como “centro do mundo” ou alicerce da Criação.

Ao manifestar-se a hierofania, o ser sagrado ou homo religiosus se transforma num homo faber, capaz de fazer as coisas da forma como a divindade as fez. Realizando seu próprio ato de fundação, cria um templo no “centro do mundo” e erige uma cidade.

Para as civilizações antigas, antes do surgimento do homem e da natureza, foram criadas a ordem e a palavra, para dar forma e substância ao mundo. Mas foi a imaginação divina que criou a vida no cosmos, produzindo uma hierogamia – união sagrada – entre a imagem e o pensamento, gerando vida, primeiro, no mundo das ideias, para depois plasmá-la no mundo das formas.2 A criação foi um processo poético que se realizou na mais completa harmonia entre o verbo e a matéria, dando uma ordem no universo, o que se compreende como cosmos (do gr. kósmos, “lugar ordenado”).

O cosmos supõe uma estrutura, enquanto o caos (do gr. kháos, abismo) se manifesta amorfo, sem uma enérgheia (energia) que o transforme. Na medida em que se repete o ato da Criação Primordial, o homem intervém no caos para transformá-lo num cosmos. Por isso, a construção de uma cidade era uma mimese da Criação Divina. Era a criação da cosmópolis feita para imitar os deuses, mas principalmente para mantê-los habitando o mundo terreno.

Se na Antiguidade as cidades arcaicas eram a morada dos deuses, com o advento da cultura judaico-cristã a cidade terrena perdeu a conotação divina, maculada pelos pecados. Não só pelo pecado original e expulsão do Paraíso, mas principalmente pelo sacrifício de Jesus Cristo, registrado no Novo Testamento. Cidades como Babilônia e Roma, que eram para seus habitantes espaços sagrados, com o cristianismo são dessacralizadas ao ponto de ser transformadas em lugares de perdição, destinadas à condenação e à destruição.

Sophia: o paradigma da cidade mística

A era cristã modifica por completo o olhar sobre as cidades, pois não reconhece a sacralidade delas nem o vínculo com a divindade, tornando-as um lugar de trânsito e purgação. À luz do cristianismo primitivo, essa dessacralização das cidades as torna profanas (do latim pro-fanum, “fora do templo”) desde sua fundação, por serem o berço das misérias e infelicidades humanas, destinadas a perecer no Juízo Final. Só existe uma esperança para as cidades terrenas, ser redimidas pela chegada da Nova Jerusalém, graças à intervenção da sabedoria divina, Sophia, o princípio feminino.

A Nova Jerusalém aparece no livro do Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, o Evangelista, e escrito sob a dominação do imperador romano Domiciano, por volta dos anos 81-96. O termo “apocalipse” provém do grego apokalypsis, que significa “levantando o véu”, é o ato de descobrir ou revelar. Seria, portanto, o Livro das Revelações de Cristo para os homens. Mas, na verdade, o Apocalipse se converteu em um dos textos mais misteriosos da Bíblia, gerando uma série de exegeses possíveis.

No capítulo “A Cidade da Redenção” da minha tese, abordei duas visões predominantes sobre o Apocalipse. Por um lado, a visão exotérica (do gr. exo-terikós, externo) ou canônica, que explica o caráter profético das alegorias de João e retrata os flagelos sofridos pelos cristãos no império romano (VERA-BUSTAMANTE, 2007, p. 220) E, por outro, a esotérica (do gr. eso-terikós, “o que está oculto à vista”, interno), fundamentada no Gnosticismo, estudado por Jung, e na Antroposofia de Steiner, para quem o Apocalipse é uma iniciação cristã. Da perspectiva da cidade fictiva, esta última interpretação será de nosso interesse, pois se concentra em Sophia, o arquétipo da sabedoria, que é, em síntese, a autognose de Jung, a base da cidade mística.

No Apocalipse, quando o sétimo anjo toca a trombeta, ocorre o grande anúncio da segunda vinda de Cristo, a parúsia (do gr. parousia, chegada), que marca o confronto final entre o Reino de Deus e o mal. Após o anúncio, aparecem a arca da aliança e a Mulher Solar: o símbolo da nova humanidade que surgirá na Terra.

Uma mulher vestida como o sol, tendo a lua debaixo dos pés, e sobre sua cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz (Ap. 12: 1-2).

A visão profética de João se vê obscurecida pela aparição do Dragão no céu, tentando impedir que a Mulher Solar dê à luz o novo homem: o Messias que nascerá para governar todas as cidades. Este é levado para o trono celeste, enquanto a Mulher é protegida no deserto. Há uma batalha entre o arcanjo Miguel e o Dragão, que é vencido pelo ser angélico. Enfurecido pela derrota, o Dragão, símbolo das trevas, persegue a Mulher Solar para matá-la. Mas o Evangelho se manifesta e sentencia à morte todo o mal. Caem o Dragão, a Babilônia Escatológica e a Grande Cidade, Jerusalém, que crucificou Jesus e se transformou em um topos de falsidade e injustiça.

João vê que no céu as forças divinas destroem o mal e instauram a harmonia celeste no plano terrestre. Estabelece-se uma Nova Aliança entre Jesus e a humanidade com a chegada da Cidade Celeste (Nova Jerusalém) e de Sophia, a Sapientia Dei.

Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, [...] como esposa que se enfeitou para seu marido. [...] E ouvi: “Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. [...] Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap. 21: 2-7).

A Cidade Celeste é descrita como uma mandala, feita de jaspe e de ouro, rodeada por altas muralhas e com doze portas, cada uma com um anjo sobre ela. Cada porta tem um nome das doze tribos de Israel. A muralha possui doze pilares e neles estão escritos os nomes dos doze apóstolos de Cristo. Os pilares são feitos de pedras preciosas. As doze portas são de pérolas e a praça da cidade é de ouro puro. Mas a cidade não possui templos, porque seu templo está no próprio Deus e em seu filho, Jesus. O templo deixou de ser material e se transformou em espírito para habitar os corações da nova humanidade. Não existe mais a luz do sol nem a da lua, pois a luz divina ilumina toda a cidade. Há rios cristalinos que emanam de Deus e árvores da vida que estão plantadas na praça, dando fruto doze vezes por ano. Ali existe a completa felicidade como um dom de Deus. E não haverá mais noites, pois a luz de Deus vai brilhar sobre a Nova Cidade e o Novo Homem, que nasceu da Mulher Solar.

Jung repara que essa mulher não é uma virgem nem uma deusa, mas está “vestida de sol”, portanto, é um ser luminoso que representa um anima mundi. Ela é o ser humano primordial feminino. Lembra a deusa grega Leto, que deu vida a Apolo (o deus solar) e, ao mesmo tempo, a deusa egípcia Ísis, mãe de Hórus. (JUNG, 2001, p. 81) Ela é o símbolo do “céu em cima, céu embaixo”, que revela todo o mistério da “mulher”, pois une o elemento tenebroso ao elemento luminoso.

A Mulher Solar, para Jung, é a própria Sophia que corresponde à parte feminina de Cristo, a parte feminina da mónada. Pois, na visão gnóstica, o Universo está constituído por mónadas ou centelhas divinas, e cada mónada está composta de duas forças: a masculina (Cristo) e a feminina (Sophia). Por isso, é reconhecida como a “noiva de Cristo”, no mito de Sophia.3

A união de Cristo e Sophia dá vida ao novo Messias. Trata-se de um complexo oppositorum, explica Jung, um símbolo da totalidade da vida, que podemos compreender como a manifestação de um homem perfeito (teleios). Um homem pleno constituído pela totalidade da psique, ou seja, pela consciência e pelo inconsciente, acima do eu. Trata-se da relação existente entre o self e o eu, que se reflete na relação de Cristo com o homem. (JUNG, 2001, p. 84)

Na cultura helênica, Sophia era conhecida como logos feminino, correspondente ao pneuma (espírito eterno) de natureza feminina, preexistente à criação (HOELLER, 1995, p. 199). Para os cristãos primitivos, era a Mater Coelestis, ou princípio feminino de Deus. Jung cita dois textos bíblicos para reafirmar esse princípio. O primeiro é dos Provérbios:

O Senhor me criou, como primícia de suas ações, como princípio de suas obras, antes dos tempos mais antigos. Desde a eternidade fui constituída, desde o começo, antes da origem do mundo. [...] Quando [Ele] assentava os fundamentos da terra, eu estava lá, como predileta a seu lado, eu era seu encanto dia após dia, brincando todo o tempo na sua presença, brincando sobre o globo de sua terra, deliciando-me por estar junto à humanidade. (Provérbios, 8: 22, 31).

O segundo texto é do Eclesiástico (escrito por Jesus, filho de Sirac, circa 190-194 a.C.), em que Sophia fala de si mesma e da cidade.

Saí da boca do Altíssimo e como a névoa cobri a terra. Tive minha morada nas alturas, e meu trono estava sobre uma coluna de nuvens. Sozinha percorri o círculo do céu e [...] andei sobre as ondas do mar e sobre os fundamentos da terra. [...] Antes de todos os séculos, desde o princípio Ele me criou, e até a eternidade não cessarei de existir. [...] Repousei na cidade que Ele ama tanto quanto a mim, e em Jerusalém exerci o meu poder. [...] Eu sou a mãe do puro amor, do temor, do conhecimento e da esperança (Eclesiástico, 24: 3, 18).

Jung (2001, p. 29) destaca esse relacionamento de Sophia com Jerusalém e a consciência que ela tem de sua origem divina. Ela se reconhece como a autorreflexão de Deus e como a “mãe do puro amor” (Eclesiástico, 24: 11), que velará pela sabedoria de seus filhos. Ela redime a humanidade, que estava condenada ab origine com sua expulsão da Cidade Áurea, isto é, a expulsão do Paraíso. Redime os filhos de Caim, que, arrependidos, entregam-se à luz do conhecimento. E, ao mesmo tempo, traz para a terra a beatitude de Abel, que, residente na cidade celeste, estava afastado de todo contato com o terreno. Assim nasce a Nova Jerusalém, que é, na verdade, o retorno da Cidade Áurea, o retorno da humanidade ao Éden, onde habita a plenitude do amor.

Na perspectiva de Steiner, existia um tempo pré-religioso e um religioso – caracterizado pelo predomínio histórico do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. No tempo pré-religioso, havia uma profunda compenetração entre o homem, a natureza e Deus. Steiner explica (2003, p. 23) que o homem vivia entre seres espirituais, sutis, sem precisar de provas para validar sua existência, nem de religião para se comunicar com os deuses. Quando o homem perdeu o Paraíso, o que perdeu, na verdade, foi essa comunicação direta com Deus e a natureza, e foi necessário criar o relligare para recuperar esse contato com o mundo espiritual, pois o homem no plano físico perdera a conexão com o suprassensível. O mundo sensorial ou físico “se estendia como um véu, como a grande maya” (do sânscrito, ilusão) sobre o mundo metafísico. Nessa maya o homem ficou preso, assim como sua realidade sensível. Mas houve indivíduos que, resgatando a memória de transição do homem pré-religioso para o religioso, possibilitaram o desenvolvimento da consciência, através da contemplação. Puderam arrancar o véu de maya e ver o mundo real do espírito, e ultrapassaram a redoma do mundo físico para ascender às esferas do conhecimento metafísico.

Na interpretação de Steiner (2003, p. 42-49), o Apocalipse é a narrativa de uma iniciação cristã; o caminho percorrido pela alma de João na via mística, que o conduziu a uma “revelação arcana”. Como o caminho percorrido pelos místicos espanhóis entre os séculos XV e XVI: Bernardo Fontova, Teresa de Ávila, Luis de León ou Juan de la Cruz, que lograram através da via mística fundir-se com a divindade, atingindo o êxtase.

A via mística se compõe de três níveis ou estágios: a via purgativa, a via epifânica (ou iluminativa) e a via unitiva. Na purgativa, o iniciado busca depurar a memória da alma, através da oração e do sacrifício, para assim vencer as tentações ou apegos terrenos. Quando alcança essa depuração da alma, entra na via epifânica, onde, pela contemplação, deve conseguir compreender a divindade e reconhecer-se como filho de Deus, alcançando a iluminação. Finalmente, entra na última via, a unitiva, na qual entrega sua alma a Deus e se une a Ele, alcançando o êxtase divino.

Apocalipse representa os graus que o iniciado tem de superar para chegar ao nível espiritual, ao Reino de Deus. Segundo a antroposofia, cujos alicerces estão no hinduísmo, as fases da iniciação da alma são: as sete cartas, dirigidas às sete cidades das primeiras comunidades cristãs, que correspondem ao plano físico, ponto de partida do iniciado; os sete selos, correspondentes ao estágio astral-imaginativo; as sete trombetas, correspondentes ao estágio devachânico ou morada divina; e, finalmente, as sete taças da ira ou os sete flagelos, que correspondem ao estágio depurativo que permite entrar na esfera onde está a mais alta espiritualidade que o ser pode almejar, a Nova Jerusalém. Para Steiner (2003, p. 220-221), a Nova Jerusalém de Sophia é o novo estado de consciência em que entrará a humanidade.

Em “A Bota”, o protagonista Joaquim narra a desilusão de ter sido abandonado pela noiva, na noite de Natal, devido à sua exígua situação econômica. O relato nos traz, in ultimas res, o conflito de Joaquim, que analisa seu estado atual: está bêbado – sem ter o hábito de beber –, perdido e sozinho em um bar. Extravia-se na bebida e um racconto de situações vividas começa a suceder-se sem respeitar tempo nem espaço. “É bom, é como estar dentro duma nuvem de pensamentos, alheado.” (MIGUÉIS, 1982, p. 275) Começa uma viagem ao passado, na qual o leitor descobre que um de seus sonhos mais profundos era ser futebolista. Jogava bola quando jovem, até sofrer um acidente: “Tinha o pé chato, um dia escorreguei na greda, caí, desloquei a rótula, nunca mais pude chutar nada que prestasse.” (MIGUÉIS, 1982, p. 275) A analepse acaba e Joaquim volta ao presente da diegese. Enquanto pede uma nova rodada de licor, lembra-se do embrulhinho que havia guardado. As desilusões voltam com esse pequeno pacote, objeto de três anos de economias. Não sabe o que fazer com o anel que havia comprado com tanto sacrifício para sua noiva Elisa.

Que ideia a minha. [...] economizar para isto: na roupa, nos cigarros, nos cafés. Até deixei de almoçar na Baixa, vou para casa de eléctrico, um escudo até a porta – perco tempo mas sempre é uma economia. Tentei a Lotaria, o Totobola: sorte em branco. Em preto! (MIGUÉIS, 1982, p. 276).

Percorrera toda Lisboa em busca de uma aliança de noivado em conta, até que a conseguira. Ficou feliz ao descobrir o anel de brilhantes com duas pequenas safiras. Tinha certeza de que Elisa ficaria maravilhada com sua primeira joia.

Joaquim via a economia como uma grande cadeia que beneficiava a todos, pois “o dinheiro se fez pra girar [...]. Criar trabalho! Quanto mais se gasta, mais se produz e mais se consome!” (MIGUÉIS, 1982, p. 276) Já para sua mãe, o dinheiro devia ficar na poupança para uma eventual doença, por isso não entendia o filho, dedicado a juntar dinheiro para comprar o anel, encantado com a ideia de formar uma família, de amar e ser amado.

Estava tudo planejado, pediria a mão de Elisa na noite de Natal, jantaria com ela e os futuros sogros, faria o discurso de pedido de casamento e entregaria o valioso anel. Joaquim estava iludido com a chegada da grande noite que mudaria sua vida.

Tencionava fazer-lhe uma surpresa. Chegar a casa dela na véspera de Natal – Toma lá um presentinho. [...] Ela abria o pacote... O estojo marroquino azul escuro, forrado de cetim azul celeste, até faz parecer maior o brilhante – É lindo! Quanto foste tu pagar por isto! Um beijo na face. [...] Tinha tudo pensado, as palavras que lhe havia de dizer [...] (MIGUÉIS, 1982, p. 276).

Tinham namorado durante quase sete anos e Joaquim não entendia como haviam esperado tanto tempo, mas as reticências da namorada explicavam tudo. Elisa não queria morar junto com os pais do namorado: “Para velhos bastam-me os meus.” (MIGUÉIS, 1982, p. 277) Nem morar em um bairro pobre como aquele em que viviam Joaquim e sua família, o bairro de Morais Soares. O sonho dela era morar no novo bairro rico de Lisboa, Alvalade. Mas, para Joaquim, morar em Morais Soares lhes permitiria economizar para depois, num futuro próximo, viver num bairro de classe alta, como queria Elisa.

O projeto de Joaquim era permanecer na casa que seus pais alugavam, esperando que o senhorio não aumentasse o aluguel. Receberiam o montepio do pai e as economias da mãe (que poupava para a tal doença), e ele ganharia um aumento no banco onde trabalhava. Tudo contribuiria para fazer o pé de meia para a casa dos sonhos de Elisa. Mas, quando Joaquim verbaliza o projeto, sugerindo ainda que Elisa poderia abrir um serviço de enfermagem a domicílio, ela deixa escapar sua frustração por ter de continuar trabalhando em algo que não a satisfazia: cuidar de doentes.

Isso! – diz-me ela. O resto da vida a subir escadas, a limpar traseiros, a ferver a seringa, a desbridar chagas! E a ver passar enterros!

Farta de doentes e de mortos estou eu! (MIGUÉIS, 1982, p. 277). Joaquim era um simples funcionário de banco, que iniciou um curso por correspondência, mas não pôde terminá-lo. Essa carência no campo da educação reflete a realidade de muitos habitantes da Lisboa da desilusão, que não têm possibilidades de concluir os estudos, enquanto outros, mais afortunados, sobem na escala profissional.

As desigualdades sociais marcam as frustrações dos personagens, profundamente insatisfeitos, presos a sonhos de grandeza e de poder aquisitivo. Quando Joaquim conta para sua mãe que queria comprar um anel de noivado de ouro e brilhante, ela o crítica por esse “desejo pelo luxo”, pois para ela o mais importante era ter dinheiro para enfrentar a possível enfermidade. Ela estava ciente de que a sociedade excluía os velhos sem economias, por isso seu objeto de desejo era estar no sistema de saúde.

Joaquim, pertencente à geração pós-2ª Guerra, mais consumista, acredita que, ao poder comprar, ingressará em um sistema de fluxo monetário que lhe permitirá uma ascensão econômica. Ao comprar o anel, ele sente que faz parte desse movimento. “Quanto mais se gasta, mais se produz e mais se consome!” (MIGUÉIS, 1982, p. 276) O objeto de desejo de Joaquim é economizar para depois poder ter mais.

Hermes Ferraz (1998, p.127-129) assinala que a sociedade industrial e burocrática criou valores materiais que hoje estão arraigados no inconsciente do homem, como os de propriedade, produção, consumo máximo, posição social e riqueza. O homem de hoje tem de se debater entre o ser e o ter, entre a cidade humanizada – que visa o bem comum – e a cidade da posse, que se concentra apenas nas ideias de produção e consumo, provocando as desigualdades nas grandes urbes. Essa sociedade industrial é o que se denomina tecnópolis, em que seus habitantes vivem alienados pelo ter.

José Rodrigues Miguéis, ao assumir a voz de Joaquim, transmite outra crítica a essa cidade da posse, especialmente a seu sistema de educação, que é a peneira da sociedade em todos os níveis. Quando Joaquim indica que não pôde terminar o curso, significa que, por sua falta de estudos, ficou impedido de ascender no trabalho, enquanto os colegas que os haviam completado iam subindo e melhorando seus salários. A educação se revela completamente desigual na tecnópolis.

Eu sou um simples empregado de banco, nem o curso pude acabar (comecei por paquete), os outros vão sendo promovidos, passam-me adiante, empenhos, agora até engenheiros e doutores lá temos empregados! Mas respeitam-me, sou antigo e estimado, cumpridor (MIGUÉIS, 1982, p. 277).

Embora não terminasse os estudos, Joaquim está ciente de que aquilo que faz, o faz bem, e se sente contente com seu serviço. Diferentemente de Elisa, que, apesar de ter o curso de enfermagem, não tolera o que faz. Sua insatisfação com suas escolhas a deixa amargurada e sem capacidade de vislumbrar um futuro melhor junto a Joaquim. Elisa descreve, entre lágrimas, o futuro infeliz que teriam se ficassem juntos.

Espera mais trinta anos, a vida a correr, os preços a subir, e nós feitos dois velhos gagás! Chamas tu a isso a felicidade? Eu ainda queria gozar um bocado a vida, ver coisas! (MIGUÉIS, 1982, p. 277-278).

Joaquim reconhece nessa noite no bar que o problema foi sempre a falta de dinheiro para satisfazer os desejos da noiva, que, cansada da vida mesquinha, decide trocá-lo por outro, de melhor posição econômica. A analepse surge então no momento da revelação nefasta para Joaquim, nessa véspera de Natal. Horas antes, tinha ido à casa de Elisa. Foi recebido pela mãe dela, de olhos vermelhos. As expressões dos pais da noiva evidenciavam uma catástrofe. Joaquim, sem precisar de mais palavras, sentiu o corpo tremer ao perceber que Elisa o abandonara, deixando-lhe apenas uma última lembrança, uma carta, como testemunho de sua falta de coragem para enfrentar a realidade e comunicar-lhe pessoalmente o fim de um namoro de sete anos.

Meu caro Joaquim, é um grande desgosto que te dou, mas o destino assim o quer. Não tenho coragem para to dizer na cara [...]. Triste Natal vai ser o teu! Mas antes assim. Que futuro nos esperava? Toda a vida a cuidar de doentes, olhar pelos velhos e depois vêm os filhos... Estou cansada. [...] Deus mandou-me um bom homem de idade, que me adora e me oferece tudo, casa posta, criados, o sossego. Deixo de trabalhar. Peço-te que não me julgues mal e me perdoes. [...] Não me procures, porque hoje mesmo saio de Lisboa. Não nos tornaremos a ver. Serei para sempre a tua infeliz, grata e dedicada, Elisa (MIGUÉIS, 1982, p. 278).

Foi um sombrio Natal nessa noite lisboeta. Os pais de Elisa ficaram sozinhos, sem entender a decisão da filha, e Joaquim saiu atordoado, correndo, sem saber para onde ir, com a carta na mão e o anel no bolso. A carta de Elisa acabou derrubando seus castelos no ar; o sonho da família, da felicidade conjunta e dos projetos da futura casa em Alvalade – embora fosse para satisfazer um capricho dela –, tudo tinha acabado.

Joaquim, sem saber mais o que fazer, deixou-se levar pelas ruas e tabernas dessa Lisboa testemunha de sua dor; tentando fazer algo incorreto pela primeira vez.

Andei horas ao acaso, até vir cair, morto de fadiga, neste bar do Cais de Sodré. Nunca bebi na minha vida, nem sei como agüento. E não consigo esquecer (MIGUÉIS, 1982, p. 279).

Em um momento de desespero, até pensou em acabar com a vida, mas se lembrou da solidão dos pais e decidiu continuar vivo. Seus pais, que ainda estavam à espera dele e da noiva para festejar o compromisso, mal sabiam o que ocorria com o filho, que nem podia avisá-los, porque não tinham telefone. A mãe ficaria esperando com seu arroz doce com canela, formando as iniciais dos noivos entrelaçadas – uma tradição das famílias portuguesas. Eis um indício de que as tradições começavam a ser quebradas: a palavra empenhada, o compromisso sagrado, o pedido de casamento e o amor não passavam de costumes antigos que se viam anulados pela falta de dinheiro de Joaquim. Impedido de sustentar o futuro que Elisa, em sua ambição pelo ter, esperava.

A tecnópolis, a cidade do ter, seduz Elisa com um homem de idade, mas bem sucedido. Ela troca a juventude e o amor de Joaquim pela riqueza do homem velho.

Só resta ao bancário sem futuro aceitar sem resistências o abandono, pois ele sente – em sua simplicidade – que nunca poderá ser como um homem rico. Joaquim é humilde não apenas em sua condição econômica, mas também em sua visão de mundo, pois para ele o importante eram seus sonhos espirituais, os materiais ficariam com Elisa.

Quem sou eu ao pé dele, e dos outros! Bancário pé-chato, sem sorte nem futuro, que nunca há-de chegar a chefe de secção nem a gerente de dependência! A minha mãe ensinou-me a ser assim, bons sentimentos, modesto e respeitador, poupança, resignação, o perdão das ofensas [...] (MIGUÉIS, 1982, p. 279).

Resignação e perdão são palavras-chave para Joaquim, que entende finalmente, após percorrer grande parte de Lisboa e seus bares, que não tem saída senão perdoá-la, pois, sendo humana, está propensa a errar. Tal como indica o topoi dito por Joaquim: “E quem for justo ou se julgar sem culpas que te atire a primeira pedra!” (MIGUÉIS, 1982, p. 279) Não consegue aceitar plenamente o abandono, mas está ciente de que deve passar pelo difícil processo do desapego e do esquecimento.

As ruas solitárias de Lisboa o acompanham em seu andar inseguro, oscilante, com a missão de levá-lo até sua casa e enfrentar a verdade: contar a seus pais que foi abandonado. “Como hei-de eu explicar à minha velha!” (MIGUÉIS, 1982, p. 280) Um ou outro carro passa pelo lugar, expondo alegria e festa nessa noite natalina, em oposição à melancolia de Joaquim, contraste que mostra as microrrealidades dos habitantes, numa noite em que tudo era um convite para o júbilo. Era uma comemoração a mais para festejar o nascimento de Jesus, mas para Joaquim essa noite tinha se convertido em uma noite de frio, escuridão e morte. Elisa tinha matado toda sua ilusão.

Uma hora depois, já na Estefânia, vieram-lhe as ânsias e parou a uma esquina a vomitar: tinha o estômago vazio, só o álcool, um vinho azedo e o gosto amargo dos cigarros. Alguém passou e disse a rir: Feliz Natal! Ah, que se lixe. Ficou aliviado. A cabeça doía-lhe, mal se tinha nas pernas, de fraqueza, mas assim se foi arrastando (MIGUÉIS, 1982, p. 280).

Teresa Martins Marques assinala que o narrador do texto é autodiegético. “A história contada na primeira pessoa é a rememoração dos eventos não distanciados no tempo, enquanto o personagem-narrador bebe num bar do Cais do Sodré.” (MARQUES, 1994, p. 87) Mas muitas vezes surge no texto uma segunda voz, que descreve o estado em que se encontra Joaquim; é como se o próprio Joaquim se desdobrasse para olhar-se objetivamente. Na passagem citada, depois que Joaquim vomita o excesso de dor e frustração, surge essa voz desdobrada: “Ficou aliviado.” Continua descrevendo o incômodo de Joaquim: “Doía-lhe a cabeça, mal se tinha nas pernas de fraqueza, mas assim se foi arrastando.” (MIGUÉIS, 1982, p. 280) Esta segunda narração aparece também no começo do texto, em que Joaquim descreve seu estado de ânimo, mas também se distancia de si mesmo para testemunhar sua dor e compreender-se.

Esmigalhou entre os dedos no cinzeiro o cigarro mal encetado, sem se queimar. (Dantes enrolava-os à mão.) Fechou os olhos e encostou ao lambril de madeira a cabeça cheia do zumbido de vozes e risos do bar. Veio-lhe a vertigem quase voluptuosa, e ele sorriu, calmo e descontraído. É bom, é como estar dentro de uma nuvem de pensamentos, alheado. Dormia talvez? E sonhava que estava acordado? (MIGUÉIS, 1982, p. 275)

Se a tônica da diegese é esse contraponto das duas vozes – a autodiegética (a voz em primeira pessoa) e a heterodiegética (a voz em terceira pessoa), que pode ser o próprio Joaquim desdobrado de si mesmo –, na narração final do texto a voz heterodiegética assume o controle do relato, produzindo um efeito de estranhamento e alteridade, que ajuda Joaquim a anular o sofrimento pelo fim da história com Elisa.

É nessa narração híbrida que se revela a “angústia de alguém que se sente estrangeiro, estrangeiro no Estrangeiro e estrangeiro na Pátria; e, nesta, estrangeiro ao passado vivido, e estrangeiro ao presente, cujos fios de continuidade pretérita lhe escapam.” (Lopes, 1961, p. 64-65) Cabe assinalar que Rodrigues Miguéis, devido a seus ideais políticos, foi exilado em 1935 pela ditadura de Salazar e se radicou nos Estados Unidos em 1942. Ele voltou em algumas ocasiões à terra natal, mas morreu sentindo-se um estrangeiro, em 1980, em Nova York. Era um estrangeiro de seu esquivo Portugal e um estrangeiro na nação americana. Mas, mesmo sendo um expatriado, não deixou de cantar à sua amada Lisboa. Tal como explica Humberto Aragão Filho:

José Rodrigues Miguéis escreve sobre a cidade onde nasceu e que tanto amou, [...] Lisboa e, dentro dela, privilegia alguns bairros, selecionando determinadas áreas que se tornam emblemáticas. Mesmo expatriando-se, assumindo um exílio que lhe foi doloroso, Miguéis foi sempre um lisboeta repleto de saudades, separado pela distância oceânica, mas tendo Lisboa no coração e nas páginas dos seus livros (ARAGÃO FILHO, 2002, p. 23).

Esse estranhamento de sentir-se estrangeiro no próprio solo é visível na pressão que sente Joaquim ao tentar fazer a vontade de Elisa de viver na cidade do ter, no novo bairro de Alvalade. Um lugar que para ele não tinha raízes. Joaquim, nascido e criado em Morais Soares, bairro tradicional, mas decadente de Lisboa, não conseguia identificar-se com o sonho de Elisa, embora se esforçasse por economizar para viver num lugar que não lhe pertencia. Sabia, no fundo, que não seria feliz na cidade da posse.

Como se fosse outra pessoa, Joaquim consegue olhar para si mesmo sem amarguras pela ausência de Elisa, e contemplar sua cidade, essa Lisboa melancólica, única companheira nessa noite fria. Essa distância na narração lhe permite observar o que acontece a seu redor na cidade solitária.

Chegou a Morais Soares, nem vivalma. Há trinta anos, senhor, esta miséria, enterros! As calhas dos eléctricos luziam rua acima. Havia latas e embrulhos de lixo às portas. Um cão vadio afocinhava e esgaravatava num cartucho, conseguiu derrubá-lo, o lixo derramou-se no empedrado: à procura de um osso (MIGUÉIS, 1982, p. 280).

O progresso da tecnópolis não tinha chegado ao bairro de Morais Soares, que outrora se caracterizara por uma pequena burguesia, mas no presente tudo que havia nele era miséria e escuridão, como uma cidade esquecida. O lixo e o cão faminto eram duas marcas da marginalidade do lugar, e Joaquim fazia parte dessa marginalidade. Ele tinha sido não apenas marginalizado – no banco – pela falta de estudo em sua formação profissional, como também por Elisa, que o marginalizou pela falta de dinheiro.

Elisa não tem raízes, não pertence nem a Joaquim nem a Lisboa. Está desarraigada do espaço em que vive e sem esperança de ser feliz, e foge na primeira oportunidade, mesmo sabendo que, ao escapar de Joaquim, escapa também de sua legítima felicidade. “Serei para sempre a tua infeliz, grata e dedicada, Elisa.” (MIGUÉIS, 1982, p. 278) Já Joaquim faz parte da miséria de Morais Soares, pois convive com ela há trinta anos; é seu topos familiar e seu enraizamento na cidade. Ele não tem como cortar os vínculos, porque vive por e para essa Lisboa. Além da cidade, os pais de Joaquim também são suas âncoras para não se extraviar na dor pela partida de Elisa. Ao perceber que o verdadeiro amor está nessa conexão com Lisboa, e ao mesmo tempo com seus pais – alicerces de sua existência –, compreende que deve expurgar a lembrança de Elisa, desfazer o vínculo, o amor que ainda sente por ela, para libertar-se da dor.

Ele enxotou-o, o cão fugiu, de rabo entre as pernas, parou à distância. Poisada ao lado, no degrau, estava uma bota. Ele ficou a olhá-la: era uma bota como não via há muito tempo. De meio cano, rota, cambada e esbodegada, com tombos e remendos, a sola gasta a despegar-se na biqueira, um atacador de cordel a arrastar no chão. Procurou com os olhos a outra bota, não a viu. Uma bota solitária. Como eu [...] (MIGUÉIS, 1982, p. 280).

É noite de Natal. Joaquim se lembra então de quando era criança e costumava deixar um sapato na chaminé para receber algum presente. “Ainda haverá quem?” (MIGUÉIS, 1982, p. 280) É a pergunta que surge no momento em que vê uma bota. É o momento epifânico em que o menino que foi se encontra com o adulto ainda crente nas ilusões da vida, nos sonhos e na realização do amor.

Ao observar a bota, surge um mundo de lembranças e perguntas sobre si mesmo, começando seu processo de autognose, embora não isento de um olhar irônico sutil, que evidenciava certo ceticismo em relação à fé na tradição: “O Menino Jesus, acreditava eu nisso? (E que presente ele me trouxe este ano!)” (MIGUÉIS, 1982, p. 280) A tradição tinha sido legada por sua avó, enquanto o ceticismo vinha de sua mãe.

A minha avó da Beira dizia: Quando Deus Nosso Senhor andava pelo mundo, disfarçado de pobre, a pedir esmola [...] E a minha mãe: Não teja a meter caraminholas na cabeça do pequeno, senhora! [...] – mas se eu acreditava até no Tempo-em-que-os-animais-falavam! (MIGUÉIS, 1982, p. 280-281).

Mas o ceticismo é logo dissipado pelo desejo de acreditar, de sentir-se partícipe de um mundo onde suas raízes se finquem em terreno sólido, sem incertezas nem desilusões. Joaquim quer crer que ainda é possível ser feliz em sua cidade do ser, apesar de pobre e solitária, tal como ele e a bota. A bota causa nele uma transformação a partir da identificação que lhe produz como objeto abandonado, e ao mesmo tempo um desejo de conhecer a história desse calçado, de saber de quem havia sido, por onde havia andado e por que tinha chegado a seu bairro. As dúvidas sobre a bota lhe devolvem certa ataraxia, ou paz da alma, de que precisava para enfrentar seu próprio abandono.

Aquela bota fascinava-o. Quem sabe se não era de algum santo, ou do próprio Jesus! Era com certeza de algum velho operário ou mendigo, gasta de correr ruas, caminhos e azinhagas, a pedir trabalho ou pão... Abandonada e só. Teria o dono outra perna? E onde irá o pé que te habitou? (MIGUÉIS, 1982, p. 281).

Refletir sobre a bota vai transmutando sua dor, fazendo-o sentir uma espécie de compaixão pelo objeto inanimado. Reconhece, na pobreza da bota, sua própria pobreza. É então que o cachorro retorna. Nesse instante, Joaquim percebe que o cão, a bota e ele próprio formam um trio de seres esquecidos, sem ninguém para acolhê-los. Os três se tornam “irmãos na humildade” (MIGUÉIS, 1982, p. 281). É o momento em que “o véu começa a ser levantado”: A bota, como símbolo natalino de generosidade, de desprendimento para dar felicidade aos outros, chama-o para cortar as amarras de uma história de amor sem amor. Lembra-se pela última vez de Elisa:

A tua mão branca e gordinha de enfermeira diplomada, asséptica, habituada ao pus e aos excrementos, esta noite acaricia talvez a nuca dele. Sem anel. [...] E para que penso em ti se tudo acabou? (MIGUÉIS, 1982, p. 281).

Joaquim tinha economizado três anos para concretizar um ideal banal de luxo, que sua mãe criticara. Havia deixado de ser o homem de bom senso para se enredar nesse véu de maya que a cidade da posse cria como uma cilada para seus habitantes. Mas, ao sentir o chamado da bota, uma força o impele a desprender-se do anel e da infelicidade para assim expiar seu sofrimento.

A bota parecia abrir-se mais para o seu gesto de renúncia e desapego. Curvou-se um pouco para não errar a pontaria, ergueu a mão, baixou-a devagar, e deixou cair o embrulho dentro dela, sem rumor. Endireitou-se e respirou fundo. Já está. Sentiu-se livre de um grande peso (MIGUÉIS, 1982, p. 281).

A bota, símbolo da bonança, transforma-se em um elemento prodigioso, capaz de despertar tanto a percepção de Joaquim como seu amor próprio. É uma experiência epifânica que transforma o sentido da bota: de simples peça de caridade a elemento libertador de Joaquim, que lhe permite cortar definitivamente os laços do falso amor. E, de objeto libertador do sofrimento, a bota passa a ser também um objeto místico que provoca a autognose de Joaquim e seu relligare com o próprio Jesus.

O cão deitara-se a pouca distância, olhava-o de focinho entre as patas, a varrer o pó do passeio com a cauda. És a minha testemunha, hã? Alguém me espreita talvez nos teus olhos de inocente vagabundo. O brinde de Natal! Virá Ele buscá-lo para o seu místico noivado? Antes assim [...] (MIGUÉIS, 1982, p. 281).

A pureza do protagonista atinge uma dimensão sagrada quando ele compreende que é preferível o abandono a ficar preso a um casamento sem amor. Mas o que mais surpreende é a consciência de Joaquim, que busca redimir o sacrifício de três anos para comprar um anel de noivado e o transforma em uma oferenda, que ele, em sua humildade, entrega a Cristo para a hierogamia com Sophia. E assim restabelece a paz nessa Lisboa que se revela como uma cidade mística. E é justamente nesse gesto de oferecer o anel que Joaquim consagra novamente a vida, renascendo nessa fria noite de Natal. “Antes assim”, preferível isso à morte em vida.

De mãos nos bolsos, continuou a subir devagar a rua triste e nua onde nascera e vivera mais de trinta anos. Deserta. O silêncio era completo. Noite santa, noite de [...]
Lembrou-se do arroz doce com as letras bordadas a canela, e teve fome. Apressou o passo e sorriu: Caraminholas! Há quantos anos não me ocorria esta palavra! (MIGUÉIS, 1982, p. 281-282).

O amor pelo velho bairro permite esse encontro místico consigo mesmo. Joaquim recupera sua identidade no lugar onde nasceu e do qual não quer sair, pois descobre que é nessa Lisboa esquecida que ele se aceita tal como é.

A Lisboa que aparece na narrativa de Miguéis − especialmente em ‘A Bota” − como espaço de lembranças envolve, por sua vez, um tempo de formação psicológica para enfrentar a crueza e as desilusões do mundo adulto. Mundo que aparece em oposição ao mundo dos sonhos da juventude. A experiência epifânica do achado da bota e do desprendimento do anel leva Joaquim a fazer a passagem à fase adulta. Acabado o noivado adolescente com Elisa, ele consegue amadurecer, reconhecer-se e valorizar-se.

Nesse processo de autognose radica a sensibilidade de José Rodrigues Miguéis, que redime o sofrimento de Joaquim através da cidade hierofânica, onde estão enraizados seus alicerces. E o redime através do tempo, ao repassar seus trinta anos para que enxergue como ele é realmente, um ser pleno em sua humildade, pureza e bondade.

Joaquim, qual místico, ilumina-se na rua solitária e alcança um estado contemplativo de si mesmo, o noscete ipsum. Ao deixar o anel na bota como sinal de desprendimento e purgação e como oferenda para a hierogamia entre Cristo e Sophia, sela sua entrada na Cidade Áurea onde habita o paraíso interior. Por isso, nesse gesto, Joaquim renasce, compreendendo que na vida tudo que é verdadeiro está ligado à simplicidade, ao amor ao próximo e à sinceridade consigo mesmo. Naquela noite de Natal, Joaquim descobre entre a solitária bota, o cão faminto e ele mesmo – como habitante de uma Lisboa esquecida – que a felicidade está na paz do espírito, no desprendimento consciente da matéria e no perdão das ofensas. Três princípios cristãos que José Rodrigues Miguéis resgata e atualiza na luta entre a cidade redimida e a cidade do ter, entre os princípios espirituais do bem comum e os princípios materiais e individualistas. E não há dúvidas para ele sobre quais são os vencedores.

Referências

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VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Notas

[1]Existe uma comunicação real-concreta (histórica) e uma comunicação real-imaginária (estética). A linguagem literária é uma dobra da linguagem real, mas, ao contrário desta, é capaz de gerar novas realidades. A linguagem real-concreta se limita à comunicação fáctica, sem ser capaz de criar novos mundos nem novas realidades. In: AGUILERA, Francisco. Curso de Teoría de la Interpretación. Santiago: Facultad de Filosofía y Humanidades da Universidad de Chile, 2° semestre de 1995. (Tradução nossa)

[2]Para Platão, as formas não existiam per se, elas vinham de outro lugar, eram imaginadas e pensadas no mundo das ideias, onde cada ideia tomava uma forma no mundo terreno. O filósofo grego na Alegoria da Caverna estudou dois mundos em oposição, mas em constante comunhão: o das ideias e o das formas. Ver: GIANNINNI, Humberto. Breve Historia de la Filosofía. Santiago: Editorial Universitaria, 1985, p. 50-51.

[3]No gnosticismo (movimento cristão dos séculos II e III), maya é criada pelo demiurgo, o semicriador da matéria, para escravizar os homens. Para Platão, o demiurgo (de demos, povo, e érgon, artesão ou criador) era inicialmente o artesão que imitava a Perfeição das Ideias para criá-las, de modo imperfeito, na matéria. Segundo a cosmogonia gnóstica, na região da luz (Pleroma), composta pelos aeons (entidades arquetípicas), quando nasceu o arquétipo Sophia, não nasceu seu par perfeito (telos). Solitária, ela gerou de si mesma o demiurgo, mas percebeu que ele encarnava a imperfeição. O demiurgo criou o mundo inferior, a matéria, e os homens. Ante esse desvio da energia, Sophia se apieda dos homens e os ajuda com sua luz. O Pleroma cria e envia o parceiro que faltava para Sophia, Cristo, para entregar Luz, como conhecimento (Gnose), aos homens e redimi-los de uma criação escravizadora. Ver: STEINER, R. O Apocalipse de João: A revelação bíblica da iniciação cristã, 2003, p. 24.