O romance como teologia: reflexões em diálogo com Fiódor Dostoiévski
Il romanzo come teologia: riFlessioni in dialogo con Fódor Dostoevskij

Lubomir Zak* E Marcio Luis Fernandes**
*Professor permanente e vice-decano da Faculdade Teológica da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma). Email: zaklubomir@gmail.com.
**Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontificia Universidade Católica do Paraná (PUC PR) e professor de teologia na Faculdade Claretiana (Studium Theologicum). Email: marcio.luiz@pucpr.br.
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Resumo
A história da teologia do século XX atesta com clareza que os romances de Fiódor Dostoiévski foram recebidos amplamente e positivamente por parte de numerosos teólogos de cada confissão cristã e é evidente que tal recepção continua a acontecer ainda em nossos dias praticamente em cada parte do mundo. O artigo propõe uma reflexão sobre algumas características das narrativas dostoevskianas, que atraem em particular a atenção dos teólogos do passado e do presente, porque estimulam ou provocam de modo fecundo o pensamento deles. Os autores pretendem colocar em evidência que a importância de Dostoiévski para a teologia deve ser buscada não só nas profudas análises e originais exposições dos temas religiosos em geral, mas na escolha acurada por alguns deles e, sobretudo, no modo – em alguns casos determinado por precisas escolhas de ordem epistemológica – com que são tratados e desenvolvidos.

Palavras chave:Teologia e literatura; Dostoiévski; arte e beleza; narrativas

 

Riassunto
La storia della teologia del XX secolo attesta con chiarezza che i romanzi di F. Dostoevskij sono stati recepiti ampiamente e positivamente da parte di numerosi teologi di ogni confessione cristiana ed è evidente che tale ricezione continua anche nei nostri giorni praticamente in ogni parte del mondo. L’articolo propone una riflessione su quelle caratteristiche dei racconti dostoevskijani, che attraggono in particolare l’attenzione dei teologi del passato e del presente, perché stimolano o provocano fecondamente il loro pensiero. Gli autori intendono mettere in luce che l’importanza di Dostoevskij per la teologia va cercata non solo nelle profonde analisi e originali esposizioni dei temi religiosi in generale, ma altresì nella scelta accurata di alcuni di essi, e soprattutto nel modo - in alcuni casi determinato dalle precise scelte di ordine epistemico - con cui vengono trattati e sviluppati.

Palabras Claves:Teologia e literattura; Dostoiévski, arte e bellezza; narrative

1. Dostoiévski e a teologia - um século de fecundo debate

A relação entre o pensamento de Dostoiévski e a teologia é um tema que suscita permanente interesse por parte dos que se ocupam da obra deste extraordinário escritor e, em particular, naqueles interessados em investigar o nexo entre a teologia e a literatura. 1 Dentre os motivos está o fato de que na “constelação dos grandes literatos europeus o célebre romancista russo é considerado o representante, ou mesmo, o profeta do cristianismo”. 2 Dostoiévski desejava colocar no centro do seu pensamento um único e amplo assunto que é exatamente aquele do fenômeno religioso. Segundo Romano Guardini esta característica das narrativas e dos romances de Dostoiévski salta imediatamente aos olhos porque efetivamente:

“Nas suas obras não se encontra uma única personagem importante ou um acontecimento de relevo que, no seu contexto, não tenha adquirido relevância por intermédio de uma maior ou menor intervenção do elemento religioso. As personagens de Dostoiévski são condicionadas por forças e motivos de ordem religiosa que vão determinar as suas verdadeiras decisões e mais do que isso, o seu mundo como mundo, a interdependência das suas realidades e valores e toda a estrutura em que os acontecimentos se processam têm, no fundo, uma base religiosa” 3.

O interesse da teologia pela obra de Dostoiévski cresceu sobretudo a partir do início do século XX, porém, não somente na Rússia, mas também na Europa, na América Latina e em outros continentes. Os motivos desse fascínio são numerosos e relacionam-se tanto aos aspectos metodológicos do pensamento dostoievskiano quanto aos conteúdos das suas reflexões religiosas, apreciadas por numerosos teólogos russos e ocidentais praticamente de cada confissão cristã. A profundidade e a originalidade narrativa dos seus romances, sem dúvida, explicam em parte a atenção e espaço que ele ocupou na reflexão dos teólogos. No entanto, os acontecimentos trágicos, violentos e sanguinários – com implicações nacionais e internacionais – que assolaram a Rússia e a Europa na primeira metade do século XX e que foram por Dostoiévski de algum modo pressentidos, provocaram e convenceram os teólogos a respeito da necessidade de uma renovação da teologia e da Igreja. Os teólogos estavam naquele momento desejosos de instaurar um fecundo diálogo com o mundo da cultura e encontraram na perspectiva narrativa de Dostoiévski uma chave excelente de promoção deste encontro. Aliás, alguns célebres promotores de tal renovação, como Yves Congar, Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar, Romano Guardini e outros, foram diretamente formados em contato com a obra de Dostoiévski, encontrando nela numerosos impulsos e iluminantes inspirações para a elaboração de suas ideias teológicas. Também no Ocidente dialogaram com Dostoiévski alguns dos protagonistas e seguidores da chamada ‘teologia da crise’ ou ‘dialética’ (Karl Barth, Karl Adam, Josef L. Hromádka) 4 e, até mesmo, os arautos da ‘teologia da morte de Deus” (William Hamilton)5, bem como os representantes da ‘teologia da libertação’ (Gustavo Gutiérrez, Clodovis e Leonardo Boff, Jon Sobrino).6

Um capítulo importante e positivo da história da acolhida da obra dostoesvskiana por parte da teologia refere-se à recepção do romance Os irmãos Karamazov e, em particular, a Lenda do Grande Inquisidor. Mesmo que somente poucas obras do escritor russo tenham ficado fora do universo de interesse dos teólogos comentadores, eles consideram, de modo unânime, propriamente este romance o ápice da sua produção, sustentando em unísono que a Lenda representa o capolavoro, trata-se do cume mais alto em absoluto da criação artística, filosófica e teológica de Dostoévski. Como revela um recente estudo7 que examina algumas contribuições interpretativas dos teólogos protestantes, católicos e ortodoxos, a Lenda, na sua brevidade, qualifica-se como um texto potente, provocativo e inspirador, mas, ao mesmo tempo, enigmático ao ponto de conseguir colocar em forte contraposição os seus próprios interpretes. Pode-se pensar, por exemplo, na leitura proposta por Guardini que, distanciando-se dos outros estudiosos, sente-se surpreendentemente próximo ao Grande Inquisidor, intuindo paradoxalmente a razoabilidade da perspectiva do velho cardeal diante da pessoa e do comportamento de Cristo8.

Dessa forma, aqui não se pretende examinar esta perspectiva de Guardini e nem mesmo outras perspectivas de aproximação à obra dostoevskiana. Queremos, ao contrário, propor uma reflexão sobre os aspectos do pensamento do escritor russo de indubitável valor e que exercem grande fascínio para a teologia.

2. Provocações dos romances de Dostoievski à teologia

O primeiro aspecto consiste na escolha de se ocupar dos temas religiosos no seu intimo nexo com as histórias pessoais ou coletivas dos protagonistas dos seus romances, colocando em evidência a relação entre a verdade antropológica e aquela religiosa. No primeiro romance de Dostoévski intitulado Gente pobre, narrativa elaborada na forma de uma troca epistolar, pode-se encontrar muitos exemplos deste entrelaçamento da questão antropológica e religiosa, tal como transparece em uma das cartas na qual o funcionário de uma repartição pública de Petersburgo compartilha com a sua vizinha Várienka –uma pobre jovem orfã – os pequenos gestos cotidianos:

“E se é para falar tudo, pois saiba que fiquei com o coração repleto de alegria quando vi quão bem falou de mim em sua carta e os elogios que dedicou aos meus sentimentos. Não é por orgulho que digo isso, mas porque vejo como gosta de mim, ao se preocupar tanto com o meu coração! (…) Passei por tanta coisa hoje, e o peso que suportei na alma, numa única manhã, outro não suportaria num ano inteiro. Eis como tudo aconteceu: sai de manhã bem cedinho para apanhá-lo em casa e ainda poder chegar a tempo no serviço. Chovia tanto hoje, era tanta lama! Eu, minha estrelinha, agasalhei-me bem com o capote e fui andando, o tempo todo pensando: ‘Senhor, dizia comigo, perdoe os meus pecados e fazei com que se cumpram os meus desejos’. Passei perto da igreja de skoi, fiz o sinal da cruz e arrependi-me de todos os meus pecados, mas me lembrei de que era indigno de querer me entender com o Senhor Nosso Deus. Fiquei ensimesmado, sem a menor vontade de olhar para nada; e fui andando assim, sem atentar no caminho” 9.

A teologia acadêmica do tempo, seja aquela russa-ortodoxa quanto aquela católica (ambas no estilo da manualística), não contemplava tal aproximação, excluindo completamente qualquer referência à dimensão histórico-existencial do conhecimento e do ensino da verdade de fé. No trecho acima vê-se como Dostoiévski – tocado pelos dramas existenciais dos seus contemporâneos – coloca na boca dos seus personagens a paixão pelo mistério de Deus e as perguntas sobre os problemas da vida concreta. Toda a perspectiva colocada na extensão do diálogo desta novela proposta pelo autor russo gira em torno do convite para que o ser humano possa sair de si, porque a redenção dele está exatamente neste movimento de saída. O personagem mesmo ensimesmado vai andando sem atentar para o caminho, mas na sequência seu olhar não poderá ficar indiferente. Ele anda pelos caminhos do mundo – como diria o filósofo Rozenzwieg – para evitar a alienação e passa a compreender que deve estar diante de Deus, dos outros e consigo para acolher a redenção. Em Gente pobre fica visível a desproporção entre a miséria exterior enfrentada pelos personagens e a riqueza que brota do coração e da interioridade na medida em que cada um dos atores faz o êxodo de si para contemplar e compadecer-se do destino do outro. Dostoiévski, muito antes da famosa ‘virada antropológica’ posta em ação por Karl Rahner, demonstra que uma reflexão feita no interior de uma narrativa global – que faz referência ao contexto vital e existencial dos personagens descritos e às suas respectivas experiências de vida e de fé tanto positivas quanto negativas – consegue evidenciar com maior nitidez a grande complexidade dos temas religiosos. Por sua parte, os manuais de teologia da época corriam o risco de provocar o achatamento ou embotamento da discussão sobre os temas religiosos – sem colher o seu núcleo veritativo - privando-os exatamente do seu humus vital.

É a este aspecto do teologar que parece fazer alusão, em 1906, o jovem Florenskij quando na sua critica à manualística russa, anota:

“(...) é necessário abandonar o absurdo hábito de iniciar a pesquisa a partir de posições dogmatizantes. E não basta dizer que estas posições não são necessárias; já que, de um modo ou de outro, não podem ser demonstradas – entendendo a palavra demonstrar no sentido mais amplo – elas aparecem absolutamente incompreensíveis, enquanto são constituídas por termos que colocados ao interno do universo daquela determinada composição, não possuem algum conteúdo real. Antes de falar com qualquer pessoa é necessário não só estabelecer os termos, mas explicá-los. Nesta direção, portanto, explicar significa preencher os termos de um conteúdo vivo e concreto, fazer referência à experiência vivida do interlocutor ou ainda ajudá-lo a viver coisas novas, contagiá-lo com a própria experiência pessoal, compartilhar com ele a própria plenitude. Do contrário teremos uma construção de palavras, uma argumentação verbal que acaba somente colocando as pessoas contra a parede… com as palavras” .10

O segundo aspecto é aquele da teodiceia, cujas questões não eram contempladas pela teologia dos manuais. E para que estas questões fossem trabalhadas era preciso rigor e humildade. No entanto, elas são pouco consideradas também pelas nossas teologias, em particular pelos tratados de dogmática. É como se o problema do mal não tivesse algum influxo sobre a compreensão e sobre a transmissão das verdades de fé. Ao contrário, é muito evidente que a teologia de hoje e de amanhã, para ser crível e eficaz no seu serviço à Igreja e ao anúncio do Evangelho, deva aprender a falar de Deus em um modo ‘sensível à teodiceia’11, e obviamente falamos aqui de uma teodiceia renovada12.

A reflexão de Dostoiévski vai na direção oposta da teologia de seu tempo. Assim, consciente de que a busca pela verdade sobre Deus e o ser humano nas suas relações – aquela dada (que a pessoa tem enquanto ser criado à imagem e semelhança) e aquela a ser construída (vivida como evento de redenção/divinização) – estão intrinsecamente ligadas com a inquietação existencial em torno da pergunta sobre ‘onde está e o que faz Deus quando um inocente sofre, quando uma criança morre, quando um pobre é humilhado, quando um justo é colocado a prova?’. A permanente e trágica presença do mal no mundo e a justificação de Deus como Criador e Pai, amorosamente próximo a todos os homens – em Cristo mediante o Espírito Santo – e que deseja salvar cada um, são polos argumentativos que o escritor russo mantém sempre unidos, consciente de que eles devem ser levados a sério lá onde se queira falar da Revelação e da fé.

O seu magistral modo de incluir a teodicéia nas reflexões religiosas, com traços de singelo realismo e profunda espiritualidade cristã, é muito sugestivo. Por isso não causa maravilhamento o fato de que teólogos e teólogas de todas as confissões venham beber nesta fonte para aprender este gênero de arte.

Já o terceiro aspecto a ser sublinhado refere-se à decisão de Dostoiévski de dedicar as narrativas mais incisivas e persuasivas sobre Deus, a fé, a Igreja, o renascimento espiritual e outros temas aos mais pequenos, aos mais simples, aos pecadores, enfim, ele entrega suas narrativas àqueles que nunca seriam escolhidos pelas autoridades eclesiais para tratar tais temas. Podemos pensar, por exemplo, na figura de Sonja que obrigada a prostituir-se por causa da pobreza de sua família, será protagonista de um dos momentos mais fortes e decisivos do romance Delito e castigo, quando, lendo o Evangelho sobre a ressurreição de Lázaro, contribuirá para o primeiro despertar da consciência de Raskol’nikov. Quem vai recolher a confissão do jovem assassino e anunciar-lhe Cristo não será um mulher piedosa, nem mesmo um santo monge ou um zeloso sacerdote mas será aquela que vivia no pecado e que aos olhos da Igreja era uma pecadora.

Considere-se também o momento culminante e conclusivo dos Irmãos Karamazov, quando ao redor da tumba do pequeno Iljušečka reunem-se os amigos. Dostoiévski confia o discurso de despedida não a um padre ou um monge, mas a Alëša Karamazov, um rapaz simples, membro de uma família com comportamentos estranhos e pouco recomendável. As suas palavras inflamadas de fogo a respeito da recordação sagrada – a eterna memória – dos amigos e sobre a ressurreição dos mortos suscita o entusiasmo nos corações entristecidos dos companheiros de Iljušečka, mas ao mesmo tempo, atingem e comovem os leitores. O que dizer, então, quanto ao fato de que no mesmo romance, o escritor tenha entregue exatamente a Ivan Karamazov a tocante narrativa sobre o encontro de Cristo com o velho Inquisidor justamente a este intelectual refinado, inquieto e irônico mas que caminha fora dos confins da fé em Deus?

Estes são apenas alguns exemplos da escolha precisa que Dostoévski realiza quando escreve suas narrativas e romances. Qual efeito ele busca obter? Quais são as razões da sua insistência sobre esta opção? A resposta encontra-se sugerida nas numerosas cartas e nos diários do escritor e, antes ainda, na sua própria vida. De fato, ele se identificou com a verdade do Evangelho de Cristo expressa sinteticamente com as palavras de Paulo: “Mas o que é loucura ao mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte” (1Cor 1,27). È, portanto, evidente que Dostoévski desejasse anunciar e colocar em ação tal verdade também nas suas narrativas persuadido, no entanto, a respeito da infinita superioridade e universalidade da sabedoria do Evangelho.

Esta paradoxal verdade torna-se o terreno para a construção dos romances e a perspectiva de fundo dos sugestivos quadros propostos por Dostoiévski que, desse modo, parece sustentar que a formulação das reflexões sobre temas religiosos não podem constituir uma atividade revindicada, de modo exclusivo, por parte dos especialistas na matéria, dos profissionais da religião, dos doutores das academias teológicas e dos expertos em púlpito. Pelo contrário: a sobriedade, a humildade, o non sum dignus são, para ele, as fundamentais características daqueles que, prescindindo do status social, da história pessoal ou do grau de formação acadêmica e cultural conseguem sustentar um discurso religioso e teológico penetrante, privado de frases estéreis e de pensamentos retrógrados. Este tipo de teologia não ama as argumentações separadas de uma ratio especulativa, mas brota da profundidade do coração cheio de emoções fortes e de sentimentos sinceros. O lado irreverente dos “teólogos dostoievskianos”, que os fazem aparecem pouco confiáveis aos olhos dos representantes oficiais da Igreja e da teologia (simbolizados na figura do velho Inquisidor) é que tendem utilizar linguagens muito diferentes das usuais, adotando pontos de vista frequentemente pouco ‘ortodoxos’. Mas isto, para Dostoiévski é o imposto a ser pago cada vez que haja o desejo de renovação do pensamento religioso, promovendo um retorno aos ideiais da primitiva comunidade cristã, inspirando-se no frescor das origens e na explosiva e criativa força do Espírito de Cristo.

3. A necessidade de sínteses e de profecia

Há ainda um quarto aspecto a ser considerado que se refere à síntese do pensamento teológico. Não obstante nas narrativas e nos romances de Dostoiévski sejam tratados numerosos e complexos argumentos religiosos, o seu pensamento teológico aparece coeso e organicamente unido. A razão disto é a explicita presença, por detrás dos discursos religiosos, de um único e unificante ‘horizonte hermenêutico’. Segundo o juízo do jovem Florenskij, a ausência de tal horizonte é exatamente aquilo que caracterizou os manuais de teologia oficiais da Igreja ortodoxa russa e representou um dos seus mais clamorosos limites. Ele explica:

“São indicadas diversas lacunas nas dogmáticas de fabricação pátria e o mais criticado é o bispo Macário. É claro que é necessário colher os frutos destas indicações, mas preencher as lacunas seria como tentar apagar o fogo de todo um edifício com duas ou três vasilhas de água. Não temos dúvida de que os desagradáveis defeitos que acabamos de recordar atingem a integridade arquitetônica da dogmática. Mas vale a pena chorar sobre isto, quando aparecem perguntas mais importantes? Consegue-se ver como se encadeiam os diversos níveis e compreender por qual razão depois de um segue-se outro? Os estudantes conseguem refletir sobre os dogmas formulados com rigor matemático que se entrelaçam como fios de um único tecido? Este não aparece, talvez, como um tecido feito de erros e de sonhos? É claro, para eles, a unidade do plano, o recíproco condicionamento e a recíproca dependência dos singulares conceitos e teses que estão a serviço, como orgãos de um único organismo, de um único e planificado conjunto? Pelo que sei tudo isso permanece completamente no vazio e a dogmática se apresenta não como um sistema, nem como uma construção de esquemas, mas como um acúmulo de tomos e de palavras confusas”. 13

No caso do teologar de Dostoiévski está claro que as tessituras dos discursos religiosos foram elaboradas com uma única agulha, identificada com o Evangelho sobre a bondade infinita de Deus, ou seja, bordados com a verdade sobre Deus que, no Cristo humilde e pobre, manifestou-se como Amor universal, misericordioso e compassivo. Os ensinamentos tocantes do starec Zosima dos Irmãos Karamazov são, deste ponto de vista, uma justificação da unificante ‘hermenêutica da caridade’ que o escritor russo, em muitas outras ocasiões, reconheceu como o seu credo e a sua pessoal concepção da fé cristã. 14

Quanto tenha sido clarividente e antecipatória esta escolha hermenêutica – não só para a teologia, mas também para a doutrina eclesial – é hoje claro aos olhos de todos. De qualquer forma, os romances dostoievskianos junto com outros textos de espiritualidade, teologia, filosofia e literatura do século XIX e da primeira metade do XX tiveram o mérito de ter contribuido na criação e na difusão daquele milieu espiritual-cultural que, antes do Concílio Vaticano II, influenciou decisivamente na formação de alguns protagonistas chave da renovação teológica.

Seria oportuno evidenciar dentre os variados aspectos da teologia dostoievskiana a dimensão profética de seus escritos. A capacidade visionária de prever – do ponto de vista espiritual – certos desenvolvimentos históricos e os seus êxitos finais é admirável. 15 Como já foi evidenciado por Vladimir Solov’ëv, os discursos religiosos são proféticos tanto em relação à sociedade russa e européia quanto à Igreja e ao cristianismo em geral16. De fato, os romances Delito e castigo e Os demônios colocam-nos de sobreaviso diante da loucura de quem está por trás da porta da história, decidido a entrar para mudar o mundo com a violência das armas antes que com as ideias; de quem justifica habilmente o abuso indiscriminado do poder e da prepotência como condições necessárias para afirmar, na sociedade, os ideais de um novo e puro humanismo; de quem quer ofuscar a fé em Deus, buscando extirpar as raízes da tradição cristã do povo russo e dos povos europeus. Dostoiévski chama a atenção da Igreja diante das múltiplas tentações derivadas de semelhante plano, de renunciar, por exemplo, em ser na e pela sociedade a “cidade situada sobre o monte” (cf. Mt 5, 14) construindo uma muralha de separação com o mundo; a tentação de não anunciar aquele ideal social e moral que souberam encarnar, com coragem e credibilidade, a primitiva comunidade cristã, da qual se dizia: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma e ninguém considerava exclusivamente seu o que possuia, mas tudo entre eles era comum” (At 4,32). Consequentemente, o autor russo profetizava a necessidade da superação de um “cristianismo do templo”, “da sacristia” em favor de um “cristianismo universal” aberto a toda a humanidade, realmente interessado aos destinos e aos sofrimentos de cada povo e de cada pessoa humana. 17

Segundo Solov’ëv, o fundamento sobre o qual se apoia a profecia dostoievskiana é a ideia da absoluta unicidade de Cristo, a sua pessoa encarna o mais alto ideal moral de dimensões universais: a caridade universal de Deus Pai, a compaixão com todo o criado e com todos os homens. Cristo manifesta em si o plano de Deus para com o mundo e com a humanidade. Obviamente, o Cristo de Dostoiévski tem um rosto e um comportamento do manso e humilde prisioneiro capturado pelo velho Inquisidor. Enquanto tal ele suscita – ainda que não em todos como é o caso de Guardini – um fascínio e um desejo de seguimento que jamais poderia ter sido suscitado pelas definições cristológicas dos manuais escolásticos. Uma coisa é certa: o solus Christus da teologia de Dostoiévski resultou em uma profética tomada de posição diante da idolatrização, na sociedade russa e européia da primeira metade do século XX, dos tiranos e dos ditadores, das ideologias e dos sistemas políticos perversos, reproposta e reconfirmada pela Narrativa sobre o Anticristo de Solov’ëv.

Quanto tudo isso possa ser hoje inspirador para a nossa teologia seria, sem dúvida, uma questão a ser discutida. De qualquer modo, é convicção de muitos que a profecia não pode faltar à teologia; e esta deve ser exercitada fazendo referência não tanto as mensagens das aparições privadas quanto a eterna verdade central do Evangelho de Cristo – testemunhada sobretudo no evento pascal – que se manifesta com crescente convicção na consciência dos cristãos do nosso tempo.

Estamos persuadidos – por outro lado – que haverá sempre teólogos e teólogas que sobre a teologia profética desejarão aprender justamente com Dostoiévski cuja clarividência foi fruto de uma longa e sofrida busca pelo sentido mais profundo da vida, de uma luta consigo mesmo, com os próprios limites e com as próprias doenças. Tal sede foi satisfeita pelos maravilhosos momentos daquele imprevisível irromper, no coração, dos penetrantes raios de luz que introduzem o pensamento em uma outra ordem – superior – de ideias, aquela da sapientia crucis.

4. A arte de Dostoiévski remete à arte iconográfica

O filósofo e sociólogo Vladislav A. Bačinin reporta, em um recente artigo, uma consideração que o notável teólogo ordotoxo Alexander D. Schmemann (1921-1983) tinha anotado em seu diário e que eram derivadas pela assídua frequentação das grandes obras da literatura russa e mundial. “Como é possível – pergunta-se Bačinin resumindo o sentido das palavras de Schmemann – que, em certos casos, homens distantes da Igreja e da teologia mostrem possuir uma finíssima intuição teológica? “. A sua resposta é que tudo “depende muito provavelmente não do grau do talento que um estudioso (de literatura) possue, mas do grau do seu desembaraço criativo, da sua liberdade frente ao dever de realizar uma apologética”.18

Como se pode observar, a obra de Dostoiévski representa para os leitores de todos os continentes, estudiosos de literatura ou amadores apaixonados por obras literárias, uma extraordinária ocasião de experimentar, no próprio coração, o despertar da intuição teológica. Trata-se de uma oportunidade para aprender de novo a aproximar-se da profundidade transcendente da vida e a pensar e sentir teologicamente. Estas obras possuem, de fato, todas as características necessárias para que, nas pessoas livres de preconceitos religiosos ou anti-religiosos, tais efeitos possam ser verificados. Para o estudioso Gilberto Safra estes textos de Dostoiévski permitem integrar os vértices literários, filosóficos, teológicos e políticos criando narrativas resistentes à fragmentação e que evitam a abstração racionalista, por isso, o estudo de Dostoiévski junto com outros pensadores russos são fundamentais para “compreender os problemas do sofrimento humano contemporâneo com uma profundidade que desconhecia até então” porque eles tratam a condição humana em seu registro ontológico. Desse modo, Safra percebe em sua atuação clínica a necessidade de recolher a herança dos autores russos como forma de exercitar melhor uma escuta qualificada dos pacientes:

“reconhecer em seu modo de ser, o tipo de sofrimento e de situação encontrada assinalada nos escritores russos porque muitos dos nossos pacientes sofrem pelo desenraizamento, pelo fato de terem sido coisificados, reduzidos a ideias ou abstrações. Na atualidade, encontramos pessoas que são filhos da técnica e que sofrem da agonia do totalmente pensável. Surpreendi-me com a constatação do quanto tínhamos para aprender com esses pensadores do final do século XIX e início do XX.”19

É tipico de um romance, por outro lado, ter uma estrutura narrativa configurada dialeticamente, paradoxalmente. Ele não se limita a exprimir um único ponto de vista, mas cria “permanentemente um cruzamento entre as diversas perspectivas, entre os diversos tipos de juízo”. 2020 Tudo isso explica porque o romance não se deixa traduzir em teorias ou opiniões: na sua estrutura narrativa se imprimem, coexistem e vibram simultaneamente a singularidade, a liberdade, a tragicidade, a complexidade e a concretização de cada figura, de cada história, de cada concreto fenômeno. Em um certo sentido pode-se dizer – explica Elmar Salman – que no gênero do romance realiza-se a filosofia do grande Nicolau de Cuza, pensador “que nos faz compreender a importância de colocar-nos no lugar da perspectiva de uma pessoa”. 21 Portanto, de um lado o romance é “uma obra integral que contém um universo e, por outro, é o exercício da individuação de cada perspectiva”. 22

Tudo o que vale para o romance em geral, também vale de modo particular para os romances de Dostoiéski, conhecido pela sua polifonia, devido ao fato de que ele amando empaticamente, é capaz de penetrar em qualquer fenômeno, seja este referente a uma determinada pessoa, a um concreto grupo social ou uma determinada situação. Colocandose dentro destas situações, o escritor “não as descreve exteriormente, mas fala delas usando a voz do próprio fenômeno, aquela que surge das suas vísceras, dos fundamentos”. 23 O efeito polifônico é em Dostoiévski exponencial, porém, graças a escolha de tecer tapetes constituidos por multiplos pensamentos que desenvolvidos a partir de singulares fenômenos, podem ser entre eles também muito diferentes, aliás radicalmente contrários. 24

Tal procedimento, realizado com exemplar habilidade narrativa, guarda em si algo de dramaticamente orquestral, sinfônico evitando uma perspectiva caótica, uma abordagem preocupada em manifestar a verdade da própria vida, isto è, da vida que é e será sempre infinitamente complexa. Por isso, diante dessas concretas manifestações da vida, ocorre saber ordenar pensamentos e palavras, começando pela paciente escuta do próprio coração das pessoas e circunstâncias que configuram o contexto. Cada específico pensamento que o escritor russo consegue formular a partir de um determinado “fenômeno” transforma-se, em todo caso, em um conjunto de pensamentos, ou seja, de sistemas que carregam diferentes tipos de concepções de mundo. E cada singular pensamento é como uma peça de um único grande mosaico, adquirindo “o seu valor no interior da totalidade do universo criado por Dostoievski” 25.

Tal modalidade de construção narrativa – no qual como explicitado antes, não carece um horizonte hermenêutico de unidade – ricorda aquela particular técnica que é própria da arte iconográfica. Ecrever um ícone consiste, de fato, em criar uma imagem sacra caracterizada por algumas transgressões com relação a unidade em termos de perspectiva e gerando, desse modo, uma perspectiva invertiva ou inversa. Graças a ela as figuras e os objetos representados mostram detalhes e planos que, na vida real, não podem ser visíveis simultaneamente, como por exemplo, os três lados do livro do Evangelho ou aqueles aspectos particulares dos rostos dos santos que estão situados para além do horizonte visivo do observador.

Tal procedimento, porém, tem um efeito extraordiário porque nos mostra a policentricidade da representação uma vez que o ícone é construído como se o olho mirasse as várias partes da imagem mudando várias vezes de lugar. Portanto as fachadas dos edifícios são pintadas, sim, mais ou menos em relação as exigências da habitual perspectiva linear, “mas cada uma com o seu particular ponto de vista, isto è, com um seu particular centro de perspectiva e, as vezes, com o seu próprio horizonte”. 26 Mas por qual motivo os iconógrafos adotam tal perspectiva? Justamente pelo fato de que a perspectiva invertida ajuda a pessoa a experimentar no seu íntimo que por detrás das formas e das situações concretas da vida existe aquele Mistério divino que como um oceano de luz envolve cada existência. 27

Obviamente que com esta referência não queremos comparar a obra literária de Dostoévski a um ícone, mas somente recordar que entre as duas realidades artísticas existe um profundo nexo. De fato, segundo Florenskij, o ícone encarna uma concepção de mundo que é de algum modo ‘universalmente humana’ e em estreita correspondência com a mentalidade das antigas culturas (egípcia, grega, etc) e de todas as grandes religiões. Uma concepção capaz de colher nos fenômenos externos uma alma, uma profundidade ontológica e intuitivamente capaz, não obstante as diferenças, de reconhecer que tais expressões são sustentadas por um único ‘sopro de vida’ e provenientes de uma única fonte. 28

5. Conclusão: na direção de uma teologia da imagem

Segundo Florenskij, os ícones, mesmo sendo representações dos vários temas e das várias verdades da fé cristã, são antes de tudo um instrumento privilegiado da custódia e da transmissão deste universal olhar místico sobre o mundo, sobre a vida interpretado à luz da verdade trinitária do Deus revelado, por meio do Espírito Santo, em Cristo. Portanto, os ícones contém uma espécie de ‘sabedoria universal’ em torno de realidades como comunhão, unidade e diversidade:

“A realidade nos é dada somente vivendo, no contato vivo com o ser. A vida é uma contínua mudança da auto-identidade abstrata, um contínuo morrer do eu individual para crescer em comunidade [sobornosť]. Somente vivendo é que conseguimos chegar à comunhão com nós mesmos no espaço e no tempo como um organismo unitário; desde os singulares elementos que se excluem mutuamente segundo a lei da identidade, partículas, células, estados de ânimo nós nos reunimos em unidade. É desse modo que nos juntamos para tornarmo-nos família, estirpe, povo, etc. Nos unimos tornando-nos humanidade e, desse modo, compreendemos na unidade do ser humano todo o mundo. Mas cada ato que cria comunhão representa, ao mesmo tempo, uma reunião de diversos pontos de vista, pontos esquemáticos e perspectivos”. 29

Na opinião de Florenskij, a arte é uma educadora do olhar, do pensamento, da vida e do relacionar-se que carrega consigo a força de tornar eterno o que é da ordem temporal. É muito evidente, portanto, que a obra dostoevskiana seja, deste ponto de vista, uma verdadeira e pecular expressão artística que convida não só que o ser humano possa viver na beleza, mas compreender o testemunho profético que emana desta obra.

Como poder exercitar semelhante forma de arte na teologia é uma pergunta que hoje, na época do pensamento fraco e do crescente domínio da linguagem por imagens, deveríamos colocarmo-nos com urgência, buscando inspiração na grande tradição artística alimentada pela fé cristã que com renovada fidelidade e criatividade, somos chamados a transmitir às novas gerações.

Referências

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BACININ, Vladislav A. Literatura i teologija [Literatura e teologia]. Proza.ru, 2014, https://www.proza.ru/2014/10/24/1999.

BESANÇON, Alain. Svoboda a pravda [Liberdade e verdade]. Brno: CDK, 2013.

BOFF, Clodovis. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje. Volume I: parte crítico-analítica. São Paulo: Paulus, 2014.

BUGAKOV, Sergej. Lo spirituale della cultura. Traduzione di Maria Campatelli. Roma: Lipa, 2006.

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Notas

[1]Entre os estudos mais recentes sobre este tema deve-se assinalar os dez artigos de Vladislav A. Bačinin, filósofo, sociólogo e estudioso do pensamento dostoievskiano, publicados com o título Tolstoyevsky-trip. Opyty sravniteľnoj teologii literatury [Ensaios de teologia comparada da literatura] nos primeiros dez números (1-9) de 2013 da revista Neva de São Petersburgo. Quanto a questão da recepção de Dostoiévski por parte da teologia esta foi tratada – limitando-nos a indicar somente as pesquisas mais recentes – nas monografias de Maike Schult, Im Banne des Poeten: die theologische Dostoevskij-Rezeption und ihr Literaturverständnis (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2012), e di Emanuele Rimoli, Libertà alla prova. Commento teologico alla Leggenda del Grande Inquisitore, Roma: ed. Miscellanea Francescana, 2015.

[2]Alain Besançon, Svoboda a pravda [Liberdade e verdade], Brno: CDK, 2013, p. 81 (o volume recolhe alguns artigos, da tradução checa, publicados na revista Commentaire).

[3]Romano Guardini, O mundo religioso de Dostoiévski, São Paulo: Editorial Verbo, s/d, p. VII.

[4]Cfr. Konstantin A. Machlak, V.V. Fedorov, “Vzgljad na Dostoevskogo skvoz’ prizmu teologii krizisa” [O olhar sobre Dostoiévski na ótica da teologia da crise], Načalo 1 (1994), pp. 93-99. Sobre a influência do escritor russo em Karl Barth remeto ao ensaio de Katya Tolstaya, “Literary Mystification: Hermeneutical Questions of the Early Dialectical Theology”, Neue Zeitschrift fur Systematische Theologie und Religionsphilosophie 54/3 (2012), pp. 312-331 e, sobretudo a monografia Idem, Kaleidoscope: F.M. Dostoevsky and the Early Dialectical Theology, Leiden-Boston: Brill, 2013, pp. 177-344.

[5]Cfr. Rowan Williams, Dostoevsky: Language, Faith and Fiction, London: Continuum, 2008, pp. 2-4.

[6]Os tópicos principais evidenciados por estes autores referem-se de um lado à Lenda do Grande Inquisidor e ao famoso trecho do livro o Idiota no qual Dostoiéski cunha a célebre frase: a beleza salvará o mundo. Conforme comenta Leonardo Boff: “Dostoiéski observa, nos Irmãos Karamazov, que um rosto é belo quando você percebe que nele litigam Deus e o Diabo entorno do bem e do mal. Quando percebe que o bem venceu, irrompe a beleza expressiva, suave, natural e irradiante. Qual beleza é maior? A do rosto frio de uma top-model ou a do rosto enrugado e cheio de irradiação da Irmã Dulce de Salvador, Bahia, ou a da Madre Tereza de Calcutá? A beleza, característica transcendental, se revela como irradiação do ser. Nas duas Irmãs, a irradiação é manifesta, na top-model existe mas é esmaecida” (https://leonardoboff.wordpress.com/2014/04/27/a-beleza-salvara-o-mundo-dostoiewski-nos-ensina-como). Ver também os comentários de Clodovis Boff sobre a beleza no livro sobre o Sentido. Para um aprofundamento do tema seria oportuno estabelecer ainda uma comparação entre a novela Todas las sangres do intelectual e escritor peruano José Maria Arguedas a quem Gustavo Gutiérrez dedica o livro Teología de la liberación: Perspectivas e o texto do Grande Inquisidor de Dostoiéski. Na novela temos a presença do sacerdote que aparece com a doutrina tradicional da onipotência divina e o sacristão que se contrapõe ao sacerdote questionando a sua falta de sensibilidade frente as situações de opressão como aparece neste trecho: “¿Había Dios en el pecho de los que rompieron el cuerpo del inocente maestro Bellido? ¿Dios está en el cuerpo de los ingenieros que están matando ‘La Esmeralda’? ¿De señor autoridade, que quitó a sus dueños ese maizal donde jugaba la Virgen con su Hijito, cada cosecha? No me hagas llorar, padrecito. Yo también como muerto ando. Don Demetrio (el índio) tiene Dios, en la kurku (la jorobada que fue violada por don Bruno) está Dios, cantando; en don Bruno pelea Dios con el demonio; para mí no hay consuelo, de nadie.” (José Maria Arguedas, Todas las sangres, Lima: Horizonte, 1987, p. 413). Segundo Gutiérrez, Arguedas ao descrever a dor cotidiana chamará de Deus libertador, aquele que o sacristão mestiço no diálogo acima, declara ausente onde existe injustiça e opressão. A densidade humana que os seus personagens expressam “é uma interpretação ineludível de todo o falar de Deus” (Gustavo Gutiérrez, Densidade humana, São Paulo: Loyola, 2008, p. 48).

[7]Cfr. Rimoli, Libertà alla prova, em particular as páginas 33-154.

[8]Cfr. Guardini, Dostoiévski, pp. 125-135, aqui em particular p. 130. O teólogo italo-alemão chega a afirmar: “Não é esta, porém, a relação que o Cristo do Grande Inquisidor tem para com o mundo. Não está ligado por qualquer relação de essência ao Pai Criador. Não é o Verbo autêntico no qual o mundo foi criado e por cuja encarnação este deverá ser transformado e renascer. Este Cristo não possui aquela relação sagrada de amor para com o mundo real que vai purificá-lo e renová-lo. Este Cristo é apenas movido pela compaixão que o mundo lhe inspira. É um Cristo isolado, um Cristo com existência própria. Não é uma relação entre o mundo e o Pai. Não ama o mundo como ele é e não vem verdadeiramente para o reconduzir. Não é o enviado nem o libertador. Tão-pouco é o medianeiro entre o verdadeiro Pai do Céu e o verdadeiro homem. Não se encontra de facto numa posição definida”, op. cit., pp. 130-131. Para uma apresentação sobre a interpretação feita por Guardini a respeito de Dostoiévski remetemos a obra de Rimoli, Libertà alla prova, pp. 63-76.

[9]Cfr. F. Dostoiévski, Gente pobre, São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 117-118.

[10]Florenskij, “Dogmatismo e dogmatica”, p. 152. Na mesma linha seria importante observar a convergência dos juízos elaborados pelos teólogos russos quando refletem a questão do dogma a partir da sua ligação com a vida e a práxis. Veja, por exemplo, a forma como tal tema é tratado por Bulgakov: “A dogmática é a ciência teológica que testemunha o conteúdo da vida religiosa (...) e, por isso, ela deve estar no compasso do desenvolvimento da vida e das suas respectivas necessidades” (Bulgakov, Lo spirituale della cultura, 2006, p. 141). Também é sugestivo o juízo que aparece em Lossky quando mostra a convergência entre a tradição doutrinal e a vivência dos mistérios da fé apontando que todo o desenvolvimento das lutas dogmáticas “aparecem dominadas pela preocupação constante que a Igreja teve em salvar, em cada momento da sua história, a possibilidade de que os cristãos alcancem a plenitude da união mística” (Lossky, Teologia mística de la Iglesia de oriente, Barcelona: Herder, 1982, p. 9).

[11] Cfr. Johann B. Metz, “Theodizee-empfindliche Gottesrede”, in Idem (ed.), “Landschaft aus Schreien”. Zur Dramatik der Theodizeefrage, Mainz: Matthias-Grünewald, 1995, pp. 81-102. Será necessário aqui observar as considerações criticas propostas por Villas Boas a respeito da superação da teodiceia e a proposta de uma patodiceia. O núcleo dessa critica aparece no sentido de que “o Deus da teodiceia não permite que a tragédia provoque um devir no ser humano, visto que tudo está no arco de sua vontade, de modo que o pathos cristão dramático se resigna à vontade desse Deus. Assim, tais valores são dependentes de um imaginário apático fundado na apatia divina, enclausurando o indivíduo na conformidade com a realidade em que se encontra” (Ales Villas Boas, Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética da teologia, São Paulo: Paulus, 2016, p. 89. Também será significativo o exame das páginas de 97 a 160 em que o autor discute o pensamento poético como forma concreta de patodiceia. Estas discussões estão em convergência com as provocações criticas a respeito da teodiceia realizada por Gustavo Gutierrez (2008) e Andrés Torres Queiruga (2011) que deslocam a questão para a compaixão para com os pobres e dizem que a experiência da fome e das violências deve modificar o modo de falar de Deus.

[12]Dentre os poucos autores da época moderna que tiveram a ideia de repensar a teodiceia pode-se recordar Antonio Rosmini (1797-1855) porque estava convencido a respeito da “possibilidade de superar o nível apofático-ético da teodiceia, para explicitar aquele teológico-cristológico” que ele elabora “através da leitura da figura e do livro de Jó em chave fortemente cristocêntrica”, Giuseppe Lorizio, “Teologia della rivelazione ed elementi di cristologia fondamentale”, in Idem, Teologia fondamentale, vol. 2: Fondamenta, Roma: Città Nuova, 2005, p. 67.

[13]Florenskij, “Dogmatismo e dogmatica”, p. 148.

[14]Cfr. Berdjaev, La concezione di Dostoevskij, pp. 111-128.

[15] Um aspecto profético relevante de Dostoiévski – colocado em evidência por Tat’jana Kasatkina – consiste em realizar uma aproximação cognoscitiva a respeito do significado do indivíduo singular e concreto na sua relação com a totalidade, isto è, com Deus. A estudiosa russa explica: “A capacidade de ver e de dar-se conta do lugar ocupado pelo ‘particular’, da não causalidade do ‘particular’ e da dependência que o todo tem do particular é o fundamental dom profético do escritor” (Kasatkina, Dostoevskij, p. 49).

[16]Cfr. Solov’ëv, “Tre discorsi in memoria di Dostoevskij”, pp. 37-45.

[17]Já numerosos estudiosos procuraram esclarecer que o ‘nacionalismo’ de Dostoiévski não está em conflito com tal visão, dado que, para ele, o povo russo deveria ser o protagonista e o exemplo no meio de outros povos, do progressivo afirmar-se da ideia cristã a respeito da fraternidade universale em Cristo.

[18]Partindo desta consideração, Bačinin afirma: “Enquanto isso uma profunda e criativa identificação com um texto, uma identificação com a escuta criativa podem aparecer infinitamente mais importantes do que os princípios metodológicos do ‘apriori’. Sobretudo se pensamos na lógica que a reflexiva identificação com um texto oferece como possibilidade a um estudioso de talento de chegar àqueles níveis profundos nos quais já não se consegue mais manter a distinção entre o secular e o religioso, onde, como diria Dostoiévski, as margens se cruzam e todas as contradições coexistem juntas. Se um tal estudioso não procura apresentar o mal como um bem, a mentira como uma verdade, os resultados das suas pesquisas passarão a ser de interesse não só para os ateus, mas também para os crentes. Isto significa, portanto, que não è necessário sustentar a ideia de um insuperável abismo entre as ciências seculares das letras e a teologia com a literatura”, Vladislav A. Bačinin, Literatura i teologija [Literatura e teologia], Proza.ru, 2014, https://www.proza.ru/2014/10/24/1999.

[19]Gilberto Safra, A po-ética na clínica contemporânea, 3 edição, Aparecida/SP: Idéias e Letras, 2004, p. 34.

[20]Elmar Salman, Teologia è un romanzo. Un approccio dialettico a questioni cruciali, Milano: Paoline, 2000, p. 22.

[21]Ivi, p. 23.

[22]Ivi, p. 24.

[23]Kasatkina, Dostoevskij, p. 48.

[24]Cfr. Berdjaev, Tipy, p. 80.

[25]Kasatkina, Dostoevskij, p. 49.

[26]Pavel A. Florenskij, La prospettiva rovesciata e altri scritti, Roma: Gangemi, 1990, p. 76. Idem, A perspectiva inversa, São Paulo: Editora 34, 2012.

[27] Cfr. Pavel A. Florenskij, Iconostasi. Saggio sull’icona, Milano: Medusa, 2008, p. 119; Idem, La colonna e il fondamento della Verità, Cinisello Balsamo: San Paolo, 2010, p. 341; Idem, La concezione cristiana del mondo, Bologna: Pendragon, 2011, p. 189.

[28]Pavel A. Florenskij, Il simbolo e la forma. Scritti di filosofia della scienza, Torino: Bollati Boringhieri, 2007, p. 269; Florenskij, Iconostasi, pp. 108-112, 126-137.

[29]Pavel A. Florenskij, Il valore magico della parola, Milano: Medusa, 2001, p. 97.