De razões mais epifânicas...
Epifanical reasons

Luis Gustavo Meléndez Guerrero *
En 1957 Octavio Paz publicaba su gran poema Piedra de Sol, un poema extenso, 584 endecasílabos que sugieren una búsqueda compleja. El autor nos advertía en una nota que aparecería sólo en la primera edición, que, “este número de versos es igual al de la revolución sinódica del planeta Venus, que es de 584 días, [ciclo temporal que los antiguos mexicanos llevaban en su cuenta]” (Paz, Libertad bajo palabra, 333). Desde la figura estelar de Venus hasta las serpientes que rodean la piedra del sol cerrando/abriendo un círculo, se nos presenta a nosotros una constante evocación a la divinidad. La escritura en endecasílabos, según el poeta, se acerca al modo más natural del habla, su lectura pausada evoca un vaivén que por momentos hace pensar precisamente en un laberinto en donde el camino toma direcciones insospechadas que van y vuelven, para luego continuar un sendero que no se sabe bien a dónde conducirá.
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Resumo
Este artigo tem o objetivo de analisar o livro de poesia Coleção de epifanias, não apenas no sentido de realizar uma resenha do mesmo, ao contrário, a análise será feita utilizando aspectos teóricos da crítica literária, historiografia da literatura, teologia, história da cultura e antropologia teológica. Vários poemas deste livro dialogam com saberes e imagens religiosas, mitológicas e pagãs, dando a este livro uma riqueza expressiva singular, justamente o que se encontra nesta revista – Teopoética – que em suas diferentes edições tem trazido estes diálogos, estes saberes cruzados entre cultura, teologia e literatura. Uma poesia fortemente marcada pela presença do sagrado, uma poesia que intertextualiza com o sagrado ou uma teodiceia poética? São questões que serão analisadas neste artigo, neste exercício de crítica literária marcado pela pluralidade analítica em relação ao objeto escolhido.

Palavras chave:poesia; sagrado; mito; intertextualidade

 

Abstract
This paper aims to analyse the poetry book Coleção de epifanias, not just doing a single review of it, on the contrary, this analyses will be done using theoretical aspects of the literary critics, literature historiography, theology, history of the culture and theological anthropology. Several poems of this book dialogue with skills and religious, mithological and pagans images, offering to this book such a great a unique richness, what can be found in this magazine itself – Teoliterária – that in its different editions has brought these dialogues, these cross skills among culture, theology and literature. A poetry deeply marked by the presence of the sacred, a poetry which dialogues with the sacred or a poetic theodicy? These are some questions which will be analysed in this paper, in this exercise of literary critics marked by analytical plurality concerning the chosen object

Keywords:poetry; sacred; myth; intertextuality.

I

Embora um conhecer teórico da Crítica Literária, eu nunca me aventurei muito pelo mister hermenêutico que caracteriza esta atividade que tanto tem, ao longo do tempo, despertado paixões, intrigas, (in)justiças, canonizações e silêncios. Criticar é, etmologicamente, analisar, ler com cuidado, ler com um olhar mais instrumentalizado, ler de forma comprometida e também comprometedora. Acho, em suma, que criticar é adentrar em vários universos: do autor, da obra, de partes específicas do texto, do estilo, das intenções e de todo o mecanismo criativo, se é que isto é integralmente possível.

Alceu Amoroso Lima (1883-1983), um dos maiores críticos literários que o Brasil já teve, sempre “pensou criticamente a Crítica”, isto é, sempre buscou compreender uma certa metalinguagem no seu fazer analítico, tanto que afirmou:

A função do crítico, penso eu, não é de julgar. Quando muito de avaliar. Acima de tudo, compreender, participar e comunicar. Tentar compreender o espírito da obra e, por extensão, o do autor. Participar, na medida do possível, da própria criação ou recriação da obra, já que considero a crítica como uma forma de criação literária e não apenas de avaliação e reflexo. Finalmente, compete ao crítico comunicar ao seu leitor e ao leitor das obras o seu próprio depoimento como leitor e participante1.

Com essas opiniões, Alceu reconfigura substancialmente o papel da Crítica e do próprio crítico de literatura. Ao afirmar que “a função do crítico não é julgar, porém compreender e participar”, Amoroso Lima bate de frente com as premissas clássicas da Crítica Literária, estas viam tal atividade como um ato de julgamento, de estabelecimento de hierarquias valorativas quanto ao objeto analisado e seu respectivo autor. A crítica servia para estabelecer conceitos, jogando por terra ou divinizando autores e obras, justamente o contrário da proposta de Alceu em “tentar compreender o espírito da obra e do autor”. Sobre o que devia ser evitado no ato crítico, Alceu afirmou:

Não está muito longe dessa concepção da cirurgia clássica a imagem da crítica, como a concebe a opinião pública. Se o serrote fora o emblema do cirurgião é o do crítico a palmatória. Espírito de contradição, incapaz de entusiasmo, fechado a toda emoção espontânea, só haveria de natural no crítico a paixão do erro, a paciente investigação de defeitos pela dissecção da obra, estudada a bisturi e a microscópio2.

Alceu utilizou diversas metáforas da medicina para analisar o modelo tradicional de Crítica Literária. De fato, muitos críticos seguiram esses passos anatômicos na análise de obras e autores, contribuindo sobremaneira na perpetuação da imagem do crítico como aquele que perseguia o objeto criticado e tentava extrair deste toda sorte de minúcias temáticas e formais. Era o exagero de uma prática formalista que tanto tempo configurou a Crítica Literária. No Brasil, o melhor exemplo foi Osório DuqueEstrada, mas também não nos esqueçamos de Machado de Assis (que também foi crítico literário!), José Veríssimo, Sílvio Romero, Araripe Júnior, Nestor Victor, Agripino Grieco, dentre outros.

Neste modelo analítico, salta aos nossos olhos o profissional que o exercia, este “Espírito de contradição, incapaz de entusiasmo, fechado a toda emoção espontânea” que fazia do erro a natureza da sua atuação. Era a ideologia da perfeição literária, do texto “saído da oficina sem qualquer defeito”, para intertextualizar com a Profissão de Fé, de Olavo Bilac33. Daí considerar-se este modelo hermenêutico como uma espécie de autópsia textual. Em 1945, Alceu publicou O Crítico Literário, livro-chave para compreendermos as suas convicções a respeito do profissional e da própria Crítica Literária. É nele que encontramos essa definição:

Há, pois, uma distinção inicial entre crítica e criação. Mas não há dissociação e muito menos antagonismo. E por isso é que o segundo elemento de nossa definição é que a crítica é, também, uma atividade criadora. A crítica supõe, no crítico, qualidades análogas às do criador: vocação, inspiração, invenção, estilo. Para ser realmente crítica tem de ser também criadora. [...] Nunca dissociei crítica de criação. Não há criação autêntica sem crítica, nem crítica autêntica sem criação44.

Alceu deixou bem claro que, embora fossem realidades artísticas totalmente diferentes, a criação estava associada à crítica, uma vez que ao analisar o objeto artístico em questão, o texto produzido era também uma realidade criada, pensada. Por isso os requisitos que o crítico devia possuir: “vocação, inspiração, invenção, estilo”, ou seja, as mesmas qualidades que se espera de um artista. Contra qualquer possibilidade de equívoco quanto às suas opiniões, Amoroso Lima sempre fez questão de esclarecer o caráter de diálogo entre essas duas instâncias criadoras. Mais uma vez, recorremos às suas Memórias Improvisadas para sabermos um pouco mais acerca desses assuntos:

Como considero a crítica uma forma de criação, deve ser ela, antes de tudo, de tipo intelectivo, ao passo que a obra, poética ou de ficção é uma atividade antes de tudo instintiva e intuitiva. [...] Sendo a atividade crítica primacialmente intelectiva, seu campo de penetração difere, ou por excesso ou por deficiência, dos campos de ação da própria atividade poética ou ficcionista, de tipo instintivo e intuitivo. Assim sendo, nunca pode haver uma penetração analítica completa da criação crítica na obra de criação poética ou ficcionista5.

Alceu delimitou as fronteiras de cada uma das atividades. A crítica pressupõe um trabalho de inteligência, de associação de conhecimentos, de produção de saberes. Já a obra puramente literária circula no espaço da intuição (como defendia, por exemplo, o escritor italiano e também crítico Benedetto Croce) – é a criação por natureza, fruto do trabalho intuitivo do artista. Ou seja, criação e crítica se entrelaçam, se comunicam, porém mantendo cada uma a sua especificidade, por esta razão que “nunca pode haver uma penetração analítica completa da criação crítica na obra de criação poética ou ficcionista”. São processos criativos diferentes, mas não conflitantes, mantendo uma considerável independência. Em outros textos teóricos de sua autoria, Alceu analisou a relação nem sempre pacífica entre crítico e o autor da obra. Segundo ele,

Há um outro elemento, porém, que dá vida e calor à crítica literária, ainda sem lhe tirar o caráter severo e sistemático. Não basta que a alma do crítico se projete sobre a obra, que ele se entregue totalmente à sua compreensão, como queria Henry James, - to lend himself... to feel and feel until he understands. A alma do crítico deve procurar a alma do autor. Através da obra se o não conhece; fora dela, também, em caso contrário, - deve o crítico tentar fundir-se, por alguns momentos ao menos, com o espírito daquele cuja obra pretende exprimir e analisar, colocando-se na situação mental em que ele se encontra para criar. Sai desse contato de alma a alma uma centelha que abrasa e ilumina, que dá seiva e calor à inteligência, para a obra que pretende elevar66.

Alceu defendeu estas propostas num texto intitulado A Crítica Hoje, que serviu como introdução à sua biografia de Afonso Arinos, seu primeiro livro, publicado em 1922. Desta forma, podemos afirmar que Alceu propôs uma espécie de simbiose entre as três instâncias da crítica – autor, obra e o próprio crítico. “A alma do crítico deve procurar a alma do autor”, esta foi uma das fórmulas básicas defendidas por Amoroso Lima. Acompanhando o percurso histórico da Crítica Literária, vemos quão difícil é colocar tal ideia em prática; em muitos casos, o crítico já chega “armado” para exercer o seu papel de censor. Infelizmente, às vezes não é possível separar a crítica propriamente dita da inquisição literária, isto é, certos textos analíticos serviram mais para denegrir, condenar e perseguir certos escritores, e não para estabelecer um discurso crítico sadio e construtivo.

Entretanto, encontrar na prática este equilíbrio nem sempre foi tarefa fácil e simples de ser realizada. Por mais que o tempo passe e mudam-se as escolas literárias e também as correntes de pensamento crítico parece-me – no meu ponto de vista, eu insisto – que permanece sempre o gosto do crítico, o valor que para ele a obra analisada possui, bem como o valor que ele quer dar à mesma obra. Estamos falando da Crítica Impressionista, centrada nas impressões que a literatura causa/desperta no leitor e no próprio crítico literário. Neste sentido, lembro aqui do escritor e crítico francês Anatole France (1844 – 1924), que no seu livro La Vie Littéraire, instituíra o padrão dessa atitude que, para ele, era a única de validade para o julgamento da obra literária. Para France, o que importava no trabalho analítico eram as reações do crítico e não a obra que estava sendo analisada. Os principais critérios eram a sensibilidade, a formação cultural e o gosto do crítico. Desta forma, o ato crítico resumia-se num passeio da alma do profissional e de suas predileções estéticas através das obras. Devemos lembrar que este modelo teve, a seu tempo, uma grande aceitação na vida literária brasileira, nas primeiras décadas do século passado, especialmente na práxis de Nestor Victor e Agripino Grieco.

Nesta primeira parte, poderia ter começado com as concepções mais contemporâneas de Crítica Literária, com o que se afirma e se pratica nos estudos literários brasileiros hodiernos. Todavia, a opção pelas considerações mais clássicas de Crítica foi inteiramente proposital. Explico.

Primeiro: a opção pelas teorias de Alceu Amoroso Lima foi bem pensado e decidido. Há mais de quinze anos dedico-me a estudar, compreender, pesquisar e ensinar acerca do legado literário e humanista de Tristão de Athayde. Desde o meu mestrado, defendido na PUC-Rio, em 2003, que a obra de Alceu – principalmente a sua epistolografia – é o meu principal objeto de estudo e reflexão. Assim sendo, é natural que eu sempre recorra às teorias do grande crítico em matéria de Crítica Literária.

Segundo: que se realiza muito em função da minha primeira consideração. Há, infelizmente, nos dias atuais, uma concepção errônea de que a Crítica “morreu”, de que não se necessitam dos críticos, de que não existe literatura ruim, de que tudo que é escrito em forma de verso é poesia, de que o clássico é enfadonho e desnecessário, que o cânone é demasiado arbitrário, que o antigo cheira a mofo e que o contemporâneo é mais democrático. Na minha opinião, tudo falácias, coisa daqueles que não estudam a fundo o fenômeno literário nas suas mais complexas realizações e que, por isso mesmo, essa suposta flexibilidade crítica da contemporaneidade ajuda tão somente a disseminar o lixo, o grosseiro e algumas péssimas experiências ditas literárias.

Mas nãos nos esquecemos que vivemos em plena era das superficialidades, numa perigosa sociedade do espetáculo na qual a arte, infelizmente, encontra-se envolvida em criações nem sempre valorosas do ponto de vista estético. Com isso, acabo de xingar um palavrão na concepção de alguns: o adjetivo estético, visto por muitos como algo mofado e delineador de um elitismo academicista. Nesta mesma sociedade do espetáculo, em determinadas situações e contextos, a literatura tem sido usada como objeto de consumo daquilo que pior se obtém da indústria cultural. Não raro tem sido ver escritores se tornando estrelas do show business, celebridades, cuja obra é sabida e vista, mas não lida, analisada e problematizada. A este respeito, concordo com Leyla PerroneMoisés:

O grande juiz da obra literária é o tempo. Se uma obra continua a suscitar novas leituras, não é porque ela contém valores essenciais, mas porque ela corresponde a indagações humanas de longa duração, concernentes à vida e à morte, ao amor e ao ódio, à paz e à guerra, e porque essas indagações estão nela formuladas numa linguagem cuja eficácia significante é reconhecida por leitores de sucessivas épocas. É esse reconhecimento que faz um “clássico” e o insere num cânone. O tempo é também juiz dos críticos literários. O grande ensaísta português Eduardo Lourenço disse, uma vez, que não são os críticos que julgam as obras, mas são as obras que julgam os críticos. Os grandes críticos são aqueles que conseguem dizer algo novo a respeito das obras antigas, e são capazes de reconhecer uma nova obra de valor (portanto virtualmente duradoura) no mesmo momento em que ela é publicada. Eles são tão raros quanto os grandes escritores7.

Talvez esta seja a fórmula básica: “Os grandes críticos são aqueles que conseguem dizer algo novo a respeito das obras antigas, e são capazes de reconhecer uma nova obra de valor [...] no mesmo momento em que ela é publicada”. Enfim, creio que a Crítica Literária seja a construção de um valor, e não apenas uma espécie de inquisição literária, conforme já foi (e continua sendo) feito.

Certamente, estas minhas ideias se chocam com o relativismo de valores da contemporaneidade, e mais ainda: muitas patrulhas ideológicas levantar-se-ão contra mim após a publicação deste meu texto. Não ignoro esta possibilidade, mas confirmo estas minhas opiniões. Acho que a boa literatura é aquela capaz de fazer perguntas ao mundo, como já asseverou o filósofo Roland Barthes, isto é, a literatura é sempre uma pergunta, uma dúvida, não uma resposta. Numa outra perspectiva que se interliga à esta proposta, a Crítica é sempre uma das possíveis respostas. Termino esta primeira parte com o sintomático questionamento do filósofo e crítico literário francês Antoine Compagnon, no seu artigo Après la littérature:

Hoje, que interesse tem ainda a leitura literária? É noutro lugar que se aprende como funciona o mundo: diante de uma tela. Outras formas de cultura, ao mesmo tempo mundiais e locais, vêm à luz. Qual será o lugar da literatura e do livro na cultura digital do século XXI, afastada do modelo filológico e nacional do século XIX? Para que serve o estudo literário? Em nome de que fazer sua apologia? Eis uma série de questões às quais devemos responder antes de baixar os braços8.

Neste afã, para que serve a publicação de um livro de poesia como este Coleção de Epifanias, que ora vem a lume pela pena sofisticada de Cláudio Guimarães dos Santos? O que há de valor nestes poemas e neste novo livro? O que “fica” após a sua publicação? Que valores e imagens permeiam a seu fazer literário?

Como afirmado anteriormente, a literatura é movida mais por perguntas do que por respostas, mais por hipóteses do que teses. Que estas minhas dúvidas possam direcionar a segunda parte deste ensaio, pensando e problematizando este Coleção de Epifanias, tentando sentir e perceber nele valores e direções, Beleza e técnica.

II

Dizem que a boa exegese de um livro começa por analisar o seu título. Há críticos que defendem que o título encerra uma ideia geral para a totalidade da obra, há ainda outros que defendem que o título é uma espécie de resumo temático do livro. Escolher título sempre me foi das dificuldades uma das maiores. Como condensar tanta informação em poucas palavras, às vezes numa única expressão? São afazeres que o autor, obrigatoriamente, deve pensar e decidir corretamente. Neste sentido, Coleção de Epifanias me parece ser destes títulos sugestivos, intrigantes, complicados e cheio de uma semântica própria, de um universo que tenta se desvendar à medida que a gente vai passando as páginas do livro. Não pretendo aqui analisar cada poema, pois acho isso um tanto inconveniente, prefiro as ideias gerais, a organização lógica do conjunto, talvez as motivações mais amplas e, claro está, falar rapidamente acerca das impressões despertadas na leitura de alguns destes poemas, talvez aqueles com vida própria, aqueles que nos chamam, que pedem a nossa atenção. Sim, porque acredito que alguns poemas saltam à nossa vista, pedem a nossa consideração em lê-los, gritam pela nossa atenção. É apenas isto que proponho, não uma análise de cada peça aqui publicada.

Mas voltando ao título – Coleção de Epifanias – me parece que Cláudio Guimarães dos Santos nos oferece uma reflexão bem mais abrangente, especialmente se relacionarmos as concepções mais clássicas de epifania, fenômeno de grande complexidade, dos mais importantes nos estudos teológicos. Nos dicionários de Teologia, são várias as possibilidades interpretativas acerca de epifania:

a) aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado a um contexto espiritual e divino;
b) no contexto da Revelação bíblico-cristã, a epifania é uma mensagem de Deus aos homens, como o foi o próprio nascimento de Cristo;
c) do ponto de vista filosófico, a noção de epifania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência e a natureza das coisas, solucionando e esclarecendo determinados conceitos;
d) na literatura, epifania é toda e qualquer manifestação, na economia do enredo, que transmite e propõe um entendimento, um significado, uma consideração, uma outra via de compreensão crítica.

Considerando esta plêiade de possibilidades interpretativas, é importante afirmar que elas não finalizam em si, são apenas o pontapé inicial de uma proposta literária muito mais ampla que se apresenta neste livro, que se abre, por exemplo, logo no primeiro poema que é também o título da obra – Coleção de Epifanias – do qual destaco os seguintes versos:

A vista do vale que supõe o abismo.
O texto que jamais será escrito.
A dor da minha finitude.
O deus que desistiu da eternidade.
As memórias que comigo passarão.
O ano imponderável que virá.
[...]

Cada verso é uma chave epifânica para o que o autor quer propor neste seu Coleção de Epifanias, publicado em 2017, numa edição bilíngue português-espanhol pela Bohodón Ediciones, de Madri. Digo uma “chave” no sentido mesmo de abertura para um sentido, pois cada verso propõe, em si, uma experiência de epifania, de revelação, de um vir a ser, de um porvir. Se, no geral, considera-se “epifania” como uma manifestação de algo maior, que nos toma e envolve, vejo neste primeiro poema um pouco do que se tem em todo o livro. Mas não seria a Poesia, num sentido mais amplo, uma epifania? Parece-me que sim, especialmente se levarmos em consideração as antigas artes poéticas, e lembro agora da Carta aos Pisões, de Horácio, poeta latino que defendeu a ideia de que Poesia é revelação divina, propiciada por uma inspiração igualmente divina, aliada à técnica e ao apuro da linguagem. Não estaria aí uma excelente noção de epifania? Creio que sim, como creio que o verso “O texto que jamais será escrito” é revelador, numa ordem inversa, do que “será escrito”, pois Poesia também pode ser o texto que deixa de ser escrito/grafado, mas que é dito em outras linguagens, em outras sensibilidades, como no verso “A dor da minha finitude”, o qual proclama esta real dor que nos persegue – que terminaremos – que teremos o nosso fim seguro e garantido, inexoravelmente, já que “O deus que desistiu da eternidade”.

Evoquei Horácio não apenas pelas propostas teóricas da sua Arte Poética no que concerne às significações da Poesia, mas também por considerar positivas as suas ideias quanto ao apuro da linguagem, à construção do texto, à arquitetura do verso e das estrofes. Neste sentido, julgo que o autor de Coleção de Epifanias é marcado, no seu estilo de escrita, pelo abuso das anáforas, esta figura de linguagem caracterizada pela repetição, proposital, das mesmas palavras e/ou expressões no início do verso, como se percebe em passagens como esta, do poema “No tempo em que meu pai não tinha filhos”:

Dos beirais,
Dos campanários,
Dos panamás elegantes, Dos hábitos antigos,
Dos cachos das donzelas,
[...]
Na história que esculpiu formas e cores,
Na loquaz rigidez dos monumentos,
Nos sons dos acalantos e das marchas,
Nos compassos de Tardes de Lindoia,
[...]
grifos meus)

Toda a construção deste poema é anafórica, neste sentido da disposição inicial de cada verso. Trata-se de um dado estilístico, próprio deste autor, que provoca uma certa repetição, um eco, um ritmo próprio, uma cadência que gera um bom efeito quando se recita um texto como este.

E não é só mérito de escrita que encontramos neste mesmo poema, mas acho impossível não analisar certas ideias que soltam quando de uma leitura mais atenta, principalmente nesta passagem:

No shalom, no amém, no inshallah, no ahimsa
Todos vácuos e impossíveis),
Nas pencas de museus redundantes,
Nas imagens invocando iconoclastas,
Num verão apocalíptico e branquíssimo,
De um Deus que é poeta e não geômetra
E que aposta com o Acaso só pra ver-nos confundidos.

Esta passagem é de uma grande beleza, pois congrega uma certa teodiceia globalizante que une as diferentes tradições religiosas, estas nos ajudam a fazer uma leitura acerca da presença milenar do sagrado nas nossas sociedades. O “shalom”, o “amém” e o “inshallah” formam esta tríade monoteísta entre Judaísmo, Cristianismo e Islamismo que se une na Poesia, e que se esperaria unir-se, igualmente, no mundo real contemporâneo. Já que “Deus que é poeta e não geômetra”, a Poesia pode – e deve – funcionar como elemento de ligação, e Deus então deveria ser o princípio de união, não de diferenças e separações, como se vê atualmente. Já que Deus é poeta, devemos ser os ouvintes da Sua poesia, não os separatistas em nome do sagrado, justificando este mesmo sagrado para as disputas e idiossincrasias meramente humanas e egoístas. No fim deste mesmo poema, assim Cláudio Guimarães faz a sua fatura interrogativa:

Eu contemplo tudo isso
E, aqui, fico cismando,
Nesta noite enluarada:
Como será,
Num futuro que, espero, está distante,
O tempo em que meu filho não terá mais pai?

É uma pergunta que eu também me faço: o que virá? Esta dúvida ontológica que tanto moveu – e ainda move – poetas e filósofos, particularmente os existencialistas, que teimam em encontrar respostas para tais indagações, que o digam Sartre, Ionesco, Beckett, Proust e tantos outros que se debateram sobre este tema, nas artes ou na ensaística. Muitas são as tentativas de definição teórica para literatura, mas particularmente gosto muito desta ideia nem sempre presente nos manuais de teoria literária: literatura é uma espécie de contramargem, de algo contra ao senso comum, só que escrito de forma artística e ficcional. Não estaria aí o cerne de uma peça como Esperando Godot, de Samuel Beckett? Creio que sim. Não estaria aí muito do que se quer com este Coleção de Epifanias? Também creio que sim. Muito desta ontologia, sinto ao ler o poema “Presente de natal”, do qual destaco os seguintes versos:

Retorno ao Princípio do sentido,
Ao Foco de onde nasce toda vida,
Ao Solo de onde brota toda luz,
Ao Centro de onde emana todo ser,
E peço compaixão pela ousadia
De um mero pecador se perguntar:
“Por que padeço a Graça de existir?”

É um desejo claro de se auto compreender, uma vontade de se atingir este “Princípio” criador e ordenador de tudo, o marco zero da nossa existência “de onde nasce toda vida” e de “onde brota toda luz”, sendo este o lócus “de onde emana todo ser”. O questionamento final do eu-lírico me parece deveras sintomático: “Por que padeço a Graça de existir?”, isto é, uma dúvida muito análoga as do filósofo Arthur Schopenhauer, principalmente no seu livro O Mundo como Vontade e Representação, de 1819. Parece-me mesmo que esta interrogação acompanha, de forma insistente, o eu-lírico, como se percebe no poema “Encontro antigo em Sintra”,do qual retirei o seguinte fragmento: “Será que flagraste, por fim, o inaudível marulhar do Ser?”. Trata-se de um verso poderoso, diria até perigoso, pois esta “inaudível marulhar do Ser” é enigmática e potente em inúmeras significações e que, na minha interpretação pessoal, leva-nos a conceber o sentimento de finitude da vida e das experiências, como deflagrado em outro momento deste mesmo texto:

Não esqueças, sobretudo,
Que somos o crepúsculo: saudemo-lo!
Que somos o ocaso: brindemo-lo!
Que somos o gran finale: alegremo-nos!

O vocabulário é todo carregado e selecionado de termos que expressam esta sensação de fim da vida: “crespúsculo”, “ocaso”, “gran finale”.

Sinto, neste Coleção de Epifanias, como no próprio fazer poético de Cláudio Guimarães dos Santos, um desejo um tanto desesperado de unir as pontas paradoxais da vida e da existência: o começo e o fim, o alfa e o ômega. Algo muito parecido se encontra na obra de Cecília Meireles, cujo desejo mais explícito era unir o eterno e o efêmero, o sempre e o agora, como muito bem proposto no poema “Feuilles mortes”, no qual se leem estes versos:

Anoitecem, em Paris, as luzes brilhantes de França.
Madrid, boêmia insone, consome-se em pesadelos.
Com a coroa enferrujada, morre Londres, em silêncio.
Berlim é um resto de muro, que não guarda, mas expõe.
Desfaz-se, na contingência, a eternidade de Roma.
Lisboa, velha cidade, é, enfim, cidade velha.

A ideia de consumação é flagrante nestes versos, e termos como “anoitecem”, “consome-se”, “enferrujada”, “resto”, “desfaz-se” e “velha” tornam-se unidades nucleares de cada ideia que se quer transmitir. Mas talvez seja esta uma antiga demanda da literatura: fazer com que o leitor se deflagre, se encontre ou se perca, mas nunca fique imune e indiferente a uma leitura carregada de problemas e dramas, organizada em torno de dúvidas, não de respostas claras e definitivas.

Este existencialismo beira, em alguns momentos, a fronteira do desespero questionador, já que o eu-lírico não se envergonha das dúvidas que possui, da falta de sentido que determinadas situações provocam, inclusive, clamando as esferas do sagrado e do místico que lhe deem uma resposta, uma solução. Tão situação – tensa e de fronteira – podemos perceber no poema “Rompendo em fado”, um panegírico à cultura portuguesa, dedicado à Amália Rodrigues e sua herança:

Rio do Deus que, hoje, chora,
Porque, um dia, riu-se de mim,
Sem saber que, sendo nada,
Sou menos que qualquer coisa
E menor que tudo o mais.
A não ser por meu humor,
Que me salva do vexame
De existir sem mesmo ser.

Uma afirmação como esta “Que me salva do vexame / De existir sem mesmo ser” é assaz problemática, pois antagonizam-se as ideias de “existir” e de “ser”, despertando um dos problemas mais antigos da Filosofia, desde os tempos clássicos até a contemporaneidade. Porque questionar o existir nunca é algo ultrapassado, ao contrário, é um dos maiores sintomas do ser moderno. Não modernista. Mas moderno no sentido de perene, atual. Não estaria aí uma das maiores concepções da noção de clássico? Acredito que sim. E sigo destacando os melhores momentos deste poema:

Choro com o Deus que, hoje, ri,
Renascido das gotículas
De um dilúvio que passou,
Que contempla, com ironia,
O mundo inteiro molhado,
Em barro de novo feito,
Porque sabe que é impotente,
Já que tudo só depende do Destino,
Que arrepia, incompreensível,
A pele assustada das coisas,
Pairando perto e remoto,
Abaixo e acima de tudo,
Tão pequeno e tão imenso,
Que nem pode ser tocado.

Há uma ironia quanto à presença e ao real papel exercido por Deus nesta dinâmica, colocando-O numa posição contrária ao Destino “Que arrepia, incompreensível, / A pele assustada das coisas”. Uma pergunta que se levanta: Deus e Destino são sinônimos ou antônimos? Deixo ao leitor a tentativa desta resposta. Todavia, seja lá qual for, esta deve passar obrigatoriamente pelas noções de onisciência e onipresença tão próprias do divino, do sagrado.

Finalizando um pouco este debate acerca da problemática existencial presente em Coleção de Epifanias, ressalto apenas algumas passagens dos poemas “Canto de todos os cantos próprio” e “État des lieux”. O primeiro, um grande poema deveras complexo, caudaloso na temática e nas sugestões interpretativas, destaco estes versos:

Pois o pó que nos espera é sempre o mesmo,
Pois o pó que nos espera é sempre sábio,
Pois o pó que nos espera é sempre eterno,
Pois o pó que nos espera é sempre feito
Das limalhas do presente que partiu antes do agora.

Há que se destacar os recursos expressivos de construção deste texto, enfatizando a já falada opção pela figura de linguagem conhecida como anáfora, aqui presente na repetição proposital da conjunção explicativa “pois” no início de quatro versos seguidos.

Retornamos à temática explícita da finitude, aqui metaforizada na ideia de “pó”, que recebe inúmeros adjetivos que ajudam a qualificá-lo – “mesmo”, “sábio”, “eterno”. Tal opção tem base em relatos e concepções bíblicas, presentes especialmente no Antigo Testamento, quando a eternidade era a antítese da matéria sobrada do fogo, das chamas – o pó. Não nos esqueçamos de que Deus – alfa e ômega – na perspectiva judaico-cristã, criou o Homem a partir do pó do barro. Numa outra direção, este mesmo Deus reduziu parte da sua mesma criação ao pó, principalmente quando enviou o fogo para redimir e purificar a todos do pecado, que o diga o fogo consumidor de Sodoma e Gomorra. Tais questionamentos se completam com algumas passagens do outro poema – “État des lieux”:

Repetimos, orgulhosos,
Que nascemos do nada,
Que morremos por nada,
Que vivemos para nada,
E damos graças por isso.

Estes versos concluem a segunda parte deste meu ensaio. Uma conclusão bem ao gosto da filosofia de Sartre, um tanto nadificada, buscando um sentido, propondo uma complicada confissão do eu-lírico a respeito do nosso destino comum: o nada. Para ele e por causa dele “nascemos”, “morremos” e “vivemos”. Ou seja, esperamos algo, precisamos continuar acreditando que algo existe e virá ao nosso caminhar para trazer-nos qualquer tipo de alento, de paz. Por esta razão, é que “damos graças por isso”.

III

Falar de clássico, de teopoéticas, chegamos aos temas mais caros e melhor explorados neste livro de Cláudio Guimarães, pelo menos na minha avaliação crítica. Embora suspeito de eleger e preferir tais assuntos, especialmente pela minha formação na área de Teologia, gosto sempre de explorar tais interseções do sagrado nos textos literários, exatamente o que é investigado criticamente pela Teopoética, área dos estudos comparados em franco crescimento e estabelecimento sistemático e definitivo na Universidade brasileira. Para ilustrar um pouco do que afirmo, escolhi o seguinte poema:

RESPOSTA: JÓ.
As angústias, alargadas.
Os medos, descoloridos.
As invejas e os rancores feitos pó
(E, ao pó, rendidos).
Desarmado o sofrimento,
Veio a calma concentrada
Do silêncio que revela
As ranhuras da existência
E os recheios das palavras
Com que sonham os sentidos do Sem-Nome.
Num poente deslumbrante,
Onde quis já não querer,
Dei-me conta do engano
De quem crê modificar o seu destino.
Respirei, aliviado,
Destapei os meus espelhos,
E, sem cinzas nos cabelos,
Fui viver a minha história
Com um passo decidido.

Optei em trazer o texto inteiro, pois o conjunto é realmente significativo, principalmente pela escolha do personagem bíblico Jó. Interessante o resgate – poético – que Cláudio Guimarães faz da figura de Jó (ou Job, na tradição hebraica), cujo livro é um dos grandes exemplos da literatura sapiencial do Antigo Testamento. Entre os biblistas, não existe consenso sobre a real existência de Jó; certamente, ele é apenas um personagem que serviu como exemplo para o objetivo do autor (ainda desconhecido) deste livro. Do ponto de vista das imagens construídas, Jó é uma espécie de sintoma do sofrimento vivido pelo homem justo e temente a Deus e que, por isso mesmo, não merece as mazelas que a vida lhe obriga a passar. Por que existe o sofrimento humano e suas consequências? Talvez porque, na economia do poema, chega-se à conclusão de que existem “As angústias, alargadas. / Os medos, descoloridos. / As invejas e os rancores feitos pó”, o que faz piorar o grande “sofrimento” vivido pela humanidade “concentrada / Do silêncio que revela / As ranhuras da existência”.

Há aqui uma certa concepção dramática de cristianismo vivida por este autor que, dentro das mais diferentes nadificações sofridas pelo ser humano ao longo dos últimos séculos, fornece à sua poesia uma atualidade incrível e tensa. Neste sentido, o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel tem feito uma contundente crítica a certas concepções teológicas e filosóficas que tentam, das mais diferentes maneiras, conceber a revelação cristã como algo pronto e cheio de respostas aos dramas mais básicos da condição humana, especialmente o sofrimento. Afirma Kuschel:

A revelação cristã, tal como testemunhada nas Escrituras e sempre recolocada pela teologia, não é de modo algum idêntica ao anseio pela “solução” de todas as questões. A “revelação” cristã por certo contém muitas respostas, mas a característica dessas respostas reside justamente não em fazer calar as perguntas fundamentais da existência humana, mas conduzi-las a uma perspectiva correta. As perguntas últimas do ser humano não são suspensas pela revelação, mas formuladas por ela. (Kuschel, 1999, p. 221)9.

Assim, Deus não pode ser compreendido na perspectiva da “ordenação integral” das coisas, ao contrário, os questionamentos existenciais humanos não terminam com as possíveis respostas adquiridas às perguntas formuladas. Nesse seu mesmo livro, Kuschel arremata esta situação: “Deus é a pergunta pela ordem deste mundo e pelo sentido desta vida. Uma pergunta aberta, às vezes uma ferida latejante” (Idem, p. 9). Algo semelhante, pelo menos em dramaticidade, vê-se neste seguinte fragmento do poema “Canto sem data”:

Outra vez eu retornei do Hades E, assustado como Lázaro, Tropeçando em recortes de mortalha Espalhados pelo chão, Deixei a sepultura E caminhei de volta à Luz: Cessaram lágrimas, elegias, cantilenas.

E por que o eu-lírico precisa retornar do mundo dos mortos? Não sei ao certo, mas creio que, como Ulisses, a ida ao Hades é – antes de tudo – uma catábase de auto-conhecimento, uma experiência de aprendizado, de encontro, de travessia, ainda que “assustado como Lázaro / Tropeçando em recortes de mortalha”. Tudo isso no sentido da busca, na ânsia de se conseguir algo, talvez a “luz”, conseguida após deixar a sepultura e caminhar de “volta à Luz”. Com “L” maiúsculo, pois isto é sintomático aqui

Em outros momentos do livro, o eu-lírico se dirige ao sagrado e faz uma prece, interpela às realidades superiores numa espécie de oração poética cheia de força e carga sentimental, como neste momento da bela e longa peça “Abelardo Je t’aime moi non plus Heloísa”:

(Ó Imóvel Motor que nunca cessa, Ó Chama de “Eu Sou”, imperecível, Escondo-me em Ti como de mim Te ocultas. Leva-me, Pai, para longe deste vale de enigmas, Guarda-me, quieto, no Teu colo misterioso, Rega-me a fronte com a luz das Tuas lágrimas, Extingue de uma vez a minha dor, Para que eu possa refazer-me Deus. Ou será que nunca houve a Redenção? Ou será que não virá o Armagedom? Ou será que o sacrifício do Senhor Foi pequeno para o peso dos pecados?)

Há, neste fragmento, todo um ideário clássico-religioso de intensa profundidade e semântica, na qual determinados termos possuem força por si próprios, como o “Eu sou” – o Ego sum – de tantas afirmações bíblicas e religiosas, de Cristo aos místicos, de Deus aos seus santos e santas. O eu-lírico se pergunta se “o sacrifício do Senhor / Foi pequeno para o peso dos pecados”; pelo mistério da Encarnação cristã, a resposta é não, pois Deus sempre cumpre e corresponde às suas promessas à humanidade. Vê-se aqui um questionamento próprio de um eu cético em relação à fé e ao Mistério, que pergunta se “nunca houve a Redenção” ou mesmo se “não virá o Armagedom”, isto é, o Apocalipse e suas consequências, especialmente a solidão, como se percebe neste excerto do poema “De Fausto me visto”:

Aprendi que toda regra é míope, Que toda fé é labirinto de certeza, Que os deuses recriam o universo a cada noite, Que somos eco confuso de sonho, vigília e caos, Que no fundo sem fundo da alma brilha oculta a solidão

Acho que “vigília e caos” é um excelente binômio para designar a teopoética de Cláudio Guimarães no seu Coleção de Epifanias. “Vigília” é sempre espera (nem sempre esperança), expectativa, busca. Já o “caos”, este dispensa maiores explicações. Aqui, é um paradoxo rico e necessário para compreendermos um pouco desta teogonia poética trazida a lume nesta publicação. E voltamos à prática da oração poética, num outro momento, no extenso poema “Canto de todos os cantos próprio”, já analisado neste ensaio numa outra perspectiva:

Aos pés dos santos, no altar antigo,
Que já foi até museu e é, hoje, só lembrança,
Eu me ajoelho, confiante e concentrado,
Para pedir, de novo, a força dos martírios,
Que nos permite suportar a obviedade
De tantos próceres de modos afetados,
Que acreditam saber mais que todo mundo,
Que pavoneiam flatulentos epigramas
E que cultivam a ignorância com paixão.

“Eu me ajoelho, confiante e concentrado” – trata-se de uma fé poética, na perspectiva desenvolvida pelo poeta e crítico literário inglês Samuel Coleridge, no início do séc. XIX, em plena efervescência do Romantismo inglês. Na época, Coleridge estava imbuído da mística própria dos românticos, caracterizada pelo penumbrismo e pelo gosto do misterioso, do enigmático, do obscuro, de realidade que não se nomeia. Vejo uma certa relação aqui, quando o eu-lírico clama e reza – poeticamente – pedindo a “força dos martírios”, “aos pés dos santos”. Como também se pede mais à frente no livro, no poema “Ciudad Vieja”, no qual novamente há um movimento oracional e piedoso:

Do pedaço de uma igreja,
Onde rezei inconsciente
(Única forma de ser Deus),
Ao mastro do qual pendia
A bandeira indefinida,
Tudo, ali, cheirava a limo e a carnes fumegantes.

Percebemos que para “ser Deus” é preciso, antes, passar pela experiência mística da oração, ainda que rezada de forma “inconsciente”. Não estaria aí o binômio “vigília e caos”, acima citado? Creio que sim, pois espera-se (a vigília) algo com a oração, desenvolve-se certa esperança. Todavia, a conclusão do processo é o caos, a não certeza, a desordem dos sentidos e dos sentimentos, o “limo e as carnes fumegantes”. Esta última imagem – das carnes que fumegam – é profundamente erótica no sentido mais rico deste termo, algo muito próximo do que foi feito por místicos como Santa Teresa de Ávila, famosa pelas associações metafóricas de uma mística entremeada ao erotismo das experiências físicas, especialmente a sua experiência com Cristo, já que se sentia “penetrada por uma espada que fumega”, a ponto de provocar a sensação de “um anjo emergindo do seu corpo”. Não é à toa que, ao ler estes relatos no seu O Livro da Vida, o escultor Gian Lorenzo Bernini criou uma das mais belas obras da escultura barroca – O êxtase de Santa Teresa. Toda esta teogonia, ou teodiceia literária, foi logo reconhecida por Manuel Moya, o tradutor destes Coleção de Epifanias para a língua espanhola, que afirmou:

Os poemas de Cláudio, que tanto devem à literatura religiosa ― não sendo a sua uma veia estritamente religiosa ―, revelam-se, finalmente, como litanias escutadas no interior de uma casa ou no remanso de uma montanha. [...] Cláudio faz apelo à tradição ― na qual se busca ―, deixando que sua palavra flua nesse magma em que entrevemos, com o mesmo colorido e substância, os mitos nórdicos e os hindus, os gregos e os judaicos, os ameríndios e os lusitanos, sem esquecer as referências musicais, as teogonias de distintas procedências, os mitos clássicos e os mitos da modernidade, tudo isso, porém, de uma maneira natural, cultivada, exata, criando uma teia identitária ― digamos que na poesia de Cláudio o tema da identidade é axial ― em que tudo se ajusta minuciosamente num tecido pessoal e comunicável.

De fato, este hibridismo é o que há de mais rico neste livro, de mais autêntico e próprio deste poeta, que será reconhecido pelo rigor com o qual trabalha e produz a sua obra, criando uma poesia forte e densa, complexa, bem pensada, dentro de uma espécie de arqueologia poética que demorará um pouco para ser integralmente compreendida no atual panorama da poesia contemporânea do Brasil. Numa perspectiva crítico-diacrônica, acho que a poesia de Cláudio Guimarães dos Santos precisará de tempo para ser devidamente compreendida e até mesmo aceita, dado o fato nocivo dos relativismos literários pelos quais estamos a viver, ao menos na realidade brasileira, conforme expliquei no início deste ensaio. Para muitos, a opção estilística de Cláudio Guimarães por elementos clássicos de composição poética (metro, rimas, imagens, seleção vocabular etc.) pode parecer esdrúxulo, ultrapassado, passadista e outros adjetivos assaz pejorativos. É um drama do qual o autor pode ser uma vítima em potencial, na minha opinião. Infelizmente, há uma opinião errônea de que a Tradição é um valor suspeito, anacrônico, que se deve sempre superar. A respeito do neoclassicismo deste poeta, cito aqui a opinião do escritor e crítico literário Fernando Cabrita, publicado como introdução de Coleção de Epifanias

A incorporação do mito clássico na obra de Cláudio Guimarães dos Santos, reinventa a própria mitologia, atualizando-a. [...] A poesia de Cláudio Guimarães serve-se assim do mito para atingir o leitor de hoje, que se suporia já desligado da antiga narrativa; e veicula-lhe toda a beleza peregrina das idades passadas numa transposição sabiamente literária, profusamente poética, onde o verso encerra ainda o conceito vetusto e o sentido pretérito, mas é já novidade, tempo vivo, história presente. Nessa sua hábil gestão da palavra poética e da capacidade de transformar, pelo verso, em novo o que era arcaico, Cláudio Guimarães dos Santos segue uma tradição da melhor poesia brasileira, onde o mito sempre esteve presente e vivo. Recordo o CANTO ÓRFICO, de Carlos Drummond de Andrade, ou a obra já citada de Vinícius de Moraes. Ou, ainda, o largo poema INVENÇÃO DE ORFEU, de Jorge de Lima.

Achei muito feliz a citação, pelo crítico, do grande Invenção de Orfeu, do igualmente grande escritor Jorge de Lima, uma das maiores injustiças nos estudos literários brasileiros no que concerne à falta de trabalhos e estudos críticos atualizados a respeito de sua obra, salvando raras e poucas exceções. Vejo como frutífero este trabalho de atualização dos valores e mitos clássicos, feito por poetas como Cláudio Guimarães e alguns outros. Foi o que fez o próprio Jorge de Lima, mas também Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Raul de Leoni, Francisca Júlia, Augusto Frederico Schmidt, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner, Daniel Faria, dentre outros lusófonos. Como exemplo, cito alguns versos do poema “Sagres São”;

(Lá na quina do beiral da Velha Europa,
Debruçado no escarpado da falésia,
Onde os deuses se penduram para o ocaso,
Sonha, o Infante, o Mundo Novo que virá.
A fronte tensa confirma
Que as Atenas a serem recriadas,
Que as Romas a serem reerguidas,
Que as Damascos a serem derrubadas,
São sem conta e improváveis.)
[...]
Além do mar,
Anões mestiços roubam o ouro de outros Renos,
Mais de uma Ilíada ainda espera o seu Homero,
E um Parsifal menino brinca e ri com o Graal.
[...]
Além do mar,
Cresço e nasço no clarão da aurora,
Cavalgando Pégaso,
Emulando Apolo,
Desafiando Zeus,
E cerro os olhos, decidido, para enfrentar o Fado
(Que o bom fado só se canta com os olhos bem fechados).

Percebe-se claramente um complicado processo de antropofagia cultural – a la Oswald de Andrade – das mais diferentes influências clássicas, desde Homero até elementos das novelas de cavalaria medievais, passando pelas igualmente clássicas Atenas e Roma com suas epopeias, lendas e heróis, almejando talvez a imortalidade da poesia através do graal e seus poderes rejuvenescedores. Tal recurso – de canibalização crítica das influências recebidas – é de grande valia para a literatura, pois ajuda na atualização da mesma. Acho importante ressignificar a mitologia e os seus elementos constitutivos, ou seja, provocando a vanguarda da Tradição nas mais diferentes direções, como se percebe no já analisado poema “Abelardo Je t’aime moi non plus Heloísa”:

Ó Águia de Zeus, que incrustas as metáforas no mundo,
Para quando Prometeu, se não fora o abutre?
Para quando Teresa, se não fora o êxtase?
Para quando Jerônimo, se não fora o pecado?
Para quando João, se não fora Patmos?
Para quando Abelardo, se não fora o seu castigo ad absurdum.

Com este fragmento – híbrido em imagens e valores da nossa tradição literária – encerro esta minha análise um tanto superficial acerca do livro Coleção de Epifanias, escrito por Cláudio Guimarães dos Santos e publicado, em formato bilíngue português-espanhol, pela Bohodón Ediciones, de Madri. Digo superficial não por falsa modéstia, mas porque considero impossível analisarmos cada peça desta obra, pensar e problematizar cada verso, cada imagem, cada título. Escrevi aqui apenas ideias gerais, concepções mais amplas, e creio mesmo que minhas opiniões não devem guiar a consciência e a leitura dos futuros leitores deste poeta.

IV

Penso não ser necessário fazer uma conclusão, como comumente de faz em textos ensaísticos, acho que a melhor conclusão será do leitor, pois é o leitor o destinatário natural de um livro. Além disso, me parece que concluir seja algo definitivo, acabado, fechado. Ora, a literatura é justamente o contrário, a poesia é livre e plurissignificativa no que diz respeito à sua interpretação e recepção. Mas se tratando de um texto ensaístico, este gênero pede sempre uma conclusão, uma ideia final, um posicionamento definitivo de quem o escreve.

Não quero também que esta minha reflexão direcione sobremaneira e decisivamente o olhar e a avaliação do leitor, pois não creio que esta deva ser a função da crítica literária. Penso e concordo, retomando o pensamento de Alceu Amoroso Lima, que a Crítica é a construção de um conhecimento compartilhado, não um patrulhamento estético-ideológico. Acho que a Crítica também não alcança todas as dimensões de um livro, de um autor, de uma obra. Ela alcança apenas determinados aspectos, algumas dimensões, não a integralidade. Concordo que a Crítica seja um sistema aberto, uma espécie de “work in progress”, uma construção que – enquanto processo – está sempre sujeita a ser desconstruída e repensada, fomentando novas propostas e saberes cruzados e interdisciplinares.

Não sou defensor/praticante da “autópsia textual”, isto é, de análises meticulosas em relação a todos os fenômenos linguísticos presentes no poema, as idiossincrasias da escrita, as mais ínfimas particularidades temáticas. Acho que o leitor de poesia tem capacidade – ou pelo menos deveria ter – de emocionar-se e envolver-se com o texto poético. É isto que espero que este Coleção de Epifanias possa produzir e despertar, ocupando um lugar de destaque na nossa contemporaneidade literária, tão marcada por um nefasto relativismo criativo. Mas a interpretação deste livro é algo em aberto, sujeito as mais diferentes recepções produtivas por parte do leitor.

De razões mais epifânicas, com razões mais profundas, convido a todos que leiam não apenas este Coleção de Epifanias, mas que leiam o gênero Poesia que, segundo muitos especialistas, é um gênero literário em desuso, cuja importância já se perdeu um pouco hoje em dia.

Aliás, muitos críticos e especialistas já apregoaram a morte da literatura, do autor, da poesia e até do leitor. Numa época de “pós tudo”, de total quebra de cânones, certezas e definições, penso que a literatura não morreu, pois a sensibilidade humana aliada a uma construção estética ainda não morreu. É possível que esteja sofrendo uma certa falta de importância no atual contexto, mas “não morreu”. Aliás, não seria esta a função primordial de uma epifania, a saber: a revelação de algo? Parece-me que sim.

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Notas

[1]LIMA, Alceu Amoroso. Memórias Improvisadas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 88.

[2]LIMA, Alceu Amoroso. Affonso Arinos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1922. p. 14

[3]A passagem completa é: “Quero que a estrofe cristalina / Dobrada ao jeito / Do ourives, saia da oficina. / Sem um defeito”

[4]LIMA, Alceu Amoroso. Estética Literária. Rio de Janeiro: Americ=Edit., 1945, p. 9.

[5]Op. Cit., p. 88

[6]Op. Cit., p. 16.

[7]PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Mutações da literatura no séc. XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 65.

[8]COMPAGNON, Antoine. “Après la littérature”. In: Le Débat, Paris, n. 110, p. 154.

[9]In: KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as Escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999.