Teologia e Literatura Russa
Editorial

Alex Villas Boas (PUC PR)
Antonio Manzatto (PUC SP)
Marcio Luis Fernandes (PUC PR)
Lubimir Zak (PUL, Roma)
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E m sua proposta de ser veículo de socialização dos estudos e trabalhos que envolvem diálogos entre literaturas e teologias, Teoliterária apresenta aqui um dossiê bastante interessante, propondo estudos no horizonte da literatura russa. A julgar pela quantidade de textos submetidos à Revista, este é um tema bastante trabalhado nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião e Teologia no país e em diversos outros Programas nacionais e internacionais.

Os cenários, os autores e os personagens da literatura russa têm, para nós, nomes complicados, muitas vezes em um festival de consoantes que se sucedem. Isso faz com que haja um certo grau de dificuldade, por um lado, e de interesse, por outro, na abordagem e nos estudos dessa literatura. Ela retrata uma sociedade que nos é próxima e, ao mesmo tempo, bem distante; cenários que são da estepe, mas que nos lembram a geografia próxima; personagens que se movem de forma às vezes estranha, mas que, no entanto, encontramos em todas as esquinas de nossas cidades e, muitas vezes, em nossas esquinas interiores também.

Próxima e distante, a literatura russa ajudou a formar a cultura ocidental, ainda que a partir de seu horizonte próprio e nem tão ocidentalizado assim. Ajudou também a formar nossa literatura, já que visíveis são os traços de influência da obra dos grandes autores russos sobre os nossos próprios autores literários. Os traços religiosos, sejam eles rituais ou místicos, estão bastante presentes na cultura russa e, como não poderia deixar de ser, em sua literatura. Além disso, o pensamento religioso russo – fruto de um maduro exame da herança bíblico, patrística e ascética – tem características Porém, no âmbito das Ciências da Religião ou da Teologia, o pensamento russo não parece se fazer tão presente ou tão visível. Os estudos aqui apresentados demonstram que, pelo viés da literatura, tal pensamento está mais próximo de nós, de nossa cultura e de nossos comportamentos do que costumamos admitir.

Sempre se poderá argumentar que isso acontece por conta da ocidentalização de nossa cultura e da Rússia. Se somos todos ocidentais, essa marca vai aparecer de alguma maneira. Não deixa de ser verdade. Porém a religiosidade russa é de tal forma distinta daquela com que estamos familiarizados que se torna interessante debruçar-se sobre ela para reconhecer, nessa mesma distinção, algumas similaridades. Sim, claro, também se poderá argumentar que a sociedade russa é fortemente marcada pelo cristianismo e comportamentos religiosos dele derivados, sobrevivendo mesmo ao período de ateísmo imposto pelo estado soviético. E se nossas sociedades também o são, assim como todo o Ocidente, então é normal que semelhanças se estabeleçam. Entretanto, o diálogo com estes autores hoje permite não só o repensar a insuficiência da linguagem para exprimir o mistério ou para denunciar que as teologias ensinadas no Ocidente estavam contaminadas por um racionalismo que aprisionava Deus na lógica das causas e dos efeitos, mas também para pensar de modo fecundo as questões da ética e do crescente adoecimento do ser humano, tal como expresso pelo estudioso Gilberto Safra:

“Esses pensadores apresentaram elaborações lúcidas sobre o que propiciava e o que estilhaçava a condição humana (...) Esses autores testemunham o esfacelamento cultural que ocorreu na Rússia ao final do século XIX e no início do século XX e o decorrente adoecer humano. É frequente se encontrar em seus escritos a preocupação com o futuro da humanidade, pelas condições anti-humanas que pareciam intensificar-se com o passar dos anos. Nos textos desses autores são discutidas essas questões presentes não só na Rússia do início do século vinte, como também, em tom profético, os problemas de nosso tempo, em que a natureza humana se estilhaça. Frente a essa situação, recolhem e emolduram a face humana, explicitando o ethos. Para realizar essa tarefa criam uma obra resistente à fragmentação da medida humana, evitando a abstração racionalista. São textos que apresentam uma maneira diferente de pensar, pois ao mesmo tempo integram os vértices literários, filosófico, político e religioso” (Safra, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. 3 edição. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2004, p. 33).

Estamos habituados a conversar sobre o papel que a religião desempenha no horizonte da formação e do desenvolvimento das diversas culturas humanas. Cultura e religião se imbricam de tal forma que, na prática, não se pensa uma sem a outra. O cristianismo mostrou, ao longo de sua história, uma interessante capacidade de se adaptar a culturas distintas, ou a aspectos culturais diferentes moldando culturas que guardam grandes distinções entre si. No entanto, apesar disso, acabam se reconhecendo como similares por conta dessa mesma fé. E aqui a conversa muda para que se percebam as relações existentes não exatamente entre cultura e religião, mas entre fé e cultura. Os intelectuais russos – teólogos, literatos, dramaturgos, filósofos – da chamada ‘idade da prata’ sentiram a exigência de formular nos finais do século XIX uma nova Weltanschauung capaz de ajudar na superação da cisão criada no pensamento, na cultura e na expressão religiosa popular entre o espiritual e material, entre a fé e a razão, entre a transcendente e o imanente, entre o qualitativo e o quantitativo.

Tornou-se clássica, sobretudo no horizonte da teologia, a distinção entre fé e religião, o que não implica na separação de tais elementos senão para a análise acadêmica. Na vida concreta dos cidadãos, fé e religião parecem constituir um único elemento. Mas já há bastante tempo vem-se estudando em diversos ambientes teológicos como a mesma fé pode estar presente e exprimir-se em culturas diferentes. Chegouse inclusive a criar-se o termo “inculturação”, extremamente importante atualmente na missiologia, exatamente por afirmar a capacidade que a fé tem, ou precisa ter, de poder ser vivenciada em ambientes culturais distintos. A pergunta é se para ser cristão é preciso ser ocidental, se a adesão à fé implica no aceite de formas culturais estabelecidas ou se a “evangelização da cultura” pode significar a vivência da fé cristã sem que culturas sejam transformadas em ocidentais. O debate permanece aberto, assim como as abordagens da literatura russa e suas implicações nos estudos de Ciências da Religião e Teologia desenvolvidos no Brasil em um interessante diálogo apresentado aqui em diferentes estudos.

No Dossiê aparecem perspectivas nas quais se testemunha a preocupação com dimensões fundamentais como aquela que assinala que o ser é comunhão e comunidade ou também a perspectiva ontológica do sentido do sofrimento humano no horizonte do Deus sofredor. Assim, a leitura calma e silenciosa destas contribuições pode ser realizada no espírito daquela “mística do coração” própria do peregrino russo. Uma dimensão, portanto, que faz reconhecer o quanto este universo da literatura e da teologia russa estavam marcados por uma investigação em que se aplicava o apofatismo como método e como atitude espiritual que exigia uma espécie de metanoia da razão. Desse modo, realizavam-se operações que não eram de natureza puramente abstratas e racionalistas, mas exigiam uma disposição que implicava uma purificação existencial do próprio autor. Nesta direção, se encontra o teatro russo e o simbolismo no qual se demonstra que os autores e artistas russos do século XX apresentavam uma maneira de pensar em perspectiva inversa e buscavam ultrapassar a contingência do mundo, por meio do símbolo, nas suas funções epifânica e revelativa. Tanto no teatro quanto na liturgia ou na presença do ícone o apego ao símbolo aparece como lugar de fronteira entre o mundo visível e o invisível e, em sua estrutura, anuncia as complexas estratificações do real. Também pode se verificar as formas modernas do diabo russo, ao mergulhar no universo literário que teve de enfrentar – como tantos outros intelectuais russos do seu tempo – a oposição ao regime de Stalin.

Esta preciosa edição recolhe contribuições desde Fiodór Dostoievski, como não poderia deixar de ser, Mikhail Bulgákov, Serguei Bulgákov, Pavel Evdokimov, Andrei Tarkovski, Pavel Florenski, Nicolas Berdiaev, entre outros. Pode-se notar um conjunto de artigos que tematizam a recepção do grande autor russo Dostoiévski e o respectivo despertar religioso promovido pela acolhida de seus personagens nos quais se concretiza tudo aquilo que é típico da experiência religiosa russa, ligadas a ideia de beleza, de conhecimento integral, de unidade da criação, da Sobórnost, da mística do coração e, sobretudo, uma preocupação com a situação dos pobres e a justiça social. Os textos de Dostoiévski retratam a pertença a um movimento que reuniu a partir do final do século XIX escritores, poetas, filósofos, teólogos, dramaturgos interessados em produzir obras que pudessem servir a uma contemplação apofática da realidade e, por esta característica, se distanciassem de abordagens racionalistas e abstratas. Realizar tal tarefa significava contemplar a realidade a partir da sua complexidade e requeria a integração dos

Pode-se intuir na relação referentes a crise cultural e religiosa da Russia e, no entanto, nos escritos de um significativo conjunto de autores nascia o desejo de se intensificar reflexões que ajudassem a refletir sobre o sofrimento e o sentido humano da vivência da fé. Além disso, ser pode-se observar a proximidade entre as reflexões dos teólogos-filósofos russos e os grandes literatos que cultivavam, por conseguinte, a fecundidade desta aproximação serviu para sustentar um realismo com esperança que atravessou a crise da modernidade, ressignificando a questão de Deus como questão visceralmente existencial e trágica, emoldurando um cristianismo trágico.

A sessão dos artigos de temática livre é bem diversificado, contando com contribuições inéditas, de diversos estilos literários. A edição também conta com uma entrevista feita a John Caputo e sua filosofia do acontecimento, que muito contribui com a hermenêutica teológica e literária.

A presente edição da Teoliteária encerra o ano de 2018 procurando promover o diálogo atual entre literatura, religião e teologia que tem sido fecundo e tem contribuído para o desenvolvimento do conhecimento na área tanto da literatura quanto dos estudos de religião e teologia. Que a beleza nos salve!