O som secular da religião: elementos religiosos na linguagem aberta e estética da prosapoética musical buarqueana
The secular sound of religion: religion elements in the open and aesthetic language of the musical poetical prose buarquean
Ronaldo Cavalcante*
*Doutor em Teologia Dogmática pela Universidad Pontificia de Salamanca-ES (1999); Pósdoutor em Teologia Pública pela Faculdades EST de São Leopoldo-RS (2009) e em Teologia Protestante pelo PTS – Princeton Theological SeminaryNJ-USA (2016). Professor titular na Faculdade Unida de Vitória. Email: ronaldopcavalcante@ yahoo.com.br
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Se tudo foi criado - o macho,
a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador
(Chico Buarque,
“Sobre todas as coisas”, 1997).
Resumo
A obra musical de Chico Buarque vem sendo estudada durante as últimas décadas. Ela constitui um retrato do Brasil desde os anos 60 e continua atual, ainda que aborde temáticas não necessariamente políticas e de protesto. O seu valor estético é incomensurável. Não apenas pelo uso do nosso vocabulário esquecido, explorando suas filigranas, mas principalmente pela forma como tal vocabulário está utilizado, pelo mosaico que ele forma, possibilitando leituras as mais diversas possíveis – trata-se de uma obra aberta, na qual os limites entre o real e o ficcional são tênues. Nesse particular, o instrumental hermenêutico-semiótico e filosófico de Umberto Eco torna-se por demais útil para decifrar compreender seus enigmas, que abrangem aspectos de intertextualidade literária, biográficos, políticos, de relacionamentos pessoais, de ética social e também religiosos na descrição do imaginário brasileiro, recorte que aqui escolhemos como fator de delimitação.
Palavras chave:Chico Buarque, Umberto Eco, estética, obra aberta, linguagem religiosa,
Abstract
The musical of Chico Buarque has been studied for the last decades. Since the sixties it constitutes a portrait of Brazil and even after many years remains current even tought it addresses not necessarily political and protest themes its aesthetic value is incommensurable. Not only by yhe use of our forgotten vocabulary, exploring it’s filigrees, but mainly by the way in wich such vocabulary is used, by the Mosaic that forms, allowing readings as diverse as possible – it is an open work, in wich the boundaries between real and ficcional are tenuous, in this particular the hermeneutic-semiotic and philosophical instrumental of Umberto Eco is more than useful to decipher and understand the enigma wich cover aspects of literary intertextuality, biographical, political, personal relationships, social ethics and religious, wich build the Brazilian imaginary and also become our delimitation clipping.
Keywords:Chico Buarque, Umberto Eco, aesthetic, open work, religious language
Introdução
O presente artigo é, na verdade, um ensaio, uma tentativa de leitura sintética de identificação e talvez de compreensão dos elementos religiosos na composição musical buarqueana; trata-se, pois, de fenômeno sígnico verificado em letras de canções em suas várias fases. Para tanto, o instrumental a ser empregado nesta tarefa, integra o campo da semiótica conforme exposto pelo filósofo italiano, Umberto Eco (1932-2016)1 em seu conceito de valor estético. Utilizo também os interlocutores com quem Eco, em decênios, dialogou durante sua fulgurante carreira acadêmica, literária e pública. Com tal equipamento, pretende-se abordar algumas canções de Chico Buarque (1944)22 em seus elementos religiosos.
De um lado, reconhece-se que quase toda a obra de Umberto Eco está repleta de estudos e menções sobre a temática da estética; aqui nos limitamos às suas reflexões em seu representativo livro Obra aberta (1962), a partir do qual, se nota que a “abertura” indica um tipo de obra de arte ou literatura, que, dentro de sua indeterminação, aspira por ser complementada no ato interpretativo do receptor com o propósito de que o objeto artístico, em seu processo construtivo, seja finalizado.
De outro lado, há décadas que o cancioneiro de Chico Buarque é objeto da análise em vários campos do conhecimento. Salvo engano, trata-se do artista brasileiro, juntamente com Caetano Veloso, que mais desperta a atenção de críticos de música, literatos, jornalistas, educadores, historiadores, acadêmicos ou não, que se debruçam durante anos sobre a obra buarqueana; ultimamente filósofos e semioticistas3 percebem nele um filão de pesquisa inesgotável, tudo isso na tentativa de decifrar seus enigmas, saber das personagens, explorar as minúcias escondidas do texto e desvelar seus segredos. Talvez, para alguns, com isso chegar ao emissor, ao cérebro que os criou, como que tentando entender, por exemplo, a riqueza intelectual de sua formação ou, o porquê de seus posicionamentos políticos. Não creio ser esta uma estratégia segura. Eco, ainda que se ressinta de “eliminar o pobre autor”, ideia veiculada por Roland Barthes, afirma que “Temos de respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa assim-e-assim” (ECO, 2016, p. 77). O texto basta por si mesmo, ele é um fenômeno, um espaço, um locus onde se dispõe todo o necessário à espera das “interpretações”, das leituras e releituras do receptor (leitor empírico), cuidando de evitar a semiose estética e o risco de “superinterpretações”.
Entrementes, subjaz sempre aquela dúvida: como determinadas letras de canções conseguem conter e descrever com tanta maestria e profusão de figuras os cotidianos, as realidades ficcionais, os mundos, as atividades, os sonhos, as almas? Por isso mesmo, há que se ressaltar, o nível da escrita buarqueana, que em muitas ocasiões, suscita a questão: afinal, suas letras são prosa ou poesia? Trata-se de literatura? A literatura é cantável? Opto por conceituá-la como prosa-poética. É uma fala a respeito do cotidiano de uma nação, de temas sociais, de política e cultura, de gênero, de paixões populares, dialetos herméticos de um gueto, de um casal, de encontros, de separações e de reencontros futuros num “tempo de delicadeza”, sobre corpos e almas desnudados. Guardadas as devidas proporções, uma vez que falamos de composição musical popular, seus recursos estilísticos e intelectuais, sem o mínimo resquício professoral ou academicista, podem ser comparados na literatura aos infindáveis recursos de um Shakespeare, de um Dostoievsky, de um Joyce, de um Goethe, de um Garcia Márquez, Borges ou dos nossos, Guimarães Rosa, Machado de Assis...
Mencionar ainda, até como justificativa do presente ensaio, que o estudo das linguagens religiosas em perspectiva acadêmica e no campo da semiótica no Brasil4 já tem feito progresso considerável em nosso contexto. O elemento original está no fato de que signos religiosos estejam presentes em letras de músicas de Chico Buarque. Suas letras falam de quase tudo, inclusive de religião, muito embora sejam citações tangenciadas apenas, percebe-se nele, o uso da linguagem religiosa na intenção de dizer outra coisa. A seguir, temos a exposição sobre nosso instrumento de leitura, a estética semiótica de Umberto Eco.
1 Obra aberta e estética semiótica em Umberto Eco
Desde inícios do século XX, quando a Semiótica, no sentido moderno como a conhecemos hoje, foi apenas intuída e vaticinada em F. de Saussure55, sem desconsiderar o mencionando por J. Locke em seu Essay
O terceiro ramo pode ser chamado Semeiotiqué, ou doutrina dos signos. Sendo as palavras os mais usuais, podemos denomina-lo logique, lógica, que considera a natureza dos signos que a mente usa para entender as coisas ou para transmitir o conhecimento delas para outros [...] Mas como a cena das ideias que perfazem os pensamentos do homem não se mostram imediatamente para a contemplação de outro homem, mas põe-se na memória – um repositório não muito confiável –, é preciso signos de ideias, seja para comunicar nossos pensamentos, seja para registrá-los para uso próprio (LOCKE, 2012, p. 793).
e ainda, a obra fundamental de Charles S. Pierce6, até o presente momento, muito já se produziu e trata-se de um campo de pesquisa monumental auxiliando na qualidade da leitura, na análise dos discursos, no entendimento das linguagens, na arte de decifrar os signos. Por sua vez, a Estética7, como disciplina filosófica antiga, somente a partir do Renascimento é que vai adquirindo status de autonomia, gradualmente foi sendo rejeitada aquela abordagem religiosa que interpretava o belo no sentido metafísico; doravante, o belo ficaria vinculado à arte como uma forma de conhecimento. Por fim, no Iluminismo, ela se transforma em disciplina filosófica. A. Valls, a propósito, registra que isso se dá em “1750 por ocasião da publicação do livro de Alexander Baumgarten intitulado Aesthetica” (VALLS, 2002, p. 15). Parece ser um caminho sem retorno no qual o aspecto estético fica reduzido ao cognoscível, ao sensível como também Kant e Hegel endossam. H. Marcuse, sintetiza a conceituação de estética citando Baumgarten, para quem “existe uma ciência da sensualidade, ou seja, a estética... o objetivo e propósito da Estética é a perfeição do conhecimento sensitivo. Essa perfeição é a Beleza” (MARCUSE, 1999 p. 164). Cabe registrar que, após essa evolução conceitual, na qual o sensível e o belo definem o estético; o teólogo suíço, H. U. von Balthasar (1905-1988), com sua obra Herrlichkeit. Eine Theologishe Ästhetik, volta a insistir no aspecto religioso mencionando a revelação de Deus ao homem como o momento belo e, portanto, estético, novamente procurando um lugar para o elemento religioso em um espaço dominado pelo racionalismo. De certa maneira, é também o que fazemos aqui, a percepção da presença do sagrado na cultura e no cotidiano, ainda que diluída em ambiente profano.
O interesse de Umberto Eco pelo tema da estética como disciplina acadêmica, manifesta-se precocemente; já em 1956 elaborou um estudo acerca do Problema estético em Tomás de Aquino88, com base em sua tese de doutoramento em 1954. Daí em diante vários textos foram produzidos enfocando a estética da linguagem. É disso que tratamos aqui. O que faz uma linguagem ter valor estético?
[...] um apelo mais direto à sensibilidade através do artifício fonético leva-nos, sem dúvida, ao limiar de uma operação comunicativa particular, que poderemos indicar, ainda que em sentido latente, como “estética”. O que estabeleceu a passagem ao estético? A tentativa mais decidida de unir um elemento material, o som, a um elemento conceitual, os significados postos em jogo: tentativa canhestra e elementar, pois os termos ainda são substituíveis [...] (ECO, 2007, p. 79).
Eco, para uma obra de arte aberta, contemporânea, fixaria, como critério de identidade, seguindo R. Jakobson9, um par de conceitos, são eles: a) “ambiguidade” – que se relaciona com a necessidade sempre presente de interpretação. H. I. Keske explica: “toda obra de arte será aberta porque não comporta apenas uma interpretação” (KESKE, 2007, p. 114), que segundo Eco, precisamente por ser ambígua, favorece essa pluralidade de sentidos, e por isso mesmo que não permite o controle do discurso, “não tende a nos definir a realidade de modo unívoco, definitivo, já confeccionado... apresenta-nos as coisas de um modo novo para além dos hábitos conquistados, infringindo as normas da linguagem, às quais havíamos sido habituados” (KIRCHOF, 2007, p. 43); b) “auto-reflexividade” – E. R. Kirchof, especialista na literatura de Eco, em belo artigo, esclarece esse conceito, ao citar o próprio Eco:
[...] o receptor é levado não somente a individuar para cada significante um significado, mas a demorar-se sobre o conjunto dos significantes (nesta fase elementar: degustá-los enquanto fatos sonoros, intencioná-los enquanto matéria agradável) (Ibid).
Na entrevista a Augusto de Campos, U. Eco, em resposta à pergunta: O que significa discurso aberto? Afirma que,
[...] ele me reenvia antes de tudo não às coisas de que ele fala, mas ao modo pelo qual ele as diz. O discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura (ECO, 2007, p. 280).
Desse modo, o conceito de “abertura”, torna-se um instrumento teórico para a leitura e entendimento da obra de arte contemporânea. Em tal processo, a figura do intérprete é fundamental. Como explica Keske, “o processo estético estaria continuamente aberto às complementações de um espectador imaginativo... É nesse sentido que, para Eco, toda obra de arte é “aberta” (KESKE, 2007, p. 114). Por conta, pois, destas pluralidades hermenêuticas que atuam no processo estético de construção da obra de arte, na tarefa receptiva, tem-se como produto, conforme já dito, uma mensagem ambígua e, portanto, com a geração de vários significados possíveis.
Eco divide a linguagem em referencial e emotiva; formas de discursos em que aquela se mostra mais rígida e esta mais dada ao prazer. E pontua que “a esteticidade não está mais do lado do discurso emotivo do que do lado do discurso referencial” (ECO, 2007, p. 83). No uso estético da linguagem incide uma ação do emissor que manipula a expressão de tal modo que o resultado é uma alteração no próprio conteúdo, em uma locução verbal ou em um texto. Esse fato chama a atenção dos semiólogos, uma vez que, sendo uma operação de transformação agindo sobre a forma e o conteúdo, sobre significante e significado, resulta em signos, portanto, configura-se aí uma função semiótica de compreensão dos mesmos. Assim, o conteúdo é reajustado. Essa operação de manipulação soma-se ao reajustamento do conteúdo, “produzindo um gênero de função sígnica altamente idiossincrática e original” (ECO, 1991, p. 222), age nos códigos fundantes da ação estética, quer dizer, os códigos que possibilitam a comunicação, nesse sentido, “um código é essencialmente sinônimo de linguagem, um sistema semiótico autônomo que não precisa de tradução para tornar-se inteligível” (NÖTH e SANTAELLA, 2017, p. 151), Nesta seção, os autores estão discutindo exatamente o conceito de Códigos em U. Eco.
Como se pode perceber, a ideia de código é bem importante para Eco, como destacam os autores mencionados na nota anterior. De fato, essa movimentação interna na linguagem, segundo ele, acaba
[...] provocando um processo de mutação de código; a operação completa, mesmo quando visa à natureza dos códigos, produz com frequência um novo tipo de visão de mundo; enquanto visa a estimular um complexo trabalho interpretativo no destinatário, o emitente de um texto estético focaliza sua atenção nas suas possíveis relações, de modo que tal texto representa um retículo de atos locutivos, ou comunicativos, que objetivam solicitar respostas originais (ECO, 1991, p. 222) [itálicos do autor].
Por tudo isso, Eco entendia o texto estético como um experimento pragmático e, dessa forma, exposto a um relativismo radical uma vez que não estaria em condições de limitar as interpretações. Contudo, ao vincular o leitor/receptor a uma visão estética do mundo, conseguiria remediar esse “ponto fraco” de sua teoria. Keske esclarece que diante disso, Eco, na década de 1970 “passa a se dedicar quase que exclusivamente aos estudos semióticos” (KESKE, 2007, p 115). Na verdade, sua teoria semiótica foi desenvolvida desde sua obra A estrutura ausente, como identifica W. Nöth, “Nesta obra, a semiótica de Eco estava ainda sob a influência das teorias da informação, da comunicação, da cibernética e da semiologia estruturalista”1010, mas que já anunciava uma crítica à tradição estruturalista. De fato, na quarta seção do livro, itens 3, 4 e 5. Eco empreende uma crítica substancial ao estruturalismo de Lévi-Strauss que em suma seria a tentação “de reduzir a discurso homogêneo a experiência viva de objetos científicos, uma espécie de verdade lógica, verdade da razão e não de fato” (ECO, 2003, p. 284). Assim, a realidade estrutural possui um status apenas metodológico em sentido operacional, portanto relativo, sem uma objetividade ontológica como queria Lévi-Strauss, podendo seus modelos serem substituídos diante de novas evidências.
Se, por um lado, em Eco, a primazia da interpretação é uma necessidade digna de nota, com primazia inconteste, teorias sedimentadas em Obra aberta, Tratado geral de semiótica, A estrutura ausente e As formas do conteúdo por outro, em Lector in fabula Eco analisa a interpretação propriamente dita em seus aspectos pragmáticos, preocupando-se com a liberdade das interpretações e seus perigos. Aqui, trata-se do exercício dialético interpretativo no qual, estão em jogo os intuitos do autor e a ação hermenêutica do leitor; no próprio texto estão projetadas as estratégias de um leitor ideal Em Os limites da interpretação, o fenômeno do texto volta a ser contemplado e o leitor deve conjecturar sobre a intenção da obra, “A iniciativa do leitor em fazer uma conjectura sobre a intentio operis, conjectura essa que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico” (ECO, 2004, p. 15). Quer dizer, ele se pergunta pelo leitor que o próprio texto postula – a “fruição estética” só acontece quando leitor colabora de forma responsável atualizando seus conteúdos. Como ele explica, “... o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes. Os limites da interpretação, coincidem com os direitos do texto” (ECO, 2004, p. XXII). O texto, ainda que aceite complementos para os vazios textuais, gerando variáveis interpretativas, deverá ser respeitado em sua intentio operis.
2 O êxtase da palavra e o locus religioso na estética buarqueana
estória narrada na letra. No caso do samba Corrente, trata-se de uma engenhosidade que te permite ler a letra do início ao fim, e do fim ao início, ambas leituras com lógica precisa. Na gravação original, o autor canta nos dois sentidos e se encontra com ele mesmo no eixo central. No encarte do LP, o próprio Chico explica: “nesta corrente, os versos são elos que podem ser dispostos livremente, conforme as preferências do usuário; observe-se por exemplo que uma mesma corrente tanto pode ser lida para a frente quanto para trás” (BUARQUE, 1976). De certa forma aqui temos a “obra aberta” de que falava ECO, ou a tentativa de minimizar os aspectos de ambíguos do texto.
A estética se revela também no enorme esforço por achar a palavra, o sinônimo que caiba perfeitamente na métrica e no desenrolar da narrativa e respeite seu enredo, uma prática contínua de palimpsesto, sem contar o fato até recorrente de que em algumas canções existem mais de uma letra. Em uma entrevista antológica, Tom Jobim, falando sobre a linguagem buarqueana, afirma que o que mais lhe impressionava em seu amigo, era que “ele fala Português ... essa esquecida linguagem”. A diversidade e riqueza no uso do nosso vernáculo realmente impressiona em se tratando de composição musical popular, eis alguns exemplos: contravim, diagonal, piracema, embevecia, paralelepípedo, pulsação, despertador, pálidos economistas, parafusando, sanha, priscas, lua cris, dilatada, tórax, escafandristas, sonâmbulo, ofegante epidemia, bazar, pródigo, quimbundos, capataz, flácidas, vozmincê, barcaça, estabanada, éter, rolimã, missionário, tremeluzir, lirismo, traqueia, costurando, sanatório, tabariz, ganja, chafariz, unguento, astronomia, posta-restante, redondilhas, pregas, reverendo, chalupa, cerze, engatinhaste, engalfinha, furta-cor, roendo-as-unhasmente, prumada, frigobar, orifício, salpicar, sortilégios etc, etc... De fato, são dezenas de palavras, expressões, a priori estranhas ao cancioneiro popular – o vocabulário buarqueano sobra, transborda, enaltece a língua de Camões!
Falamos, pois, de uma linguagem sofisticada, não apenas por conta da riqueza de seu vocabulário, conforme já dito, mas pela densidade literária de suas letras; uma experiência estética que transcende o usual do próprio mundo literário, como diria mais tarde na canção Uma palavra (1989) em que diz: “Palavra boa / Não de fazer literatura, palavra / Mas de habitar Fundo / O coração do pensamento, palavra”. O repertório é variadíssimo a partir de um arsenal de palavras, bem descrito por um especialista de primeira hora:
O conteúdo literário das primeiras canções de Chico origina-se de seu domínio da rima e do ritmo, de sua cuidadosa manipulação de efeitos sonoros, de sua coerente forma de estruturar o texto poético e seleção lexical, do uso de metáforas e símbolos, da sutileza no uso de figuras de linguagem e nas ideias, e da percepção profunda de fenômenos psicológicos e sociais. (PERRONE, 1988, P. 39).
Há que se registrar; o fenômeno descrito acima, caracteriza o Chico das primeiras composições, vinte anos e pouco mais11, como por exemplo: Tem mais samba e Marcha para um dia de sol (1964); seu primeiro compacto com Sonho de um carnaval, Olê, olá e a emblemática Pedro pedreiro (1965). No ano seguinte, com 22 anos, ganha os prêmios de crítica e de público no IV Festival de Teatro Universitário de Nancy na França. Ainda em 1966, além de Com Açúcar, Com Afeto, Quem te viu, quem te vê; lançou a marchinha A banda, dividindo o primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira com Disparada de Theo de Barros e Geraldo Vandré e ainda lança seu primeiro LP – Chico Buarque de Hollanda. Em 1967, Carolina fica em terceiro ligar no II FIC (Festival Internacional da Canção) e Roda viva é classificada em 3º lugar no III Festival da MPB e lança seu segundo LP – Chico Buarque de Hollanda, vol. 2. Bom tempo (1968), junto com Toquinho, fica em segundo lugar na Bienal do Samba e Benvinda vence o IV Festival da MPB; participa da passeata dos Cem Mil e vence o Festival Internacional da Canção com a música Sabiá, com melodia de Tom Jobim, ocasião em que recebem aquela famosa e estrondosa vaia no Maracananzinho; passado isso, Sabiá, uma linda canção em diálogo com a “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, em pura intertextualidade, foi se firmando como uma das principais de seu cancioneiro. Nesse mesmo ano lança seu terceiro LP – Chico Buarque de Hollanda – vol 3; a montagem da peça Roda Viva é depredada em São Paulo, no Teatro Galpão, atores e técnicos são agredidos pelo CCC – Comando de Caça aos Comunistas, grupo de reacionários que agia especialmente no meio estudantil.
Nas décadas de 70 e 80, percebe-se que o refinamento de sua palavra, de suas letras, mesmo nas canções de protesto, intensifica-se em diálogo com o momento histórico-político do país. “Não é difícil perceber que, às vezes, Chico Buarque faz como se virasse, com uma canção, a página da história” (WISNIK, 2004, p. 243). Em 1970, logo após voltar de seu autoexílio na Itália, lança seu quarto LP, e também um Compacto com Apesar de você, fenômeno de vendas até ser censurado. No ano seguinte, então com 27 anos, lança o LP Construção, considerado um divisor de águas na música brasileira e igualmente campeão de vendas, um álbum, de fato, símbolo de uma época, com o qual
...funda um novo caminho no interior da obra de Chico Buarque e apresenta alguns de seus argumentos diante do impacto provocado pelo projeto estético e pelo exercício de linguagem tropicalista, pela violência da ditadura militar [...] Construção é um disco exemplar da atuação de seu autor: revela muito sobre a execução das estratégias de intervenção do compositor no contexto intelectual, político e estético da época (STARLING, 2009, p. 11, 12)
São os “anos de chumbo”, Em muitas apresentações Construção foi entoada junto com Deus lhe pague sem interrupção – tragédia e ironia estão ali estampadas – era o rescaldo de um “país da delicadeza perdida”.
Nesse contexto, o elemento religioso em Chico, surge de forma surpreendente como um negativo da foto. Aqui, na Construção de Chico, o Operário em construção (1959) de Vinicius de Moraes, não sublima a dor, não consegue dizer aquele “não” retumbante e inspirador ao patrão, não toma consciência de sua importância social, não vence o mal como na narrativa evangélica e na poética de Moraes. Chico faz uma releitura do poema, afasta-se da mística religiosa de seu compadre e aponta a tragédia urbana de uma vida destituída de sentido maior, transcendente; o destino do operário, após descrever um cotidiano de “cimento e lágrima” está posto como uma sina inescapável e finaliza: “Morreu na contramão / atrapalhando o público”. Em agonia, o operário sequer pode bradar um “Deus lhe pague” irônico, portanto, um réquiem não-dito, apenas surge no anseio do autor e que expressa bem o momento crítico em que ele vivia. Perrone, percebe aí uma “litania fingida baseada na inversão de uma fórmula linguística comumente usada para demonstrar gratidão” (PERRONE, 1988, p. 83). Um tempo de “Desalento” (1971), terceira faixa do LP Construção, que expõe uma relação amorosa rompida, e com isso retrata bem aqueles dias obscuros de ditadura militar em nosso país, tempo de exceção, de obrigação ao silêncio, de repressão e de tortura – “...Que o meu desalento/Já não tem mais fim”. A morte do operário equivale ao “Me embriagar até que alguém me esqueça” de Cálice (1973), composição em parceria com Gilberto Gil, desse mesmo período e que novamente evoca o elemento religioso como instrumento de catarse, um cálice metamorfoseado semanticamente em cale-se na esperança de sua proscrição – “Pai afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”. Sim, aqui temos, um componente religioso, uma oração, “Pai” firma a posição da voz lírica, que se dirige a um símbolo em tom de veemente súplica” (FONSECA, 2013, p. 35), contudo, na boca de Chico, o significado é claramente social e político por meio de um esforço alegórico. Relata uma condição dramática. Fonseca é ainda mais preciso,
O cálice, que seria sagrado, na verdade, encontra-se conspurcado pelo vinho sacrificial, que é o sangue dos cidadãos assassinados pelo regime de exceção. Não é o sangue sagrado da doação, mas o vinho tinto líquido obscuro, do sacrifício daqueles que lutaram por liberdades e foram imolados/assassinados nas câmaras de tortura, dando a vida pelo ideal de liberdade e justiça, em prol da coletividade. (FONSECA, 2004, loc cit.).
O religioso, aqui serve de “gatilho”, como mediação para fins distintos; evoca uma doutrina cristã tradicional – o sacrifício vicário –, porém, sem conotações metafísicas, arma-se de uma hermenêutica contextual muito devedora do já apregoado pela TdL – Teologia da Libertação, o que confirmaria no futuro sua estreita amizade com teólogos promotores dessa corrente de interpretação, como Frei Betto e Leonardo Boff1212. No entanto, este último consegue, em nome da “graça”, dar um sentido espiritual e humanista cristão ao Deus lhe pague buarqueano: “Se assim é, então, “tudo é graça”, pois tudo é feito com a força e energia que percebemos de Deus: o bem e o mal, o pão prá comer e o crime pra comentar. Daí se justifica o refrão “Deus lhe Pague” (BOFF, In: FERNANDES, 2013, p. 94). Já Frei Betto, diz que “Nele [Chico] também o verbo se faz carne, e música e texto e protesto. Por isso, preza tanto o espaço que o abriga: o silêncio, onde apreendeu com os monges a lapidar significantes e significados” (BETTO, In: FERNANDES, 2013, p. 53). O Chico desse período vivencia a crise política e social no seu mais alto grau, não se permite qualquer forma de escapismo, religião é apenas uma linguagem, mas que pode sim ser utilizada. Para Chico “... inventar o meu próprio pecado” significa ter a liberdade de escolha. Em suas canções, Chico Buarque põe em andamento um processo de secularização dos elementos religiosos, transfigura-os em “munição” política e social.
A expressão religiosa aparece ainda na enigmática e indefinível composição O que será (1976), em suas três versões, Abertura/À Flor da Pele/À Flor da Terra, como uma fórmula ineficaz, insuficiente diante das questões da existência humana – “Que nem dez mandamentos vão conciliar... Que nem todos os santos... Que juram os profetas embriagados”. Se aplicarmos esse mesmo princípio à canção Moto-Contínuo (1981), considerando sua “reserva de sentido” como instrumento para “abrir” a obra e decifrar seus segredos eliminando sua ambiguidade, seguindo Eco, a expressão “você” que se repete 12 vezes, certamente ganharia um sentido sublime, divino. Isso fica claro especialmente na parte final do poema: “E quando um homem já está de partida / da curva da vida ele vê / Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque / Sabe que um homem vai fundo e vai fundo e vai fundo / se for por você. Típico artifício em uma obra aberta ainda que não esteja na intentio operis mas com o risco de uma superinterpretação.
No ano seguinte, juntamente com Edu Lobo, Chico compôs as músicas para o balé “O grande circo místico” (1982). Entre elas, se destacam, dentro da temática que aqui contemplamos, Sobre Todas as Coisas, A Bela e a Fera e Beatriz. Todas são peças fundamentais no mosaico interpretativo que Chico Buarque fez para transpor ao mundo musical uma peça literária que é parte integrante da obra A túnica inconsútil (1938) de Jorge de Lima (1895-1953), que conta a história de um clã circense – Knieps, na verdade, os bastidores dessa história. Autor que fez parte da segunda geração modernista, escreveu e discutiu sobre o negro e na literatura oscilou entre o formalismo e o misticismo. A primeira das canções mencionadas, posteriormente incluída no CD Paratodos (1993), relata um desejo intenso não correspondido e, por isso mesmo se utiliza de uma forte argumentação religiosa de persuasão e convencimento: “Pelo amor de Deus/Não vê que isso é pecado, desprezar que lhe quer bem/Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém/Abandonado pelo amor de Deus” (BUARQUE, 1982). No contexto da obra de Jorge de Lima, é o marido, Ludwig quem religiosamente implora a que Margarete permita-lhe tocar, pois, ela, em revolta contra o pai, Oto, que lhe proibira ir ao convento, tatua em seu ventre a “Via-Sacra do Senhor dos Passos”, para que ninguém a tocasse. Entretanto, Rudolf, boxeur, integrante do circo, sendo ateu, não respeitando Margarete, a violenta, drama musicado na canção A Bela e a Fera que, “O enunciador na canção, homem-fera, dispara em desejo e brutalidade” (MOUSINHO, 2013, In: FERNANDES, p. 229). Beatriz fecha a trinca, Chico usa de sua criatividade e transforma a equilibrista Agnes em Beatriz, uma atriz. Homenageia Dante Aligheri e sua Divina Comédia. Beatriz, junto com São Bernardo conduzem Dante ao Paraíso, passando antes pelo Inferno e Purgatório. Nela estão incluídos, conforme nos diz Dante no Paraíso, São Pedro, São Tiago, São João Evangelista. Seria Beatriz simplesmente um símbolo da teologia, portanto de todo o edifício religioso medieval, ou seria ela Beatrice Portinari, a musa inspiradora de Dante, sua paixão terrena? Parece ser que Chico prefere a humanidade de Beatriz, ainda que aponte suas virtudes espirituais, a própria condução de Dante, evidencia isso, no entanto, aqui também, Chico, seculariza, desmistifica, mesmo a musa de Dante: “Será que é pintura / O rosto da atriz”, “E se ela só decora o seu papel”; “ Será que é cenário a casa da atriz”; “E se as paredes são feitas de giz; “Será que é mentira” CLARK PERES, 2016, p. 85). Sua Beatriz, brasileira, pode “despencar do céu”, revelando sua humanidade. “Afinal, é uma montagem na qual se insere a canção é um circo que, mesmo sendo “grande” e “místico, traz as marcas do prosaico e do profano” (CLARK PERES, 2016, p. 86).
Duas canções, em sua integralidade, tratam de forma explícita a temática religiosa. A primeira é Salmo (1985), do LP O corsário do rei, composta, entre outras, para a peça de teatro homônima de Augusto Boal, encenada no Rio de Janeiro, no mesmo ano e posteriormente inserida no CD Álbum de Teatro (1997), que também incluiu a instrumental Oremus, composição de Edu Lobo (ainda sem letra), além de Beatriz, Sobre todas as coisas e A Bela e a Fera, todas estas comentadas acima, com interessantes elementos religiosos. Salmo traz a realidade religiosa do Antigo Testamento, é um típico cântico de lamento, no qual, o sofrimento do servo fiel está sublimado, transfigurado em desejo ardente. Em meio a “grande torpor”, o devoto oferta louvor ao seu Deus: “Rendo-vos mil graças, meu Senhor”. Ademais, em meio ao tormento e confusão, suplica: “Fustigai-me, meu Senhor”. E na espera da salvação, por conta de tão nobre penitência, a súplica se desdobra em absoluta submissão:
Meu Deus abri-me as portas
Da eterna servidão
Lançai-me vossa cólera
No templo de Sião
A segunda é A permuta dos santos (1987/1988) igualmente em parceria com Edu Lobo. Música feita para o balé Dança da meia-lua e que consta no CD Chico Buarque de 1990. Em seu encarte, a letra está precedida de uma preciosa citação do Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câmara Cascudo:
Outro recurso muito eficaz, o mais eficaz de todos eles, consiste em “contrariar” os santos [...] Em 1779 as imagens de Nossa Senhora da Conceição do Apodi e Nossa Senhora do Impossíveis foram permutadas, vindo as duas em procissão, num percurso onde houve sermão e cânticos. Caiu uma chuva tão forte que o padre vigário fez voltar as procissões para suas respectivas sedes, e ainda brotou uma fonte de água onde os dois andores defrontaram... por onde o catolicismo mantém as formas mais doces e primitivas. (Apud BUARQUE, 1987/1988).
A canção é uma interpretação desse fenômeno, mergulha no imaginário religioso popular brasileiro setecentista, mas o faz de forma jocosa e simpática descreve as permutas dos santos, tudo em ritmo de ladainha. Ao final das várias permutas descritas, Chico, acrescenta seu comentário de humor crítico e revelador: “Mas se a vida mesmo assim não melhorar / Os beatos vão largar a boa-fé / E as paróquias com seus santos / Tudo fora de lugar/ Santo que quiser voltar pra casa / Só se for a pé”. De certa maneira, a ação secularizadora buarqueana continua aqui, ignora o milagre supostamente ocorrido e em seu luar, ressalta não só a apostasia – “Os beatos vão largar a boa-fé”, mas também uma penitência às avessas – “Santo que quiser voltar pra casa Só se for a pé”. O folclore brasileiro surge precisamente desses acontecimentos que transgridem a formalidade e o previsível do rito.
Na canção Paratodos, primeira faixa do CD de mesmo nome (1993), Chico exalta a mpb em seus principais autores, Desde seu “maestro soberano”: Antonio Brasileiro até “jovens à vista” receitando-os contra males que tradicionalmente a religião tem se ocupado: “contra fel, moléstia, crime / Use Dorival Caymmi / Vá de Jackson do Pandeiro... Fume Ari / Cheire Vinícius / Beba Nelson Cavaquinho e assim, vai passando pelo baião, pelo choro, pelo velo samba, pela tropicália, bossa nova, jovem guarda, instrumentistas e grandes intérpretes da mpb. Quem tem acesso a essa farmacopeia necessita religião? A arte não é isso também, essa abertura às realidades transcendentes mas não necessariamente religiosas? Na música Carioca, faixa inicial do CD As cidades (2001), de repente surge “O reverendo num palanque lendo o Apocalipse”, nada mais! Se mistura à mixórdia carioca. Luta com o vendedor de tapioca quentinha e gostosa por um espaço, briga com o baile funk, com o samba no Flamengo, em meio a asas delta, gaivotas, perdido na neblina da ganja, é um ser deslocado, estranho, porta um discurso do futuro apocalíptico, embora datado, oferece respostas para perguntas inverossímeis, está fora de seu habitat. Cinco anos mais tarde, em seu CD Chico Buarque Carioca (2006), dedicado Rio de Janeiro, em sua primeira faixa, descreve o Subúrbio, mencionando geograficamente bairros e favelas – “[...] Lá não tem moças douradas expostas, andam nus pelas quebradas teus exus / Não tem turistas / Não sai fotos nas revistas / Lá tem Jesus / E está de costas / Fala Maré, Fala Madureira...” (BUARQUE, 2006). O subúrbio fala por si, está só, o Estado não chega, pois, “a chapa é quente”, a própria religião, segundo Chico, lhe deu as costas, a indiferença não é apenas geográfica, trata-se de um apartheid brasileiro que se repete nas periferias das grandes cidades.
Em Sinhá, parceria com João Bosco, décima faixa de seu CD Chico (2011) narra com detalhes uma situação dramática em um Brasil antigo, contudo, atual – o tema da escravidão e um cotidiano concreto da época: o tronco. Chico, pela boca do escravo açoitado, responde à violência iminente por meio do sincretismo religioso – “eu choro em Iorubá mas oro por Jesus”, na simplicidade de uma pequena frase, o enfrentamento de um problema crônico da realidade brasileira, ontem e hoje. A tolerância, que Gilberto Gil já havia cantado em “Guerra Santa”, a propósito do “chute na santa” como superação do ódio, da guerra, da desigualdade, irrompe precisamente no desespero da vítima diante de seu algoz, a camuflagem religiosa em nossa história salvou-nos barbárie total. Nesse mesmo álbum, está a canção Querido Diário, faixa inicial, como que se apresentando, a partir do nome se deduz claros nuances biográficos, sua letra fala por si: “Hoje topei com alguns conhecidos meus / me dão bom-dia cheios de carinho / Dizem para eu ter muita luz, / ficar com Deus / Eles têm pena de eu viver sozinho /... Hoje pensei em ter religião / De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício / Por uma estátua ter adoração / Amar uma mulher sem orifício”. O desejo religioso se faz efêmero e logo passa, em seu lugar acontece o amor, o desejo que inflama:
Hoje, afinal, conheci o amor
E era o amor, uma obscura trama
Não bato nela, não bato
Nem com uma flor
Mas se ela chora, desejo me inflama
(BUARQUE, CD – Chico, 2011)
Considerações finais
É muito comum perceber que Chico Buarque em suas canções cria personagens, montando uma história ao redor delas, é bem possível que traços do autor estejam presentes no emissor e sejam comunicados aos receptores. São abordagens do cotidiano brasileiro, porém, ainda que sejam corriqueiras, são construções sofisticadas, como que nivelando por cima a capacidade de compreensão de suas narrativas. Trazem em si outros contextos geográficos, brinda-nos com a clássica literatura brasileira e estrangeira. Seus intertextos são primores da arte literária, aliás, em algum momento em entrevista, reconheceu ter mais intimidade com a literatura do que com a própria música; assim, Camus, Joyce, Guimarães Rosa, Shakespeare, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes entre tantos; são seus interlocutores ao veicular nas canções sua visão de mundo. Essas raras condições criam, segundo Eco e outros a possibilidade de dialogismo, com o qual as obras podem ser complementadas.
A religião se insere, precisamente aí. Não obstante manter uma equidistância respeitosa, reconhece nela um elemento natural da cultura brasileira, formadora de sua identidade como nação. Mesmo que em momentos lhe pareça ser indiferente, e talvez até um fator de alheamento, fruto de sua formação intelectual, ela (a religião) vez por outra se insinua e nela os enigmas buarqueanos continuam nos deslumbrando.
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Referências
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BUARQUE, Chico. CD – As Cidades, 2001.
BUARQUE, Chico. CD – Chico Buarque Carioca, 2006.
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Notas
[1]Umberto Eco foi durante anos professor na prestigiosa Universidade de Bolonha, catedrático na área de Semiótica. Simultaneamente foi um romancista, escreveu obras primorosas como O nome da rosa (1980), transformado em filme, O pêndulo de Foucault (1988), seguido de A ilha do dia anterior (1994), Baudolino (2000) e várias outras, além de uma infinidade de artigos e livros acadêmicos nas áreas de hermenêutica, semiótica, filosofia da linguagem; e ainda entrevistas e textos para jornais e revistas.
[2]Francisco Buarque de Hollanda, nasceu no Rio de Janeiro a 19 de junho de 1944. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia Cesário Alvim. Possui hoje uma obra musical extensa e bem diversificada, inclusive obras teatrais, trilha sonoras para o cinema; simultaneamente é também autor de inúmeros livros de ficção, vertidos para mais de uma dezena de idiomas, com prêmios acumulados. Para muitos, Chico é, de longe o maior compositor da música brasileira, uma composição que dialoga constantemente com a literatura e com o cotidiano brasileiro. Para detalhes biográficos Ver (ZAPPA, 1999).
[3] Ver (WISNIK, 2004, TATIT E LOPES, 2008; TATIT, 2009), a meu ver, são os principais autores na abordagem semiótica de músicas brasileiras, trazendo novas interpretações e compreensões do fenômeno musical brasileiro.
[4]Destaco duas obras-coletâneas que podem nos dar a dimensão do crescimento desse campo de estudos no Brasil: (NOGUEIRA, 2013) e (NOGUEIRA, 2015). Antes disso, vale destacar também, (KIRCHOF, 1999), em abordagem greimasiana.
[5](SAUSSURE, 2006 Diz: “Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego sêmêion, “signo”. Ela nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência não existe ainda, não se pode dizer o que será; ela tem o direito, porém, à existência; seu lugar está determinado de antemão”, p. 24). [Itálicos do autor].
[6](PEIRCE, 1977), obra inspiradora para o Saussure.
[7]Ver sobretudo, (PAREYSON, 1984) e (LIMA, 1973, pp. 13 a 77).
[8]Sua tese de doutoramento (ECO, 1970.
[9]Ver JAKOBSON, 1969, 150: “A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua. A mensagem de duplo sentido encontra correspondência num remetente cindido, num destinatário cindido e, além disso, numa referência cindida...”). Para Jakobson, “numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral” p. 119).
[10](NÖTH, 1996, p.166). Todo o cap. VII dessa obra – “O Campo Semiótico de Umberto Eco” (165-177), é bem útil para a compreensão de seu pensamento.
[11]Grande parte das informações da cronologia buarqueana, até 2009, são tiradas da linha de tempo em HOMEM, Wagner. Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009, p. 322-333; Cronologia até 2003, Discografia, Bibliografia, Filmes e DVDs em SILVA, Fernando de Barros e. Chico Buarque. São Paulo: Publifolha, 2004, p. 134-174; Ver ainda, BUARQUE, Chico. Tantas palavras. São Paulo: Cia das Letras, 2006
[12]Ambos participaram no livro em homenagem a Chico Buarque de Hollanda nos seus 60 anos , Frei Beto. “Chico, silencio e palavra”, p. 49. Leonardo Boff. “Chico Buarque e a cultura humanista e cristã”, p. 83-94. In: FERNANDES, Rinaldo de (org.) Chico Buarque do Brasil: textos sobre canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004.