O Imaginário no Sermão pelo Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, de Padre Antônio Vieira.
The Imaginary in the Sermon for the Success of the Arms of Portugal against those of Holland, of Father Antônio Vieira

Alair Matilde Naves*
*Mestrado em Ciências da Religião pela PUC Minas, graduação em Filosofia pela PUC Minas e graduação em Teologia – Seminário Coração Eucarístico / PUC Minas. Atualmente é Supervisor Pastoral na PUC Minas. Contato: professor. alairnaves@yahoo.com.br
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Resumo
Este artigo apresenta o imaginário presente no Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, de Padre Antonio Vieira. O objetivo é promover uma leitura contextualizada do sermão considerando o imaginário religioso da época, o período colonial em que viveu Padre Vieira. Para alcançar este objetivo, é considerada a noção do mito fundador da sociedade brasileira e do mundo português por meio de uma pesquisa bibliográfica de viés histórico e “viagem” analítica pelo próprio sermão. O mito fundador é constituído por três elementos: uma elaboração simbólica chamada “Oriente” – lugar abençoado, uma “visão do paraíso”; uma compreensão da história sustentada pela vontade de Deus e realização das profecias bíblicas, e, uma compreensão medieval da figura do governante como “rei pela vontade de Deus”. O imaginário colonial tem como tripé a Vontade, a Palavra e a Obra de Deus. O artigo proporciona uma “viagem” pelos tomos do Sermão na perspectiva do imaginário, abstraindo do texto os movimentos do orador e o cenário em que ocorre: a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Cidade da Bahia (Salvador) – na mesma ocasião em que o Brasil estava na iminência de uma invasão holandesa.

Palavras chave:Mito. Imaginário. Religião. Cristandade. Protestantismo.

 

Abstract
This article presents the imaginary present in the Sermon on the Good Success of the Arms of Portugal against those of Holland, by Father Antonio Vieira. The objective is to promote a contextualized reading of the sermon considering the religious imagery of the time, the colonial period in which Father Vieira lived. In order to reach this goal, the notion of the founding myth of Brazilian society and the Portuguese world is considered through a bibliographical research of historical bias and analytic “journey” by the sermon itself. The founding myth consists of three elements: a symbolic elaboration called “East” - a blessed place, a “vision of paradise”; an understanding of history sustained by God’s will and realization of biblical prophecies, and a medieval understanding of the governor’s figure as “king by the will of God”. The colonial imaginary has as tripod the Will, the Word and the Work of God. The article provides a “journey” through the parts of the Sermon from the perspective of the imaginary, abstracting from the text the movements of the speaker and the scenario in which it occurs: the Church of Our Lady of Help, in the City of Bahia (Salvador) - at the same time that Brazil was about to see a Netherlander invasion.

Keywords:Myth. Imaginary. Religion. Christianity. Protestantism.

Introdução

O Sermão pelo Bom sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda se encontra nas OBRAS COMPLETAS DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA (1959). Porto: Lello & Irmão – Editores. Vol. 14, 297-326. Este sermão está inserido no contexto histórico do monopólio do comércio açucareiro pelos países ibéricos, mesmo período em que na concorrência europeia, a Holanda se organizou para enfrentar a concorrência mercantilista de Portugal e Espanha.

Foi em meio a grande turbulência social e alvoroço político e econômico no ano de 1640, e frente a uma iminente invasão dos holandeses, também chamados ‘‘hereges protestantes’’, que Padre Antônio Vieira pregou este belíssimo Sermão, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Cidade da Bahia (Salvador), com o Santíssimo exposto. A pregação teve como tema: Conselho ao Altíssimo nas palavras do Profeta-Rei Davi.

Os títulos de “Nossa Senhora da Ajuda” e da cidade de “Salvador” são muito sugestivos no imaginário de um povo ameaçado pela iminente invasão holandesa. No sermão, Padre Vieira ameaça deixar Deus se ele deixar o Brasil ser entregue aos holandeses. Uma ameaça que mexe com o âmago dos fieis “sempre protegidos” por Deus – que “elegeu” os portugueses como conquistadores e desbravadores do desconhecido. Vale considerar que o Sermão foi escrito no último ano da dominação espanhola, ou seja, em 1640, ano em que Dom João IV foi aclamado rei de Portugal.

Com a contribuição de Marilena Chauí (2001) e Gilberto da Silva (2006) delineamos neste artigo a conjuntura do imaginário reinante no período colonial em que viveu Padre Vieira. Consideramos a noção de mito fundador da sociedade brasileira e de mundo português, apresentados por Chauí e Silva, como chaves de leitura para uma possível compreensão do imaginário presente no Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, bem como na mentalidade do orador jesuíta.

Em seguida, promovemos uma viagem pelo Sermão na perspectiva do imaginário, abstraindo os movimentos do orador durante a pregação e compreendendo o cenário em que ocorre o discurso. Padre Vieira toca o imaginário dos ouvintes com suas alegorias e provoca com suas palavras e movimentos durante a pregação um cenário antecipado das terríveis e possíveis catástrofes que poderiam decorrer de uma invasão dos protestantes, “hereges holandeses”. Leva os ouvintes ao reconhecimento de seus erros e desperta a disposição de fidelidade ao Deus fiel e misericordioso. A intenção patriótica de Padre Vieira é de reanimar os brios dos brasileiros e dar-lhes coragem para o “bom combate”, para a defesa da “fé verdadeira” e das terras dadas por Deus.

Logo no início do Sermão, Padre Vieira lança mão de um trecho do Salmo 43 da Bíblia, sinalizando o tom de todo o discurso e do monólogo que ele estabelece com Deus, presente no Santíssimo Sacramento, exposto no altar da Igreja. Durante a pregação, o orador se volta para o Santíssimo Sacramento e para seus ouvintes, intercalando seus movimentos desde o púlpito. Ao final, encerra o sermão apelando para Nossa Senhora da Ajuda, a Mãe que pode mandar, e manda que Deus perdoe os fieis. Afirma que é bom que Deus perdoe para que os fieis sigam o bom exemplo, como ele mesmo ensinou no Pai Nosso: “Perdoai como nós perdoamos”. O orador conclama os fieis a se perdoarem para receberem o perdão de Deus. Mas a conclamação para o perdão não é feita aos ouvintes, e sim a Deus presente no Santíssimo exposto.

Como uma boa maneira de captar o imaginário está no uso habilidade da imaginação, nos lançamos nesta aventura durante a leitura e releitura do Sermão. Entrando no cenário e no contexto da época, podemos imaginar e visualizar mentalmente a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e Padre Antônio Vieira iniciando seu Sermão voltado para o Santíssimo Sacramento, e ao final, fazendo o encerramento da pregação, podemos também desenhar na imaginação o Padre Vieira olhando para Jesus presente naquele ostensório. O Padre fica em silêncio e demonstra sua fé e sua confiança no Deus Altíssimo, o soberano que caminha ao lado dos portugueses e dos brasileiros.

Mas, antes de percorrermos o Sermão passo a passo, busquemos a compreensão do mito e do imaginário reinante naquele contexto histórico.

Contextualização do imaginário

Padre Antônio Vieira, muito mais do que clamar pela misericórdia divina, ‘‘exige’’ de Deus um livramento imediato por meio de um trecho do Salmo 43 da Bíblia:

“Exurge quare obdormis, Domine? Exurge, et ne repellas in finem. Quare faciem tuam avertis, oblivisceris inopiae nostrae et tribulationis nostrae? Exurge, Domine, adjuva nos et redime nos propter nomen tuum.” (Salmo XLIII). “Acordai, Senhor! Por que dormis? Despertai! Não nos rejeiteis continuamente! Por que ocultais a vossa face e esqueceis nossas misérias e opressões? Levantai-vos em nosso socorro e livrai-nos, pela vossa misericórdia”. – Tradução do texto citado no inicio do Sermão, segundo a versão da Bíblia Ave-Maria. (OBRAS COMPLETAS DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA, 1959: Vol. 14, 297).

O apelo primeiro do pregador é feito a Deus, pois ele é o legitimo soberano das terras brasileiras, entregues e confiadas aos portugueses. O imaginário cristão presente no período colonial brasileiro é marcado pela mentalidade evangelizadora da Cristandade, uma mentalidade expansionista, doutrinária e guerreira, que confundia seus interesses religiosos com os interesses do Estado. A figura do governante era vista como “rei pela vontade de Deus”. De tal modo, a ação dos portugueses e dos espanhóis é compreendida como resultante de um poder teológico-político advindo da vontade de Deus. O Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda se encontra inserido neste contexto.

O mito fundador e o imaginário reinante

O tripé ideológico e doutrinário que forma o imaginário reinante e que sustenta a pregação do Padre Vieira é formado pela Vontade de Deus – que legitima o governo e a valentia dos Reis de Portugal e Espanha, pela Palavra de Deus – profética e providencial perante as ameaças do inimigo, e pela Obra de Deus confiada aos missionários jesuítas e aos desbravadores portugueses. As conquistas das terras brasileiras pelos portugueses correspondem a um imaginário comum e ao sonho paradisíaco presente na Europa, como veremos a seguir.

As ideias fundantes da realidade imaginária chamada Brasil, antes que se tornasse Brasil de fato, surgiram de um mito fundador que traz em sua matriz três elementos que o constituem. O primeiro elemento constituinte deste mito fundador é uma elaboração simbólica chamada “Oriente” – lugar abençoado, uma “visão do paraíso”. O segundo elemento é a compreensão da história sustentada por duas vertentes: a vertente da história teológica providencial, em que a vontade de Deus e sua divina providência conduzem os rumos da existência – vertente elaborada pela ortodoxia teológica cristã; a vertente da história profética cristã, em que a realização das profecias bíblicas está na iminência de sua realização – vertente sustentada pelo milenarismo de Joaquim de Fiori (considerada como heresia pela Igreja Católica). O terceiro elemento constituinte do mito fundador se sustenta na compreensão medieval da figura do governante como “rei pela vontade de Deus”, elaboração jurídico teocêntrica fundada no direito natural e interpretada pelos juristas de Coimbra para fundamentar as monarquias absolutistas de Portugal e Espanha.

Estes três elementos constituintes se conjugam formando o mito fundador com três operações divinas institucionalizadoras. A primeira operação é a da Obra / Natureza: obra de Deus – força do direito natural, que dá ênfase à Natureza. A segunda operação é a da Palavra / História: Palavra de Deus – seja providencial ou profética, que dá ênfase à História. A terceira operação é a da Vontade / Estado: Vontade de Deus – o reinado pela graça de Deus, que dá ênfase ao Estado.

Pode-se perceber um alinhamento estreito entre o tripé ideológico e doutrinário que forma o imaginário reinante sustentando a pregação do Padre Vieira e as operações divinas institucionalizadoras presentes no mito fundador.

A Vontade de Deus – que legitima o governo e a valentia dos Reis de Portugal e Espanha se alinha com a terceira operação que é a da Vontade / Estado, do reinado pela graça de Deus, que dá ênfase ao Estado. A Palavra de Deus – profética e providencial perante as ameaças do inimigo se alinha com a segunda operação que é a da Palavra / História, a Palavra de Deus que dá ênfase à História. A Obra de Deus confiada aos missionários jesuítas e aos desbravadores portugueses se alinha com a primeira operação que é a da Obra / Natureza, a obra de Deus pela força do direito natural, que dá ênfase à Natureza.

De tal modo, o mito fundador é delineador de um imaginário que enquadra a ação dos portugueses e dos espanhóis (no Brasil e na América) como resultante de um poder teológico-político advindo da vontade de Deus para realização na história do novo mundo

A visão de mundo e o imaginário europeu são fortemente marcados pela cosmovisão geocêntrica1 de Cláudio Ptolomeu (RIBEIRO JR., 2006). Dentro do cenário europeu, as grandes viagens pelo alto mar são vistas como alargamento da compreensão do mundo para além das fronteiras do invisível, superando os limites do visível e alcançando uma nova compreensão da existência. No plano simbólico da cosmovisão geocêntrica, as grandes viagens são consideradas ousadia, e até mesmo loucura. É quase inconcebível o deslocamento dos navegantes para além das fronteiras do conhecido, para regiões consideradas mortais, abismos abissais, zonas tórridas, morada de monstros terríveis.

As terras encontradas no além-mar levam os portugueses e espanhóis a crerem numa reconquista do “Paraíso Terreal” – o paraíso perdido da Bíblia e dos escritos medievais. No imaginário mitológico europeu se sustentava a existência do Jardim do Éden, das Ilhas Afortunadas, das Ilhas Bem-aventuradas como lugares abençoados. Tais lugares se riam como que um reino futuro (perspectiva milenarista) em que os seres humanos e os animais poderiam conviver em harmonia, numa eterna primavera e numa eterna juventude.

As tradições fenícia e irlandesa consagraram nos escritos medievais a crença em um mundo novo, localizado em ilhas a oeste do mundo conhecido.

Essas ilhas, de acordo com a tradição fenícia e irlandesa, encontram-se a oeste do mundo conhecido. Os fenícios as designaram com o nome de Braaz e os monges irlandeses as chamaram de Hy Brazil. Entre 1325 1482, os mapas incluem a oeste da Irlanda e ao sul dos Açores a Insulla de Brazil ou Isola de Brazil. (CHAUI, 2001: 59-60).

Tais terras abençoadas de Braaz têm uma correspondência direta e grandiosa com o imaginário do Jardim do Éden. A compreensão de “Oriente” relacionado ao Hy Brazil combina com a ideia de reencontro do “paraíso perdido”. Ainda mais, a descrição do Brasil feita pelos navegadores em seus diários e correspondências se alinham com o mito do Jardim do Éden e com as profecias bíblicas:

De fato, a Bíblia, no livro do Gênesis, afirma que o paraíso terrestre, terra de leite e mel, cortado por quatro rios, localiza-se no Oriente. A partir do relato bíblico, as grandes profecias, particularmente as de Isaias, descrevem com profusão de detalhes o oriente-paraíso, terra cortada por rios cujos leitos são de ouro e prata, safiras e rubis, por onde correm leite e mel, em cujas montanhas derramam-se pedras preciosas, habitado por gentes belas, indômitas, doces e inocentes como no Dia da Criação, promessa de felicidade perene e redenção. (CHAUI, 2001: 61).

Três signos paradisíacos se fazem presentes nos relatos dos navegantes, signos que correspondem ao imaginário relacionado ao “paraíso” e de fácil entendimento para os leitores dos séculos XVI e XVII: o signo da abundancia de águas, o signo da temperatura amena e o signo das qualidades da gente nativa.

O signo da abundancia de águas remete aos grandes rios narrados no Paraíso do Gênesis; o signo da temperatura amena remete à primavera eterna, e o signo das qualidades da gente nativa (bela, altiva, simples, inocente) remete às descrições da gente das profecias de Isaías.

A criação de um imaginário como “visão do paraíso” relacionado às ilhas de Braaz, ou Insulla de Brazil é anterior à chegada dos navegantes: Cristovão Colombo na América e Álvares Cabral no Brasil. A esperança de Braaz impregna o Brasil de um sentido mítico, que o torna uma produção mítica de país-jardim, país-paraíso, país-Natureza. Uma Natureza dada por Deus aos portugueses. Um Brasil-Natureza, o melhor da obra de Deus e que por Sua vontade foi entregue a um povo ordeiro e pacificador, habitante das terras de Portugal.

Este imaginário estruturante deve ser considerado na análise e compreensão dos Sermões de Padre Antônio Vieira, dentre eles o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda.

Deus não trouxe os portugueses à Insulla de Brazil por acaso, mas por lhes reservar um futuro promissor. Este imaginário remete também á compreensão da realização das profecias de Isaías e Daniel, de um novo céu e uma nova terra, no século XVII. O próprio Padre Vieira demonstra em seus Sermões e escritos que Portugal foi predestinado para realizar as profecias. Segundo Chauí,

Numa descrição minuciosa, particularmente de Daniel e Isaías, versículo por versículo, o Padre Vieira demonstra que Portugal foi profetizado para realizar a obra do milênio e cumprirá a profecia danielina, instituindo o Quinto Império do Mundo, tendo a frente o Encoberto, um rei que será o último avatar de El Rei Dom Sebastião. Que disse Isaías para que Vieira tenha essa esperança? “Quem são estes que vêm deslizando como nuvens, como pombas de volta aos pombais?”, indaga o profeta. Responde o jesuíta: “As nuvens que voam a estas terras para as fertilizar são os Portugueses pregadores do Evangelho, levados ao vento como nuvens; e chamam- -se também pombas porque levam estas nuvens a água do batismo sobre que desceu o Espírito Santo em figura de pomba”. (CHAUI, 2001: 76).

Padre Vieira interpreta as profecias de Isaías e de Daniel na perspectiva de sua realização nas terras brasileiras, e uma realização próxima de seu tempo. Assim

Para provar que Portugal é o sujeito e o objeto das grandes profecias, Vieira terá de mostrar qual o lugar do Brasil no plano de Deus. Ele o faz, provando que o Brasil foi profetizado por Isaías como feito português. O profeta Isaías diz:
“Ai da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da Etiópia. Que envia mensageiros pelo mar em barcos de papiro, sobre as águas! Ide mensageiros velozes, a uma nação de gente de alta estatura e de pele bronzeada, a um povo temido por toda parte, a uma nação poderosa e dominadora cuja terra é sulcada de rios” (Isaías 18, 1- 2).
Interpreta o Padre Vieira:
“Trabalharam muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação deste texto; mas não atinaram nem podiam atinar com ele porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o profeta [...] que falou Isaías da América e do Novo Mundo se prova fácil e claramente. Pois esta terra que descreve o profeta que está situada além da Etiópia e é terra depois da qual não há outra, estes dois sinais tão manifestos só se podem verificar da América [...] Mas porque Isaías nesta descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele [...]. Digo primeiramente que o texto de Isaías se entende do Brasil...” (VIEIRA, s.d.)

Donde a dupla conclusão: a primeira é que a interpretação dos textos de Isaías revela que este profeta “verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores convertem à Fé”. A segunda é que os tempos estão prontos para seu remate porque “há profecias que são mais do que profecias”, como as de João Batista, que prometeu o futuro com a voz e mostrou o presente com o dedo [...]” (CHAUI, 2001: 77).

O imaginário colonial brasileiro

Gilberto da Silva (2006), em seu livro Encontro de Mundos: o imaginário colonial brasileiro refletido nos sermões de Padre Antonio Vieira, nos apresenta um panorama de três mundos, três culturas e imaginários que circundaram a época colonial e o contexto em que ele viveu. Destacaremos aqui o imaginário cristão presente no período colonial brasileiro que marca significativamente o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, objeto de nosso trabalho.

Segundo Silva (2006), o imaginário cristão do período colonial brasileiro é herdado desde a oficialização da Igreja no Império Romano, por Constantino (272-337). Com a mentalidade da Cristandade, a evangelização passou a ser entendida como expansionista, doutrinária e guerreira, confundindo seus interesses com os interesses do Estado. A Igreja Católica alcança seu ponto máximo de poderio com o papa Inocêncio III (1198-1216) que se intitulou “Vigário de Cristo e Senhor do Mundo”. Mas foi com Leão IX, 45 anos antes, que teve inicio o primado feudal da Igreja:

O Concilio de Reims, presidido por Leão IX (1049-1054), declara o bispo de Roma “primaz apostólico da Igreja universal”. Segundo o direito feudal, o papa é o suserano dos suseranos, isto é, na hierarquia social medieval de suserania e vassalagem, o papa ocupa o ápice da pirâmide, tendo direito divino de intervir nos outros reinos, que são seus vassalos. O Tratado de Tordesilhas, de 07 de junho de 1494, representa na realidade um contrato de suserania-vassalagem, onde o papa era o grande suserano, e os reis de Portugal e de Espanha seus vassalos. (SILVA, 2006: 17).

O Tratado de Tordesilhas se tornou, assim, o sinal da autorização divina para as ações de Portugal e Espanha, uma concessão feudal dada pelo papa aos reis lusitanos para explorar e evangelizar as gentes destas terras brasílicas e americanas.

Depois da Reforma Protestante, o Concilio de Trento (1545-1563) marca profundamente a mentalidade evangelizadora na perspectiva da defesa da fé católica, na repressão às heresias, no combate aos hereges protestantes e às superstições. No contexto colonial brasileiro, os jesuítas, entre eles o Padre Antônio Vieira, tiveram um papel protagonista nesta investida tridentina. A evangelização se tornou compreendida como criação da sociedade cristã, a “Sociedade Sagrada” da Cristandade.

A partir da mentalidade tridentina e do conceito de Cristandade como sociedade cristã, o projeto colonial português foi compreendido como expansão do Reino de Deus. Outros modelos passaram a ser vistos como heréticos e insolentes. No Brasil, com plenos poderes religiosos e políticos, o Estado desenvolveu um conceito de heresia para além do âmbito teológico, alcançando também o âmbito político2. A Igreja se tornou um instrumento do Estado agindo conforme os interesses da realeza e dos donatários de terra, seus representantes legítimos. Além da oficialidade estabelecida, que gerava um imaginário de sacralidade às ações do Estado, reinava entre os portugueses um imaginário baseado em lendas e tradições que atribuíam à monarquia uma origem divina, um imaginário que impregna uma visão messiânica das origens de Portugal:

A Virgem teria aparecido a Dom Afonso Henriques, o fundador do reino português no século XII e teria dito: “Porque meu filho quer por ele [pelo reino português] destruir muitos inimigos da fé”. O próprio Cristo também teria aparecido na batalha de Ourique, confirmando o trono português e fazendo dele o porta-voz da mensagem da fé a todas as nações. A aparição de Cristo a Afonso Henriques, em 1139, no meio de um raio, coloca a Cruz como garantia da vitória, de modo semelhante à lenda de Constantino. (SILVA, 2006: 21-22).

Este imaginário se faz fortemente presente no Sermão do Padre Vieira pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda.

A luta contra os hereges (os mulçumanos) na Península Ibérica se estabeleceu em torno da fé numa mentalidade guerreira que une a Espada e a Cruz – insígnias das Armas de Portugal. E tudo isso com a autorização do papa, aquele que detinha a autoridade espiritual e temporal em todo o mundo

O projeto colonialista brasileiro foi consolidado num imaginário em que as ações portuguesas são sancionadas pelo direito divino dado ao rei. É preciso considerar também no imaginário colonial brasileiro as correntes messiânicas presentes entre os portugueses, como o “Sebastianismo”, que contemplava a expectativa de restauração do trono português com a volta de Dom Sebastião, herói da fé morto em combate contra os mulçumanos. Esta volta era um mito cultivado principalmente pelos jesuítas, grupo do qual Padre Vieira era integrante. Padre Vieira acreditava na volta sebastiãnica para restaurar o poder de Portugal.

Por um lado, o imaginário religioso sustentava a visão missionária de combate aos infiéis e da conversão dos gentios (índios). Por outro, o imaginário colonial de Cristandade se sustentava em três conceitos: a crença de que a terra é herança dada por Deus; a sacralidade da realeza como legítima representante de Deus, e, a eleição do povo português como povo escolhido para edificar uma nova sociedade cristã e realizar o reino de Cristo sobre a Terra.

Este duplo imaginário, religioso e colonial, é que dá substrato e fortalece os discursos de Padre Vieira em seus Sermões e escritos.

Uma viagem pelo Sermão

Faremos uma análise do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda, mas não na perspectiva teológica ou doutrinal, nem dos méritos da retórica. Pretendemos nos lançar no imaginário e exercitar a percepção imaginária do discurso, do cenário, do orador e do próprio Padre Vieira, o jesuíta, considerando a conjuntura imaginária exposta anteriormente.

O orador e o padre são a mesma pessoa, no ato do discurso em duplo papel: o taumaturgo da retórica do barroco e o jesuíta missionário fiel ao papa e ao rei. Imaginando e recriando o cenário que envolve o orador na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, e abstraindo do sermão os movimentos do pregador sobre o púlpito, pode-se imaginar o desenrolar da cena em que o discurso é pronunciado.

O Sermão está organizado em cinco partes, chamadas tomos. Analisaremos cada um deles como um expectador que acompanha a cena e observa o desenrolar da ação do orador. Regressamos, pois, á Cidade da Bahia no ano de 1640. Estamos na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, lotada de fieis e admiradores que acorreram à Adoração do Santíssimo Sacramento para ouvir o glorioso taumaturgo lusitano.

Na introdução, o orador lança um trecho do Salmo 43 da Bíblia como introito do Sermão, e já nas primeiras palavras sinaliza para quem é dirigido seu discurso, dando o tom do desenrolar da pregação: “Acordai, Senhor! Por que dormis? Despertai!”. As palavras de introito são dirigidas diretamente ao Santíssimo Sacramento, exposto sobre o altar. Portanto, Padre Vieira está no púlpito olhando diretamente para o Santíssimo Sacramento. Voltar-se para o público e voltar-se para o altar será seu movimento ao longo da pregação. Padre Vieira fala para seus ouvintes, mas estabelece um monólogo com Deus Altíssimo arrebatado por uma inspiração patriótica. As atitudes de voltar-se para os ouvintes e dirigir-se ao Santíssimo exposto no altar configuram atitudes que se repetem por várias vezes ao longo de todo o sermão.

Levantai-vos e livrai-nos

No tomo primeiro, Padre Vieira dirige-se ao Santíssimo e faz severas advertências. O uso constante de anáforas3 dá veemência às advertências que o pregador defere contra Deus, bem como à exaltação da misericórdia divina, como motivo suficiente para uma intervenção em favor dos portugueses. As circunstâncias conflituosas daquele contexto, marcado pela iminência de uma invasão holandesa, leva-o a um monólogo com Deus, ali exposto no Santíssimo Sacramento. Muito mais que clamar pela misericórdia divina, o Padre ‘‘exige’’ de Deus um livramento imediato no versículo 27 do Salmo 43: “Levantai-vos em nosso socorro e livrai-nos, pela vossa misericórdia”.

Padre Vieira utiliza a mesma passagem bíblica por muitas vezes ao longo da pregação, ora recordando o contexto bíblico do clamor do profeta-rei Davi, ora para fazer um paralelo à situação enfrentada pelos portugueses com a invasão holandesa. Ao longo do sermão, retoma, enfatiza e até mesmo “ordena” a misericórdia divina em favor dos portugueses e brasileiros.

Padre Vieira cita também outras passagens bíblicas fazendo menção às vitórias conquistadas pelos hebreus no passado. Faz um confronto entre os textos bíblicos e os grandes feitos ou às proezas e conquistas dos portugueses desde a origem de Portugal, inclusive as terras brasileiras. Ele atribui a Deus todas as vitórias de Portugal, e faz uma comparação das conquistas portuguesas com as conquistas dos israelitas na Terra Prometida.

Na visão de Padre Vieira, foi Deus quem elegeu os portugueses como conquistadores do desconhecido e colaborou com Portugal desde a expulsão dos mouros e Reconquista da Península Ibérica4 até a conquista do e o Brasil, em suas palavras uma “miserável província”. Baseando-se nestas afirmativas, justifica a expulsão dos holandeses “hereges”. Passa a ideia de que Deus ofereceu Portugal ao mundo desconhecido (as Índias ocidentais), para que os portugueses concedessem ao mundo o conhecimento do próprio Deus: a “verdadeira Fé católica”.

Em nome da verdadeira fé e da vontade de Deus a colonização é justificada. Os portugueses seriam os arautos que levariam ‘‘a verdadeira’’ religião aos bárbaros e ingênuos indígenas, ao negro e ignorante etíope desprovido de conhecimento. O orador se queixa perante Deus presente no Santíssimo Sacramento, dizendo que seria melhor nunca ter conquistado o Brasil para o próprio Deus a ter que ‘padecer cruelmente nas mãos dos pérfidos, dos insolentes, dos excomungados e ímpios hereges, como chamava os protestantes, especificamente os holandeses. Em sua indignação, quase que obriga Deus a agir a favor dos portugueses.

A “verdadeira Fé” e a supremacia da Igreja católica em relação às outras religiões é evidenciada em todo o Sermão. Assim, o pregador se apresenta diante de Deus, contrapondo as religiões protestantes com a excelência da religião católica. Naquela situação de ameaça de uma invasão dos ‘hereges’ holandeses, os inimigos da ‘‘verdadeira igreja’’, o Padre Vieira apresenta a Deus o sentimento dos portugueses, já acostumados a conquistas sob proteção divina, dando a ideia de que serem vencidos pelos inimigos significava o abandono por parte de Deus. Os protestantes luteranos e calvinistas eram tratados pela Igreja Católica como hereges e uma ameaça á “fé verdadeira”, a católica.

Padre Vieira faz protestos e repreensões a Deus, que é posto como juiz da futura disputa entre portugueses e holandeses. Assim, angaria o bem querer dos ouvintes5 que são alcançados pelo discurso em seu sentimento de abandono. Em seguida, volta-se para os ouvintes e exalta a grandeza do Reino de Portugal e a miserabilidade da província do Brasil. Com isso, sinaliza a pertinência do texto bíblico, o Salmo 43, escolhido como tema de seu sermão, ressalta sua importância tanto para os tempos bíblicos (ocasião em que o povo era vitimado pelos inimigos de Israel) como nos tempos atuais (ocasião da pregação, em que o Brasil estava sendo tomado pelos holandeses).

O orador se volta para o altar e dirige-se ao Santíssimo pela segunda vez, faz a exaltação da presença de Deus junto aos portugueses e no contexto brasileiro. Toca o âmago dos ouvintes com a exaltação da presença divina para ganhar seu beneplácito. Ao reforçar a proteção divina enaltece o ego dos ouvintes: os abençoados de Deus. Então, volta-se para os ouvintes e para captar-lhes a atenção, e discorre sobre as desgraças do tempo bíblico as desgraças do tempo presente.

Na terceira vez que o dirige-se ao Santíssimo, queixa-se do abandono de Deus aos portugueses, devido ao sucesso dos holandeses em suas investidas anteriores. O orador se queixa e se desculpa, dizendo que a vitoria dos inimigos pode ser a mão divina castigando seu povo. De vencedores e despojadores (os portugueses) se tornariam castigados pela justiça divina e vítimas da cobiça dos inimigos (os holandeses6 ). Mas, se assim for a vontade divina, nada mais justo que assim seja. O orador faz uma analogia entre as dores do presente e as dores do passado apresentadas pelo rei Davi no Salmo 43. Ele apresenta uma situação digna de misericórdia, de sofrimento e de humilhação dos portugueses que deixaram sua pátria para perder tudo em terras estrangeiras e nas mãos dos hereges. Em seguida, captura a atenção e o sentimento dos ouvintes enfatizando a perda da pátria, da casa e da vida nas mãos dos hereges (os protestantes holandeses), remetendo-os ao contexto europeu da Reforma Protestante em andamento.

Padre vieira volta-se para os ouvintes e sinaliza que há pessoas que atribuem as desgraças à mudança da monarquia: da família dos Avis (1495 Dom Manuel e, em seguida, Dom Sebastião) para a dinastia dos Habsburgos (1580 - rei Filipe II), e depois a para a casa de Bragança (1640 – Dom João IV). Afirma que a dor de perder tudo, inclusive a honra e a fama para os hereges insolentes só aumenta quando se contrasta as desgraças do presente com o auge das vitórias portuguesas do passado. Com a sinalização do contexto político pede ao público para não colocar a culpa na mudança de monarquias e enfatiza aos ouvintes a aplicação do Salmo 43 ao Reino de Portugal – o Reino de Portugal é de Deus, Deus é o rei de Portugal, portanto, é Deus é quem manda e governa o Reino de Portugal, e, por conseguinte, suas colônias. Em seguida, situa a vontade de Deus – certeira e sem engano – sobre Portugal para dar razão a si mesmo em seu sermão, que tem como objetivo dar conselho ao próprio Deus.

Se Deus é quem governa e manda, Ele mesmo é a causa das mudanças e calamidades. E só ele poderá dar fim ao sofrimento. O orador repete os versículos do Salmo fazendo a chamada para o tema do sermão a fim de enfatizar o objetivo da pregação. Atrai para si as atitudes de Davi, no Salmo 46, e de Marta, no Evangelho, de atrevidamente chamarem a atenção de Deus. Davi se atreve a aconselhar a Deus, acusa a Deus de descuidado, pois dorme enquanto as desgraças estão acontecendo. Marta interroga Jesus sobre a morte de Lázaro, dizendo que Lázaro não teria morrido se Jesus tivesse chegado mais cedo.

O orador mostra que Davi alcançou seu objetivo de aconselhar Deus a acudir o povo, e demonstra que o clamor pela justiça de Deus, feito por Davi teria deixado Deus sem palavras. Do mesmo modo, teria efeito o seu sermão. Ele recorta e comenta os versículos da chamada temática parte por parte e se justifica para fazer suas advertências a Deus. Deus não poderia repetir de novo os descuidos do passado. Por isso, o aconselhamento daquele sermão vale mais pela honra do próprio nome de Deus do que pelo bem do povo. Com o protesto apresentado contra o abandono recai a sentença: o prejuízo será de Deus se Ele não socorrer o seu povo. Assim, o tema principal do sermão é retomado em forma de petição, dando ênfase ao pedido de libertação dos holandeses.

O orador volta-se para o Santíssimo exposto pela quarta vez, e dialoga com o personagem invisível que está por trás da hóstia no ostensório. Faz interpelações ao Santíssimo como a uma pessoa sentada na cadeira dos réus e ao mesmo tempo na cadeira do juiz. Acusa e pede, protesta e clama por misericórdia. A trama de Davi foi o recurso usado para relembrar Deus de sua misericórdia. Padre Vieira usa o mesmo recurso de Davi para interpelar a Deus e estabelece um sermão dirigido diretamente a Ele com suas imprecações. Assim, estabelece uma postura de confiança na misericórdia divina, e interpela protestando. Dirigindo-se ao Santíssimo coloca os ouvintes em sintonia consigo e apela pela mãe: Nossa Senhora da Ajuda

Padre Vieira leva os fieis a tomarem parte em suas palavras enfatizando o pedido de ajuda na casa de Nossa Senhora da Ajuda, um apelo ao imaginário religioso dos fieis presentes na Igreja.

O orador enfatiza o protesto para captar a benevolência divina no atendimento ao pedido de ajuda, e ao mesmo tempo joga para Deus a responsabilidade da causa: que Deus tenha a honra de atender em seu próprio nome. Padre Vieira não pede favor, mas justiça, pois a causa primeira é de Deus. A repetição enfática (anáfora) da expressão Pela honra do nome misericordioso mostra que a causa é de Deus mesmo. E com tal repetição demonstra confiança em sua argumentação com Deus, uma demonstração de intimidade com Deus a ponto de conversar como quem está bem próximo Dele e de poder arguí-Lo repetidas vezes:

Por que dormis? Por que esqueceis?

Depois de captar a benevolência dos ouvintes e acreditando ter captado a benevolência divina também, apresenta o plano de sua argumentação: arguição, eficácia e rendição final. Por fim, apelação à Mãe de Deus. Conclui sua Captatio benevolentiae apresentando seus propósitos diante de Deus e promete apelar para a Virgem Santíssima caso não seja atendido por Deus. Conclui a primeira parte do sermão com a oração da Ave Maria, sinalizando sua sintonia amorosa e confiante em Nossa Senhora da Ajuda.

Acorda!

No tomo segundo, o orador continua usando de anáforas, cuja mais enfática é por que Deus está dormindo? Acorda!!! O orador parece voltar- -se para os ouvintes e retoma o questionamento inicial do sermão noutra perspectiva. Padre Vieira coloca-se no lugar de quem faz a pergunta e se justifica com seus ouvintes. Aplica a si mesmo a tradução de Rm 9,20 a si mesmo, no atrevimento de questionar a Deus: “Homem, quem és tu, para que te ponhas a altercar com Deus? Porventura o barro põe-se às razões: por que me fizeste assim?”

Ele faz imprecações contra sua própria realidade humana para justificar a argumentação que fará diante de Deus.

Volta-se para o Santíssimo exposto pela quinta vez para apresentar seus argumentos como criatura, sinalizando quem é o Criador. Apresenta exortações a si mesmo para se dobrar diante de Deus e exalta a misericórdia divina. Argumenta sobre a misericórdia que é maior que a severidade: nunca chegais com a severidade do castigo aonde nossas culpas merecem. O orador justifica a razão de seus argumentos, afirmando mais a confiança na misericórdia divina do que presunção de ser justo. Justifica o limite das palavras em alcançar os limites sagrados e afirma que só poderá continuar seu discurso por inspiração divina, como fez Moisés e Davi. A argumentação da justiça de Deus com base na misericórdia e uma maneira de alcançar a própria misericórdia divina.

Padre Vieira dá razão a Deus pela sua ira contra ingratidão do povo hebreu por ocasião de sua peregrinação a caminho da Terra Prometida. Mas sinaliza a Deus quem é Deus e quem é o povo, e o que cabe a Deus. Deus tem mais razão para não castigar do que para castigar. Retoma os argumentos de Moisés sobre a possibilidade de seu povo ser insultado pelos egípcios por falsa fé e confiança num deus que castiga. Se Deus castigar o povo dará razão aos egípcios; o povo acusado de falsa fé confirmado por um deus que castiga. Em seguida, usa os mesmos motivos de Moisés para reforçar seus argumentos sobre a possibilidade de os portugueses serem insultados pelos gentios, os índios brasileiros, pelos mesmos motivos: falsa fé num Deus que castiga. Repete enfaticamente (anáfora) a interpelação: Olhai, senhor, que dirão?

O orador volta-se para seus ouvintes e demonstra o valor de sua interpelação como o foi a de Moisés. Moisés convence a Deus a revogar a sentença. Logo depois, volta-se para o Santíssimo Sacramento pela sexta vez e conversa com Deus no Santíssimo Sacramento confiante no valor de seu sermão. Padre Vieira sinaliza a Deus que Ele haverá de se arrepender de castigar os portugueses nas mãos dos holandeses, como o fez no passado com os israelitas. E Deus deverá fazer isso por causa de seu nome. Enfatiza anaforicamente, e pela ênfase, nos faz imaginar que o orador põe o dedo em riste para o Santíssimo exposto: “Olhai, senhor, que dirão?” O orador faz advertências a Deus sinalizando para as possibilidades de abusos e blasfêmias por parte dos hereges holandeses insolentes (os protestantes holandeses seriam os novos egípcios).

O orador apela para a honra do próprio nome de Deus, afirmando que essa causa é mais importante do que os castigos e a destruição do Brasil. Apresenta o argumento de que a Deus é o culpado pelo domínio dos hereges. Faz então um novo apelo a Deus pela honra de seu nome. Podemos imaginar que o orador põe o dedo em riste, apontando para o Santíssimo exposto, e interpela a Deus para que reverta a situação em favor dos portugueses, e que a mesma ira se volte contra os hereges protestantes. Faz o pedido de intervenção na situação que está desfavorável aos portugueses e apela para que se salve a verdadeira fé Romana. Apela pelo zelo dos recém-convertidos, inocentes dos erros dos portugueses. Se houver motivo para castigo que esse não se abata contra os povos inocentes. Pede pelo bem dos índios, contra o risco de perderem a fé. Com este apelo, atrai a misericórdia divina sobre os portugueses que merecem ser perdoados. Faz pedido de perdão pelos pecados dos portugueses, que são menores do que os pecados dos hereges. Com o perdão aos portugueses também os índios são beneficiados e protegidos.

Padre Vieira sinaliza a Deus os méritos de quem deixou sua pátria em nome da Fé, valoriza a atitude dos portugueses de virem ao Brasil para contrapor seus erros. Apela para o reconhecimento do esforço dos portugueses e dá razão às suas queixas como foi justo os clamores de Jó, na antiguidade. Ao final da segunda parte do sermão deixa perguntas no ar, perguntas dirigidas a Deus e que aguardam por uma resposta. Trata-se de um apelo por justiça e misericórdia. Ao dirigir-se a Deus, o orador faz com que os ouvintes se apropriem do clamor apresentado diante do santíssimo, e se reconheçam no discurso a realidade sofrida pela invasão dos holandeses. O clamor do orador se torna o clamor dos ouvintes interpelando a consciência justa de Deus.

Será que Deus se arrependeu?

No tomo terceiro, logo de início, percebe-se o apelo pessoal do orador diante do Santíssimo Sacramento. Padre Vieira inicia o terceiro tomo de seu sermão com uma prece pessoal diante do Santíssimo. É a sétima vez que ele se dirige ao Santíssimo. Coloca-se pessoalmente em oração para captar atenção divina ao seu sermão. Depois apela para a retidão das decisões divinas: será que Deus se arrependeu de dar as terras do Brasil aos portugueses? Faz um apelo à memória da origem de Portugal como nação escolhida por Deus para desbravar o mundo. Apelo ao simbolismo das armas e suas insígnias: as chagas de Cristo. Exaltação dos portugueses contra os holandeses nas insígnias e nas armas. Aponta as realizações portuguesas como obras de Deus, em nome da fé, com sacrifícios e zelo. Advoga o esforço dos portugueses. Em seguida sinaliza que não é justo que tudo se perca em favor dos holandeses, pois seria contradição do próprio Deus. Apela pelo risco contra o nome de Deus e faz apelo à consciência de Deus com a imagem da contradição: E o que será feito de vosso glorioso nome?

O pregador usa a anáfora, enfatizando que: os (novos) egípcios dirão que nos trouxestes ao deserto para nos apagar da face da terra. Valoriza o esforço dos portugueses, tocando o reconhecimento dos ouvintes sobre suas realizações: Se é para perder tudo o que se realizou, melhor seria não ter realizado. Faz perceber que é indigno o abandono de Deus.

Ao apelar para a memória de Deus na história de seu povo, Padre Vieira reporta-se aos apelos de Josué na conquista da Terra Prometida para mostrar que o povo foi provado, mas Deus foi fiel naquela ocasião e o será novamente. Assim alimenta a esperança dos ouvintes. Temos muito mais razão do que Josué. O orador estabelece um monologo com Deus, olhando para o Santíssimo como se fossem os próprios ouvintes conversando com Deus. Afirma que é castigo dar e depois entregar aos inimigos. Coloca os ouvintes como um povo injuriado pelo que poderá acontecer se Deus apoiar os holandeses. Uma grande injustiça: os holandeses não plantaram e agora colhem, não construíram e agora usufruem. Questiona o esforço perdido: Eis aqui para quem trabalhamos, em cujas culturas semeamos!

Com sabedoria, Padre Vieira faz uma proposição evasiva, e parece estar olhando para o vácuo: “Vontade de Deus?”. Seria melhor Deus acabar logo com o Brasil, com os portugueses. O orador usa o discurso trágico colocando os portugueses como a vítima das vítimas. Voltandose novamente para o altar, pela oitava vez, afirma a Deus que depois não será possível reconquistá-lo. Insere os ouvintes nos clamores de Jó. Compara-se a Jó em seus tormentos. Retoma os clamores de Jó e aplica ao seu contexto: “Eu vou dormir agora, se me buscardes amanhã, que me não haveis de achar. Por agora eu vou dormir, e se tu me procuras na parte da manhã, não existirei mais.” (VIEIRA, 1959: 312)

Depois parte para a força retórica de apelar para a sentença final contra si mesmo: “Já que não queres me ajudar então acaba de vez comigo”. Padre Vieira insere a “condição do Brasil diante dos holandeses” na “condição de Jó diante dos sabeus e caldeus”.

Voltando-se para seus ouvintes, o orador ironiza a situação para afirmar que Deus tomou a decisão errada ao escolher a Holanda para ser beneficiada em seus empreendimentos. Encerra a terceira parte do sermão parecendo deixar “Deus com a mão na consciência”. Faz ironia contra a Holanda que se tornou herege.

Não vos conheço!

No tomo quarto, o orador se dirige ao Santíssimo Sacramento pela nona vez, retoma o sermão de outro angulo, dando razão a Deus que é todo poderoso e que tudo sabe, como aquele que chama para a festa quem Ele quiser. Exalta a soberania de Deus e apela à disposição da Providência Divina. Alude que Deus pode favorecer os holandeses se assim o aprouver. Pois Deus mesmo admitiu os cegos e mancos, e os introduziu em seu banquete. Assim, pode ser da liberalidade de Deus convidar os hereges para a festa. Ao comparar os portugueses com os convidados para o banquete, afirma que eles não se recusaram a colocarem-se á mesa. E que, portanto, é injusto colocar os holandeses à mesa do banquete (as terras do Brasil) uma vez que os portugueses já estão à mesa (tem a posse das terras brasileiras). Apela contra o engano de Deus. Afirma que na parábola das virgens, todas elas se renderam ao sono, todas adormeceram. Todas dormiram. O orador utiliza a parábola das virgens para advertir a Deus de que está cometendo um engano ao não reconhecer as lâmpadas da fé acesas nos portugueses, mas apagadas nos hereges. A resposta para as virgens insensatas foi: não vos conheço! A contundência desta afirmação é usada para reforçar a quem se deve aplicar a sentença não vos conheço aos hereges. O fechamento da porta deve ser para os hereges e não para os fiéis.

Inserindo os ouvintes no Sermão, Padre Vieira afirma que aqueles que mantêm a chama acesa estão na cidade que leva o nome de Salvador. E se for da vontade de Deus que os hereges tomem conta da cidade da Bahia, é melhor medir as consequências, pois que ela já tem o nome de Salvador. O prejuízo pode ser maior ainda, pois a cidade do Salvador não pode ser entregue aos hereges: Como pode Deus se esquecer de sua cidade?

Com outra referência bíblica, o orador retoma o arrependimento de Deus por ocasião do dilúvio para adiantar que é melhor se arrepender antes, desta vez. Faz um apelo ao arrependimento de Deus, enquanto é tempo. Parece, assim, angariar a aprovação dos ouvintes que estão em Salvador, e merecem serem salvos. Lembra a Deus de que no dilúvio o arrependimento veio tarde, seu coração se quebrou de dor naquela ocasião.

Padre Vieira apela pela humanidade de Deus adquirida na humanidade de Cristo. Relembra a Deus de sua promessa, a promessa de não repetir a tragédia do dilúvio. O orador apela pelo sentimento de Deus, para que não se sinta arrependido depois de consumar a destruição da cidade de Salvador. No entanto, ironiza que se Deus for capaz de se suportar tanto sofrimento novamente, que se cumpra sua vontade. Para condoer a Deus o orador dramatiza a situação, e o faz para comover seus ouvintes também. Apresenta o imaginário de um possível cenário futuro da destruição que os holandeses poderão causar. Relembra a Deus do castigo aplicado a Nínive.

Depois afirma uma sentença contra Deus – Deus vai provar do próprio castigo. Deus vai experimentar do castigo que aplicar aos portugueses, apontando as consequências deste feito. Ironiza e satiriza a possibilidade de Deus permitir que a destruição aconteça nas mãos dos hereges. Por fim, apela para a presença da Virgem Maria no Calvário e na Igreja da Ajuda, afirmando que nem que seja por essa presença Deus haverá de se ter misericórdia.

Um cenário de agravos, de destruição da cidade, das igrejas, de profanações e sacrilégios é apresentado com dramaticidade. O drama final incorrerá na destruição do Brasil e da cristandade católica – previsão do fim da Cristandade Católica. O orador aponta para o Protestantismo tomando o lugar do catolicismo em todos os cantos e faz a previsão do crescimento do Protestantismo. Afirma que com tudo isso o sofrimento de Deus será muito grande. Será o sofrimento pela perda das ovelhas confiadas a São Pedro (Igreja Católica). Desse modo, o drama da realidade é transferido para a consciência divina, e o orador interpela a identidade divina diante do engano, propondo-lhe o arrependimento antecipado.

Para reforçar o esquecimento de Deus, Padre Vieira apela pela lucidez divina, sugerindo um possível lapso desde a criação do mundo: por não ter afirmado que o homem é bom. Deus Criador viu que tudo era bom ao final de cada dia da criação, mas a criação do ser humano não recebeu esse reconhecimento. Pelo contrário, no dilúvio Deus teria se arrependido de criar o homem.

O orador faz uma ênfase retórica ao arrependimento antecipado de Deus por ser esse arrependimento inerente à condição divina. Padre Vieira sensibiliza a Divina Providência para que se arrependa antes de castigar, enquanto é tempo. Sensibiliza o arrependimento divino antecipado com a demonstração da fidelidade das almas católicas. Apela á dimensão do prejuízo espiritual: risco de perda de muitas almas, que advirão do não arrependimento antecipado.

Com esse discurso o orador encerra a quarta parte do sermão e aponta para o risco de perda até mesmo do Santíssimo Sacramento que está exposto naquele exato momento.

Pela tua misericórdia

No tomo quinto, Padre Vieira caminha para a conclusão apresentando aos fieis suas justificativas. Segundo ele, Deus é sempre justo e misericordioso: justo em castigar o Brasil por causa de seus pecados; muito mais misericordioso por causa da honra e gloria de seu santíssimo nome. Se os pecados do Brasil são grandes, maior ainda é a misericórdia divina

Padre Vieira entra na última parte de seu sermão apresentando como justificativas o arrependimento dos fiéis, a exaltação do nome de Deus Misericordioso, o crédito e a honra ao santíssimo nome de Deus.

Com a anáfora: pela tua misericórdia / pelo teu nome, reforça seus motivos no nome misericordioso de Deus e na misericórdia divina que é maior que os pecados dos portugueses: “Por amor de vosso nome, Senhor, estou certo de que me haveis de perdoar meus pecados, porque são muitos e grandes.” (VIEIRA, 1959: 320)

O orador enfatiza sua fala e para obrigar aos ouvintes ao acolhimento do seu discurso. Padre Vieira mexe com a consciência dos fieis para o reconhecimento de seus muitos e grandes pecados. Parece voltar-se sobre si em posição de exame de consciência, e de frente para seus ouvintes propõe o reconhecimento de que Deus é misericordioso com quem se arrepende, e o faz pelo amor de seu nome que é misericórdia. Afirma que se Deus tem razão para castigar, tem ainda maior razão para ser misericordioso. Nisso consiste sua Glória. O orador alcança a razão de Jó em pedir misericórdia para dar razão ao seu próprio pedido de misericórdia. É razão de Deus agir com misericórdia e sua gloria se torna maior quando perdoa. O orador coloca o homem e Deus cada qual em seu lugar: pecar é condição humana; perdoar é condição divina. É no perdão que se sustenta a soberania divina. A atitude de castigar abate o poder de Deus. A piedade / misericórdia ostenta a majestade divina.

Padre Vieira faz referência a equinocial, um episódio em que se trata do desrespeito da França ao Tradado de Tordesilhas que dividia os territórios da América entre os Países Ibéricos. Pelos ventos os franceses foram levados para o norte incorrendo no domínio do Quebec, no Canadá. (parece uma lenda). Nesse episodio, os desobedientes franceses castigados por Deus Foram levados como folha pelo poder do vento. Menciona o episódio para enaltecer o poder de Deus.

O orador faz a exaltação da justiça divina. Parece estar convencendo os ouvintes de que os castigos de Deus são justos. A Glória de Deus é justiça, e se ainda assim for justo o castigo, que ele, o castigo, não venha antes que seja concedido o perdão dos pecados. Ele faz uma tradução livre do Salmo 7,12 e coloca Deus como o Legislador Supremo, diante do qual pede perdão, mostrando que o sol não deve se por antes de se cumprir a vontade divina e antes que o perdão seja concedido pelos homens uns aos outros. Depois de elogiar o legislador Supremo, o orador se volta para o Santíssimo Sacramento pela décima vez. Interroga sua causa, sinalizando a contradição da mesma Lei, que deixa o sol se pôr sobre a ira dia após dia, referindo-se às constantes invasões holandesas, agora apresentadas como ações da ira de Deus. Padre Vieira interroga a Deus a respeito dos fatos reais: se Deus manda que se perdoe antes que o sol se ponha, como Ele mesmo permite a ira passar de sol a sol, permitindo que os holandeses insolentes continuem a invadir o Brasil.

O orador faz uma interpretação favorável ao seu discurso do versículo de Josué 10,13 (E o sol parou, e a lua não se moveu até que o povo se vingou de seus inimigos). Josué mandou o sol se calar para que a ira pudesse ser aplacada antes do seu ocaso. E enfatiza anaforicamente ao santíssimo exposto: O sol não se ponha sobre a vossa ira. Reclama a mesma justiça diante da ira presente por ocasião da invasão holandesa. Se o sol não responde mais a mesma lei de outrora, o que está querendo Deus? Se Deus quiser que os céus narrem sua Glória e o firmamento os seus feitos, precisará agir em tempo, para que seu nome seja reconhecido. O orador faz um apelo ao Santíssimo Sacramento, a Jesus Sacramentado: o nome de Deus seja a razão de tudo. No nome de Jesus está o início e o fim de todas as coisas. No nome de Deus se encerram todas as coisas.

Com a anáfora final: Por causa de seu nome / por causa de sua misericórdia!, o sermão chega ao seu fim, repetindo a mesma palavra de abertura. Padre Vieira parece estar olhando para o Santíssimo Sacramento e desafiando Jesus – o Salvador (na cidade do Salvador) para que seja de fato o Salvador. Apela para a simbologia do Leão da tribo de Judá (justo Juiz) e para a simbologia da Virgem da Ajuda (mostra da misericórdia divina). Pede perdão em nome da Virgem Santíssima cumprindo o que foi afirmado no início do sermão: “E se para isto não bastam os merecimentos da causa, suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja ajuda principalmente confio”. Encerra afirmando que a Mãe pode mandar, e manda que perdoe. E é bom que Deus perdoe para que os fiéis sigam o bom exemplo: como ele mesmo ensinou no Pai Nosso. Na humanidade da Virgem Santíssima intercede pelos pecadores, recordando as palavras da oração do Pai Nosso: “Perdoai como nós perdoamos”.

Padre Vieira conclama os fiéis a se perdoarem para receberem o perdão de Deus, e faz isso se dirigindo não aos ouvintes, mas ao Santíssimo Exposto. Do mesmo modo que iniciou o Sermão, voltado para o Santíssimo Sacramento, faz o encerramento olhando para Jesus nele presente. Fica em silêncio e demonstra sua fé e sua confiança no Deus Altíssimo que caminha ao lado dos portugueses e dos brasileiros. A reverência silenciosa ao final do sermão parece aproximar o pregador do imaginário dos fieis em sua confiança na soberania divina.

Conclusão

O sermão mostra a importância da oratória da época, tanto ao alcance das elites como dos simples fieis que se aglomeravam para ouvir o exímio taumaturgo. A citação de textos em latim era muito comum nas pregações dos grandes oradores católicos. O latim era língua oficial da liturgia da Igreja Católica.

O Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda é uma provocação, um estímulo ao povo para que combata os infiéis holandeses, para que assuma seu lugar de “povo eleito” e livre o Brasil dos horrores e depredações que os protestantes poderiam fazer caso invadissem a Bahia.

Padre Vieira toca o imaginário dos ouvintes com suas alegorias e provoca o cenário antecipado das terríveis catástrofes. Leva os ouvintes ao reconhecimento de seus erros e desperta a disposição de fidelidade ao Deus fiel e misericordioso. A exaltação da Palavra de Deus ao longo do sermão situa os ouvintes como partícipes da Obra Divina e como protagonistas na realização desta obra. São palavras que dão alento e ânimo aos portugueses e brasileiros perante as ameaças dos inimigos holandeses. Afinal, Deus não poderia ter se esquecido de sua aliança com Portugal desde o princípio: Portugal é fruto da vontade de Deus.

De tal modo, a valentia dos reis de Portugal e de seus missionários e desbravadores nas terras brasileiras correspondiam à vontade de Deus. O sonho paradisíaco do Brasil-paraíso / Brasil-Natureza se realizava com a conquista da terra e seu cultivo pela ação dos colonizadores. O sucesso do comercio açucareiro era prova das bênçãos divinas, da vontade de Deus e sua divina providência.

Diante do Santíssimo Sacramento, Padre Vieira enfatiza com seu sermão a palavra, a Vontade e a Obra de Deus. O Brasil é a melhor obra vinda de Deus, confiada e entregue ao povo português, um povo ordeiro e pacificador. O discurso é costurado na tessitura dos textos bíblicos, da Palavra de Deus, colocando Portugal como povo predestinado a realizar as profecias e convidado a permanecer fiel a Deus Altíssimo.

A mentalidade expansionista, doutrinária e guerreira faz o pano de fundo da pregação discorrida no Sermão pelo sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda. A intenção patriótica de Padre Vieira é de reanimar os brios dos brasileiros e dos portugueses e dar-lhes coragem para o bom combate, para a defesa da fé verdadeira e das terras dadas por Deus aos reis de Portugal. Não se sabe, porém, se o efeito moral deste sermão produziu efeitos positivos e efetivos nos ânimos dos ouvintes.

Sabe-se que os holandeses foram expulsos do Brasil em 1654. A estrela de Maurício de Nassau, que brilhou durante muitos anos em Pernambuco, esvaiu-se, e os portugueses mantiveram seu imperialismo. A exploração da terra em nome de uma suposta ‘fé verdadeira’ permaneceu cada vez mais avassaladora, e continuou, mesmo que de outra maneira, por longa data na história dos povos colonizados.

REFERÊNCIAS

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VIEIRA, Padre Antônio. História do Futuro – Do quinto império de Portugal. Lisboa. Imprensa Nacional Casa da Moeda, s. d. p. 209.

Notas

[1]A teoria da compreensão cosmológica mais antiga é a ptolomaica, também chamada de geocentrismo – modelo do universo geocêntrico, que se baseia na hipótese de que o planeta Terra estaria fixo no centro do Universo com os corpos celestes, inclusive o Sol, girando ao seu redor. Era raro quem discordasse dessa visão na antiguidade. Entre os filósofos que defendiam esta teoria geocêntrica está Aristóteles. Mas foi o matemático e astrônomo grego de Alexandria Cláudio Ptolomeu (90-168 d.C.) que deu a forma final a esta teoria. A visão geocêntrica predominou no pensamento humano até o resgate da hipótese heliocêntrica, igualmente antiga, feito pelo astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). A hipótese heliocêntrica foi criada pelo astrônomo grego Aristarco de Samos (310-230 a.C.).

[2]Várias bulas papais legalizaram o entrelaçamento entre a Igreja e o Estado no projeto colonizador português. Destacamos a bula Inter Coetera (1456), do papa Calixto III, que dava plenos poderes eclesiásticos nas terras descobertas à Ordem de Cristo, cujo chefe era o rei. (SILVA, 2006: 20).

[3]Conforme o Dicionário de Significados on line, anáfora é uma figura de linguagem na língua portuguesa, que consiste na repetição consciente de determinada palavra ou expressão com o intuito de reforçar o seu sentido. A anáfora é um recurso linguístico bastante explorado na retórica, a arte do discurso, e também por vários autores literários, principalmente entre os poetas e músicos. Por norma, a palavra ou expressão repetida está no começo de cada frase, período ou oração. (ANÁFORA, In: https://www.significados.com.br/anafora/. Data de atualização: 19/07/2016).

[4]A “Reconquista da Península Ibérica” ou “Retomada Cristã” foi um movimento ibérico cristão de cunho militar e religioso, que opôs os cristãos e os muçulmanos numa guerra secular pela recuperação dos territórios perdidos para os conquistadores árabes na Península Ibérica, durante o século VIII, quando os muçulmanos invadiram a península e estabeleceram um domínio que durou de 711 a 1492. No século XV, as campanhas militares patrocinadas pela união conjugal dos reis Fernando de Aragão e Isabel Castela consolidaram o processo de reconquista, culminando na expulsão completa dos invasores muçulmanos em 1492, com a retomada do reino de Granada e na unificação da Espanha como Estado Nacional. (RECONQUISTA DA PENÍNSULA IBÉRICA. In: https:// www.todamateria.com.br/reconquista-da-peninsula-iberica/ Revisado em 03/07/18).

[5]Este recurso da oratória é o captatio benevolentiæ, uma expressão da retórica latina que significa literalmente “atrair a benevolência”. Refere-se a uma estratégia usada em textos literários, quando o orador se dirige ao público visando conquistar a sua simpatia.

[6]Vale lembrar que a União Ibérica (Portugal e Espanha / 1580 a 1640) provocou em 1581 a declaração formal da independência da Holanda (só reconhecida pela Espanha em 1648).