Entrevista John Caputo e a Teologia do acontecimento
Entrevista realizada por Prof. Dr. Cicero Cunha Bezerra Tradução: Prof. Dr. Vanderlei J. Zacchi

*Prof. Dr. Cicero Cunha Bezerra
*Doutor em Filosofia pela Universidad de Salamanca/ Espanha. Pós-doutorado em Filosofia pela Università Vita-Salute San Rafaelle/ Milão. Professor do Departamento de Filosofia, Ciências da Religião e dos Programas de PósGraduação em Filosofia, Letras e Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador Bolsa de Produtividade/CNPQ.
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Apresentação

John D. Caputo nasceu em 1940 na cidade de Filadélfia, Pensilvânia (EUA). Filósofo alinhado com a tradição hermenêutica contemporânea, desenvolveu uma filosofia, herdeira de autores como M. Heidegger, G-H. Gadamer, G. Deleuze, J. Derrida e G. Vattimo sem, no entanto, manter-se como um simples continuador das reflexões desses pensadores. Seus interesses pela mística medieval, em particular Mestre Eckhart, o coloca em uma posição interessante quando buscamos entender as relações entre filosofia, teologia e pós-modernidade. Sua concepção de “debilidade de Deus”, nos moldes do pensamento de Gianni Vattimo, culmina na ideia de uma “teologia do acontecimento” que nasce, basicamente de uma manobra hermenêutica em que o anúncio nietzschiano da “morte de Deus” é suplantado por uma reflexão sobre o acontecimento de Deus. Acontecimento entendido como um jogo entre o nome de Deus e o que o nome alberga sem, no entanto, exaurir seus sentidos. Na linguagem Deus se dá e pelo nomear a linguagem salva-se a si mesma em sua condição hermenêutica.

Estamos diante da distinção entre acontecimento e evento. Isto é, acontecimento como o que ocorre, o expresso, o presente em todo evento, sem ser, no entanto, algo dado em sua objetividade. As palavras giram em torno de um centro de significado que enquanto tal escapa a qualquer redução última. Por isso é comum lermos que o acontecimento não é o que ocorre (event), mas algo que se dá no que ocorre. Assim, não é algo presente, mas que busca dar-se no que está presente. Disso decorre que as palavras estão sempre sujeitas à desconstrução, mas não os acontecimentos enquanto tais. Livres da categoria metafísica de eternidade, os acontecimentos permanecem vigorando em suas linhas de fuga frente às concepções metafísicas que, segundo o pensamento hermenêutico de Caputo, são como “monstros”, seja de esquerda ou de direita, teístas ou ateístas, materialistas ou espiritualistas, que buscam aprisionar o divino em seus sistemas teóricos omnibarcantes. Os acontecimentos convocam para o futuro, para o porvir que, enquanto tais, são promessas e provocações.

Contrariamente às teorias, fundamentadas em ideias como a “história do espírito absoluto” ou “destino do ser”, uma teologia do acontecimento busca liberar, desatar os acontecimentos das ataduras quer sejam objetivistas ou transcendentes. Os acontecimentos são esplendores divinos nas coisas e no mundo. Tirando consequência de uma interpretação alternativa do Gênese, John Caputo propõe entender a relação entre Deus e o mundo como esplendor de luminosidade e não, como postularam às metafísicas cristãs, uma criatio ex nihilo. Deus não criou do nada, mas deu luz ao que não tinha. Dito de outro modo, fez brilhar. Temos assim, um pacto pós-moderno em que Deus resiste a contração, posto que é abertura e promessa. Contrário à nitzscheana afirmação do amor fati, Caputo postula um amor venturi, isto é, um contínuo renascer de Deus no mundo. Nessa perspectiva, a religião passa a ser compreendida como paixão incondicional pelo incondicional marcado pelo excesso, pelos restos, sobras de um acontecimento semanticamente rico em sua irredutibilidade.

Se o nome de Deus é o mais rico, também pode ser o mais violento. Cuidado redobrado, ameaças constantes. Pensar a teologia na pós-modernidade é, para John Caputo, tomá-la como o espaço das energias pelas quais os acontecimentos são alimentados e liberados em uma poética do impossível. A literatura como espaço em que Deus se dá como reza e pranto diante da noite escura e do ateísmo obrigatório. Não se trata, assim, de sustentar a existência de Deus, posto que existir implica no esgotamento, na objetividade das coisas que são. Deus, nesse sentido, não existe e, por isso mesmo, a reza ganha sentido e força. Rezamos, diz Caputo, pelo que não existe. O desejo como fonte nutridora da fé.

Uma fé que, em sua radicalidade, confirma o caráter anárquico do Reino de Deus. Um reino caósmico, expressão cara a G. Deleuze, em que caos e cosmos são faces de uma mesma experiência de sacralidade marcada pelo absurdo e loucura divina. Caputo enumera várias passagens bíblicas em que o Reino de Deus parece suspender a lógica das narrativas estruturadas em hierarquias rígidas. Em um Reino em que os “últimos serão os primeiros”, em que corpos leprosos se contrapõem às imagens apolíneas; cegos, aleijados, prostitutas, epilépticos são tidos como paradigmas de um amor que não é sabedoria (logos), nem virtude (areté), mas cultivo como “os lírios do campo”, não há espaço para a violência e o poder, no sentido forte da palavra. É a debilidade, a fraqueza sob forma de uma loucura que sacode o mundo o que faz com que Caputo enxergue nos acontecimentos a imagem de um Deus que tem no logos da cruz (logos tou stauru) sua marca débil e humana. Uma teologia do acontecimento implica, também, em uma poética do impossível que torna, por sua impossibilidade, o reino de Deus como possível. Inspirado em J. Derrida em sua obra Sauf le nom, (1993), Caputo reforça a ideia de uma poética que evoca o porvir de um reino que rompe, por sua imprevisibilidade, com a lógica do mundo real. Se a lógica tem como objeto a modalidade do possível, dirá Caputo, a poética se ocupa de um “talvez” (peut-être). Parábolas e paradoxos fundam uma para-lógica que confunde os cálculos do mundo.

Sem sombra de dúvida, um dos mais criativos e provocadores, no sentido de convocar ao pensamento, filósofos da religião que assume a condição pós-moderna como solo para uma experiência hermenêutica de Deus que repousa na tradição como impulso para o futuro que, enquanto tal, se mantém presente na espera, em tempos pós-seculares, de uma vinda (l’à-venir) silenciosa de um Deus que tem seu reino proclamado como kerygma e sua verdade narrada não em precisões historiográficas, mas como acontecimentos que convocam e reúnem os despossuídos em torno da despossessão de toda violência.

John Caputo é autor de uma vasta obra que envolve livros e artigos, dentre os quais podemos destacar: The Folly of God: A Theology of the Unconditional, God and the Human Future Series, 2016, Hoping Against Hope: Confessions of a Postmodern Pilgrim, 2015, It Spooks: Living in response to an unheard call, coauthored with Katharine Sarah Moody, 2015, The Insistence of God: A Theology of Perhaps, Indiana Series in the Philosophy of Religion, 2014, Feminism, Sexuality, and the Return of Religion, co-edited with Linda Martin Alcoff, Indiana Series on the Philosophy of Religion, 2011, After the Death of God, coauthored with Gianni Vattimo, Insurrections: Critical Studies in Religion, Politics, and Culture, 2010.

John D. Caputo lecionou em várias Universidades americanas desenvolvendo, no entanto, sua carreira acadêmica na Syracuse University e a Villanova University nas quais ministrou a disciplina Filosofia da Religião. Desde 2011 se encontra aposentado como Professor Emérito. A entrevista, aqui apresentada, é parte de um diálogo iniciado em 2018 em torno da sua concepção de teologia do acontecimento associando-a às suas influências filosóficas e literárias. Agradeço ao Professor Vanderlei J. Zacchi, do Departamento de Letras Estrangeiras (UFS) pela tradução.

ENTREVISTA

1. Quando você se decidiu pela filosofia?

• Em 1958, eu terminei o ensino médio e entrei para uma ordem católica romana, a Irmandade das Escolas Cristãs (F.S.C., Fratres Scholarum Christianarum). Então comecei a estudar teologia, que naquela época era voltada para S. Tomás de Aquino. Meus professores diziam que as perguntas que eu insistentemente fazia eram filosóficas, e que eu precisava estudar a filosofia de Aquino para obter as respostas. E foi o que eu fiz – e me apaixonei pela filosofia de S.Tomás de Aquino. Meu segundo livro foi sobre Heidegger e Aquino.

2. Como a tradição mística, me refiro em particular ao pensamento de Mestre Eckhart, influenciou, se é que influenciou, em sua concepção de teologia?

• Sempre tive uma relação de amor com os místicos, desde a época da Irmandade Cristã, culminando com minha descoberta de Mestre Eckhart quando estava escrevendo minha tese sobre Heidegger nos meados dos anos 1960. Relato isso tudo com mais detalhes em Hoping against Hope (Nenhuma esperança na esperança). Está também no meu primeiro livro, The Mystical Element in Heidegger’s Thought (O elemento místico no pensamento de Heidegger).

3. Que importância tem a teologia negativa na construção da sua ideia de uma teologia do acontecimento?

• O elemento apofático do acontecimento tem a ver com o “futuro absoluto”, a imprevisibilidade radical do futuro, a chegada do que não podemos perceber chegando. Sempre nutri um amor pela teologia mística, começando desde o meu primeiro livro sobre Heidegger e Mestre Eckhart até os dias de hoje. Faço tudo que posso para usar os recursos apofáticos e suas locuções trava-línguas, aprendendo tudo que posso sobre como desdizer o que digo. Mas a teologia fraca não é, finalmente, uma teologia mística, pelo menos não no sentido clássico. A teologia negativa esteve, classicamente, vinculada à metafísica neoplatônica da primazia da eternidade sobre o tempo e da unidade sobre a multiplicidade, de modo que todas as suas negações se destinam tão somente a louvar o inefável Eterno, a impronunciável divindade além de Deus, numa lógica abrangente de exitus e reditus. Eu abraço a fenomenologia da teologia negativa, o amor e a vida sem um porquê, mas não o suporte metafísico do neoplatonismo. Quanto mais eu tento me manter na forma de vida que os místicos descrevem, mais eu destrincho o terreno em torno da metafísica que pulsa no interior dela. Eu acho que não temos nenhuma garantia como essas que as teologias apofáticas nos oferecem. O que eu quero dizer é que, no coração dessas trevas, há um mundo mais sem coração, onde os malfeitores conseguem se safar de suas inúmeras práticas, onde a própria religião pode se tornar violenta e onde, numa escala cósmica, a Terra, o sol, a galáxia, o universo como um todo parecem estar literalmente indo para lugar nenhum, expandindo-se em direção ao nada, destinada ao esquecimento, ad nihilam. O que eu quero dizer é que, no meio de um mundo que, até onde podemos entender existe “sem por quê”, deveríamos aprender a viver “sem por quê”, como nos aconselharam o Mestre Eckhart e Marguerite Porete. O amor não tem por quê, e somente quando o amor estiver despido de todo suporte metafísico e de todo traço de intercâmbio econômico, somente quando o amor estiver despido de suas vestimentas de bom investimento a longo prazo, somente quando a promessa de amor não estiver comprometida, que o amor poderá ser amor. O amor é o coração de um mundo sem coração.

4. Você “ataca” o neoplatonismo, como parte da cosmovisão cristã, de que maneira você diria que o neoplatonismo “interrompeu” a experiência cristã de Deus?

• Eu quero radicalizar a teologia, livrando-a do neoplatonismo. No neoplatonismo, o Uno é anterior ao múltiplo; no pensamento radical, o uno é um efeito da diferença. No neoplatonismo, a Origem é exemplar e a imagem é derivada; no pensamento radical, as origens são efeitos não-originais de substitutos. O neoplatonismo é estruturalmente, constitutivamente essencialista; o pensamento radical é constitutivamente nominalista. O que eu acho importante na teologia apofática não é a metafísica neoplatônica, pela qual ela tem sido seduzida, mas uma fenomenologia magnificente de viver “sem por quê”, que não depende da metafísica e, a meu ver, está em desacordo com ela. Eu amo a tradição apofática; é um amor para a vida toda. Mas tenho muitas suspeitas da metafísica neoplatônica que se agarra a ela e tem empurrado o cristianismo em direção ao cristandade. Quero um cristianismo totalmente removido da cristandade.

5. Lendo o seu livro The Weakness of God : a Theology of the Event é possível encontrar certas semelhanças com os místicos, principalmente na centralidade do amor incondicional (a-modal) como uma experiência libertadora. Seria o amor aquela “impossível, mais que impossível” ação humana, para si e para o outro, a expressão máxima de uma fé débil (sem poder divino) que encontra no ser humano sua atividade e em Cristo a expressão máxima desta atividade?

• Sim, concordo com isso tudo, exatamente assim.

6. Quais autores você destacaria como influências na construção de sua teologia do acontecimento?

• Derrida, Deleuze, Heidegger, Vattimo e Benjamin.

7. Você sustenta, após a morte de Deus, a ideia de uma “virada pós-moderna” pensando Deus em conexão com os acontecimentos; poderíamos dizer que, em sua opinião, a pós-modernidade, em vez da morte de Deus, pensa o mundo como manifestação em sua totalidade?

• Sim, a teologia pós-moderna não é a hermenêutica da morte de Deus, mas a hermenêutica do acontecimento de Deus, da insistência de Deus, daquilo que se apresenta em nome de Deus.

8. Qual é o papel das religiões, particularmente do cristianismo, no contexto tido por muitos como “pós-humano”?

• É difícil dizer. Se o que os pós-humanistas dizem se tornar realidade, o mundo se transformará tão completamente que será difícil dizer que papel a religião terá, se é que terá algum. Mais provavelmente, acredito eu, a religião se transformará em uma espécie de cosmoteologia ou cosmoteopoética, e o mistério que chamamos de Deus se transformará no mistério que chamamos de universo.

9. É possível afirmar um «amor venturi” em um mundo em que o futuro está se delineando, em grande medida, pela violência entre os seres humanos?

• Quanto mais as coisas carecem de esperança, mais a esperança é realmente esperança. Senão, a esperança é apenas uma expectativa razoável, a esperança que um corretor da bolsa tem em um bom investimento. A verdadeira esperança tem a ver com os que não têm esperança.

10. Como você vê a teologia da libertação na América Latina como uma experiência dos pobres?

• Eu nunca lhe dei crédito suficiente. É de suma importância. A única coisa que eu posso dizer é que ela precisa se imbuir de uma forma mais pós-moderna e ser menos apegada à matriz branca-masculina-alemã da Teoria Crítica da qual ela nasceu. Mas ela atinge o âmago do Evangelho, e vemos seus frutos hoje no Papa Francisco.

11. A teologia do evento pode ser pensada como uma postura política? Em que sentido?

• Sim. Desde o começo, do Gênesis em diante, a teologia é política. É sobre a terra, o povo, as crianças, o futuro; a execução de Jesus foi política. E a política sempre contém um sonho mais que político. A política não é a arte do possível; é o sonho de tornar possível o impossível, uma estrutura teológica, portanto, profunda ou radical.