Onde Teologia e Poesia dialogam, verdade e beleza se abraçam celebrando Justiça e Paz: Teopoiésis e profecia na vida de Dom Helder Camara
Where Theology and Poetry Dialogue, Truth and Beauty Join Celebrating Justice and Peace: Theopoiesis and prophecy in the life of Dom Helder Camara
Raquel Cavalcante Cabral*
* Mestra em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Doutoranda em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Coordenadora das Escolas Teológicas para Leigos da Arquidiocese de Londrina. Contato: irmaraquel2003@ yahoo.com.br.
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Resumo:
AInvestiga-se, na vida e profecia de Dom Helder Câmara, o papel da arte poética como forma privilegiada de expressão dos valores que ele viveu e anunciou. Sua opção pessoal de seguimento a Jesus Cristo na luta pela paz e pela justiça universal fizeram com que sua existência se tornasse a mais eloquente crítica a todas as instâncias que ferem a dignidade da vida humana, apontando para o sentido ultimo da existência. Como base teórica norteadora da pesquisa estará o apoio da compreensão de teopoiesis aportada por Villas Boas como uma das possibilidades de aproximação hermenêutica atual para a teologia. A categoria da poiésis, como expressão do pensamento, tem se levantado na contemporaneidade como forte reação às cosmovisões tecnicistas que instrumentalizam o ser humano em função de sistemas desumanizantes que visam lucro e poder. A poética acorda as sensibilidades mais profundas e faz aflorar a pergunta por sentido latente no ser humano a que o cristianismo responde com um conjunto de valores anunciados como Boa Notícia de Saúde e Libertação. Por meio da análise da veia poética helderiana buscam-se o alinhamento entre os temas pertinentes de sua trajetória de vida e a mensagem contida especialmente na obra “Sinfonia dos dois mundos”. A pesquisa pode contribuir com o diálogo interdisciplinar sobre o valor e a adequação da linguagem simbólica para abordar o transcendente que confere sentido à vida e à dignidade do ser humano.
Palavras chave:Teologia, Poesia, Profecia, Dom Helder
Abstract
In the life and prophecy of Dom Helder Câmara, the role of poetic art is investigated asa privileged form of expression of the values that he lived and announced. His personalchoice of following Jesus Christ in the struggle for peace and universal justice made hisexistence become the most eloquent critic of all instances that hurt the dignity of humanlife, pointing to the ultimate meaning of existence. As a theoretical basis guiding theresearch will be the support of the theopoiesis understanding contributed by Villas Boasas one of the possibilities of current hermeneutical approach to theology. The categoryof poesis, as an expression of thought, has arisen in contemporary times as a strongreaction to the technicist worldviews that instrumentalize the human being in functionof dehumanizing systems that aim at profit and power. The poetics awakens the deepestsensibilities and brings up the question of latent meaning in the human being to which Christianity responds with a set of values announced as Good News of Health and Liberation. By means of the analysis of the vein of helderian poetics we seek thealignment between the pertinent themes of his life trajectory and the message contained specially in the work “Symphony of the Two Worlds”. This research can contribute tothe interdisciplinary dialogue on the value and appropriateness of symbolic language toaddress the transcendent that gives meaning to the life and dignity of the human being.
Keywords:Theology, Poetry, Prophecy, Dom Helder.
Introdução
A profissão de fé cristã e todo o conteúdo do que se diz sobre o Deus cristão baseia-se num fato fundante: Deus saiu do seu silêncio e se auto comunicou com a humanidade, assumindo as categorias históricas da comunicação de si: os eventos, o desenrolar natural da vida e a humanidade. Essa referência irrenunciável convida a ação mistagógica da teologia a rever constantemente os seus métodos e a alinhar-se cada vez mais com a sensibilidade da humanidade de cada tempo.
A partir do final do século XIX, intensificando-se na primeira metade do século XX e ampliando-se na contemporaneidade, a sensibilidade antropológica da teologia tem sido a mais valiosa chave do anúncio, da fé e da praxe cristãs. A virada antropológica que aconteceu na filosofia e na cultura modernas, apesar de ter desafiado acidamente tudo o que fugisse ao crivo da razão empírica, contribuiu para que a busca por sentido, missão própria da teologia, passasse a ser a busca por sentido do ser e existir do ser humano concreto. Dialogar com essa humanidade passou a ser o ponto de partida do fazer teologia. E diálogo supõe estar no locus existencial comum, sentir o sentir das partes dialogantes mutuamente. O Concilio Vaticano II (1962-1965) foi o marco magisterial deliberativo e determinante para novas posturas no jeito de a Igreja ser, anunciar a fé cristã e fazer teologia. É preciso dialogar com os saberes e as ciências, com os esquemas diversos de pautar a relação com o transcendente, com os homens e as mulheres em seus contextos para sentir suas ânsias, lutas, alegrias e esperanças (GS1 - 1).
Nesse sentido é que se situam as tantas iniciativas de diálogo entre a Teologia e tantos setores do saber: economia, política, ética, direitos humanos, sociologia, arte e literatura. A presente pesquisa quer ser uma contribuição no caminho que se vem empreendendo nos últimos vinte anos de diálogo entre teologia e literatura poética, salvaguardando suas especificidades epistêmicas: a teopoética. A vida de Dom Helder Camara, seu pensar sobre Deus, o ser humano e a beleza, de modo específico a “Sinfonia dos dois mundos” cuja letra é de sua autoria e a música da autoria do músico suíço, o Pe. Pierre Kaelin, serão foco de análise. A pesquisa está articulada em três partes: a) Um homem, um profeta ou um poeta: quem foi Dom Helder? Trata-se de uma breve biografia de Dom Helder ressaltando a relevância de sua pessoa, eventuais heranças artísticas e religiosas familiares e suas opções fundamentais de vida frente à humanidade e ao mundo; b) Teopoiesis: uma questão de busca comum de sentido da vida – o texto se abre para as convergências entre teologia e literatura poética na busca comum pelo sentido da vida e da existência humana pela verdade da beleza e a beleza da verdade; c) Dom Helder: teopoiésis e profecia entre dois mundos sinfônicos, onde, finalmente é trabalhada a Sinfonia dos Dois Mundos como exemplificação de aplicabilidade do que fora tratado nos tópicos anteriores. Conclui-se confirmando a força da teologia que se diz pela arte poética.
Helder Pessoa Câmara, o décimo primeiro dos treze filhos de João Eduardo Torres Câmara Filho e Adelaide Pessoa Câmara, nasceu em Fortaleza, estado do Ceará, no dia 07 de fevereiro de 1909 e morreu no dia 27 de agosto de 1991 em Recife, Pernambuco. Foi o tão polêmico “Bispo Vermelho”, conhecido internacionalmente por sua luta pacífica em defesa dos direitos humanos, especialmente dos pobres, e denúncias de torturas e perseguições políticas por parte da ditadura militar brasileira, como menciona Broucker (1979, p. 191). Foi indicado três vezes para o prêmio Nobel da Paz em 1970, 1971 e 1973, impedido por conchavos políticos entre a direita noroeguesa e brasileira, dado comum em suas biografias, inclusive em Piletti e Praxedes (1979, p. 19-38). Em sintonia com esse reconhecimento, D. Helder foi condecorado com títulos de Doutor Honoris Causa por diversas universidades brasileiras e estrangeiras da Bélgica, Suíça, Alemanha, Países Baixos, Itália, Canadá e Estados Unidos, somando um total de 32 títulos.
Sua notoriedade internacional se deu também por sua capacidade de unir denúncia e anúncio proféticos, teologia, encanto poético, esperança e luta pacífica contra a violência, são algumas das razões da escolha de sua pessoa aqui.
Um homem, um profeta ou um poeta: quem foi Dom Helder?
Apelidado de “o bispo vermelho” pelo amigo particular Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, o futuro papa Paulo IV, Dom Helder foi e continua sendo uma daquelas figuras tão inseridas na vida concreta do povo e na história de seu tempo que oferece matéria para as mais controversas leituras e interpretações de sua missão no mundo. A perspectiva norteadora do presente trabalho permite apresentar “o Dom”2 nos entrelaces criativos que surgem quando um homem se faz profeta sem perder a poesia, quando a profecia pacífica norteia a vida de um homem poético ou ainda quando a nobre poesia da vida e dos direitos humanos é salvaguardada profeticamente por um homem que exprime o amor de Deus em cada gesto e palavra com a força sutil e eloquente da poesia, mesmo quando está denunciando. Quem foi Dom Helder? Onde estão as raízes históricas de seu caráter e de suas escolhas de vida? Este olhar ajudará a uma maior aproximação.
Seu pai era crítico teatral, colaborador colunista do jornal A República, amigo da classe política dominante e funcionário de confiança da principal empresa comercial de importação e exportação de Fortaleza, a tradicional Boris Frères.3 Provinha de família influente, filho de tenente coronel e jornalista da facção política que há muito governava o estado. A família Câmara gozava de privilégios próprios dos apadrinhados pela oligarquia cearense em troca de fidelidade política, como ocupar cargos do poder judiciário e da administração pública. Seu pai, por ser crítico musical e de teatro, facilitava o acesso dos filhos a ambientes relacionados a eventos de música e arte cênica. (PILETTI e PRAXEDES, 1979, p. 19-38) O avô paterno era jornalista, um homem culto e de boas relações com pessoas influentes do comércio, do jornalismo, do teatro e da política. Era sensível à reta moral e aos costumes éticos ensinados pela maçonaria. Era anticlerical, como D. Helder o reconhecia, e reacionário frente a certas atitudes do clero, mas guardava costumes religiosos de devoção à Virgem e à São Francisco de Assis. (KHATEN, 1991, p. 25).
Já a mãe de D. Helder, Adelaide, era uma professora paciente e dedicada à escola que abrigava cerca de sessenta meninas na sala de sua casa, antes e depois de casada, de cujo cantinho, seus filhos também assistiam aulas. Gozava de habilidades especiais para a escrita narrativa e poética. Mantinha o hábito de registrar os acontecimentos simples da vida dos filhos desde crianças. Seus costumes refinados e posturas ternas distinguiam-se dos de sua época, como professora e como mãe. Optava pelo diálogo inteligente e carinhoso como método pedagógico, acima de qualquer rigor e uso de palmatória. Sua compreensão a respeito de Deus, do mundo e da corporeidade do ser humano se diferenciava das tradições rigoristas por causa da liberdade interior com que experimentava a vida e a sensibilidade com que reelaborava a cosmovisão transmitida na educação de seus filhos e alunos. Entre as tarefas que distribuía com os filhos, era de praxe indicar e acompanhar a leitura de clássicos da literatura. Uma mulher muito lúcida e aberta. Referindo-se à concepção comum de que havia partes impuras no corpo humano, criadas pelo demônio, e de que o corpo era fonte de pecado, disse ao pequeno Helder, certa vez: “Não acredite, meu filho. Da cabeça aos pés fomos feitos por Deus”. (PILETTI e PRAXEDES, 1979, p. 39). Uma mulher muito expressiva em seu modo de falar, abundante em gestos e vivacidade na voz. A tristeza que trazia gravada no coração pela perda de seis filhos, ainda pequenos, numa epidemia, não lhe roubava a criatividade no modo de ensinar, a afabilidade e o encanto pela vida.
Dom Helder herdou de seus pais o DNA carregado dos valores que nortearam sua vida e formaram seu caráter sensível à presença e ausência da Verdade, da Beleza e do Amor e antenado às necessidades dos irmãos e da sociedade. O ambiente familiar, devido à profissão do pai, favoreceu ao pequeno Helder, desde muito cedo, ter contato com a beleza cênica, lírica, cinematográfica, literária e teatral. Em 1918, o Tio José, comediógrafo, criou o Grêmio Dramático Familiar, apoiado pela prefeitura na divulgação e apresentações de peças, cujos ensaios eram acompanhados prazerosamente pelo pequeno Helder. (PILETTI e PRAXEDES, 1979, p. 54). Portanto, os palcos onde a beleza e a poesia desfilavam em suas mais variadas expressões eram-lhe familiares e nutriam em sua alma a dinâmica da linguagem simbólica que veicula o sentido de todas as realidades. Em seus escritos, pronunciamentos e atitudes de vida era visível a grande síntese que sua humanidade ia elaborando cotidianamente entre profecia e poesia. (ÁVILA, 2002, p. 59)
Sua busca por sentido o levou a rechaçar todas as formas de injustiça e impiedade e aos mais corajosos pronunciamentos públicos, mesmo quando precisava ferir o brio das mais altas autoridades nacionais e isso lhe custasse contínuas e incômodas ameaças de morte. Tudo isso sem perder o bom humor, a alegria esperançosa e brilhante nos olhos e a afabilidade no trato com todos, inclusive com seus perseguidores. Mais tarde sua figura tornou-se tão desconfortável aos adversários ideológicos que sua voz foi calada à força e seu nome tornou-se judicialmente proibido de ser pronunciado por todas as formas de imprensa e comunicação social, sob ameaça de aplicação de pena legal.
Ingressou no seminário aos 14 anos de idade, foi ordenado sacerdote pela Igreja Católica aos 22 anos, em 1931, e passou a exercer o cargo de diretor do Departamento de Educação do Estado do Ceará até ser convidado para ser assessor do bispo do Rio de Janeiro. No Rio encontrou-se mais de perto com a realidade das favelas e das enormes discrepâncias sociais que o moveram de suas posturas antigas de defesa da direita tornando-se defensor dos indefesos diante de injustiças, até mesmo aquelas institucionalizadas. Em 1952 foi consagrado bispo e nomeado bispo auxiliar daquela mesma diocese. Desenvolveu diversas obras sociais destinadas a atender aos pobres, como a Cruzada São Sebastião e o Banco da Providência, usando sempre de criatividade e inovação. Participou assiduamente do processo de fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, exerceu funções na Secretaria Estadual de Educação e no Conselho Nacional de Educação. Participou ativamente do Concílio Vaticano II (1962-1965), embora nunca tenha se pronunciado na sala capitular. (BROUCKER, 1979, p. 164-166). Foi consultor da Comissão dos Bispos e Governo das Dioceses sendo um dos sete bispos, entre os dez brasileiros, que tomaram parte numa das dez comissões preparatórias ou num dos quatro Secretariados do Concílio. (BEOZZO, 2015) As motivações da convocação do Concílio pelo Papa João XXIII lhe encheram de entusiasmo por virem de encontro aos seus sonhos de uma Igreja mais evangélica, ecumênica e próxima dos pobres. Uma Igreja que soubesse se somar aos esforços de todas as áreas das sociedades e dialogar com a cultura moderna em função do progresso e do desenvolvimento dos povos, capaz de mediar o diálogo entre as forças competitivas do mundo e de colaborar na promoção da paz. (BEOZZO, 2015).
Em abril de 1964, pouco antes do golpe militar no Brasil, Dom Helder foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife onde viveu até o resto de sua vida na sacristia da Igreja das Fronteiras como opção pessoal de assumir vida simples e acessível a todos, tendo apenas o suficiente para sua sobrevivência e seu trabalho como arcebispo. Estes propósitos foram ditos publicamente por ele no discurso que fez por ocasião da cerimônia de posse, em Recife. (RAMPON, 2015, p. 145) Seu processo intenso de conversão pessoal passou pela noção eclesial de que as mudanças na Igreja dependem das opções pessoais de vida. Logo, um novo modo de ser cristão era necessário: pobreza e simplicidade. (KHATEN, 1991, p. 54-55).
Teopoiésis: uma questão de busca comum pelo sentido da vida
Desde os primórdios da humanidade, nas culturas mais arcaicas, a pergunta sobre o transcendente ocupa espaço nas crenças e reflexões da humanidade. A Teologia cristã, em suas tentativas de responder e tematizar a questão sobre Deus na vida do ser humano e do cosmo, a partir da Revelação, apoia-se sobre dimensões fundamentais da existência humana fazendo as vezes de um plano de fundo básico. Tal plano de sustentação pode ser identificado por três grandes eixos: o Mistério que se dá em evento histórico humanizado, a aberta fundamental do ser humano para recebe-lo e a linguagem simbólico afetiva (afetante) da Revelação do Mistério ao ser humano e ao cosmos. Esses eixos são uma base referencial de sustentação sem a qual os teólogos e teólogas seriam meros artífices da fria habilidade de sobrepor peças áridas e mortas, umas sobre as outras, formando um grande entulho ideológico. Graças a eles o sentido da vida é tratado como um pre-texto teológico e as questões de sentido na antropologia teológica, o lugar por excelência da teologia.
O modo cristão de pensar Deus faz do cristianismo a religião da vida que sente e experimenta Deus e da narrativa desse sentir e experimentar num registro literário. É a religião da releitura e reescrita das narrativas orais e escritas que, por sua vez, tornam-se orientação e direcionamento de vida. A narrativa segrega o Mistério Revelado com tal força que adquire caráter autônomo, sintaxe própria e poética inconfundível, memorando fatos fundantes e fornecendo sentido a novos fatos. É aqui que se pode pensar na poesia como categoria hermenêutica para a teologia, principalmente quando o lugar teológico é mais inclusivo e universal por tocar em questões de interesse comum, como os direitos humanos, a paz universal e a justiça social no mundo.
A escolha da poética como categoria hermenêutica para fazer teologia justifica-se pelo fato de, entre as mais recentes buscas de diálogo entre ciências da religião, teologia e outras áreas de conhecimento da realidade, estão as aproximações entre teologia e literatura. A produção de textos entre artigos publicados em revistas, anais de congressos internacionais, dissertações e teses superou as expectativas entre os anos 1990 e 2013, segundo a pesquisa feita por Cantarela, citada por Alex Villas Boas, estudioso do tema. Pesquisas recentes, inclusive registradas no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pertencentes à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Paraná, à da Universidade federal de Santa Catarina(UFSC) e ao Centro Superior de Juiz de Fora (CES-JF) se impõem afirmando a pertinência da área de pesquisa e sua significativa expressão científica. O grupo de Trabalho Religião, Arte e Literatura da casa em que este trabalho está sendo apresentado pela primeira vez - SOTER, e as inúmeras iniciativas por parte da Associação Latino Americana de Literaturas e Teologias - ALALITE, congregando pesquisadores de diversos países, assinalam a efervescência do interesse pela área. (VILAS BOAS, 2016, p. 11-12).
A possibilidade de múltiplas metodologias e abordagens para se trabalhar teologia e literatura foi matéria de muitas discussões principalmente para definir e salvaguardar a distinção de papéis na unidade e complementariedade de cada uma das áreas em seus distintos campos epistemológicos. Vilas Boas4 trabalha um projeto de pensamento poético-teológico em que a base comum é a antropologia e a questão de sentido da vida como preâmbulo para a questão sobre Deus.5 Por serem dimensões que fogem aos esquemas rígidos da lógica e convergem com a perspectiva teológica sobre o excesso de sentido que a vida segrega, recusam-se ao nível da superficialidade. (VILAS BOAS, p. 12-13).
A teologia cristã exerce lucidez e consciência sobre quem é e qual seja o sentido da vida do ser humano, colhendo sua essência como “evento de absoluta, livre, gratuita e indulgente autocomunicação de Deus” (LINHARES, 2012), o Mistério gracioso que a tudo surpreende e supera, enquanto, ao mesmo tempo, deixa-se alcançar, experimentar e pronunciar para além do sensorial. Esconde-se e revela-se num vocabulário emprestado que diz além da palavra, reassume a memória histórica e cultural de cada povo e época, e confere sonoridade ao sentido mais profundo da existência humana, decodificada pelo Transcendente, dito em poesia: teopoiésis.
Na teopoiésis cristã o sentido da vida da humanidade não é meta histórico. É intrínseco às lutas, vitórias, gritos proféticos, indagações e silêncios contemporâneos. A teopoiésis assume as dores e os amores existenciais da humanidade, com radicalidade densa e concreta. Ela afirma a Essência como sendo algo tão profundamente humano de modo a fazer naturalmente coincidir o Verbo feito carne com o Humano do humano, a mais próxima experiência palpável da essência divina, a quem presentificamos por Jesus Cristo em sua densidade de sentido. (VILAS BOAS, p. 18-19)
Enquanto o pensamento teológico decodifica o Mistério em chaves conceituais segundo esquemas epistêmicos racionais, a teopoiésis desvela a interface agápica do Mistério humanizado e conecta a essência do ser humano à essência Transcendente, espaço absoluto em que tudo encontra sentido. Dessa interface nascem as proposições intrínsecas à teologia e à Poesia, respectivamente, a questão da Verdade e a questão da Beleza. “Tal qual na metafísica tradicional, o Ser é o ponto de convergência” entre ambas (VILAS BOAS, p. 21) no modo próprio desses saberes se debruçarem sobre o mundo. Teologia e Literatura Poética nutrem a dinâmica narrativa da experiência já feita e engendram a esperança construtiva em vista de um futuro confirmador do ainda não que está por vir: confirma o velado Revelado e o Belo contemplado. Enquanto a Teologia é impulsionada para este vislumbre pela Revelação da Verdade, ou seja, Deus que se dá a conhecer acontecendo na história, a literatura poética, por sua vez, é impulsionada pela força da Beleza fundante do Ser, refletida no universo. Desse modo, a Beleza da Verdade ganha acesso no mais íntimo da subjetividade da poetisa ou do poeta e a Verdade da Beleza brilha aos olhos da alma da teóloga ou do teólogo, ambos movidos pela questão do sentido mais profundo da vida vivida e aberta a possibilidades de plenitude.
Teologia e Literatura poética se entrecruzam entre si e abordam as mais diversas subjetividades, lá onde o afeto afeta a todos. Como num relâmpago de luz ativa e efetiva, elas perpassam os quatro cantos da realidade em que se encontram, apontando para questões intimamente relacionadas à Verdade e à Beleza, como a Justiça e a Paz, que, mutuamente, como numa brincadeira de roda, entreolham-se e interagem afetando-se. A Verdade clama pela Justiça e não vive sem ela. A Justiça proclama a Verdade e nisso exalta a Beleza de que seja atribuído, a cada parte, aquilo que lhe é devido. Se todas as partes são apoderadas daquilo que lhes é devido (Justiça) em força da transparência do próprio Ser (Verdade), a harmonia essencial do universo brilha (Beleza) e a atmosfera se move na amorosidade serena (Paz) própria de tudo o que se realiza em sintonia com o sentido do seu ser.
Sendo assim, Teologia e Literatura Poética de mãos dadas, passeando pelos porões da humanidade sofrida, são forças proféticas. Elas denunciam desarmonias universais de grandes e pequenos mundos. Encara as hegemonias esmagadoras, convoca os poderes soberbos e move as consciências apodrecidas. A ação profética da teopoética levanta o direito e a dignidade de quem está imprensado contra o muro estremo da perseguição, do extermínio, da violência, da fome e da mentira. Sabe levar consigo o tom amoroso que estremece a mão esmagadora do direito e da justiça.... isso e muito mais.... é o que se pretende colher na obra poético profética de Dom Helder Câmara.
Dom Helder: teopoiésis e profecia entre dois mundos sinfônicos
“Poeta, padre reitor, não é só quem faz versos. É quem vibra diante da beleza! O senhor é incapaz de deixar de vibrar. (...) lê uma página bela, vibra, (...) vê um dia lindo, vibra, seus olhos cintilam. Eu o considero um poeta. E logo o senhor, um poeta, vai falar contra as minhas poesias?” (D. Helder, In PILETTI E PRAXEDES, 1979, p. 61)
Entre tantas figuras emblemáticas que reuniram em suas próprias vidas teologia e poesia e fizeram as mais belas sínteses proféticas pela verdade, por amor e em defesa das categorias agonizantes de seus contextos históricos, destaca-se o “Dom”, como era carinhosamente chamado pela comunidade de Olinda e Recife, recebendo de sua companhia amorosa, forte e pacífica, um Dom artístico de Deus em perene execução: Dom Helder Camara.
O Dom amava a arte, como já foi mencionado acima, porém tinha especial gosto pela narrativa poética, tanto oral quanto escrita. Tinha necessidade de poucas horas de sono e quando sua noite terminava era vigília ainda, então, companheiro da aurora, o Dom mantinha o hábito de fazer o que ele chamava de meditações. Mergulhado em sua interioridade iluminada, Dom Helder contemplava o que lhe fazia vibrar, seja por manifestar evidente e imediata beleza, seja diante das mais deploráveis situações ou pessoas, por lhe inspirarem a projeção da esperança futura das mais criativas possibilidades de verdadeira beleza.
Desse espaço sagrado, desde sua mais tenra idade, nasceram poemas, crônicas, inúmeras cartas (na maioria dirigidas à “Família São Joaquim” - um círculo de amigos no Rio de Janeiro – e à “Família Mecejanense”, um grupo de colaboradores no Recife), programas de rádio, conferências importantes e até dança. Em um documentário a seu respeito, um dos entrevistados diz que o ouviu dizer que diante de tanta beleza do primeiro raio de sol entrando em seu minúsculo quartinho nos fundos da Igreja das Fronteiras em Recife, tamanha era sua alegria que ele levantava-se e dançava de alegria.
Dom Helder entrou no seminário da Prainha, Fortaleza, aos 14 anos de idade, em 1923. Trazia consigo a experiência cultural familiar como pré-condições educacionais para receber a rígida bagagem formativa oferecida pelos padres lazaristas franceses e holandeses que dirigiam o seminário naquele período. Porém tinha uma alma naturalmente alada que fazia dele um homem livre para filtrar tudo o que via e ouvia. Suas intervenções críticas e inteligentes durante as aulas intrigavam quanto despertavam a admiração dos professores.
Apesar de ter recebido tantos títulos honoris causa, nunca frequentou universidades como aluno. Não escreveu tratados ou longas obras tecendo pensamentos cartesianamente arquitetados. Experimentava Deus de maneira muito próxima como Pai e sentia a todos os seres humanos como seus irmãos de sangue, “o sangue de Cristo”, como costumava dizer. Via em tudo o toque do Divino Criador e isso era o suficiente para colher a vida jorrada do Evangelhos e o Evangelho escrito na vida. Essa dinâmica teológica que lhe era intrínseca, fazia dele um homem intolerante a qualquer forma de desrespeito à dignidade humana, ameaça à vida e injustiça. Ergueu destemidamente a voz, por diversas ocasiões, dentro e fora do Brasil, denunciando coisas desse tipo, mesmo que isso tenha lhe custado o silenciamento na época da ditadura militar e a proibição de que seu nome fosse mencionado nas redes de comunicação nacionais. (RAMPON, 2015, p. 286-294)
Era amante de um bom livro, conhecedor dos clássicos da teologia e da literatura. Um intelectual quase autodidata. Comunicava-se fluentemente em inglês, francês e italiano. Mas a língua que melhor dominava por melhor exprimir a sua subjetividade única, pode-se dizer aqui com propriedade, era a teopoética profética.
Em 1964, quando voltou a morar no nordeste, conta Dom Helder, pareceu-lhe evidente que, para obter, de modo pacífico, mas corajoso, mudanças significativas em todo o terceiro mundo, seria indispensável ampliar o trabalho local com um trabalho sincronizado nos países industriais e ricos sem os quais as mudanças almejadas seriam impraticáveis. “A voz dos países injustiçados é a voz de Deus”. (CAMARA, 1985, p. 30)
Em 1979, na maturidade de suas opções fundamentais de vida, seguindo e imitando a Jesus Cristo, na luta pela causa da verdade, da justiça e da paz no mundo, Dom Helder escreveu uma longa meditação na qual vislumbrou um mundo mais justo e mais humano. Começou a sonhar com a possibilidade de musicalizar aquele texto a fim de que ele fizesse uma peregrinação de paz, dando voltas pelo mundo, apontando pacifica e corajosamente para mudanças estruturais a partir da linguagem eloquente e suave da arte musical e poética, que ficasse impressa na alma dos ouvintes, ressoando em sinfonia, como é próprio da poesia e da música.
O texto intitulado Sinfonia dos Dois Mundos foi entregue nas mãos do amigo musicista suíço, o Padre Pierre Kaelin, autor da famosa Cantata, “Messire François” (na qual São Francisco de Assis pede perdão a Deus por ter se deixado abater pela tristeza). Kaelin escutou com atenção a gênese e as intenções proféticas de Dom Helder ao compor a sinfonia para entrar em sintonia e, com a musical, falar a mesma linguagem poética.
A composição ficou pronta muito rápido e se apresentou pela primeira vez em março de 1980, no Collegium Academicum, em Genebra, na Suíça. Seguiu circulando pelo mundo, tendo sido executada quarenta e quatro vezes, em quatorze países e em trinta e nove cidades espalhadas por três continentes. Paradoxalmente, no Brasil (país do autor do texto), por causa da ditadura militar, somente pode ser apresentada em 1985, após a queda do regime.
Em todas as apresentações, enquanto, estava vivo, o próprio Dom Helder foi o recitante. E o fazia com particularidades irrepetíveis de expressão inspirado e auxiliado pela música. Ele mesmo o reconhece na introdução que fizera para a primeira apresentação no Brasil, nos palcos dos Teatros Paulo Pontes (João Pessoa) e Guararapes (Recife), promovida pelo Projeto Acauã, em março de 1985: “cada vez que participo da apresentação da Sinfonia dos Dois Mundos sinto que a música, em uma hora e meia, consegue o que eu não obteria em 20 ou 30 conferências mundo afora”.
A Sinfonia dos Dois Mundos é composta de seis movimentos musicais nos quais se pode perceber o encontro da teologia com a poética literária e também, musical. A música é divina, dirá ele, atinge o nosso íntimo, o nosso pensamento e o nosso coração.
I Movimento: A audácia do Criador. Dom Helder explica que se imagina antes da criação, ao lado de Deus, na hipótese de que alguma dúvida Lhe sobreviesse de criar. O Dom Lhe encorajaria: “É verdade, Senhor, a criação quebrará a tua vaidade e, fora de Ti, só podes criar o finito, o imperfeito, o limitado. Não vaciles, Senhor! A criação será sempre o grande testemunho de audácia e de humildade.” O momento alto desse primeiro movimento é quando o coro declara a Deus que o ponto culminante de Sua audácia e humildade foi escolher a criatura humana para fazer dela uma co-criadora.
II Movimento: Homem, meu irmão. Aqui toda a criação volta-se para o ser humano querendo conhece-lo e entender porque foi ele o escolhido. Então Dom Helder lhe avisa amorosamente: “a natureza toda te contempla!” A natureza descobre que, quanto à inteligência, o homem mostra que participa da natureza divina, mas seu egoísmo pode fazer dele um egoísta irreparável.
III Movimento: Quem vai ganhar? Então se dá uma tremenda luta no homem entre a inteligência e a o egoísmo fazendo desfilar tragicamente, diante das consciências, os grandes egoísmos humanos.
IV Movimento: O Espírito sopra. É um anúncio de esperança que começa dizendo: “quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir descobre, todavia, sinais de esperança...” Supõe sinais pequenos que possam até parecer ridículos, mas são seguros sinais de esperança não só nos países pobres, mas também nos industriais e ricos. O espírito de Deus não abandona o que criou o divino Criador. Ele sopra forte e continuamente o hálito original de vida sobre o universo.
V Movimento: O espiral da violência. O tom é de maior responsabilidade e lucidez profética porque cada elemento tem endereço o e geográfico: a miséria é a violência primeira de modo que, quando a violência explode, essa é já a segunda violência. Em seguida vem a repressão que é a terceira e definitiva violência.
VI Movimento: No meio da noite. Há um diálogo vivaz entre os pessimistas e os esperançosos. Os primeiros dizem em coro que as palavras de justiça, amor e paz são ingenuidades que desmoronarão sob o peso da realidade. Termina no ápice teológico poético em que o coro dos esperançosos e iluminados cantam que tanto mais sombria é a noite, mais bela é a aurora que ela carrega em seu seio e que, ao amanhecer, sob o sopro do Espírito, haverá um só mundo em sinfonia. Ele sopra no meio da noite!
A Sinfonia dos Dois Mundos é figura emblemática do encontro entre dois mundos que perguntam-se sobre o sentido da vida voltados respectivamente para a beleza e a verdade que devem ser transparentes em todo o criado, de modo especial na humanidade.
Conclusão
Ao final do estudo deste tema, tem-se a sensação de ter apenas mencionado o que se pretendia fazer, pelo quanto são inspiradoras as várias vertentes dialógicas no encontro entre teologia e poesia quando se trata de pensar teologicamente a poética da Sinfonia dos Dois Mundos como exemplar da alma profética que moveu a vida ousada de Dom Helder Camara.
Em sua paradoxal e complexa simplicidade de vida e de sensibilidade, Dom Helder foi modelo de uma teologia viva em constante abertura para o universo criado, sedento de ver restaurada, na história, a beleza original do Criador, por meio do anúncio da Verdade, de modo pacífico, dialogando e afetando o mais íntimo da natureza humana com esta mensagem.
Pela Sinfonia dos Dois Mundos e, conhecendo a sua trajetória existencial, evidencia-se a profunda consciência que ele desenvolveu de ser co-responsável pelo desenrolar da história enquanto palco em que a criação assume, aos poucos, os traços definitivos pensados pelo Criador, onde não pode faltar a justiça, a esperança, a alegria, a vibração pela vida e, enfim, a capacidade amorosa e transcendente de afetar-se e afetar num discurso vital que envolve teologia, poesia e profecia.
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Bibliografia
ÁVILA, Fernando Bastos. Dom Helder Camara. Em: BINGIMER, Maria Clara e YUNES, Eliana (Orgs.) Profetas e Profecias numa visão interdisciplinar e contemporânea. São Paulo: Editora Loyola, 2002, p. 58 – 61.
BEOZZO, José Oscar. O Dom e eu: Dom Helder câmara e o Concílio Vaticano II. In Instituto Dom Helder Camara – Postagem do Blog em 10 de setembro de 2015. BROUCKER, José. The conversions of a Bishop. Great Britain: Collins, 1979.
CAMARA, Helder e KAELIN, Pierre. A Sinfonia dos dois mundos. Edição Privada: 1979. Disponível no acervo da casa Museu do Instituto Dom Helder Camara, Recife-PE.
CAMARA, Helder. O Deserto é fértil. Roteiro para as minorias abrâmicas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 13ª edição, simples 1985.
KATEN, Nelmo Roche Tem. Uma vida para os pobres: espiritualidade de D. Helder Camara. São Paulo: Editora Loyola, 1991.
LINHARES, J. O homem é o evento de uma autocomunicação de Deus, absoluta, livre, gratuita e que perdoa. Abordagem do núcleo da existência cristã no primeiro Rahner. Tese (doutorado) – Belo Horizonte. Faculdade Jesuita - FAJE, 2012.
RAMPON, Ivanir Antônio. O Caminho Espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Editora Paulinas, 2013. — [1]“Paul’s letter are rhetorical works, not objective depictions of reality. What we encounter in Paul’s letters is not the ‘real’ Paul or the ‘real’ audience, but Paul momentary construction of both himself and his intended audience” (STANLEY, 2004, 63). A crítica literária moderna superou a questão que, considerando a autonomia do texto, uma vez publicado, havia quase que cancelado a importância do autor. Hoje, compreende-se que “author, texts and readers are part of equation in written communication” (BROWN, 2008, p. 57).
[2]Já na retórica clássica se falava da possibilidade de mesclar os gêneros. Cf. QUINTILIANO, 2003, III.4.16; LAUSBERG, 1990, p. 61. A respeito do gênero misto nas cartas paulinas, cf. KENNEDY, 1984, p. 19; LONG, 2004, p. 24-28; KLAUCK, 1998, p. 171-172.
[3]As emoções tratadas por Aristóteles são ira, a calma e tranquilidade, amor e ódio, temor e confiança, vergonha, favor, indignação e compaixão, emulação, inveja e desprezo.
[4]A partir daqui seguir-se-á a fundamentação teórica de Alex Vilas Boas em Teologia em diálogo com a literatura, origem e tarefa poética da teologia. São Paulo, Paulus, 2016. Serão indicadas as páginas para que se distingam a fundamentação teórica da articulação proposta pela autora do artigo.Notas